Introdução
Dois aspectos dos estudos do pentecostalismo na América Latina dizem respeito a seu crescimento acelerado desde as últimas décadas do século xx e, por outro lado, sua presença importante entre a população mais pobre de nossas sociedades. Os dados quantitativos nem sempre permitem perceber a pluralidade pentecostal. A afirmação do crescimento pentecostal, apoiada nos censos, carrega sutilmente a afirmação de sua homogeneidade quando colocadas na categoria geral de "Evangélicos pentecostais", por exemplo, nos censos de 2000 e 2010 no Brasil. Este artigo se propõe demostrar o pluralismo de denominações pentecostais a partir de uma minuciosa pesquisa etnográfica num recorte do campo pentecostal, o Bairro de Perus na zona noroeste da cidade de São Paulo. Para tanto, reflete-se previamente, na primeira parte, sobre a realidade centro X periferia comum à constituição das grandes cidades da América Latina e da cidade de São Paulo em particular. É nesse contexto que, na segunda parte do texto, se analisa a enorme diversidade pentecostal do bairro em questão.
Periferia e modernidade urbana na América Latina
O bairro estudado neste artigo faz parte de uma realidade que só no final do século XX se tornou tema de maior atenção da sociologia paulista:1 população favelada que não teve oportunidade nem de ficar informada da sociabilidade sindical, mesmo quando suas horas de trabalho transcorriam na fábrica. Quando se trata de estudos de religião constata-se que até o final da primeira década do presente século a afirmação latu sensu associando pentecostalismo e pobreza, regra geral não resultava de pesquisas in situ e se apoiava fundamentalmente em dados censitários. Assim, a realidade do pentecostalismo nas periferias de São Paulo passou a ocupar a atenção dos estudiosos de religião, salvo exceções, apenas no presente século abrindo sendeiros inovadores na compreensão da realidade dos evangélicos nas periferias. No contexto carioca duas teses de doutorado merecem ser destacadas quando se trata de evangélicos e violência nas favelas. A primeira titulada Evangélicos em ação nas favelas cariocas: um estudo sócio-antropológico sobre redes de proteção tráfico de drogas e religião no Complexo de Acari (Vital da Cunha 2009)2. A segunda, A Teia do Bandido: um estudo sociológico sobre bandidos, policiais e agentes sociais (Teixeira 2013).
A periferia urbana é um fenômeno latino-americano, e não apenas do Brasil. Cabe, assim, pensá-lo nessa dimensão e vinculada ao processo de modernidade urbana capitalista comum à maior parte dos países da região, embora em graus diversos. A industrialização capitalista avançou a ritmos diversos e a modernidade nunca foi única nem homogênea.3 Complexos processos de mudança social, econômica e política estão na base do fenômeno que o termo "modernização" sintetiza e apresenta como se fosse homogêneo. Mas, não resta dúvida, que as cidades são resultado do avanço do capitalismo industrializado e da modernidade. Essa questão tem sido bastante analisada especialmente pela sociologia urbana, a história e o urbanismo.4 Evidentemente, esses processos não podem ser analisados na extensão de um artigo, mas a literatura é vasta e eloquente para sustentar a afirmação de que se tratam de processos que produziram sociedades progressivamente mais desiguais, segregadoras e excludentes: centros urbanos com regiões que concentram maior poder político e econômico, e acesso privilegiado às redes de serviços públicos e privados. Concomitantemente e de outro lado, espaços periféricos sem infraestrutura básica e pouca ou nula, em todo caso a insuficiente presença do Estado garantindo os direitos sociais básicos, como vivenda digna, saúde, educação de qualidade, transporte, etc. Não existe país na América Latina, com a única exceção de Cuba,5 cujo processo de desenvolvimento tenha conseguido sequer reduzir significativamente as desigualdades sociais. A cidade moderna na América Latina produziu ao mesmo tempo riqueza e pobreza (Silveira, 2004). Nas palavras de Santos (2000), trata-se do caráter perverso da sociedade global contemporânea. Perversa também porque ilude os próprios pobres levando-os a não enxergar a sua situação de pobreza.6
A literatura é prolixa em mostrar que a pobreza não deve ser limitada a seu aspecto econômico, à renda ou emprego, embora sejam esses fatores determinantes na configuração da situação de pobreza. A violência simbólica, como demonstrado por Bourdieu, consegue os mesmos resultados que a violência física e econômica por outros meios (Bourdieu, 1997). Nesse contexto, podemos ensaiar uma definição do conceito "periferia urbana" que aponta em direção de seu caráter complexo e relacional. Complexo porque sua explicação exige diversos fatores, não apenas econômicos, mas sociais e culturais. Relacional porque a periferia só se explica em oposição ou como contraparte dos centros urbanos como espaços privilegiados (que nem sempre se encontram no centro geográfico). A destituição econômica está muito presente na periferia. Destacamos a pobreza, como destituição dos meios de sobrevivência física e a insuficiência de renda e de trabalho. Também a inexistência de infraestrutura física adequada nos locais de moradia, questão vinculada à inoperância ou ausência de políticas sociais. Experiência comum na origem de favelas na cidade de São Paulo é a iniciativa do poder público para remover um "assentamento subnormal" que estava atrapalhando alguma obra pública ou algum investimento privado, oferecendo às pessoas afetadas todo tipo de assistência para construção de moradias em algum terreno não utilizado, mas, frequentemente as pessoas removidas são abandonadas a sua própria sorte.7 Um exemplo eloquente na história das favelas no Brasil se encontra nas origens da favela Heliópolis em São Paulo, considerada hoje a maior ou uma das maiores do Brasil e da América Latina (Sampaio, 1990 e Alessi, 2009).
