Introdução
A mudança dos fluxos migratórios experimentada na nação brasileira, sobretudo no último período, tem tido grande impacto na morfologia das cidades. Tal processo ocorre, impulsionado pelo desenvolvimento de políticas públicas, que para serem implementadas exigem que novas legislações sejam criadas e outras tantas alteradas, o que têm se dado em benefício da acumulação dos construtores privados. Fato com incidência sobre transformações demográficas que têm redefinido os territórios e tornado ainda mais complexas as relações sociais.
Este artigo é fruto de observações e estudos diversos sobre este fenômeno, desenvolvidos pelo grupo de pesquisadores do Observatório de Conflitos da Cidade.1 Estudos através dos quais se têm buscado refletir e problematizar os desdobramentos da metamorfose destes espaços. Na transformação das cidades de porte médio, em objetivo final dos fluxos migratórios, que tem gerado nestes espaços a agudização das multiformes manifestações da questão social, fazendo emergir problemas que até então tinham maior expressão nos grandes centros urbanos, nas capitais e nas metrópoles.
Mais especificamente será apresentada a realidade de uma cidade, o município de Pelotas, localizada no Estado do Rio Grande do Sul/Brasil, a 260 quilômetros da capital do Estado, a cidade de Porto Alegre. Serão apresentados dados colhidos na execução dos trabalhos, pro-blematizações e reflexões que se entendem fundamentais para apreensão desta dinâmica, marcada por disparidades no que tange a garantia e manutenção de direitos políticos, sociais e econômicos.
Primeiramente será construída uma apreensão sobre o que são as cidades de porte médio e sobre o que os órgãos oficiais têm apontado a respeito delas. Assim, poderemos identificá-las e, a partir de então, iniciar um processo de problematização quanto às suas transformações. Posteriormente discorreremos sobre os conflitos e formas de habitar que se alargam em decorrência desta realidade, buscando identificar como tem se dado as ações interventivas do Estado e qual a relação dessas com tal questão. Bem como, buscaremos quais as políticas públicas têm sido desenvolvidas que impactam as transformações e para que populações elas têm se voltado.
Ainda, se no desenvolvimento das políticas os direitos das populações colocadas em situação de vulnerabilidade têm sido garantidos. Pois a privação de direitos é uma marca histórica na realidade brasileira, incorrendo na estigmatização, culpabilização e exclusão de grupos humanos, submetidos a situações diversas de violência, em que a segregação territorial é reconhecida como agravante dos problemas decorrentes da manifestação da questão social.2
Fluxos migratórios para cidades de porte médio: o caso de Pelotas
Atualmente o Brasil possui 5 570 municípios, destes, 39 são considerados de grande porte, por possuírem populações superiores a 500 mil habitantes. Historicamente é para estas cidades que se voltaram a dinâmica dos fluxos migratórios, situação que no último período tem se alterado, criando um novo dinamismo rumo ao interior do país. Fato que fez com que os municípios de porte médio, um conjunto de 261 cidades, alcançassem neste tempo as maiores taxas geométricas de crescimento.
Tal questão não resultou em variação percentual da população no conjunto das grandes cidades, que somadas abrigam atualmente 23,8 % da população (IBGE, 2014). Entretanto se forem somadas as cidades de grande às de médio porte, teremos em aproximadamente 5 % dos municípios -300 cidades- mais de 113 milhões de pessoas. O que representa, mais da metade da população do país (IBGE, 2014).
O novo dinamismo dos fluxos migratórios rumo às cidades do interior, principalmente para os municípios de porte médio é encontrado na soma de fatores diversos. Alguns dos quais abordaremos nesta escrita. Cabe destacar neste momento que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esta dinâmica é responsável por tornar cidades como Pelotas, que "em geral são importantes centros regionais em seus estados" (IBGE, 2014, p. 5), em áreas de agravo das diversas formas de manifestação da questão social.
