Introdução
Ao longo dos últimos anos, a família tem sido alvo de muitas mudanças. Tendo-se vindo assistir ao emergir de novas estruturas familiares 1. Nesse sentido, a família consiste num sistema amplo, complexo e em constante movimento, sendo influenciado pelas diferenças no seu contexto social, político e cultural 2. Encarando a família como uma unidade vital e de duradoura importância para o indivíduo, ela tem sido conotada com uma multiplicidade de imagens que torna a sua definição imprecisa no tempo e no espaço 3.
Todos aprendemos sobre família ao fazermos parte de uma, porém esta baseia-se na nossa própria experiência, tendo muitas vezes uma única visão da família 1. Apesar destas alterações, e da diversidade estrutural das famílias, continua a ser nela que a pessoa recebe suporte nas situações de crise 3.
A intervenção de enfermagem centrada na família é uma abordagem do cuidar, fundamentada na relação colaborativa e intencional entre profissionais e famílias 4. O Modelo de Calgary de Avaliação e Intervenção da Família (MCAIF), proposto por Wright e Leahey (2009), permite oferecer um sólido fundamento teórico para uma avaliação e intervenção centradas na família 5. Nesse sentido, os enfermeiros precisam encontrar uma definição mais ampla dela, que ultrapasse o seu campo de conhecimento.
Enquanto docentes de enfermagem, partimos para esta investigação cientes de que os estudantes de enfermagem devem possuir um conceito amplo de família, que ultrapasse uma visão unifocal, no sentido de desenvolverem competências de avaliação e intervenção familiar em parceria com as famílias nos diferentes contextos de cuidados. A reflexão, durante o processo formativo em enfermagem, de uma abordagem centrada na família permite ao futuro profissional compreender a sua aplicabilidade de uma forma mais profunda e adotando-a nos mais diversos contextos de cuidados 6. Como futuros enfermeiros, devem ser capazes de utilizar instrumentos para avaliar as demandas familiares e intervir nelas, respeitando a integridade, a dignidade e a individualidade de cada família, além de respeitar as diferenças e promover um acompanhamento longitudinal das famílias, com um cuidado mais humanizado e integral 7, para o qual necessitam de alargar o seu próprio conceito de família.
O ensino sobre família em enfermagem e a sua translação para a prática de cuidados, nos mais diversos contextos, requer a aplicação de estratégias de sensibilização através da reflexão sobre a realidade 8. O método tradicional para o desenvolvimento de habilidades de avaliação familiar no ensino de enfermagem de graduação é ter a interface dos alunos com um cliente primário e a família durante as visitas 9. A formação sobre família determina a utilização de estratégias de ensino que visem, além dos conhecimentos técnicos, à prática reflexiva sobre o cuidado às famílias, o que justifica um aprofundamento dos assuntos abordados nos componentes curriculares 10, com metodologias inovadoras que potenciem a reflexão sobre o tema.
As metodologias de ensino-aprendizagem conservadoras ainda são amplamente utilizadas na formação dos profissionais da saúde, em que prossegue a existência de um predomínio das estratégias pedagógicas tradicionais, centradas na exposição do professor e na memorização de informações pelos estudantes 11. O cuidado centrado na família requer diferentes estratégias pedagógicas para serem efetivas; no entanto, algumas lacunas são encontradas na aplicação desta abordagem, que podem estar relacionadas com a falta de integração do cuidado da família ao longo da educação em enfermagem e com um foco no paradigma da ciência biomédica 12.
É importante alterar este paradigma através do contacto com outras formas de ser família, que integrem outros conceitos e experiências, o que poderá contribuir para que o futuro profissional observe a família como unidade da prática de cuidados 10. A inovação é determinante para o sucesso de qualquer intervenção, e os métodos inovadores vão ao encontro das necessidades dos estudantes de enfermagem. O Photovoice ou Fotovoz é um método inovador que permite criar competências a partir de reflexões sobre registros de pontos positivos e negativos de suas fotografias 13-19. Neste caso, permitindo, através das suas fotografia e das suas vivências, promover a discussão sobre temáticas importantes, como é o caso do conceito de família.
O presente estudo teve como objetivo aprofundar o conceito de família em estudantes de enfermagem, a partir da ferramenta do Photovoice, utilizando as fotografias de família dos estudantes como estratégia de aprendizagem.
Método
Trata-se de uma pesquisa-ação, realizada entre setembro e novembro de 2016. Para sua realização, solicitou-se autorização ao Conselho de Direção da instituição que foi cenário do estudo. No âmbito da aplicação dos instrumentos de coleta de dados, foram respeitados os procedimentos éticos, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, assim como a obtenção da aprovação pela Comissão de Ética da instituição (Parecer 1-17). De modo a garantir a privacidade e anonimato dos participantes, as fotografias foram desfocadas e apenas são apresentadas neste artigo as imagens autorizadas por eles.