Outros dois aspectos importantes do conceito de "periferia" são a violência física, da qual as pessoas que moram lá são objeto e sujeito simultaneamente, e a não garantia dos direitos básicos de cidadania. Outras formas de caracterizar a periferia são em função de seu maior nível de vulnerabilidade social (Márquez, 2004) e também pelo "Índice de Desenvolvimento Humano" (IDH) e, no caso do Estado de São Paulo, o "Índice Paulista de Vulnerabilidade Social" (ipvs),8 ou ainda sob o conceito de "fronteira urbana" que se refere à periferia com altíssima taxa de crescimento demográfico e precariedade no acesso aos serviços públicos (Torres, 2005).
O bairro, estudado neste artigo, localiza-se na zona extrema noroeste da cidade de São Paulo. Bem distante do centro. Mas, o sentido físico de distância é insuficiente para pensar na periferia. Regra geral, a população que se mobiliza em direção das periferias está composta de pessoas com maior carência econômica e social. Mas também classes mais abastadas se mobilizam a regiões distantes do centro e se fecham em seus condomínios procurando segurança, lazer, tranquilidade, etc., práticas essas que geram segregação espacial (Marques e Bitar, 2002 e Caldeira, 2000) e polêmicas jurídicas muito sérias, pois são espaços com ruas próprias, privadas.
Na periferia urbana a carência é referência importante, mas, não é referência suficiente para pensar a periferia. Inclusive quando se trata da expressão de maior impacto da periferia, isto é, a favela. No espaço social da periferia há muita criatividade, no campo social, cultural e até econômico. Os moradores da periferia não apenas sobrevivem, mas vivem, produzem e se reproduzem; tanto no plano econômico material quanto no campo simbólico cultural. A pesquisa de Nascimento (2011), resultado de uma etnografia de um período de dez anos, demostra a criatividade cultural e político-cultural da periferia de São Paulo. As religiões presentes na periferia fazem parte dessa dinâmica social e cultural com destaque para as igrejas evangélicas pentecostais objeto deste estudo, muitas das quais fazem parte da paisagem da favela desde suas origens. Questão essa muito importante na identidade dos/as pentecostais que moram na periferia. Os dados censitários das últimas décadas demostram a presença maciça do pentecostalismo nessas regiões. Essa informação leva com frequência a reforçar a ideia de uma uniformidade do campo pentecostal. Este artigo levanta uma hipótese oposta, em poucas palavras, que o pentecostalismo na periferia é muito plural e diverso, fragmentando em infinidade de denominações, como veremos adiante.
Devemos ainda tratar da periferia urbana brasileira. No caso do Brasil, ao se falar no crescimento da periferia urbana, devemos lembrar a reconfiguração geográfica da pobreza entre 1940 e 1970, período em que a população das áreas urbanas do Brasil salta de 12 milhões para 130 milhões. Diferente do vagaroso processo de urbanização dos países europeus, aqui o país se torna maioritariamente urbano em apenas três décadas. Segundo dados da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano9 no ano de 1940 o Brasil tinha 31,1 % de população urbana, já no ano 2000 a população urbana era de 81,2 % e no Estado de São Paulo de 93,4 %. Nesse mesmo período, expandiram-se os cinturões de pobreza urbana que caracterizam as cidades desse país. A uma tradicional concentração de pobreza rural, historicamente localizadas no norte e nordeste do país, se somou outra concentração de pobreza urbana. A incapacidade das cidades para absorver esse repentino contingente de migrantes se expressa bem na quantidade de pessoas morando em favelas. Apoiada em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Maricato registra que São Paulo tem 1,1 milhão de pessoas que moram em favelas (Maricato, 2006).