Sobre este município, é importante apontar que já foi um polo de produção agrícola de destaque, por conta da produção saladeiril, feita pela mão de obra dos escravizados que abastecia o mercado nacional (Gutierrez, 2001). Ainda, que por conta de sua vigorosa produção industrial, no período posterior ao ciclo do charque, os engenhos de beneficiamento de arroz garantiam a manutenção de sua relevância e expressão econômica. Processo que perdurou de sua fundação, em 1812, até 1930 (Rheingantz, 2004).
Uma história de aproximadamente 120 anos, marcada por um alto fluxo econômico que garantiu condições de desenvolvimento a cidade semelhantes às regiões metropolitanas do país (Singer, 1977). Período marcado por elevadas taxas de crescimento, que foram balizadas por uma dinâmica de segregação e violências das mais diversas ordens (Al-Alam, 2007; Maciel, 2014). Que atualmente têm se reconfigurado (Kruger, 2018).
Após o ciclo do charque, principal responsável pelo desenvolvimento econômico, político e social do município, e do período dos engenhos, quando se redefiniu social e geograficamente a cidade, Pelotas passou por um longo momento sem apresentar relevância e atratividade econômica para o mercado nacional. Assim, sua dinâmica de transformação seguiu os fluxos de desenvolvimento do país, que deu as costas para a cidade, rumando para outras latitudes. Situação que passa a se reconfigurar na primeira década dos anos 2000, por conta das alterações promovidas pelas políticas planificadas pelo Governo Federal. Políticas que terão forte impacto na economia do município, repercutindo em diversos desdobramentos.
Programas desenvolvidos para a área da Educação, como o PROUNI (Brasil, 2005) e REUNI (Brasil, 2007a), tornaram a cidade, que abriga duas universidades e outras faculdades, um espaço atrativo para os estudantes de várias regiões do país. Já o Programa de Aceleração do Crescimento (Brasil, 2007b; Brasil, 2018), que disponibilizou recursos para o desenvolvimento de obras de infraestrutura e habitação, implementado após o ano de 2007, atraiu investimentos e trabalhadores para sua microrregião, da qual Pelotas é a maior cidade, fazendo com que esta passasse a ser encontrada no horizonte do grande capital (IBGE, 2017). A partir de então, passa a se desdobrar uma trama complexa, que lançará o município para o rol daqueles que alcançaram "as maiores taxas geométricas de crescimento" (IBGE, 2014, p. 5) no país.
Importante trazer para essa reflexão o fato de o município encontrar-se a 60 quilômetros da igualmente considerada de porte médio, cidade de Rio Grande. Esta que, por ser portuária, recebeu substanciais investimentos federais, tornando-se um importante polo industrial, de modo que as cidades passaram a exercer mútua influência. Em um período onde o crescimento populacional médio brasileiro foi de 0,86 %, e as cidades de pequeno e grande porte variaram entre 0,25 e 1 %, Pelotas teve um crescimento populacional de 1,12 %. Números superiores aos encontrados nas outras localidades e à média nacional (IBGE, 2014). Fato de impacto sobre a elevação de seu déficit habitacional (Plhis, 2013).
Como recuperam diversos autores (Chiarelli, 2014; Gutierrez; 2001; Maciel, 2014; Moura, 2006), a situação econômica de Pelotas nos séculos XVIII e xix permitiu que se desenvolvessem no município investimentos diversos, sobretudo no setor da prestação de serviços e cultural, o que a tornou referência como "um importante polo de serviços e influente centro cultural do Estado, além de possuir duas universidades de ensino superior e demais faculdades" (Pinto, 2016, p. 87). A proximidade entre os municípios e o potencial de Pelotas tornou-a atrativa para os profissionais do município vizinho que se expandiu, fazendo com que Pelotas contabilizasse "um momento de euforia no setor imobiliário, já que muitos dos trabalhadores da cidade vizinha utilizam Pelotas como cidade para moradia" (Pinto, 2016, p. 87). Situação que se desenvolve em um contexto de expansão no setor da construção civil.