A produção de dados deu-se por meio da ferramenta Photovoice (ou Fotovoz), desenvolvida na década de 1990 por duas pesquisadoras, Wang e Burris 20. Esta ferramenta permite aumentar a possibilidade de captar as perceções e experiências dos participantes 13-19. Esta metodologia de investigação participativa permite, a partir da captação de imagens que retratam a sua realidade, identificar vivências através da fotografia e, posteriormente, discuti-la em grupo 10.
Com base numa amostragem por conveniência, foram recrutados os estudantes que iriam iniciar o terceiro ano de licenciatura em enfermagem, considerando como critérios de inclusão a participação voluntária no estudo. A amostra foi constituída por 33 estudantes de enfermagem. Num primeiro momento, foi apresentado o estudo e seus objetivos.
A sessão, que aconteceu em dois momentos, foi conduzida e moderada por uma das autoras, e teve uma duração de aproximadamente 90 minutos. Antes da sessão, foi solicitado aos participantes que selecionassem uma fotografia da sua família para apresentarem no primeiro encontro. Facilitamos a discussão usando uma variação do "showed", uma técnica estabelecida para orientar as discussões da Photovoice 16,19. O processo showed inclui uma série de cinco perguntas destinadas a promover a reflexão dos participantes em torno das imagens. Neste estudo, adaptamos as perguntas focando no conceito de família. As perguntas foram as seguintes: O que vocês veem nesta fotografia? Por que escolheram esta fotografia? O que está acontecendo? Quem é a vossa família? Como isto se relaciona com o vosso conceito de família?
As sessões foram gravadas e transcritas; a interpretação da informação obtida foi efetuada através da análise temática de conteúdo segundo Bardin 21, incluindo os textos e as imagens recolhidas. Foi utilizado o software Atlas-ti versão 8.0 para sistematizar e catalogar o material analisado. Os dados obtidos foram codificados com a letra "E" e atribuído um número a cada participante. Nas figuras, a frequência das categorias identificadas é identificada pela letra "n".
Resultados
Dos 33 participantes, 31 eram do sexo feminino e dois do sexo masculino. A idade variou entre 19 e 23 anos, sendo a média de 20,6 anos. No que se refere ao lugar de nascimento na família, observa-se que 12 dos participantes eram primogênitos, 11 filhos únicos, 10 os mais novos de dois irmãos.
No que se refere ao tipo de família dos estudantes, as fotografias foram agrupadas pelo tipo de família, conforme ilustrado na Figura 1.
As fotografias são mais frequentes com a estrutura de uma família nuclear, no entanto é também salientada a família extensa e monoparental.
Os resultados que emergiram da análise das gravações e das fotografias foram organizados por categorias e subcategorias, e são apresentados na Figura 2.
Da análise dos dados, emergiram quatro categorias: Conceito de família na perspetiva do estudante, A minha família, Funções da família e O que vejo nesta fotografia. Cada uma destas áreas é explorada de seguida utilizando o texto significativo que foi captado das narrativas dos participantes.
Conceito de família na perspetiva do estudante
Da categoria Conceito de família na perspetiva dos estudantes, emergiram as seguintes subcategorias: agregado, consanguinidade versus afetivi-dade, família externa (que inclui amigos), família nuclear, família alargada, família monoparental e família extensa (que inclui animais).
É evidenciada, no discurso dos participantes, a associação do conceito de família à sua estrutura, com maior predomínio na família nuclear e alargada. No entanto, também é referido por alguns dos estudantes a inclusão dos animais e dos amigos como membros da família.
Pais, filhos e amigos, porque conhecidos há muitos [E29].
Os pais, primos, avós, os animais também [E21].
Um dos estudantes delimitou o conceito de família ao agregar:
Eu considero família quem vive no mesmo espaço [E14].
São também visíveis algumas demarcações associadas à consanguinidade e à afetividade:
A família não precisa ser direta, não precisa ser de sangue [E8].
Os amigos não são família [E32].
A minha família
Quando os estudantes são questionados sobre quem são as suas famílias, encontram-se divergências em relação à categoria anterior, conforme se observa na Figura 2. A subcategoria mais frequente é a família nuclear, sendo também referidos por alguns estudantes os amigos e os animais:
A minha família são os meus pais, o meu irmão, os meus tios, os meus avós, o meu namorado ainda não, mas o meu cão sim [E8].