Em 1970 São Paulo concentrava o parque industrial que respondia por 58 % do valor da transformação industrial nacional (Seabra, 2004). A partir dos anos 80 a indústria de São Paulo começa a mostrar incapacidade para absorver a mão de obra dos/as migrantes que não paravam de chegar e com isso acelera o crescimento das periferias, a precariedade das moradias e o desemprego de seus moradores. Adiciona-se a esse quadro o crescente problema da violência concomitante à ausência do Estado.
A partir dos anos 80, tornou-se evidente nas cidades brasileiras a realidade do crime, da violência e do medo decorrente disso (Caldeira, 2003). No ano 2000 essas questões passarem a ocupar um lugar na agenda pública; tanto em políticas federais, estaduais e municipais, como também em iniciativas da sociedade civil. Exemplos disso foram: o Plano Nacional de Segurança Pública lançado pelo governo federal em 2000, o Plano de Acompanhamento dos Programas Sociais de Prevenção à Violência, diretamente vinculado à Presidência da República e que começou em 2001. Há exemplos estaduais como o movimento "Viva Rio" ou Municipais como o Projeto "Santo André Mais Igual", entre outros. Um maior conhecimento do aumento dos índices de criminalidade, não apenas a partir das notícias, mas também de dados objetivos disponibilizados por diversos centros de pesquisa, contribuiu para fazer da violência uma questão indispensável na análise da realidade brasileira contemporânea (Sento-sé, 2005).
A violência como prática de indivíduos e grupos (civis, policiais ou militares), ou como resultado das desigualdades sociais, pode ser considerada um procedimento histórico consolidado que se volta de maneira mais direta contra as camadas sociais mais pobres. Nessas iniciativas, mais tarde ou mais cedo, torna-se inevitável o diálogo com o chamado "poder local", sem cuja participação qualquer projeto de prevenção ou combate à violência corre grande risco de ineficácia. O poder local, entendido como o conjunto de iniciativas, mais ou menos espontâneas, mais ou menos institucionalizadas e mais ou menos politizadas, que conseguem eficácia na tomada de decisões sobre problemas locais, se constrói sempre a partir da realidade do dia-a-dia do lugar específico onde moram as pessoas objeto e sujeitos de violência.10
Os estudos sobre a violência demonstram que seus efeitos mais graves não se distribuem de forma aleatória. São, sobretudo, os jovens pobres e negros, do sexo masculino, entre 15 e 24 anos os que mais sofrem os efeitos da violência (Soares, 2005). A esse respeito, deve-se lembrar que as igrejas evangélicas tão presentes na periferia urbana concentram grande quantidade de população negra. O cruzamento dos dados do censo em 2000 leva sem dúvida nenhuma a essa conclusão (Jacob, Rodrigues, Waniez e Brustlein, 2003) e são especialmente as igrejas pentecostais que concentram maior número de seguidores negros/as com destaque para a Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja Universal do Reino de Deus e Assembleias de Deus, nessa ordem segundo os dados do Censo do ano 2000 (Barrera Rivera, 2005).
Pluralismo pentecostal e periferia
As regiões de periferia dos grandes centros urbanos são os espaços em que a pluralidade pentecostal se verifica com maior intensidade. Nessas regiões, conforme atestam diferentes levantamentos etnográficos, é possível encontrar uma infinidade de denominações com as mais variadas nomenclaturas em alguns casos com seus salões de reunião em endereços justapostos. São filiais de grandes denominações e também pequenas congregações independentes, algumas delas instaladas em garagens ou pequenos salões, outras com modestos templos. Tal realidade se apresenta em periferias de diferentes cidades brasileiras, como indicaram Marques V. (2019) ao estudar a Vila Leste na capital paulista, Antunes (2015) em São Carlos, Noronha (2010) em Rio Grande da Serra, Mesquita (2009) e Oosterbaan (2017) no Rio de Janeiro, só para citar alguns exemplos.
Além de comporem a paisagem local das periferias em questão, tais igrejas também constituem importantes elementos da história e da cultura local, já que, em geral não se tratam de grupos religiosos ali implantados depois que estas periferiasjá estavam constituídas, mas que se desenvolveram em paralelo a estas. A presença precoce dos pentecostais nas periferias lhes permitiu garantir terreno para seus templos, tornando-se assim parte da história do bairro. Destacando essa interligação à cultura e história locais, Oosterbaan identificou nas duas favelas que pesquisou no Rio de Janeiro como a própria "paisagem sonora", ou seja, os sons comumente ouvidos nos diversos espaços públicos da favela é entremeada pelos hinos pentecostais:
uma análise da paisagem sonora das favelas destaca o fato de que os sons e músicas pentecostais-transmitidos, amplificados e melhorados-não são recebidos e compreendidos independentemente de outros estilos musicais ou outros grupos sociais, mas em estreita relação com ele11.
