Introducción
O artigo analisa as dinâmicas associadas à condição dos moradores de rua em grandes cidades brasileiras de permanecer, ao mesmo tempo, escassamente visíveis e hipervisíveis no espaço público urbano, midiático e político. Na literatura acadêmica e nos documentos de órgãos públicos e de ongs com frequência são associadas a exclusão social da população de rua e sua invisibilidade. O artigo questiona tais associações buscando demonstrar que existem na realidade luzes e sombras, onde visibilidade e invisibilidade não se contradizem.
O problema público morar na rua
Neste texto utilizamos a expressão "morar na rua" para denominar o fenômeno do homelessness em inglês ou sans-abrisme em francês (Girola, Jouve e Pichon, 2016). Essa terminologia abarca situações diversas segundo o país, contudo em uma perspectiva ampla inclui as condições de estar sem casa, sem teto, sem-abrigo e sem domicílio fixo. O fenômeno homelessness é tão estendido no mundo que a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o ano 1987 como Ano Internacional dos Sem-Teto (International Year of Shelter for The Homeless). Naquele momento, não apenas os países pobres enfrentavam o fenômeno, como havia grande preocupação em países ricos com o ressurgimento da pobreza extrema devido às mudanças no mundo do trabalho, nas condições de inserção social e nas políticas de bem-estar social.
Contudo, o problema social e fenômeno urbano "morar na rua" não se tornou automaticamente um problema público, ao contrário, era uma questão que precisava ser identificada, analisada e para a qual a sociedade passou a demandar tratamento. Nessa perspectiva, é relevante observar como a sociedade percebe e elabora sobre o fenômeno da vida na rua.
Há quase um século, Dewey (1927), chamou a atenção para a natureza construída e sensível dos problemas sociais, para o fato de que a sua colocação em evidência na sociedade requer um trabalho de atores que formam um público e que interagem em alianças ou disputas em relação à instalação do problema nas agendas política e governamental. As ações públicas resultam de processos de problematização e esforço para dar visibilidade a uma situação incômoda e que envolvem diversos tipos de atores, arenas discursivas e práticas. Examinar a agenda pública requer considerar como o problema é identificado e delimitado, quais "empreendedores de causas"1 atuam para colocá-lo em evidência e propor formas de tratá-lo.
Conforme formula uma pesquisadora contemporânea, uma perturbação torna-se um problema social em um processo onde se envolvem atores que se mobilizam por identificá-lo, mostrar sua existência, inquerir sobre suas causas e defender soluções coletivas.
Quando os poderes públicos se engajam na sua resolução, o problema social torna-se um problema público.2 (Maurin et ál, 2013, p. 208)
A presença de indivíduos, isolados ou não, sem domicílio e que vivem nas ruas das cidades ou em constante deslocamento pelo território é antiga como problema público, no sentido de situação que a sociedade e o Estado procuram controlar e regular. Historicamente, as ações mais comuns foram a repressão à mendicância e à circulação no território e, posteriormente, na era dos direitos sociais, passaram a ser adotados dispositivos de assistência.
Segundo Neveu (2015), as etapas de um processo que poderia ser chamado de "carreira do problema público" compreendem 5 operações: identificar, enquadrar, justificar, popularizar e colocar em uma política pública. Tais operações correspondem aos elementos principais identificados por Gusfield (2014) 3 em sua análise pioneira sobre como a definição de um problema visa abordar o interesse geral e a ordem pública, busca promover o bem público e propõe modos de regular a situação considerada publicamente problemática. As primeiras operações mencionadas estão estreitamente conectadas, elas são: mostrar a existência do problema, anunciá-lo (ou denunciá-lo) e enquadrá-lo (frame analysis), isto é, delimitar e inserir em uma narrativa de interpretação ou promover mudanças na imagem como até então ele era percebido. A designação do morar na rua como problema público surge da conversão de um fato social em objeto de preocupação, debate e ação. Existem disputas entre atores com relação à delimitação e à interpretação do problema, suas causas e seus responsáveis, bem como com relação às práticas a serem adotadas frente a ele. A leitura, a definição, a delimitação do problema público e as práticas mudam ao longo do tempo. É indispensável dar publicidade à existência do problema e à interpretação sobre ele, suas causas e responsáveis, além de ser necessária a justificação para a ação ou tratamento. Trata-se, pois, da formação de opinião pública, de um público determinado que se sente afetado pelo problema ou envolvido na proposição de formas de enfrentá-lo (Silva, 2014). Constituem-se arenas onde narrativas, argumentos,justificações e proposições, são apresentadas por diferentes atores, frequentemente podem ser conflitivas e discordantes, em disputa para influenciar a interpretação sobre o problema público.
