Introdução
Comida de rua não se resume a uma atividade econômica corriqueira em qualquer cidade, é uma prática social carregada de significados e lutas sociais. É, também, uma prática alimentar que supera o ato de comer, pois se assume a comida, na perspectiva de Montanari1, como fato cultural. Assim, não é apenas o que comemos, mas as escolhas que são feitas do plantio à panela e desta à boca, mediadas por inúmeros fatores, dentre eles a cultura. Segundo Dos Santos, «[...] o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come. Enfim, este é o lugar da alimentação na História»2. Um alimento possui significados distintos para cada povo que constrói para si uma cozinha única, regional.
Neste estudo, o objetivo é relacionar a comida de rua ao conceito de R-existência. Esse vocábulo foi utilizado por Porto Gonçalves (2006) para se referir aos subalternizados que se movem com lógicas distintas «Por isso, mais do que resistência, o que se tem é R- Existência posto que não se reage, simplesmente a ação alheia, mas, sim, que algo préexiste e é a partir dessa existência que R-Existe. Existo, logo resisto. R-existo»3. A R-esistência é a permanecia de uma prática social originada no passado que se mantêm no presente apesar das forças opositoras. A comida de rua é anterior, às normas sanitárias e as perseguições políticas empresariais, logo, existe e R-existe no espaço urbano. A R-existência é descrita na primeira seção através de acontecimentos históricos que alicerçam a presença dessa comida no espaço urbano. Após essa abordagem discutese a comida do lugar como R-Existência, que evidencia a contribuição da alimentação indígena, africana e portuguesa na cozinha de rua das cidades de Ilhéus e Itabuna (Figura 1), na Bahia como um saber fazer de R-existência.
Utilizou-se como recurso metodológico a pesquisa bibliográfica, entrevistas com os(as) trabalhadores(as) e aos consumidores. A escolha das cidades de Ilhéus e Itabuna reside no fato de possuírem uma formação espacial em comum e disporem de uma dinâmica socioeconómica complementar, na medida em que partilham serviços e equipamentos urbanos, são limítrofes e portadoras de uma efervescência na economia informal, com destaque para o segmento da alimentação.
Elegeram-se para análise três comidas tradicionais da culinária baiana, a saber, o mingau, o acarajé e a cocada. Essas são exemplos das heranças culturais do dos povos formadores do espaço baiano. Segundo Montanari4, a comida possui uma linguagem que comunica aspectos da identidade, de gênero, das religiões e da posição social. Para K. Wortmann, ela «[...] é uma categoria nucleante e hábitos alimentares são textos [...]»5. Esses escritos «[...] contam, constroem a própria história dos que a produzem e dos que a consomem [...]»6, permitindo evidenciar recortes temporais por meio da análise da comida de ontem e de hoje, como enfatiza Menezes7. Acredita-se que o conhecimento das práticas alimentares e das histórias que a comida conta pode contribuir para desvelar a importância de essa comida r-existir e existir no urbano.
Breve trajetória da comida de rua no espaço urbano Baiano
A comida de rua tem um lugar no passado e uma territorialidade no presente, isto é, uma origem histórica que antecede o restaurante moderno e, atualmente, se constituiu como prática alimentar territorializada no urbano. Segundo Pitte, o comércio de comida «[...] surgiu com os mercados e as feiras, que obrigaram camponeses e artesãos a deixarem seu domicílio durante um ou vários dias e, portanto, a se alimentarem ao mesmo tempo que estabelecem (...) negócios»8. O autor evidencia essa ocorrência na China, no Japão e no Império Romano como precursores do restaurante. Nas cozinhas móveis do «[...] mundo inteiro, e em todas as épocas, as cozinhas de rua se impõem como o principal comércio de venda de refeições [...]»n. É no século XVIII que os estabelecimentos fixos passam a ser designados restaurantes, criando, assim, uma distinção entre a comida de rua e a comida de estabelecimentos como hospedarias ou butiques de alimentação. Outra distinção é que a comida de rua oferecia pratos elaborados com ingredientes tradicionais e acessíveis à aquisição.