Embora os dados e micro dados dos censos demográficos confirmem esta estreita relação entre pentecostalismo e periferia (Jacob et al, 2006), seu crescimento não é uniforme entre todas as denominações. Grandes igrejas como a Congregação Cristã no Brasil e Universal do Reino de Deus, por exemplo, decresceram cerca de 200 mil membros entre os anos 2000 e 2010. Por outro lado, o grupo denominado pelo Censo de "outras igrejas pentecostais" demonstrou expressivo crescimento no mesmo período, saltando de 1,8 milhões para 5,2 milhões. Nesse grupo estão enquadradas uma série de denominações de médio e principalmente de pequeno porte, que encontram nas regiões de periferia sua melhor expressão (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2000; 2010).
O mesmo fenômeno de crescimento também foi observado no período em relação à Assembleia de Deus, que entre os anos 2000 e 2010 passou de 8,4 para 12,4 milhões de membros. No entanto, vale destacar que por conta de dinâmicas históricas de desenvolvimento específicas, esta igreja se transformou em uma plataforma denominacional em que se abrigam diferentes grupos independes chamados "ministérios". Ou seja, a Assembleia de Deus, embora seja uma denominação centenária e solidificada no cenário pentecostal, está dividida em uma série de grupos dissidentes com práticas que em alguns quadrantes se apresentam num espectro pentecostal "clássico" e em outros muito próximos a pentecostalismos de origem mais recente (Alencar, 2019). Neste caso, seu crescimento deve ser creditado, entre outros fatores, a este esgarçamento institucional (Fajardo, 2019). Em todo caso, os diversos pentecostalismos no bairro de Perus são claros exemplos de pluralismo religioso no interior de uma matriz litúrgica e doutrinal original mais ou menos comum. A etnografia apresentada a seguir, pretende embasar essa afirmação.
A pluralidade de denominações pentecostais
Tendo em vista a multiplicidade de formas assumidas pelo pentecostalismo, a observação etnográfica nos permite conhecer de modo mais apurado a dinâmica do campo institucional pentecostal em sua relação direta com a periferia. Por serem as pequenas denominações muitas vezes restritas a um único endereço, não contando com uma rede de outras congregações de mesmo nome, suas atuações não reverberam para além daqueles espaços necessários para alcance do público local. Deste modo, para conhecê-las é necessário também acessar seu espaço geográfico.
Assim, para exemplificar o modo como a pesquisa exploratória fornece elementos para o conhecimento das complexas mutações do campo pentecostal, a seguir apresentamos alguns resultados de uma análise etnográfica realizada no bairro paulistano de Perus, localizado na Zona Noroeste da cidade entre os anos de 2009 e 2010, período concomitante ao colhimento do último Censo Demográfico. Tal levantamento consistiu na criação de um mapa religioso do distrito, feito a partir de sua observação intensa e extensa. Munidos de um caderno de campo, anotamos na ocasião todas as denominações pentecostais encontradas e seus respectivos nomes.
No período da pesquisa, o bairro contava com 70 mil habitantes e com 20,9 % de sua população composta por pentecostais (quando a média do município era de 11,9 %), sendo assim o terceiro distrito de São Paulo em números relativos de pentecostais (Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, S.D.). Os dez primeiros distritos nesse ranking (com exceção de Perus) situavam-se na Zona Leste de São Paulo, conhecida pelas condições de baixa renda e presença histórica de migrantes (Fontes, 2008).
Como destaca Langenbuch (1971), por conta de sua geografia acidentada a região Noroeste da cidade não se tornou atrativa para a concentração de fábricas como aquelas instaladas na Zona Leste (a começar pelo bairro do Brás). A exceção para Perus se justifica pela criação em seu território da primeira fábrica de cimento do país em 1926, por conta das jazidas de cal presentes na região. Deste modo, o bairro se tornou ao longo do século XX o endereço de chegada de sucessivas levas de migrantes oriundos inicialmente de outros países, posteriormente do interior do estado de São Paulo e de Minas Gerais e em outra fase do Nordeste do país. Posteriormente, com a diminuição progressiva da produção nos anos 70 e o encerramento das atividades da fábrica nos anos 80, Perus se transformou em bairro-dormitório. Portanto, assim como os distritos da Zona Leste, Perus tem uma relação histórica diretamente relacionada ao fenômeno migratório. Como apontou Almeida (2004), há uma relação entre movimento migratório e crescimento pentecostal na metrópole paulista.