A politização de um problema ganha outra dimensão quando se demanda a sua inserção na agenda das políticas públicas; para tanto, é preciso tomar decisões (alternativas: elaboração/desenho) e implementar medidas (normalização: institucionalização e execução dos instrumentos da política). Forma-se um campo onde atuam promotores do problema (aqueles que o colocam, mantêm e problematizam na esfera pública) e donos do problema (a quem a sociedade atribui a função e autoridade para tratar o problema), com frequência associados a saberes profissionais e disciplinares.
O processo de formação e evolução de um problema público não ocorre em uma sequência linear ou um movimento para adiante sem volta atrás. Podem ocorrer descontinuidades, rupturas, mutação, e a superposição ou convivência de camadas de elementos que pareciam superados. Além disso, a análise da trajetória de um problema público não se reduz à da sua emergência e de sua trajetória, e à dos interesses envolvidos. Trata-se também do exame dos obstáculos que dificultam que o problema ganhe generalidade, entre na agenda midiática e política, e seja traduzido em categorias institucionais e jurídicas. O entendimento da questão, tal como as estratégias de ação, está sujeito a mudanças, pois o fenômeno pode evoluir assim como os atores envolvidos. (Brodiez-Dolino e Ravon, 2016, p. 35).
Brodiez-Dolino e Ravon (2016) apontam que, no caso da França, por exemplo, onde as mutações do sans-abrisme e de seu tratamento têm sido amplamente estudadas e permitiram identificar períodos de repressão à pobreza e à mendicância em que muitas pessoas pobres foram recolhidas em asilos e instituições fechadas, por vezes com trabalho forçado. Abolidos esses mecanismos, por muito tempo o problema não recebeu um tratamento governamental sistemático. Posteriormente, os que viviam na rua se tornaram uma questão social, parte da grande pobreza, os excluídos da sociedade capitalista e tratados na perspectiva do direito à assistência pública, sem que, contudo, as práticas repressivas tenham desaparecido totalmente. No período de extensão de direitos sociais, a abordagem da assistencial se impôs, principalmente procurando limitar, pela gestão social, um problema que insistia em estender-se a partir de 1970 com o desemprego e as mutações no mundo do trabalho. Nas últimas décadas do século XX o problema passou a ser encarado como questão humanitária que requer ações de urgência (Cefaï, 2013), o que é um paradoxo, pois está instalado como problema crônico tendo em vista que as políticas sociais até então não conseguiram solucioná-lo. Finalmente, entrou na agenda das políticas públicas o housingfirst, uma forma de abordagem do problema orientada à parcela de moradores de rua mais fragilizados principalmente quanto à saúde mental. Os tipos de ação anteriormente mencionados não se excluem reciprocamente, porém em determinados períodos um enfoque se torna predominante e é visto com maior legitimidade.
No Brasil
A história do problema público em cada país é diferente. Também no Brasil, o fato de existirem pessoas morando nas ruas, praças e debaixo de viadutos não torna imediatamente essa situação um problema público. Para que isso ocorra é necessária uma construção do olhar, que a opinião pública, diferentes atores e analistas, empreendedores de causas ou não, mais do que enxergarem os moradores de rua identifiquem na sua presença no espaço público as questões sociais, políticas ou morais e, a partir disso, pautem estratégias de intervenção.
Na configuração do problema morar na rua as abordagens principais que se estabeleceram para sua regulação no Brasil são repressão, defesa de direitos humanos (Conselho Nacional do Ministério Público, 2015) e assistência social (Presidência da República de Brasil, 2009)4. Uma quarta abordagem, a do combate às drogas, particularmente ao crack, foi ganhando força na opinião pública e nas ações governamentais e gerou mudanças na imagem do problema. As interpretações como direito social, direito humano e combate às drogas são mais recentes e não eliminaram completamente a repressão ao pobre exposto nas ruas.