Por conta de seu potencial, passaram a se desenvolver diversas modalidades de empreendimentos, voltados sobretudo para o comércio e habitação, que transformaram a cidade em objeto de mercado. O acesso a significativas somas de recursos, para serem investidos em infraestrutura e moradia, irrompe em impacto sobre as legislações locais, que passam a ser alteradas para otimização de obras anunciadas enquanto garantidoras de direitos, mas que se materializaram em privações de diversas ordens (Kruger, 2018).
Nesses marcos, analisaremos brevemente no próximo item os dados relativos ao déficit habitacional no município no período final da primeira década dos anos 2000 e início da segunda. Considerando-se tais dados de fundamental importância para a compreensão da dinâmica espraiada. Pois estes foram usados enquanto justificativa para o acesso a fundos públicos, bem como para a planificação de alterações legislativas, anunciadas enquanto voltadas para garantia do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) em Pelotas. Estas que serão posteriormente objetos de análise.
Desse modo buscar-se-á aprimorar a reflexão sobre as medidas executadas, problematizando a relação destas com o binômio entre segregação e domínio, que, ao se aprofundar, incorre no alargamento da segregação e espoliação urbana (Ko-warick, 1993). Dinâmica evolutiva sobre os marcos da expulsão de grupos para as franjas periurbanas. Responsável pela transformação territorial e privação do acesso a direitos fundamentais, que agu-dizam as manifestações da questão social.
A Ciência do Desserviço Social: base cognitiva do capital
Dados divulgados pelo Ministério das Cidades em parceria com a Secretaria Nacional de Habitação e a Fundação João Pinheiro (FJP) quanto ao déficit habitacional em Pelotas apontam que no início da segunda década dos anos 2000 havia um déficit superior a 17 mil moradias no município. Destas, mais de 16 mil encontravam-se no perímetro urbano. Um déficit relativo ao total de domicílios de 8,1 % (FJP, 2013).
Em condições precárias, encontravam-se 2883 moradias; 7310 com problemas de coabitação; e 6380 com valores excessivos de aluguel. Tais dados totalizam um número superior a 25 mil domicílios carentes de infraestrutura e 2454 que não possuem banheiro (FJP, 2013). Quadro de um problema multifacetado, mas substancialmente qualitativo, para o qual a resposta se deu através do uso utilitarista da ação pública, que estabeleceu um modelo voltado à lucratividade.
Instituído através do urbanismo moderno, pautado nas estatísticas como base cognitiva, foi que se instaurou um modelo parcelar (Lefebvre, 2001). Processo que tornou a população em consumidora para o aumento da lucratividade do mercado construtor. Domesticando subjetividades a partir da transferência do controle da cidade ao mercado financeiro que transformou a política em instrumento de alargamento dos processos de segregação e exclusão territorial (Acselrad et al., 2007).
Ocultando-se os problemas reais, foram desenvolvidas soluções fictícias para questões manipuladas para terem uma mesma forma. Ações clientelistas que se voltaram à manutenção e garantia dos interesses das elites dominantes no país. Bases de aprofundamento do modelo de exclusão, que trouxeram novos contornos para o urbano (Maricato, 2013). É o que aponta a análise dos dados referentes ao déficit habitacional e sua relação a planificação do PMCMV no município.
Vejamos, um levantamento feito entre os anos de 2008 e 2009 apontava que se encontrava na cidade um número de 156 áreas de ocupações irregulares e clandestinas. Áreas caracterizadas enquanto territórios nos quais as legislações de regulamentação urbana não haviam sido executadas, ou, quando foram, ocorreram em descompasso com a legislação. É deste modo que são caracterizadas as áreas de ocupação irregular (Alves, 2014, p. 3). As áreas clandestinas, seriam aquelas que "não obtiveram a aprovação ou autorização administrativa dos órgãos competentes, incluídos aí não só a Prefeitura, como entes Estaduais e Federais" (Alves, 2014, p. 3). Em cada uma destas áreas, encontravam-se em média, 72 lotes, habitando aproximadamente 390 pessoas por área. Somados, tínhamos cerca de 11 mil lotes em tais condições, onde residiam aproximadamente 60 mil pessoas (Alves, 2014).