Em nossa observação dividimos as vilas do bairro em duas macrorregiões que chamamos respectivamente de periferia consolidada e fronteira urbana, apropriando-nos assim de duas expressões cunhadas por Torres (2005). Embora todo o bairro possa ser considerado periferia, tendo em vista seus índices socioeconômicos, suas vilas mais antigas, hojejá atendidas pela infraestrutura básica de saúde, educação e saneamento apresentam terrenos e casa a preços não acessíveis aos/as migrantes que chegam ao distrito, sobretudo àqueles oriundos da migração intraurbana: trata-se da periferia consolidada. A fronteira urbana do bairro, no entanto, que engloba um complexo de vilas popularmente conhecido como "Recanto" (por ser formado inicialmente em torno da Vila Recanto dos Humildes), continua em expansão e recebendo novas famílias de migrantes. Tal processo, observado na época do levantamento etnográfico mantém-se até a atualidade. Nessa área as casas e terrenos são mais baratos e (sobretudo em suas áreas limítrofes) ainda faltam as condições básicas de infraestrutura urbana.
Feita essa breve descrição do campo de pesquisa, passamos agora a apontar as características religiosas do bairro. A observação teve o objetivo de catalogar a presença das diferentes denominações pentecostais no bairro, tanto na periferia consolidada quanto na fronteira urbana. Na ocasião encontramos 29 templos e/ou salões de reunião da Igreja Católica, 12 de igrejas evangélicas não pentecostais (de 5 diferentes denominações), 10 de outras religiões12 e 164 de igrejas pentecostais (divididas entre 60 diferentes denominações). O resultado é representado na figura 1.
Apesar do nível de detalhamento, o levantamento não é exaustivo, haja vista uma série de dificuldades enfrentadas durante a catalogação. Uma delas diz respeito à mobilidade de diversas igrejas pentecostais. Houve, por exemplo, um salão que em um período de aproximadamente seis meses abrigou sucessivamente três diferentes igrejas pentecostais. Durante nossa observação, algumas igrejas surgiram, outras mudaram de nome ou de endereço e algumas encerraram suas atividades. Desta forma, o mapa apresentado corresponde a um balanço da distribuição dos templos entre os meses de agosto de 2009 e novembro de 2010 e não a sua representação exata. De todo modo, o levantamento etnográfico do bairro remete a uma caraterística muito importante da modernidade e merece destaque. Faz parte dos fundamentos da modernidade as liberdades individuais, entre elas a liberdade religiosa. O mapa apresentado não deixa lugar a dúvidas. A liberdade para expressar, partilhar ou divulgar a religião própria está na base da presença dessa multiplicidade de formas religiosas. A liberdade religiosa garante e promove grande concorrência religiosa que, no caso estudado, acontece no mesmo bairro13.
Pluralidade pentecostal em relação às suas matrizes de origem
Embora existam questões de ordem doutrinária que remetam a uma identidade comum, as instituições pentecostais não são homogêneas. No que diz respeito à presença destas denominações no espaço da periferia, a pesquisa apontou diferentes padrões de ocupação do território. Há igrejas que conseguem uma penetração maior na periferia consolidada, enquanto outras alcançam grande capilaridade na fronteira urbana.
Das 164 igrejas pentecostais encontradas, 60 delas são Assembleias de Deus. Seus locais de culto estão bem distribuídos pelo espaço do bairro. Podem-se encontrar Assembleias de Deus tanto na região consolidada como na fronteira urbana, predominando os salões de pequeno e médio porte na região consolidada e os templos de médio e grande porte na fronteira urbana. Como dito antes, esta igreja está dividida em uma série de grupos independentes chamados ministérios. No que diz respeito aos grandes ministérios, o que mais se destaca no bairro é o Ministério de Perus, com 22 igrejas (cinco na região do Recanto), entre elas um templo de grandes dimensões em fase de construção ao lado da atual sede da Igreja, conhecido como "Catedral de Perus". Em seguida, aparece o Ministério do Belém (maior e mais antigo ramo da denominação na cidade de São Paulo), com seis igrejas (duas na região do Recanto). Também há uma igreja do Ministério de Madureira, grupo que no passado deu origem ao Ministério de Perus. Um ministério de médio porte a surgir no próprio bairro é a Assembleia de Deus em Jardim Paineira, que conta com quatro congregações, uma delas no Recanto. Três dessas congregações são templos.