Nas metrópoles brasileiras, até os anos 90, pedintes e pessoas que ficavam nas ruas sem ter onde se alojar eram vistos somente como um problema da ordem da caridade privada ou um problema de ordem pública que deveria ser abordado como questão de polícia e segurança urbana, por meio de práticas de expulsão apoiadas no enquadramento criminal pela lei da proibição à mendicância. A ação dos poderes públicos era pontual e assistemática, restando para as pessoas o atendimento em ações de caridade ou iniciativas de associações e entidades privadas. Os raros programas governamentais relacionados a este problema eram destinados principalmente aos migrantes, em ações que reforçavam a transitoriedade e não a permanência das pessoas na cidade. A Constituição Federal de 1988 provocou mudanças importantes que levaram à fundamentação das políticas sociais a partir da década seguinte e possibilitaram avanços na garantia de direitos sociais a setores empobrecidos da população. Nessa perspectiva o tratamento do problema público morar na rua em um contexto institucional e normativo estruturado e comum ao conjunto do país seria feito a partir de 2009 (Barbosa, 2018).
A percepção e a interpretação do problema público do morar na rua, em todo o país, foram impactadas por acontecimentos ocorridos na cidade de São Paulo em agosto de 2004, quando dezesseis pessoas foram atacadas à noite enquanto dormiam na Praça da Sé e sete delas morreram. Agressões contra moradores de rua, incluindo assassinatos, não eram novidades na cidade e no país, porém, em meio às constantes notícias de criminalidade e violência, elas, em geral não recebiam destaque na opinião pública ou junto às autoridades do Estado. Contudo, nesse caso que ficou conhecido como a massacre da Sé, os crimes ganharam manchetes na mídia e rápida repercussão nacional e internacional, gerando intensa indignação na opinião pública e mobilização de organizações sociais (De Lucca, 2016). O acontecimento ganhou uma segunda vida, para utilizar expressão de Louis Quéré (2012), com a repercussão geral e fixaram-se na memória coletiva as ideias de massacre, descaso e escassa vontade para encontrar os responsáveis, ausência de justiça e crimes sem culpados e punição.
Uma série de ações voltadas às pessoas que moram na rua, surgidas posteriormente, tem em alguma medida relação com a repercussão desses crimes. A Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República passou a receber informações de violência e discriminação contra pessoas em situação de rua, bem como buscou promover a coordenação das ações de diversos órgãos públicos para enfrentá-las. Isso, além de colocar o tema no governo federal, fortaleceu as mobilizações em defesa dos moradores de rua. Ademais, o enfoque dos direitos humanos e defesa da vida deu um novo enquadramento ao problema de morar na rua e contribuiu, desde então, para trazer para esse campo as Defensorias Públicas e o Ministério Público. O entendimento de que o morar na rua seria um problema não apenas do espaço urbano e social, mas, também, uma questão de direitos humanos, ampliou e diversificou os atores envolvidos.
As diversas iniciativas que se seguiram no âmbito governamental, desde meados da primeira década do século XXI, demonstram que ocorreram tanto a identificação e colocação do problema em um marco normativo-institucional, como a sua normalização (com institucionalidade, orçamentos, atribuições, legislação, formação e capacitação de equipes profissionais e produção sistemática de estatísticas sobre os atendimentos e de estudos). No entanto, apesar das mudanças que foram se realizando na postura do Estado desde o final dos anos 90 em relação à população em situação de rua, em muitas cidades os poderes públicos não deixaram de praticar ações com a perspectiva de controle e remoção das pessoas de modo a impedir que elas ocupassem os espaços públicos para viver.
O consumo do crack nos espaços urbanos brasileiros alterou a configuração do problema morar na rua e, com isso, entraram outros atores, especialistas e dispositivos no campo das políticas para a população de rua, tanto do âmbito da saúde, quanto mais fortemente do âmbito da segurança pública (Adorno, 2016).
Em suma, o problema morar na rua que se instalou na agenda pública e passou por mutações, tem diversos empreendedores de causas e de políticas para denunciá-lo, abordá-lo e reduzi-lo. Tudo isto sem deixar de continuar sendo um problema sentido no cotidiano e com capacidade para afetar aos demais moradores da cidade.
Visibilidade, invisibilidade e hipervisibilidade
Neste item discutiremos um dos elementos importantes da perspectiva da sociologia dos problemas públicos: o fato do problema ser visto e percebido. Paradoxalmente o morar na rua é um problema invisível e visível, inclusive hipervisível devido à exposição de corpos e pertences pessoais em espaços urbanos, políticos e midiáticos.