Os dados do último censo do IBGE para a cidade (IBGE, 2010) mostram que esta possuía cerca de 130 mil unidades habitacionais e 328 275 habitantes. Assim, mais de 8 % das habitações de Pelotas eram clandestinas ou irregulares. Nelas se encontrando cerca de 18 % de sua população (Alves, 2014; IBGE, 2010).
O Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS), ao abordar o tema do déficit habitacional, aponta que este era de 13598 moradias. Um cálculo que abrange os domicílios improvisados e precários, a coabitação de famílias e os aluguéis com valor excessivo. Nesta última condição, encontram-se as famílias que gastam mais de um terço de sua renda com aluguel (PLHIS, 2013), (PLHIS, 2013a).
Relacionando-se os dados do PLHIS, aos estudos de Alves (2014) e do IBGE (2010), evidencia-se que, até o ano de 2013, o déficit habitacional do município equivalia a 10 % das habitações produzidas. Sobre este percentual, cerca de 80% encontrava-se no rol do que se considera déficit qualitativo, ou seja, de moradias já existentes, mas em situação de irregularidade ou clandestinidade. Moradias estas que necessitavam de regulamentação documental e infraestrutura urbana.
Os números da Fundação João Pinheiro (FJP) para o município, no mesmo período, apresentam uma pequena variação, elevando o déficit de 10 para 13 %. Entretanto, o apontamento da fundação carrega um elemento substantivo para a análise das estratégias adotadas no município. Ele eleva de 80 para mais de 97 %, o déficit qualitativo (FJP, 2013).
Uma nova pesquisa desenvolvida em 2017 pela Secretaria Municipal de Habitação apontou que neste período intermediário foi realizada a regularização fundiária de 10 loteamentos, e outros 10 estavam em processo. Um trabalho com benefício direto de cerca de 3900 pessoas (Alves, 2017). Trabalho feito somente no que diz respeito à questão documental, ou seja, foram entregues títulos de propriedade para 744 famílias. Sem que em nenhuma das localidades se desenvolvesse a instalação de equipamentos e serviços.
Feito os destaques, os levantamentos realizados até o ano de 2013 apontaram que o município apresentava um déficit habitacional variável, entre 13 e 17 mil unidades (PLHIS, 2013; FJP, 2013), das quais entre 80 e 97 % eram habitações irregulares ou clandestinas, que necessitavam de regulamentação e qualificação urbana. Chegando ao ano de 2017 deve-se diminuir destes, as dez áreas que foram objeto de regularização, cabendo o destaque de que outras dez estariam em processo.
Para o mesmo período intermediário, ainda precisamos resgatar os dados do relatório elaborado pela agência estatal, Caixa Econômica Federal, que foi disponibilizado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. O qual aponta que o município registrou a construção e entrega de 49 empreendimentos financiados com recursos públicos, construídos através do PMCMV. Assim, 5946 novas unidades habitacionais foram produzidas e entregues (Baumgartem, 2018). Um número de habitações correspondente a mais de 39 % do déficit habitacional. Moradias produzidas através de financiamentos públicos que foram disponibilizados sob a égide discursiva da garantia do direito à moradia e extinção do déficit habitacional no país, tendo como objetivo "o combate ao problema habitacional para a população de baixa renda" (Pinto, 2016, p. 55), (Brasil, 2009). População que, segundo os números analisados, representava aproximadamente 90 % do déficit do município.
Observando o número total de empreendimentos contratados através do PMCMV para Pelotas, executados e em fase de execução, temos um total de 79 contratações. Isso nos eleva de 5946 moradias já entregues para 9692 novas moradias produzidas através do programa. E estão em fase de produção outras 3.746 novas habitações (Baumgartem, 2018).