Um fenômeno "assembleiano" que aparece com destaque no bairro é a multiplicação de pequenos ministérios que neste texto chamamos "autônomos", alguns procedentes de outras regiões e outros com surgimento no próprio distrito. Ao se observar os nomes de tais ministérios podemos classificá-los em dois grupos, o primeiro deles consiste naqueles que derivam seu nome do local de sua fundação, como as Assembleias de Deus dos Ministérios São Paulo, São José do Rio Preto, Brasilândia, Missão em Perus, Jardim da Conquista, Recanto do Paraíso, Centro-Oeste, Barra Funda, Vila Guilherme e Belém do Pará. Há ainda o Ministério Salmista, que apesar da referência bíblica, deriva seu nome da rua em que está situada a igreja, no Recanto dos Humildes. Alguns dos nomes apontam para a circulação de moradores de outras regiões em direção ao bairro, ou ainda com o vínculo do líder ou fundador com a localidade expressa na placa da igreja. O segundo grupo de ministérios autônomos deriva seu nome de expressões bíblicas, como os ministérios Caminho Santo, Pleno, Missões Primitivas, Maná de Deus, O Senhor é Nossa Força, Nova Esperança, Concentração Divina, Nova Aliança, Monte Sinai e Mundial Deus Forte. Há ainda a Assembleia de Deus Unida e a Assembleia de Deus do Amor de Jesus. A autonomia das igrejas permanece em alguns ministérios, enquanto em outros há uma centralização maior em torno da igreja-sede. O uso do nome Assembleia de Deus na criação de uma nova igreja revela a tentativa do novo grupo de estabelecer um vínculo com a tradição e o capital simbólico de uma denominação centenária no concorrido campo religioso local. O membro da AD autônoma estabelece assim uma identidade relacionada ao maior ramo pentecostal do país enquanto se identifica com uma comunidade local específica. Algumas igrejas fazem questão de apontar em suas placas que são filiadas a alguma grande Convenção como a Cgadb (Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil), ainda que as igrejas não façam parte da convenção, mas sim seus líderes, que dela participam individualmente (Correa, 2020). Uma das igrejas observadas no início de nossa catalogação usava o do nome Igreja Pentecostal Monte Sinai, já um ano e dois meses depois o nome presente na placa era Assembleia de Deus Monte Sinai - Filiado à Cgadb. No rol de Assembleias de Deus autônomas encontram-se apenas três templos de pequenas dimensões, os demais são salões cuja maioria está no Recanto.
A Igreja Congregação Cristã no Brasil (CCB) conta com nove locais de culto no bairro, todos templos. Diferente da Assembleia de Deus, a CCB não está fragmentada em ministérios, já que seu sistema hierárquico diminui a possibilidade de cisões e criação de novas denominações, embora na mesma época da pesquisa estivesse em curso na denominação sua primeira grande divisão, sem impacto no entanto em nosso campo de observação14. A CCB apresenta assim um grau de uniformidade muito grande. É a única denominação pentecostal do bairro que não possui salões e cujos templos apresentam padrões arquitetônicos semelhantes, destacando-se pelas cores cinza e branca de suas fachadas e nos arcos góticos de suas janelas. Também é o único grupo evangélico a manter um templo na região na Vila Triângulo, antiga vila de operários da fábrica de cimento, que atualmente conta com poucas pessoas morando entre as construções abandonadas. No templo continuam a acontecer cultos com a presença de membros de outras regiões de Perus.
A CCB, cujo fundador Luig Frances con era de origem presbiteriana, segue os princípios da doutrina da predestinação de maneira ainda mais contundente que as igrejas historicamente mais próximas do calvinismo (Pellizzaro, 2005). Neste sentido, para a CCB não há razão teológica para manifestações públicas de proselitismo ou da instrumentalização dos meios de comunicação para evangelização, já que os escolhidos serão atraídos por Deus para o caminho da graça a seu tempo. No entanto, o posicionamento dos templos no espaço do bairro indica uma preocupação da igreja com a visualização de seus espaços de culto. Os templos de Vila Caiúba (o maior da denominação no bairro) e Jardim São Paulo podem ser vistos à distância, já que estão em locais altos. Dos dois templos do Recanto, um está na principal avenida do Recanto do Paraíso, enquanto o outro pode ser facilmente avistado por quem chega ao bairro de trem. Seus templos estão geometricamente bem espalhados pelo bairro, garantindo a "cobertura" de todo o distrito.
A Igreja do Evangelho Quadrangular também se destaca no bairro, detendo o segundo maior templo da região, menor apenas que o templo sede da Assembleia de Deus Ministério de Perus. Ao todo, a igreja conta com sete locais de reunião no bairro. Embora conte com apenas dois pequenos salões na área do Recanto, a denominação se destaca pela presença na vila conhecida como Jardim do Russo, que na década de 1970 (mesmo período em que a igreja se instalou no bairro), quando ainda não existia o Recanto, era conhecido regionalmente pelos problemas relacionados ao tráfico de drogas e problemas de infraestrutura urbana. Deste modo, a Igreja se destaca pelo desenvolvimentojunto a uma antiga fronteira urbana do bairro hoje parte da periferia consolidada.