Na literatura acadêmica e nos documentos de órgãos públicos, de organizações não-governamentais e expressões de associações, com frequência são feitas associações entre a exclusão social da população de rua e sua invisibilidade. Porém, visibilidade e invisibilidade não se excluem. É comum afirmar que os moradores de rua não são vistos, que se trata de um problema invisível. Isso não corresponde totalmente à realidade, em primeiro lugar porque não é possível não os enxergar nos espaços públicos, nas calçadas e praças, apesar de ser verdadeiro que em certas circunstâncias essas pessoas busquem se esconder para não serem vistas ou pelo menos não ficarem demasiado expostas e desprotegidas. Outras, ao contrário, se esforçam por ficarem à noite em lugares expostos, justamente em busca de maior segurança e proteção.
Por indiferença, medo, ou não saber o que fazer, os demais habitantes da cidade, os transeuntes especialmente, parecem não enxergar as pessoas que vivem nas ruas. Contudo, há muitas evidências de que sim os habitantes das cidades enxergam, se incomodam e se preocupam com essa presença. Comprovam isso, por um lado, em manifestações de intolerância, por vezes de violência5, em reclamações feitas aos poderes públicos6, e, por outro, organizando grupos de ajuda que vão ao encontro das pessoas nas ruas para fazer doações ou interagir com elas7.
Pessoas que vivem nas ruas, ocupando -com seus corpos e objetos- calçadas, praças, baixios de viadutos e pontes e interstícios urbanos, são frequentemente consideradas como indesejáveis, fora do lugar e poluidores do espaço urbano. Circulam pela cidade, por serviços de atendimento, abrigos diurnos e noturnos, locais de distribuição de roupas e alimentos. Sua presença incomoda e perturba a ordem espacial, as normas de ocupação, circulação e permanência nos espaços da cidade.
Não é raro que diversos atores -da mídia, do poder público, políticos, associações e movimentos sociais- apontem a existência de pessoas morando na rua como reflexo claro do agravamento da situação econômica, ou questão social no país, ou descuido e ineficiência da prefeitura da cidade.
A mesma mídia que informa ou denuncia em reportagens sobre o tema também esconde ou não contribui para esclarecer ou tornar melhor conhecidos aspectos do problema (Rozendo e Montipó, 2012; Giorgetti, 2007). Seria mais correto afirmar que os meios de comunicação colocam em pauta o assunto apenas em certas circunstâncias (o frio, as chuvas, a ocorrência de casos de violência). Nas mídias são constantemente veiculadas informações sobre quantos moradores de rua são e onde se concentram na cidade, bem como a posição da cidade no ranking de maior população de rua do país, quais são os motivos pelos quais as pessoas foram viver na rua (exemplificados por relatos pessoais de entrevistados). Um levantamento de notícias publicadas emjornais de maior circulação em algumas capitais brasileiras em 2017 e 20188 permitiu constatar a grande quantidade de artigos que mencionam que há uso de drogas pelos moradores de rua, agressões, mortes e assassinatos, práticas de diversos tipos de delitos9. As pessoas que moram na rua são tornadas visíveis quando se trata de associá-las às drogas, à criminalidade, à violência, à pobreza, à mendicância e à sujeira. Se estas associações predominam, existem, porém, são bastante menos numerosas nesses meios as matérias que abordam outros temas relacionados a moradores de rua (tais como suas organizações e movimentos; atendimento do poder público; suas histórias de decadência ou de superação, a descoberta de artistas e intelectuais que vivem nas ruas).
A forma predominante de identificar e dar publicidade ao problema "morar na rua" reflete as disputas narrativas e os argumentos dos demais atores e, por sua vez, os influencia. Em campanhas de críticas aos governantes locais tanto podem ser divulgadas situações consideradas como tolerância ou leniência da administração municipal com os moradores de rua e descumprimento da função da prefeitura de ordenador do espaço, o que favoreceria a manutenção do problema. Por outro lado, há matérias jornalísticas que criticam o que apontam como descaso ou abusos do poder público prejudicando as pessoas que vivem nas ruas e, consequentemente, cobram ações ou mudanças de abordagem10. Em suma, o assunto morar de rua pode ser usado de distintas maneiras como argumento crítico ou recurso de oposição. É um tema sempre disponível, que pode valer uma pauta, pois é um assunto sensível seja qual for o foco. Trata-se de tema que pode vir a ser abordado como "cotidiano" ou como "acontecimento" (França, 2012; Quéré, 2012).