Voltada esta produção para as populações prioritárias, como institui o PMCMV (Brasil, 2009), o déficit desta população, expresso no problema qualitativo, onde se localiza substancialmente o problema da moradia na cidade, o programa deveria ter impactado aproximadamente 75 % do problema exposto, quantidade de moradias produzidas em relação ao déficit habitacional da população de baixa renda. Entretanto, o que ocorreu foi um aumento expressivo no número de áreas de ocupação irregular, principalmente pelo fato de que a produção capitaneada pelo mercado se voltou para os grupos de maior renda, não atendendo aos prioritários da política. Grupo que, através do levantamento e manipulação dos dados relativos ao déficit, foi usado para garantia da lucratividade de setor privado da construção.
A distópica produção de moradias e multiplicação das ocupações
O primeiro levantamento que apresentamos no item anterior, realizado por Alves (2014), mostra que se encontravam em Pelotas 156 áreas de ocupação irregulares e clandestinas, onde residiam aproximadamente 60 mil pessoas, cerca de 11 mil residências, 75 % do problema habitacional. Moradias existentes, não regularizadas documentalmente e sem a infraestrutura urbana necessária. Dados reafirmados pelos estudos do PLHIS (2013) e FJP (2013).
Nos anos subsequentes, foram produzidas e entregues mais de 5 mil novas moradias e diversas áreas foram regularizadas. Mas a atualização dos dados mostra que houve um aumento expressivo no tocante ao número destas que passam para 162 em 2014 (Alves, 2016), e chegam a 205 no perímetro urbano em 2017 (Alves, 2017), (Cogoy, 2017b). O que elevou o número de habitantes de áreas irregulares de 60 para "mais de 90 mil pessoas", quase 1/3 da população (Alves, 2017, p. 26).
Os dados tornam fato inegável que se produziram habitações em número suficiente para se amortizar o problema da moradia para as populações prioritárias do PMCMV no município. Entretanto, a forma e modelo através dos quais se desenvolveram os processos agravaram o problema habitacional. Um dos fatores dignos de destaque no tocante ao problema é o modelo de construção - condomínios fechados- que foi adotado para o desenvolvimento majoritário dos empreendimentos, sobretudo no que diz respeito às populações de baixa renda.
além dos agentes promotores privados incorporarem prioritariamente empreendimentos na forma de condomínios fechados para a Faixa 1, também fazem estes, na maioria dos casos, na forma contígua ou agrupada com outros empreendimentos do PMCMV, e até mesmo outros da Faixa 1 (Pinto, 2016, p. 187).
Estratégia que aprofundou a subdivisão territorial e exclusão social. O modelo desenvolvido historicamente para ser adotado pelas comunidades de faixa de renda mais altas vendeu a ilusão da segurança e tranquilidade imposta pelo isolamento, impondo a autossegregação, que cristaliza na discriminação à ilusão da garantia de direitos.
A produção ilegal das moradias e o urbanismo segregador são produtos deste descompasso e das características do mercado imobiliário e fundiário nas cidades -sobre cujos agentes não pesa nenhum constrangimento antiespeculativo- e das características dos investimentos públicos, que favorecem o mercado concentrado e restrito (Maricato, 2009, p. 43).
O modelo de segregação sustentado pelo mercado construtor impôs a reprodução e multiplicação das desigualdades, a partir da geografia social do poder criada para transformar residentes de "comunidades de desespero econômico/zonas de sacrifício" (Acselrad et al., 2007, p. 7) em agentes com menores possibilidades de influência sobre o Estado. Assim, a produção habitacional desenvolvida através do programa recebeu maior influência de agentes do mercado do que da "lógica de priorizações a partir da demanda habitacional existente" (Pinto, 2016, p. 77). As transformações na política habitacional brasileira, que impulsionaram o mercado imobiliário, transformaram populações em situação de vulnerabilidade em consumidores. Lógica de execução do PMCMV ao redor do país que não se diferencia dos processos planificados em Pelotas, colocando em condições de privação a acesso mínimo de infraestrutura populações de áreas de risco social e ambiental (Kruger, 2018).