Das grandes denominações pentecostais presentes em Perus, aquela que apresenta uma maior capilaridade nas regiões mais pobres é a Igreja Pentecostal Deus é Amor. Ela tem sete locais de culto no bairro. Não há nenhum templo, todos são salões. O maior deles estava no mesmo endereço que anteriormente abrigara o antigo cinema de Perus. A fachada do salão ganhou a forma de um templo e se transformou na sede regional da denominação. Das sete igrejas, quatro delas estão na região do Recanto, sendo (ao lado da Assembleia de Deus) a única grande denominação presente no Jardim da Paz, área de maior carência econômica do Recanto, confirmando o perfil assumido por este grupo entre os pentecostais do país: na Deus é Amor estão os pentecostais mais pobres (Barrera Rivera, 2005).
A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) contava com dois locais de culto no bairro. Diferentemente das denominações apresentadas até agora, o estabelecimento da IURD aconteceu de forma diferente. As igrejas não acompanham o fluxo de crescimento do bairro inaugurando congregações. Pelo contrário, o objetivo é canalizar o público ao templo central de Perus. A Igreja está estrategicamente localizada na avenida principal do bairro, em frente ao ponto de ônibus de maior movimento. É um grande salão com estacionamento e em posição privilegiada. Embora a igreja mantivesse um salão de proporções médias no Recanto (atualmente desativado), a maior concentração de fiéis acontecia no templo central. Vale destacar que no Recanto a IURD não segue os caminhos abertos por intermédio das relações comunitárias de seus membros, como costuma acontecer na Assembleia de Deus, por exemplo. No Recanto, a IURD não é uma instituição que "nasceu na vila", mas que foi ali implantada posteriormente. Isto não quer dizer, no entanto, que não existam frequentadores da IURD no Recanto, mas que estes moradores acabam por se dirigir ao templo central do bairro.
A Igreja O Brasil para Cristo mantém duas congregações em Perus, as duas na periferia consolidada, um pequeno templo e um grande salão. Uma dessas igrejas surgiu em Perus no ano 2000, quando alguns líderes da Igreja Pentecostal Três Poderes decidiram desvincular-se desta denominação e filiar sua congregação à Convenção da Igreja O Brasil para Cristo (OBPC). A filiação permitiu à igreja aproveitar o capital religioso acumulado por esta denominação ao longo de sua história, e contribuiu para a consolidação do grupo no bairro. Foi após tornar-se "O Brasil para Cristo" que o grupo conseguiu adquirir seu próprio salão com estacionamento, estando assim próxima a uma área de considerável movimento no bairro e tendo no público jovem seu principal grupo de fiéis.
A Igreja Internacional da Graça de Deus adota um padrão de presença no bairro intermediário entre a Universal do Reino de Deus e as pentecostais mais antigas: ao mesmo tempo em que mantém um grande salão na avenida de maior circulação do bairro, também conta com três filiais em vilas distintas no bairro (entre elas o Recanto), priorizando, no entanto, ruas movimentadas.
Na época da pesquisa a Igreja Mundial do Poder de Deus havia se instalado a pouco tempo em Perus. Sua estratégia de estabelecimento foi semelhante à da Universal do Reino de Deus, ao alugar um grande salão na região central do bairro. Assim, estabeleceu-se inicialmente a poucos metros da principal Igreja Católica do bairro, transferindo-se posteriormente para um salão de maiores dimensões próximo da Igreja Universal. Embora receba fiéis de diferentes partes do bairro, não há congregações espalhadas pela vila.
Representando outro perfil pentecostal, direcionado sobretudo ao público jovem e de classe média está a Igreja Renascer em Cristo, que mantém um salão de pequeno porte na região central de Perus. A igreja já mudou de endereço diversas vezes. Já esteve inclusive a quase dois quilômetros de distância do atual local de culto. Embora esteja presente no bairro há vários anos, aparentemente não teve grande crescimento, o que pode ser explicado, entre outros fatores, pelo perfil socioeconômico da população peruense, distinto do público normalmente atendido pela igreja.