Para colocar nas arenas midiáticas sua própria voz, seus relatos, ou o que alguns considerariam ser a visão real e sem estigma dos moradores de rua, surgiram em algumas cidades brasileiras diversos jornais e revistas, além de páginas na internet de organizações dos próprios moradores de rua11 ou de grupos que atuamjunto a esse segmento12. Esses veículos falam sobre a vida nas ruas, abordam temas relacionados à pobreza e à vulnerabilidade social, revelam pontos de vista sobre as políticas públicas dirigidas aos que estão em situação de rua. O primeiro foi o jornal "O Trecheiro - Notícias do Povo da Rua, criado em 1991 em São Paulo. Foram também adotadas no país experiências existentes em cidades de outros partes do mundo (International Network of Street Papers, 2019), com jornais elaborados para serem vendidos unicamente pelos moradores de rua (em sinais, pontos de ônibus e entradas de metrô) como fonte de renda para eles e que se apresentam comojornal de rua que dá visibilidade para aqueles que muitas vezes são pouco vistos e pouco ouvidos na sociedade. Essa mídia alternativa e o uso de recursos como facebook e páginas de internet por organizações e movimentos são parte de um processo que busca dar aos moradores de rua -ou ao "povo da rua" como preferem denominar alguns grupos- uma "visibilidade desestigmadora", um valor social reconhecido, uma categoria social codificada de forma a reverter o estigma (Almeida, D'Andrea e De Lucca, 2008, p. 122).
Outra dimensão desse jogo de luzes e sombras, da estreita associação entre visibilidade e invisibilidade dos moradores de rua diz respeito ao poder público. Seria o "não fazer nada", ou "fazer muito pouco" para, de acordo com a forma como se vê o problema e o tratamento a ser dado, "resolver o problema", isto é, "assegurar direitos", "incluir", "limpar /liberar as ruas da cidade da presença dessas pessoas". Nesse sentido, os que moram na rua seriam invisíveis porque são pouco tomados em conta nas ações governamentais. No entanto, mais uma vez o termo invisibilidade deve ser questionado. O termo foi pertinente no sentido de que os moradores de rua não eram considerados na política social e, portanto, estavam visíveis apenas para serem reprimidos ou serem motivo de caridade. Contudo, uma vez que os moradores de rua foram incluídos em políticas públicas, independentemente da abrangência e qualidade delas, pode-se afirmar que as ações e programas sociais contribuiriam de certo modo a tornar o problema menos visível nas ruas, na medida em que há mais vagas nos equipamentos sociais, por exemplo. Também podem ser assinaladas ações deliberadas dos poderes públicos em certos períodos e em certas cidades, para levar os moradores de rua para áreas menos centrais, escondendo-os dos olhares, e até retirando-os temporariamente em momentos de eventos, como os jogos da Copa do Mundo de Futebol de 2014 (Copa da FIFA) em várias capitais de estados brasileiros (Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis, 2014). Desse modo,
os diferentes diagramas políticos e políticas públicas voltados para atender os que vivem na rua são compreendidos como respostas orientadas a gerenciar o que se vê, com o olho do Estado, como um problema, e assim visar a minimizá-lo, contê-lo, regulá-lo ou escondê-lo. (Feltran e Arretche, 2016, p. 7)
Os conflitos entre as políticas social e urbana se manifestam de distintas formas. Ao se tornar efetiva, a política social, suas ações e dispositivos podem provocar reações contrárias, como a resistência de residentes e comerciantes de bairros da cidade à instalação de um centro de acolhimento e apoio diurno à população de rua ou um abrigo noturno13.
Deve ainda ser destacada a grande quantidade de estudos, eventos (fóruns, seminários e conferências) e publicações (cartilhas, relatórios e coletâneas) que, nos últimos anos, vêm dando evidência ao problema morar na rua no Brasil. Essas são iniciativas de movimentos sociais, organizações não governamentais e governamentais, de todos os poderes do Estado e nos três níveis da federação (ministérios, secretarias de estado, prefeituras, defensorias públicas, ministério público e legislativo14 e também do mundo acadêmico15. Instâncias diversas como fóruns, conferências e audiências públicas sobre o tema se constituem em arenas de narrativas, legitimação, disputas, poder e contrapoder.