Funções da família
Um aspecto que se sobressaiu no discurso dos estudantes foi as funções da família (Figura 3). A função familiar é o objetivo que a família tem em relação ao indivíduo e a outros sistemas sociais e à sociedade, analisado tanto em nível do seu micros-sistema como em seu macrossistema.
Embora a compreensão do sistema familiar seja essencial, as famílias não existem isoladamente, podendo ser vistas dentro de um modelo de sistemas ecológicos, que enfatiza como as famílias interagem com o meio ambiente e, portanto, que funções desempenham a esse nível 22. Os membros do microssistema são aqueles que participam regularmente da vida da pessoa -pais, parentes e amigo- durante um longo período de tempo. Enquanto o macrossistema consiste no sistema mais abrangente, que envolve a sociedade, a cultura, os valores e as crenças que moldam e influenciam os sistemas de ordem inferior 23.
Das várias subcategorias apresentadas na Figura 3, as mais referenciadas pelos participantes foram a fonte de suporte e a estabilização emocional de personalidades.
Fonte de suporte
A família constitui a principal fonte de suporte social e emocional do indivíduo, que inclui a produção ou a obtenção de recursos facilitadores das diferentes transições dos ciclos de vida 24,25. Este suporte é visível no discurso dos participantes.
Família para mim é o meu pilar [E5].
São a minha retaguarda são as pessoas que me apoiam [E21].
É o meu porto seguro [E33].
Estabilização de personalidades
A família contribui para a estabilização da nossa personalidade e determina o modo como pensamos, sentimos e agimos, desempenhando um papel estabilizador emocional e de socialização, transmitindo os valores culturais e sociais da família em que nascemos 24. Esta função é evidenciada nas narrativas dos estudantes:
Onde podemos ser nós mesmos, onde podemos chorar, berrar, rir [E9].
Onde posso estar à vontade, não tenho que esconder o que estou a sentir com medo de ficar mal, posso ser eu própria [E10].
O sítio onde somos o mais nós possível [E15].
O que eu vejo nesta fotografia
Quando os estudantes são questionados sobre o porquê de escolher aquela fotografia e o que veem nela, sobressaem as subcategorias apresentadas na Figura 4.
São diversas as subcategorias identificadas, nomeadamente: altruísmo, integração, cumplicidade, ciclo vital da família, felicidade, gratidão, amor, humor e união. As mais referidas foram a união e o amor, conforme se observam nestes excertos:
Reparo que é ainda aquilo que nos une [E3].
Nesta fotografia estamos todos juntos, unidos [E12] (União).
Nesta fotografia vejo amor [E18].
Vejo o amor que eles têm por mim [E29] (Amor).
Discussão
A evolução do conceito família nos diversos contextos socioculturais conduziu a uma diversidade de transformações na família, traduzin-do-se em mudanças na sua estrutura e na sua função 1. O conceito tem vindo a adquirir limites muito mais abrangentes, resultantes de novas estruturas familiares, o que tem contribuído para novas conceções de família e de forma de organização dos seus membros 24,25. Segundo estas tendências, deve promover-se a diversidade e a pluralidade, suprimindo conceitos de visão de "família tradicional" 24.
O estudante de enfermagem precisa compreender a família pela sua complexidade, globalidade, diversidade e unicidade, que vai além do seu próprio desenho de família. Neste sentido, é necessário rever práticas e alguns conceitos, muitas vezes redutores, desmistificando uma única visão de família composta por um casal heterossexual e sua descendência 25.
Os participantes descreveram os seus conceitos de família alicerçados, na sua estrutura, num conjunto ordenado de relações entre as partes da família confinados essencialmente à sua composição e consanguinidade. Esta categoria também foi obtida em outros estudos, nomeadamente num estudo sobre os discursos dos estudantes de enfermagem sobre família 26, assim como um estudo comparativo sobre descrições de família entre estudantes suecos e sul-africa-nos de enfermagem 27. Talvez porque as nossas representações mentais associadas ao conceito de família estejam ligadas a uma visão romântica, constituída por pai, mãe e filhos, que partilham habitação, afetos, convívios quotidianos e que se ajudam mutuamente 24.
As práticas de cuidados de enfermagem junto à família vão depender do conceito de família de cada um 25; é necessária uma mudança conceitual para integrar uma visão sistêmica de família. Ao pensar nesta numa perspetiva sistémica, pressupõem compreender e integrar outros sistemas mais amplos da comunidade, da sociedade e da cultura como um todo sistémico em que se estabelecem relações entre os seus membros e o meio exterior 10,12. Para o estudante de enfermagem e para os profissionais de saúde, é essencial conhecer a família e a forma como ela funciona, focalizando a sua intervenção na família como unidade de cuidados 10.