O levantamento de Jones Pinto (2016) destaca que: 24 % das produções votaram-se para os grupos de renda mais elevada, a Faixa 3, e 54 % para os grupos de renda média, Faixa 2. Somados estes grupos, foram produzidas 78 % das moradias através do programa. Uma inversão de prioridade no ato de concretização da política, que priorizou as faixas de maior lucratividade para o mercado. Fato que revelou o porquê do agravo do problema referente às ocupações irregulares.
Além disso, as moradias produzidas para os grupos prioritários, Faixa 1 -1998 moradias, 22 %- foram localizadas nas bordas periféricas do município, localidades onde os terrenos são mais baratos, por não terem infraestrutura e localizarem-se mais distantes do centro da cidade. Sem adequação de projeto aos ambientes de inserção, e tão pouco com infraestrutura básica, a produção deslocou grupos específicos para regiões ainda mais distantes da malha urbana (Kruger, 2018).
A análise das áreas de expansão das ocupações irregulares e da produção do PMCMV para os grupos de menor renda mostram que estes seguem os mesmos fluxos de segregação. Resultando na perpetuação dos procedimentos de exclusão dos grupos empobrecidos. Um modelo de remoção e realocação em aglomerações marcadas pela segregação, conforme destaca Rolnik (2015), em locais de altos índices de violência e marginalização, espaços de intensificação da reprodução da segregação territorial.
Através da governabilidade de mercado, a (des)ordem garante a manutenção da estrutural e metabólica acumulação capitalista, evolutiva através do desenvolvimento e alteração de legislações e planificação de políticas públicas.
Além das incertezas do desemprego, da desproteção social e da precarização do trabalho, os trabalhadores são submetidos aos riscos da moradia em encostas perigosas, beiras de cursos d'água sujeitas a enchentes, áreas contaminadas por lixo tóxico, situadas sob gasodutos, ou linhas de transmissão de eletricidade [...] uma crise que se localiza na cidade, mas tem sua raiz além das suas fronteiras (Acselrad et al., 2007, pp. 7-8).
A cidade, para ser atrativa e funcional ao capital, necessita da ação do Estado, que opera através da exclusão para facilitar a espoliação e legitimar a despossessão. Relegando à iniciativa privada o gerenciamento da política (Nabuco et al., 2014), o Estado possibilitou ao setor privado impor um modelo de "pensamento único" para a administração. Isso, através de um arsenal político, empresarial e ideológico, em que a sobrevida da cidade depende da transformação de seus espaços em mercadorias: uma cidade mercado, para um mercado de cidades (Vainer, 2013).
A "nova" dinâmica dos fluxos migratórios: segregação e desrespeito aos Direitos Humanos
Conforme foi apresentado, a dinâmica dos fluxos migratórios, ao se voltar para as cidades de porte médio, gerou uma série de alterações, que tuteladas pelo Estado se tornaram oportunidades para o mercado. A alteração da densidade demográfica dos territórios exigiu o desenvolvimento de projetos específicos, que imprimiram reconfigurações de agravo da questão socioterritorial. A otimização de projetos diferenciados despertou o interesse do mercado e possibilitou o aumento da pressão sobre os governos locais, que transformaram secretarias de governo em balcões de negócio (Diário Popular, 2018). O crescimento dos investimentos no campo da construção civil acarretou um impacto sobre as legislações (Pinto, 2016), que pavimentaram o terreno para o agravo das condições sociais (Boulos, 2015; Rodrigues & Salvador, 2011). A instrumentalização do mercado da construção e especulação, que se deu a partir dos atrativos e incentivos disponibilizados pelo estado, reconfiguraram os processos de remoção de populações pobres, originárias e tradicionais de seus territórios (Cogoy, 2017).
Um caso emblemático para o município neste processo é a Ação Civil Pública n° 022/1.14.0007280-6 (Rio Grande Do Sul, 2016), que se voltou para a pavimentação de alterações legislativas com impacto negativo sobre a população.