De acordo com Soares9, a comida de rua no espaço urbano tem início com a chegada dos africanos no Brasil, contudo, é no século XVIII e XIX que essa atividade se intensifica. O comércio era função da mulher africana, que trabalhava com gêneros de primeira necessidade, como a alimentação. Conforme Gorender10 e Graham11, a escravidão urbana foi fundamental para o funcionamento das cidades. Intitulados de negros de ganho, transportavam mercadorias e passageiros, cozinhavam nas ruas, comercializam artesanatos, trabalhavam em oficinas, coletavam o lixo, sempre à disposição para o aluguel de seus serviços, desde que se pagasse uma taxa, fixada previamente, aos seus senhores, e o que sobrava pertencia ao trabalhador. As mulheres eram conhecidas como ganhadeiras, negras escravizadas ou livres, que vendiam produtos alimentícios, como frutas, verduras ou pratos prontos12.
Segundo Graham13, as mulheres representavam 89% do comércio nas ruas de Salvador no final do século XVIII para o XIX. Havia cozinhas improvisadas nas ruas, elaborando refeições à base de farinha de mandioca, feijão, carne seca e miúdos de boi14. Tratava-se de comida para a população mais pobre; os miúdos utilizados na preparação indicam a utilização de partes eleita como menos nobres do boi, bem como a farinha e o feijão são conhecidos popularmente como comidas fortes.
Na Bahia, o mingau é símbolo de resistência na luta pela independência. Segundo Almeida15, as mulheres da cidade de Saubara vestiam-se com panos brancos e levavam consigo panelas de mingau para alimentar os maridos no front de batalha e, além de comida, carregavam armas escondidas nas roupas. Ainda de acordo com a autora, as mulheres do mingau foram de suma importância para a vitória da Bahia frente às tropas portuguesas. Assim, a chegada do mingau alimentava as tropas baianas de comida e de armas. Atualmente, há uma manifestação cultural em forma de cortejo para rememorar a participação das mulheres na guerra e celebrar o mingau.
Na obra de Jorge Amado Bahia de todos os Santos, o autor descreve o modo de vida urbano em Salvador; entre tantas características, apresenta brevemente o comércio de comida na rua na Baixa dos Sapateiros: «Nos passeios, as "baianas" com seus tabuleiros de cocada e frutas»16. Na edição revisada da obra de Amado, em 1986, ele acrescenta que a Bahia se leva na cabeça, fazendo uma alusão ao comércio de alimentos e à comida nas ruas.
Em Gabriela, Jorge Amado narra a vida na cidade de Ilhéus e a relação com a cacauicultura no início do século XX. Faz breve menção à comida de rua entrelaçada com as práticas do cotidiano. Conforme o autor, os fazendeiros, o juiz, o capitão, os coronéis se reuniam na barraca do peixe, no cais, sob o pretexto de comprar pescados frescos, para discutir os acontecimentos da cidade e o preço do cacau. Era um ritual de todas as manhãs que começava «[...] primeiro com o copo de mingau (...) trazido por uma (...) formosa negra especialista em mingau e cuscuz de puba, que descia o morro, com o tabuleiro sobre a cabeça [...]»17. As comidas de rua citadas no livro são: milho cozido, cuscuz, mingau, bolo de tapioca e doces diversos.
Sempre é ressaltado que o comércio era praticado por mulheres negras. Também é relatada a presença de crianças na atividade, como no caso do «[...] negrinho Tuísca, que mercava doces (...) com o tabuleiro equilibrado na cabeça [...]»18.
Carvalho19, em uma pesquisa documental, relata que na década de 1920, os redatores do Jornal Correio de Ilhéus entrevistaram trabalhadores envolvidos na comida de rua. Ao ser questionada sobre o nome do comércio, a entrevistada, Dona Joaquina, disse não haver nome por estar ao ar livre. Pensando rapidamente, corrigiu a fala e disse Brasil por estar situado nas imediações do banco de mesmo nome. Ironicamente, Brasil, seja o banco ou o país, não fornecia a segurança de que a cidadã Joaquina precisava. No mesmo lugar, havia outros trabalhadores que praticavam a mesma atividade oferecendo aos clientes comidas tipicamente africanas que se tornaram igualmente baianas: feijoada e caruru.