Nessa tensão entre o que estaria ou não visível, a estatística é um recurso fundamental. Contar constantemente -em levantamentos, pesquisas, diagnóstico, censos16- para saber a real dimensão do fenômeno e sua distribuição, para conhecer o perfil de quem vive na rua, estabelecer tipologias e distinguir categorias. Os estudos escrutinam e buscam conhecer em detalhes o perfil sociodemográfico da população de rua. São estudadas também suas trajetórias de vida, seus percursos e circuitos na cidade, suas estratégias de sobrevivência. Estes conhecimentos, estatístico e qualitativo, podem ou não serem utilizados para definir ações ou aperfeiçoar políticas públicas orientadas a quem mora na rua.
Os moradores de rua não são incluídos no Censo Demográfico realizado pelo governo brasileiro17, outro motivo para que se diga que eles "não são visíveis". Diversos tipos de dificuldades aparecem quando se trata de quantificar a população de rua: sua localização pode dificultar percebê-los e chegar a abordá-los, principalmente à noite; a mobilidade dessa população não só dificulta como gera o risco de dupla contagem; extensão da área de busca e diversidade de locais de pernoite. Pesquisa nacional realizada em 2008 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, buscou suprir a lacuna estatística, porém incluiu somente 71 municípios e considerou apenas os adultos em situação de rua (Ministério do Desenvolvimento Social, 2008). As estatísticas mais recentes divulgadas pelo governo federal sobre a população em situação de rua utilizam a informação do Censo suas nas edições que registram o número de cadastrados no município que vive nas ruas (Natalino 2016). Trata-se evidentemente dos moradores de rua (que dormem nas ruas e pessoas albergadas) que são computadas porque estão cadastrados nos órgãos da política de assistência social para demanda de benefícios de transferência de renda ou prestação continuada.
Muitos municípios realizam censos ou estudos diagnósticos para dimensionar a população de rua nos seus territórios, com contagem em áreas centrais; zonas de alguma concentração e albergues. Tais pesquisas, realizadas por iniciativa das prefeituras, dão conta, em primeiro lugar, evidentemente, da contagem e distribuição espacial dos moradores de rua. Em segundo lugar, caracterizam a população de rua segundo sexo, cor, idade, escolaridade, situação de migração (origem e há quanto tempo vivem na cidade), sempre distinguindo entre quem está "na rua" ou "em albergue". Em São Paulo (Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, 2016), houve ainda coleta de informação sobre o entrevistado ser egresso do sistema penitenciário, condição de trabalho, receber benefícios de programas públicos e pensões18. Em uma pesquisa realizada pelo governo na cidade do Rio de Janeiro (Rio Prefeitura, 2013), que identificou cerca de 5800 pessoas vivendo nas ruas, há também informações sobre documentação que o entrevistado possui: doenças graves e deficiências, escolaridade, local e bairro de residência na cidade antes de estar na rua, seu histórico de moradia, situação de desemprego, se tem renda e de qual tipo, problemas mentais, contatos e rupturas familiares, violência doméstica e uso de drogas. Os estudos diagnósticos realizados para os governos municipais podem ainda incluir o mapeamento de entidades, organizações e iniciativas que dão suporte à população em situação de rua.
Considerações finais
O que apresentamos anteriormente sinaliza que as pessoas que vivem na rua, enquadradas ou não nas ações governamentais, estão sim visíveis, ainda que seja necessário considerar que as estatísticas precisariam ser mais regulares, completas e capazes de assegurar elementos de comparabilidade. Isto certamente ajudaria a revelar aspectos do modo de vida ou da realidade cotidiana dos moradores de rua que passem ainda despercebidos nos estudos.