No ano de 2008, o III Plano Diretor Municipal de Pelotas trouxe em diversos artigos a necessidade de serem executadas obras de melhoria das condições de infraestrutura e de habitação para uma localidade habitada historicamente por populações tradicionais e originárias (Pelotas, 2008).O que ocorreu, entretanto, foi que não se melhoraram as condições urbanas do território ocupado, mas se desenvolveu uma Ação Civil que passou a exigir a remoção das comunidades que têm suas histórias encravadas na origem e desenvolvimento da cidade (Al-Alam, 2017; Gutierrez, 2001), sem a garantia de seus direitos quanto à moradia, ao trabalho, entre outros.
Enquanto isso, diversos projetos de interesse do mercado passaram a ser otimizados para o mesmo espaço, uma estratégia de despossessão por espoliação (Harvey, 2005; Kowarick, 1993) operada pelo Estado, invertendo a noção sobre os direitos sociais e econômicos. Uma situação recorrente quando se aborda o crescimento urbano brasileiro (Gonçalves, 1995), redefinida por conta do favore-cimento público aos setores privados da construção (Maricato, 2015).
A planificação das medidas implementadas pelo III Plano Diretor no que diz respeito à garantia dos direitos das populações de baixa renda, que ocupam Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS) e Áreas de Preservação Permanente Ocupadas (APPO), (Pelotas, 2008), impediria tais desmandos. Fato que não ocorreu. As alterações na legislação que foram planificadas negaram direitos às populações mais pobres e garantiram a expansão da lucratividade ao setor privado da construção, como o alargamento do perímetro urbano do município, uma alteração legislativa com efeitos diretos sobre a qualidade urbanística. Esta ação, instituída pela Lei 5.963/2012 foi responsável por tornar possível a construção de empreendimentos imobiliários a grandes distâncias do centro da cidade, dispensando a garantia de áreas verdes e áreas de uso público no interior dos empreendimentos (Kruger, 2018).
A legislação, que alterou o perímetro urbano municipal, foi aprovada no dia 28 de dezembro do ano de 2012, três dias antes de uma troca de governo (Pelotas, 2012). Assim, não ocorreu de forma fortuita, "pois possibilitou o projeto e construção de dois dos empreendimentos pertencentes ao PMCMV" (Pinto, 2016, p. 225), instalados em franjas periurbanas.
este alargamento foi executado com o principal objetivo de permitir a construção de empreendimentos imobiliários muito distantes de uma situação de boa inserção urbana [...] locais que antes não eram considerados como zona urbana, mas que agora são, porém ainda sem a infraestru-tura necessária e adequada para a inserção de unidades habitacionais (Pinto, 2016, p. 225).
Um conjunto de Leis foi aprovado sob a influência de agentes privados no município. Legislações que se voltaram especificamente à facilitação da lucratividade das empresas privadas, que puderam adquirir terrenos afastados do centro da cidade em locais sem infraestrutura, a baixo custo. Com isso, tiveram seus lucros potencializados, uma vez que coube ao poder público levar infraestrutura para estes espaços, utilizados pelos construtores para o progresso dos empreendimentos para a faixa mais baixa (Kruger, 2018).
A não exigência de áreas verdes possibilitou a construção de um maior número de moradias em cada empreendimento, sem a garantia de qualidade urbana e ambiental. Uma estratégia de flexibilização que tornou atrativo o mercado local, até mesmo para empresas externas à região. Como foi o caso da incorporadora Rodobens Negócios Imobiliários S.A., que produziu mais de 30 % das habitações do PMCMV no município.
Após a aprovação da Lei municipal 5.963/2012, nenhuma obra respeitou a legislação que obrigava a reserva de 20% de áreas verdes para as construções (Pinto, 2016). Dos 79 empreendimentos contratados para a cidade através do PMCMV, entre os anos de 2009 e 2018, 73,33 %, não possuem todos os equipamentos de serviço obrigatórios em suas zonas de abrangência (Baumgartem, 2018). Chiarelli (2014) qualificou a produção do PMCMV em Pelotas como "de empreendimentos em locais onde não existia total infraestrutura, estando o suporte dos custos da viabilização desta infraestrutura necessária a cargo do poder público" (p. 207).