A cidade de Itabuna, que se emancipou de Ilhéus em 1910, também passou por esse processo de higienização da pobreza em função da urbanização baseado nos ideais de modernização e progresso. Segundo Carvalho, os cinquenta anos posteriores à emancipação foram de muitos conflitos entre os pobres e a elite agrária, os coronéis do cacau, e comercial da cidade. Ainda de acordo com o autor, um conjunto de ações, na década de 1930, visava a higienizar o centro da cidade: criação da Guarda Municipal, do órgão de Higiene Pública e do Código de Postura do Município de Itabuna, que normatizavam a conduta do itabunense. Essas normas atingiam diretamente a população que vivia das atividades de ganho, como engraxates, lavadeiras de roupa, comerciantes de alimentos e comidas de rua, sendo expressamente proibido circular ou ocupar calçadas nas ruas ou praças do centro20.
Na história de Itabuna, e do Brasil, a comida de rua está nos interstícios do que se denominava progresso, e isso acontece porque a cidade permite «a coexistência dos diferentes»21. Para corroborar essa realidade, destaca-se a estrada de ferro, que evidenciava a urbanização e a força econômica da cidade no início do século XX, advinda do monocultivo do cacau. A estação ferroviária estava localizada no entorno da Praça João Pessoa, hoje José Bastos, onde também se situavam a prefeitura e o fórum municipal. Para Carvalho22, era, também, o lugar de comercialização de doces, salgados e frutas; a comida de rua estava presente nos locais de grande circulação de pessoas.
No presente, em 30 de maio de 2022, a prefeitura de Itabuna, por meio da Secretaria de Segurança e Ordem Pública, retirou os ambulantes da comida de rua das praças, da Avenida Cinquentenário, principal via de comércio da cidade, e do Calçadão Ruy Barbosa por recomendação do Ministério Público da Bahia. A ação foi movida pela Associação Comercial e Empresarial de Itabuna (ACI) e pela Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL)23, que acreditam ser prejudicados com a presença do comércio informal. Os (As) trabalhadores(as) foram realocados para a Praça Otávio Mangabeira, sem infraestrutura para recebê-los. Na prática, houve um processo de desterritorialização da comida de rua, na medida em que foram desenraizados dos lugares em que estavam habituados a viver, pois o local de trabalho compõe a dimensão do cotidiano e, portanto, da vida. Para a ACI e a CDL, está em curso um reordenamento do comércio ambulante; já para os informais, trata-se de uma saída forçada, isto é, «[...]da expulsão da pessoa de sua condição territorial, da ruptura de seus vínculos [...]»24 com o local e com os consumidores.
A desterritorialização dos trabalhadores da comida de rua ocasionou prejuízos para eles. Segundo o entrevistado, «Eu vendo 140 unidades no meu lugar, hoje vendi 8, não paga nem a salada»25. Ele doou a produção do dia para uma instituição de caridade por não haver compradores. Após uma semana sem trabalhar, decidiu alugar uma garagem para trabalhar, a poucos metros da Praça Olinto Leone, antiga localização, e assim estar perto dos consumidores habituais. Isso lhe custa R$ 300,00 por mês, despesa essa que impacta diretamente nos ganhos finais, mas lhe permite vender toda a produção diária. O trabalhador acredita estar sendo perseguido por empresários da alimentação próximos à sua antiga localização. Durante o período de observação desta pesquisa, em diferentes dias da semana, identificou-se que o fluxo de consumidores é mais intenso no trailer de Pedro do que no restaurante mais próximo.