O fenômeno da vida na rua é multidimensional e, por qualquer lado que se analise, é resultado de um processo de desqualificação social. A heterogeneidade existe seja em razão de aspectos estritamente demográficos, seja em vista das distintas etapas do processo que leva alguém a tornar-se morador de rua, seja ainda porque há grande diversidade na forma como os indivíduos vivem a trajetória de chegada e permanência na rua. Ademais, a definição e a delimitação do fenômeno morar na rua e sua operacionalização em indicadores mensuráveis, confrontados com a realidade, com o cotidiano das cidades, esbarram em situações que questionam os enquadramentos para os propósitos das políticas públicas quanto a quem é o morador de rua. É o caso de pessoas que possuem endereço fixo, porém permanecem a maior parte do tempo nos logradouros públicos. O morador de rua se confunde com o migrante ou com o trabalhador pobre que eventualmente pernoita na rua porque sua casa é demasiado distante do centro. As fronteiras são móveis ou difusas em algumas situações, existem faixas porosas. É o que demonstram os resultados de uma pesquisa realizada em São Paulo, que dá conta da grande diversidade da população de rua nessa cidade, das diferenciações internas, das fronteiras entre segmentos, de perfis heterogêneos, dinâmicos e territorializados. Estatisticamente predominam homens (três vezes maior que o número de mulheres) sozinhos:
Muitos entrevistados se consideram moradores de calçada, na tentativa de estabelecer uma diferença entre moradores de albergue ou de ocupações. Isso porque os que vivem nas ocupações utilizam os equipamentos destinados à população de rua, embora não se considerem vinculados a essa população.
[...] a população moradora das ocupações ou aqueles que acessam formas alternativas de moradia temporária têm a mesma insegurança e estão no "fio da navalha" no que se refere a sua possibilidade de não dormir na rua. Eles formam o que denominamos uma faixa porosa, que estão em uma borda entre a rua e as ocupações e entre a rua e a periferia da cidade. No caso daqueles que vivem nos prédios ocupados na região da Sé, muitos utilizam os serviços da prefeitura, como os albergues e centros de acolhida para a Pop Rua, e aproveitam aas distribuições de comida e roupas feitas pelas entidades assistenciais e grupos que distribuem alimentos. Além disso, quando são desalojados, vários vão viver nas ruas. Quanto às famílias que vivem na periferia da cidade, foi possível observar e entrevistar aquelas que diante da pobreza vêm para a região central da cidade em busca de alimentos, roupas e brinquedos, também distribuídos pelas mesmas entidades que oferecem comida e objetos à Pop Rua. (Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, 2016, pp. 69-70)
Nessa zona de fronteiras que se movem e de categorias que surgem, as ocupações de prédios vazios abandonados nas áreas centrais de algumas cidades brasileiras, por moradores de rua, mas não somente, trouxe novos componentes e desafios para o problema morar na rua. Essas ocupações mudaram as características das resistências e enfrentamentos com o poder público, as estratégias de luta, exigem outras respostas das prefeituras. Elas tiram algumas centenas de moradores de rua da visão imediata dos demais habitantes, comerciantes e visitantes da cidade.
A constante produção e difusão de informação sobre a vida na rua, que reiteradamente, seja qual for a cidade a que se refira, mostram a heterogeneidade existente debaixo da denominação "morador de rua", possivelmente parece não alterar a forma como são estes vistos pela maior parte dos moradores e visitantes da cidade. No cotidiano, no senso comum, possivelmente os transeuntes, afetados, incomodados, ou ameaçados pela existência dessas pessoas na cidade e as identificam de forma generalizada como corpos que dormem nos espaços públicos, "catadores de lixo", "mendigos", "viciados em crack".
Ao constatar-se que atualmente há maior visibilidade das pessoas que vivem nas ruas considerando a institucionalidade criada nas políticas públicas, seria importante conhecer como os moradores de rua percebem essa mudança. Um deles, Samuel Rodrigues, representante do Movimento Nacional da População de Rua/MG e membro do Conselho Nacional da Assistência Social, demonstra nas palavras citadas a seguir que as lógicas são múltiplas e que os que vivem na rua, ao serem tomados em conta na política pública, ao mesmo tempo, são transformados pelo poder público em outra coisa, não são mais pessoas:
(os governos) veem em nós apenas objetos, uma espécie de coisa que está ali e que pode ser removida a qualquer momento para um lado e para outro [...] por vezes somos alvo de projetos, tratados como se fôssemos uma ponte ou uma obra qualquer que precisa de licitação, aprovação, entre outras burocracias. (Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2010)
Ser incorporado às políticas públicas não significa exatamente deixar de morar na rua. O problema público deixou de ser tratado apenas com "repressão à mendicância" ou "remoção", para também ser tratado como gestão social, assistência, "direito à vida" e "prevenção e combate às drogas". Isso em lógicas políticas e possibilidades que podem se combinar ou estar em conflito.