Como se percebe, as grandes denominações pentecostais se ajustam ao bairro de diferentes formas, apresentando padrões de ocupação distintas do território. No entanto, o que mais nos chama a atenção são as pequenas igrejas, que no Censo Demográfico são agrupadas na categoria "Outras Igrejas Pentecostais". Ali estão incluídas algumas igrejas já mencionadas como Internacional da Graça e Renascer em Cristo. Somando-se ao grupo destas igrejas detentoras de uma estrutura nacionalmente instituída estão também a Igreja do Avivamento Bíblico, a Igreja Adventista da Promessa e a Comunidade Cristã Paz e Vida. No entanto, somam-se à lista outras 51 denominações encontradas no bairro, a saber: Igrejas Poder e Maravilhas de Jesus, Colunas da Verdade, Javé Nissi, de Jesus Cristo, Renovação da Fé, Emanuel, Trindade Santa, Eclésia, O Modelo das Armadura de Deus [sic], Missionária O Poder da Oração, Avivamento da Fé, Coluna de Deus, Fonte de Vida, Senhor dos Exércitos Independente, de Jesus, Maior é o Poder de Deus, Cristã Maranata, Nova Vida na Graça de Deus, Vale do Deus Altíssimo, As Sete Palavras da Cruz, do Evangelho Ágape, O Resgate de Israel, Comunidade Evangélica Casa de Oração, Comunidade Cristã Comunhão e Graça, Comunidade Evangélica A Voz de Cristo, Comunidade Evangélica de Perus, Nova Vida em Deus, Nova Aliança, Unidos em Cristo, de Deus no Brasil, Comunidade do Povo Livre, Evangélica do Jardim da Conquista, União da Vitória, Eterna Aliança em Cristo, Família de Deus, Carro de Fogo, do Evangelho Pleno em Cristo, Jesus é Meu Mestre, Seara do Senhor, Fonte de Adoração, Comunidade Cristã Verbo de Deus, Alicerce de Fogo, Jesus Conosco, A Ultima Trombeta, Ministério Vida Abundante, Rocha de Israel, Batista Ser Livre, Três Poderes, Comunidade Paz e Vida e Vitória em Cristo, O Som das Trombetas e Raiz de Davi. A maioria dessas igrejas mantém pequenos salões em que realizam seus cultos, algumas funcionam em garagens que se transformam em locais de reunião durante as celebrações, enquanto outras possuem pequenos templos. Embora se espalhem por todo o bairro, sua maior força está na região do Recanto. Em grande parte dos casos, estas denominações são dissidências de igrejas maiores como Assembleia de Deus e Deus é Amor. No campo pentecostal, em que o poder religioso está fundado principalmente na legitimação carismática, é comum que surjam cisões quando há confrontos entre antigas e novas lideranças. A fluidez das instituições garante que o líder dissidente não enfrente grandes restrições diante dos leigos em apresentar uma nova instituição no campo religioso pentecostal. Diferente dos ministérios autônomos da Assembleia de Deus, os criadores de tais igrejas não recorrem ao capital simbólico associado ao nome de uma denominação mais antiga, antes decidem investir na criação de seu próprio capital, através de um nome exclusivo.
Uma das denominações que se destacam no Recanto é a Igreja Pentecostal Emanuel, que possui um templo com capacidade para cerca de 300 pessoas bem na entrada do Recanto. Esta foi fundada em 1994 por obreiros provenientes da Igreja Pentecostal Maravilhas de Jesus. A Igreja Emanuel teve seu crescimento associado ao desenvolvimento do Recanto. É a única igreja deste grupo detentora de um templo com grandes proporções, o que em parte pode ser explicado pela sua privilegiada localização geográfica e histórica no processo de formação do Recanto.
Em período anterior à realização da pesquisa, acompanhamos o surgimento de uma igreja na região consolidada do bairro. Cláudia15, membro de uma igreja pentecostal antiga, começou a realizar cultos semanais em sua casa, com a assistência de membros de sua igreja. Com a divulgação dos cultos no rádio e o prestígio que ela detinha entre os membros de sua denominação, a frequência aos cultos aumentou consideravelmente em poucos meses. Com isto, a direção da igreja decidiu incumbir um obreiro para que ficasse responsável por estas reuniões. Cláudia se opôs ao projeto e rompeu com a denominação, fundando uma nova igreja. Em poucas semanas alugou um salão em uma rua próxima a uma avenida e em cinco anos transferiu-se para esta avenida em um salão ainda maior.
A força destas igrejas no bairro varia de denominação para denominação. Algumas apresentam mais que uma congregação no bairro, como é o caso das Igrejas Javé Nissi, Poder e Maravilhas de Jesus e Colunas de Deus, que estão instaladas em Perus há vários anos. Outras, no entanto, tem duração transitória, não sendo incomum ouvir-se de igrejas serem absorvidas por outras.
Considerações finais
É evidente o crescimento do pentecostalismo no Brasil nas últimas décadas, conforme atestam os números dos últimos Censos Demográficos. No entanto, uma leitura parcial de tais números pode transmitir a ideia de que o pentecostalismo se trata de um movimento homogêneo em termos socioculturais. Embora as periferias urbanas sejam os espaços em que os grupos pentecostais aparecem com maior intensidade, mesmo nessas localidades não é possível falar de uma uniformidade garantida por uma matriz histórica comum. Fazendo eco às dinâmicas da modernidade, sobretudo a ênfase à liberdade religiosa individual, o pentecostalismo passa a adquirir múltiplas formas que combinam em diferentes doses rupturas e continuidades de padrões estabelecidos pelas denominações mais antigas. Como resultado, temos complexos mosaicos denominacionais, expressão clara de um pluralismo pentecostal, como aquele captado pelo olhar etnográfico no bairro paulistano de Perus.