A ação de Pedro nos remete a Pereira quando atesta que «Toda forma de resistência implica alguma forma de deslocamento, desvio, curvatura e dobra por mais sutis ou insignificantes que pareçam [...]»26. Embora Pedro tenha se deslocado para poucos metros da antiga localização, é o fato de, agora, estar em uma propriedade privada que lhe confere o privilégio de exercer seu trabalho, não o direito. Para os que não podem «sair» da rua, resta o desvio, como Carmem27, que estaciona seu carrinho de doces numa vaga de estacionamento e, após o período de fiscalização pela manhã, retorna a seu antigo ponto. Scott aponta que as resistências do cotidiano são silenciosas e que o «[...] objetivo dos resistentes é tipicamente satisfazer necessidades prementes como segurança física, alimento, [...] ou renda, e fazê-lo em relativa segurança [...]»28.
Essas necessidades são postas à prova a cada novo decreto ou nova determinação.
As resistências silenciosas não entram em confronto direto, violento, com o poder público, mesmo que provoquem ruídos como aqueles que resistiam a sair do local, como relatou Laís. Segundo a entrevistada, o fiscal lhe disse: «você é muito teimosa, se eu te pegar novamente aqui, vou apreender suas coisas»29 Ela assegura «Não atrapalho ninguém, só quero trabalhar»30. O desespero de Laís comoveu transeuntes e consumidores, alguns deles foram à prefeitura interceder pela vendedora. Semanas após o ocorrido, lhe foi autorizado retornar ao local, contudo com uma estrutura menor, sem bancos e toldos, apenas a mesa com as refeições e um pequeno sombreiro. Segundo Pereira, a resistência por vezes implica «dobrar(-se) mas nem por isso se deixar subjugar totalmente»31 Laís dobrou-se ao reduzir sua estrutura de comercialização, mas lutou na defesa do território.
Segundo Haesbaert, a desterritorialização ocorre em consonância com a reterritorialização «Daí a pertinência do uso do termo hifenizado: des-reterritorialização, demostrando a indissociabilidade das suas duas faces»32. Assim, a ação do poder público, orquestrada pelos empresários da cidade, não foi capaz de extinguir o comercio informal da alimentação no urbano.
A comida de rua resiste e persiste mesmo com o histórico secular de perseguição, visto que está legitimada pelos consumidores. Entrevistas realizadas nessa pesquisa entre 2022-2023 evidenciaram o ponto de vista dos consumidores sobre a comida de rua, foram destacados por eles aspectos que os mesmos consideram relevantes como: geração de trabalho e renda, a acessibilidade no preço, um meio para alimentar as pessoas e a facilitação da rotina pela praticidade do comer na rua. Nessa perspectiva, a comida de rua se configura como um mercado socialmente necessário, como propõe a quem vende e a quem consome, por isso permanece, R-Existe.
A comida do lugar como R-Existência
Brandão abordou a comida do lugar ao elaborar um estudo antropológico que perpassa da terra à mesa e no qual investigou as práticas alimentares dos moradores do município de Mossâmedes-GO, fazendo uma «trajetória desde os tempos antigos para os dias de hoje»33. Outra importante abordagem sobre essa alimentação enraizada na cultura é a perspectiva dos alimentos identitários, propostos por Menezes como aqueles «[...]tradicionais, locais, da terra [...]»34. Segundo Woortmann, o caminho do alimento até se tornar comida passa por «[...] um processo de transformação qualitativo, realizando a passagem do plano da natureza para o da cultura, mediado pela via da culinária»35.
Woortmann corrobora o ponto de vista de Lévi-Strauss ao referir que o «eixo que une o cru e o cozido é característico da cultura (...) já que o cozimento realiza a transformação cultural do cru»36. Essa transmutação é verificada na comida de rua, que está em grande medida vinculada à cozinha ancestral indígena e africana, como também à cozinha imposta pela colonização, a portuguesa. Essa cozinha tradicional está materializada no espaço público, territorializada nas praças e avenidas das cidades, e, pela fusão de passado e presente, assumiu a posição de comida do lugar, isto é, de R-existência, posto que permanece.