Mais de 60 % das construções foram posicionados nas franjas periurbanas do município, locais sem infraestrutura e carentes de serviços. Territórios onde acaba por imperar a negação e o desrespeito à direitos sociais, econômicos e políticos. Direitos constitucionais duramente conquistados.
Nove anos após o início das obras do PMCMV no município, o que se observa é um saldo extremamente negativo, pelo fato deste não haver rompido com a lógica e com o padrão de sociabilidade do capital e por ter sido instrumentalizado para o alargamento do mesmo. A observação de sua implementação no município, mostra que o mesmo acabou servindo de instrumento para o escoamento de grandes somas de recursos para os setores privados, o que se deu a partir de um discurso maquiado que sequer tocou na problemática que anunciava combater.
Considerações finais
A dinâmica de alteração dos fluxos migratórios que tem se desenvolvido é um processo multifacetado, com incidência de fatores diversos relacionados sobretudo a definições políticas de cunho econômico. Tal dinâmica apresenta forte interferência da máquina de produção e reprodução capitalista, que na movimentação de grupos humanos materializa processos de multiplicação de suas possibilidades de lucro, agindo ainda na captura e transformação das formas de sociabilidade pela instauração da subjetividade do capital.
Seu reflexo sobre os territórios aprofundou a negação ao acesso dos equipamentos e serviços da urbanidade, através da recon-figuração da dinâmica da estrutura urbana. Nesta, foram engendrados processos de disponibilização desigual destes instrumentos, que, enquanto direitos, deveriam estar à disposição de todos de forma equâ-nime, mas que se transfiguraram, passando a ser trabalhados enquanto bens de consumo. Reconfiguração instituída através das formas modernas de planejamento e governabilidade, que transformam a cidade em "coisa a ser vendida e comprada [...] uma mercadoria de luxo, destinada a um grupo de elite" (Vainer, 2013, p. 83).
Ainda que apresentada enquanto uma nova razão -o que é importante para o modo de produção capitalista- a governabilidade e planejamento estratégicos são uma mutação da racionalidade liberal, carregada em seu gene de características estruturais desta razão e padrão de so-ciabilidade. Que possibilita a compra e venda da cidade, transformada em direito colocado ao alcance somente daqueles que têm como arcar com seus custos, perdendo seu componente social, o qual aponta para este como disponível a todos.
Assim a "nova" dinâmica de fluxos migratórios no Brasil, carregada de seu componente histórico estrutural, a desigualdade, multiplica atualmente as disparidades no tocante às questões de acesso à cidade, colocando ao alcance de uma pequena minoria a possibilidade de acessar e lucrar com o investimento que se faz nesses territórios. Enquanto isso, para a ampla maioria assalariada resta gastar o pouco que recebe (Abramo, 2007). Por conseguinte, se estabelece a redefinição do conceito de cidade, ao tornar inoperante sua característica de polís, rejeitando em sua essência este espaço enquanto ambiente de participação política e imprimindo sobre esta uma identidade híbrida de objeto e empresa, consumo e competitividade.
Nesta relação encontram-se as raízes que fundamentam os principais problemas das cidades, que se reconfiguram por conta da "nova" dinâmica dos fluxos migratórios. A segregação, fruto da concentração fundiária, financeira e política, que redimensiona as cidades de porte médio, agrava a separação por faixas de renda. O poder público, por sua vez, tornado em agente financiador do grande capital, fomenta e aprofunda as desigualdades relativas.
Assim, a segregação territorial se aprofundou a partir da reconfiguração dos fluxos migratórios que impactaram e foram impactados pelo desenvolvimento de políticas públicas que não se voltaram para os interesses da população em geral.