Na história da alimentação brasileira, Cascudo descreve que «[...]o "mingau, 'comer visguento' (...) é de mais abundante e fácil encontro na documentária dos séculos XVI e XVII»37, e, segundo o autor, era elaborado principalmente com a goma da mandioca, carimã ou do milho e estava relacionado à cultura indígena. O mingau é relatado por Vilhena38, que narra a comercialização pelos escravizados na Bahia do século XVIII. Na atualidade, essa iguaria se mantém como comida tradicional nas ruas de Ilhéus e Itabuna, no período que compreende das 7h às 10h, como um importante item para o café da manhã. Os sabores mais comercializados nas ruas é o de tapioca (Figura 2), derivado da mandioca e o de milho muito presente na alimentação nordestina.
No mingau, estão presentes a influência da cozinha indígena na utilização da tapioca e do milho e «[...] a influência portuguesa com a utilização das especiarias como o cravo e canela, e a africana, no emprego do coco seco»39. Segundo os(as) trabalhadores(as) da comida de rua entrevistados, o sabor está na origem desses ingredientes, provenientes da agricultura familiar, sem beneficiamento industrial. Os (As) consumidores(as), que, ao degustarem, reconhecem a qualidade do produto, como atesta a consumidora Dona Maria40: «ninguém faz o mingau que ele faz». A elaboração do mingau é um saber fazer de R-existência a medida que congrega os memos alimentos utilizados pelos ancestrais que se mantêm em meio aos processos de gourmetização.
Outra importante comida de rua é o acarajé, um bolinho de feijão fradinho frito em azeite de dendê (Figura 4). Freire relata que os quitutes africanos estavam nas mesas da casa-grande e dos sobrados patriarcais, «Até que no século XIX o caruru, o vatapá e o acarajé já se podiam considerar pratos nacionais»41. No entanto, a primeira descrição etnográfica do fazer acarajé foi elaborada por Manuel Querino, na obra etnográfica A Arte Culinária na Bahia42, de 1916, publicado postumamente.
O autor descreve a elaboração da massa porque o acarajé tradicional africano não possui os acompanhamentos atuais, apenas «molho preparado com pimenta malaguêta, sêca, cebola e camarões, moído na pedra e frigido em azeite de cheiro»43, como era comercializado na Bahia na década de 1920. Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN, essa adição do vatapá, do caruru e da salada é recente: «Esses recheios ampliaram o tamanho do acarajé vendido nas ruas e tornaram-no uma espécie de sanduíche, chamado de 'sanduíche nagô' ou "acarajé-burguer"»44. No trabalho de campo, identificou-se a expressãohamburger de baiano para se referir ao acarajé.
O acarajé perfeito, de acordo com o consumidor Sr. Antônio, «deve ser macio por dentro e crocante por fora»45. Esse ponto ideal da massa é alcançado no momento da fritura. Após essa etapa, deita-se a iguaria em papel absorvente para eliminar o excesso de dendê, com poucos minutos é cortado, ainda quente, passa-se a pimenta e são inseridas as guarnições a gosto do cliente. A tradição é comer em temperatura quente, talvez originada do próprio significado do nome: Akara = bola de fogo, e jé = comer, assim a junção resulta em «comer bola de fogo» na língua africana Iorubá46.
O saber fazer envolvido na produção e no comércio dessa iguaria foi reconhecido pelo IPHAN:
O registro do Ofício das baianas de acarajé como Patrimônio Cultural do Brasil, no Livro dos Saberes, é ato público de reconhecimento da importância do legado dos ancestrais africanos no processo histórico de formação de nossa sociedade e do valor patrimonial de um complexo universo cultural, que é também expresso por meio do saber dos que mantêm vivo esse ofício47.
O acarajé é, na sua essência, comida de rua, diferentemente de bolos e mingaus, que são comidas de casa que passaram a ser comercializadas nas ruas. Nas palavras de Cascudo, «Acarajé e abará são comidas de porta afora»48, não representam o ambiente doméstico. Já segundo Sereno, Cardoso e Guimarães, «o acarajé constitui um dos mais importantes símbolos da cultura da Bahia, sendo consumido por baianos e turistas, que ficam encantados com o sabor, o aroma, a cor, a textura e a forma descontraída de saborear esse bolinho»49. É o único segmento de comida, nas cidades de Ilhéus e Itabuna, em que se formam filas para sua aquisição. Em algumas barracas, são distribuídas senhas para organizar a comercialização. A presença dessa iguaria é marcante nas praças do centro, na orla de Ilhéus, nos estacionamentos de supermercados, na inauguração de lojas, nas festividades, não há bairro de Ilhéus e Itabuna em que não seja encontrada uma ou mais barracas.
A produção do acarajé se mantém em grande medida feita como no passado, contudo os utensílios de barro foram substituídos pelo alumínio e a inserção do liquidificador ou processador para triturar o feijão também é uma realidade do presente. Mudam-se os utensílios, mas a qualidade dessa iguaria permanece porque é resultado do acúmulo de um saber transgeracional, como narra a baiana de acarajé Dona Tereza: «Desde criança acompanhava minha avó e minha mãe, agora sou eu que mantenho a tradição da família»50. Esse saber é perpetuado por meio da escuta, da observação, da imitação e da repetição. Nesse momento, o saber da aprendiz ganha vida no fazer repetidas vezes até se tornar uma baiana de acarajé.
Outra mudança na tradição é a profissionalização da atividade, isto é, a elaboração da iguaria e o comércio não se restringem a obrigações religiosas do candomblé51, como no passado, mas a uma atividade de sobrevivência dos grupos familiares. Há também uma crescente participação masculina na elaboração do acarajé; segundo Borges, «Os homens, há mais de uma década adentraram no mercado, tão profissionais e qualificados quanto às mulheres. Na rua os evangélicos, os católicos e o 'povo de santo' dividem o mesmo espaço»52. O que se mantém como no passado é o saber fazer transmitido de geração a geração, isto é R-existência.
Os saberes ancestrais também contribuíram para a construção de uma doçaria nacional. Os doces fazem parte da nossa cultura alimentar, em grande medida introduzidos pelo monocultivo da cana-de-açúcar e pela influência das receitas portuguesas, da reinvenção destas pelas negras escravizadas e pela introdução das frutas tropicais53. Por essa fusão multicultural nasce uma confeitaria brasileira. O açúcar moldou o tempo, o espaço, as relações socioeconômicas e até a nossa linguagem, como aponta Lokschin:
Graças ao nosso "ouro branco", a Lisboa do séc. XVII detinha a maior riqueza européia e o Rio de Janeiro do séc. XVIII, a maior população escrava mundial. Surgiram em Lisboa a "Rua do Açúcar" e nascia a capital do Brasil, Salvador, com sua 'Rua do Pão-de-Ló'. Senhor de Engenho ficou sinônimo de classe dominante, e bagaceira, a pessoa humilde que junta o bagaço da cana. A palavra portuguesa marmelada se mundializou como qualquer doce de frutas; seu tom pejorativo, bem brasileiro, surgiu da fraude do doce, a adição de chuchu ao marmelo54.
Segundo Cascudo, a cunhã, jovem indígena,«[...] fracassou no domínio do açúcar. Nenhum doce lhe nasceu das mãos generosas, enquanto a negra "reinava na cozinha"»55. Reinava a ponto de tomar decisões na composição dos pratos, pois, na ausência de ingredientes, ela improvisava com frutas inseridas no Brasil que eram velhas conhecidas das terras africanas, como o coco. Este, presente em abundância, era «Visto plantar-se o coqueiro desde Ilheus até Pernambuco, por tôda a costa, [...] tendo os nomes de "Côco-da-bahia" e "Côco-da-índia", indicantes da origem na memória coletiva»56. O coco e o açúcar passam a estar presentes no cardápio identitário do Nordeste, seja no munguzá, no arroz-doce, no mingau, na canjica ou nos doces de tabuleiro, como as cocadas.
Na concepção de Lody, «[...]o coco é fruta de rua, de beira mar, de vendedor ambulante, dos tabuleiros das baianas onde há sempre cocada»57. O coco é sem dúvida um alimento identitário para os baianos de Ilhéus e Itabuna. Atualmente, não se encontra cocada nos tabuleiros das baianas nas cidades estudadas, mas ela está presente no litoral de Ilhéus, nas ruas e avenidas da cidade, em carrinhos, em caixas de madeira ou plásticas (Figura 4). Segundo Carteado, «é a cocada, talvez o mais tradicional e famoso da doçaria baiana»58. É comercializada das 9h às 18h, mas o ápice das vendas é das 13h às 15h, isto é, após o almoço, como sobremesa ou lanche.
Na figura 4, é possível identificar uma cocada de cor castanha, denominada pelos vendedores como coco queimado por passar por um processo de caramelização, isto é, um escurecimento do açúcar devido ao maior tempo no fogo do que a branca ao lado dela. A cocada de tonalidade mais escura é a de cacau, muito consumida por ser um alimento identitário no Sul da Bahia. Segundo Rocha, «O cacau ontem, hoje e sempre, constitui-se num signo que representa uma região que se formou sob sua égide»59. O último doce é o de banana, mais popular no Brasil, conforme Cascudo60, e amplamente consumida em Ilhéus e Itabuna. Esses doces possuem os mesmos ingredientes utilizados no período da escravização negra (1535-1888), o açúcar e as frutas, incorporados à cultura alimentar ao longo dos séculos.
Essa comida do lugar resiste à pressão dos impérios alimentares61, que buscam introduzir produtos industrializados, fetichizados, aos doces tradicionais, com o leite condensado, o leite em pó, a glucose de milho, o creme de avelã, entre outros. Durante o trabalho de campo, foram identificados inúmeros doces com esses ingredientes. No entanto, quando se questionou: Quais doces você tem maior procura pelos consumidores? Sr.
Mário responde sem hesitar: «cocada de cacau e coco, mas há também uma procura por doces da moda com leite ninho e nutella, então a gente faz»62. A cozinha de rua permite diversas temporalidades, mas o novo é fugaz, se renova constantemente; o tradicional também se modifica, mas preserva traços históricos e culturais, como visto nesse texto.
Considerações finais
O conceito de R-existência se aproxima da temática da comida de rua na medida que os trabalhadores permanecem na rua e r-existem ao apagamento histórico de sua atividade que perdura a séculos no Brasil. Embora, sejam constantemente aturdidos por normas higienistas, decretos municipais elaborados por gestores públicos, orquestrado por empresários, que insistem desterritorializar a comida de rua. A comida de rua de rua é um trabalho ameaçado pelo uso capitalista da cidade como mercadoria e não como abrigo para seus citadinos. Ameaçada na localização em pontos específicos, mas não em sua existência. Esta, R-existe por ser uma ocupação para muitos trabalhadores e trabalhadoras, experientes nas resistências silenciosas, curvam-se, dobram-se, desviam-se, mas não desistem, dela retiram o sustento da família, e, sobretudo se apresenta como um mercado socialmente necessário para alimentar a população de comida e cultura.
A R-existência na comida de rua se deve ao fato de estar alicerçada na identidade da cultura alimentar baiana, resultante da contribuição indígena, africana e portuguesa. Por tanto, é comida do lugar por ter como referência alimentos identitários na sua preparação, como a tapioca e o milho no mingau, o feijão no acarajé e o coco e o cacau nas cocadas, presentes nas ruas de Ilhéus e Itabuna. Essa comida resguarda saberes e fazeres transmitidos de geração a geração que consolidam sua R-existência a medida que não desaparecem com o tempo. Na comida de rua, passado e presente dividem uma mesma realidade, o cotidiano, seja preservando ou reinventando as receitas tradicionais.
É urgente que a comida de rua seja incluída no planejamento urbano, no pensar a cidade, o que implica na tomada de decisões coletivas, e, para isso, é preciso ouvir os trabalhadores e as trabalhadoras, bem como os consumidores, para assim, encontrar soluções viáveis para todos os interessados. Porque não há nada mais banal, vital e necessário do que se alimentar e se socializar. Se essa ação infringe a lei do município, modique-se a lei, mas se permita que a cidade seja o lugar da convivência, do abrigo de todos e da reprodução social para os que a constroem e a alimentam cotidianamente.