Nos discursos dos participantes, é percetível uma maior facilidade no aprofundamento das imagens e conceitos associados à sua própria família. A reflexão sobre as suas próprias famílias e a escuta da família do outro promovem a incorporação de outras imagens de família 10. Nas imagens e discursos dos participantes sobre o conceito de família, os estudantes têm por base que os indivíduos que a compõe precisam apresentar laços que os unam, associados à consanguinidade e a aspetos sentimentais e afetivos. Num estudo realizado por Schauric (2009) em estudantes de enfermagem sobre conceito de família, o autor apresenta resultados similares associado ao conjunto de indivíduos que têm algo em comum, nomeadamente consanguinidade, afinidade, afeto e objetivos 28.
Ao longo do discurso dos participantes, evidenciou-se uma outra categoria: Funções da família, na qual se destacou o suporte, a presença, o papel educativo, a socialização e a estabilização de personalidades. A família é uma instituição social com funções e influências significativas para o desenvolvimento do ser humano 26. Observando a família como sistema, ela apresenta essencialmente dois objetivos: um objetivo interno, através do qual protege os seus membros, e outro externo, que se refere à acomodação a uma cultura e à transmissão desta 24.
A família desempenha um papel estabilizador por meio do processo de socialização, com real importância na transmissão dos valores 26, salientada pelos participantes na socialização e no papel educativo. O suporte, o papel educativo e a socialização também são referidos por outros autores 26,28. A família desempenha funções importantes nos sistemas sociais e na sociedade, assim como, em relação ao próprio indivíduo em aspetos associados à afetividade, à educação, à reprodução e à socialização 24.
Verificou-se na categoria O que eu vejo na fotografia que os discursos dos participantes eram direcionados para sentimentos de fortalecimento afetivo, nomeadamente o amor, a união, a felicidade e a cumplicidade, resultados semelhantes a outros estudos 26,28. Na família, vamos moldando a nossa identidade através da aprendizagem de dimensões de interação e comunicação, construindo um sentimento de pertença resultante de emoções e afetos positivos e negativos 24. Esta análise enaltece o conceito de família, numa perspetiva poética e romântica, formada por indivíduos envoltos em laços de carinho, afeto e amor 28, que pode ter sido potenciada pela utilização de fotografia, associada à eternização de momentos felizes.
Uma outra característica evidenciada nesta categoria foi o ciclo vital da família, como algo que se modifica, que não se perpetua no tempo, dando origem a novas fotografias de família. O carácter evolutivo e dinâmico da história da família, com uma estrutura e organização em constante mudança, é salientado em outros estudos 12,28.
Em cada etapa do ciclo vital da família, ocorrem acontecimentos normativos ou acidentais que podem afetar de diferentes modos cada um dos seus membros, o que exige a alternância entre equilíbrios e desequilíbrios constantes, levando à necessidade de encontrarem novas formas de estar e de ser família 24. Logo, "pensar" família é compreender o status constante de mudança que esta sofre 10.
A utilização de imagens na internet e em redes socias é uma expressão da sociedade moderna, cada vez mais presente no nosso dia a dia. Embora sejamos constantemente alertados para os perigos da sua utilização, quando usada adequadamente pode ser uma ferramenta eficaz 29, conforme ilustrado neste estudo. O uso da fotografia permitiu dar voz aos participantes, para contar a história a partir de sua própria perspetiva 30-34. As fotos fornecem uma forma eficaz de discutir assuntos sensíveis e complexos 18. Esta inovadora estratégia de ensino e aprendizagem permite a estimulação do pensamento crítico 29, visível ao longo dos resultados apresentados.
Conclusão
Os resultados desta investigação estimulam um olhar mais atento na procura de estratégias de ensino que reforcem a importância da família no cuidar. O Photovoice, pelo seu potencial como instrumento participativo e reflexivo, permite ampliar o conceito de família na compreensão da diversidade e da unicidade, e no respeito a elas. A conscientização sobre o que se entende por família e a perceção da família do outro podem auxiliar os estudantes de enfermagem no entendimento deste conceito, incentivando a sensibilidade e a abertura sobre quem é a família do paciente. No entanto, acredita-se ser necessário dar continuidade ao aprofundamento e reflexão sobre este tema ao longo da formação do estudante de enfermagem, nomeadamente sobre como avaliar e intervir na família.
Foram encontrados estudos com a utilização do Photovoice, mas não direcionados para esta temática, o que dificultou a comparação dos resultados. As limitações deste estudo recaem sobre o tamanho elevado da amostra, o que dificultou a discussão. Sugere-se, para estudos futuros, a incorporação de grupos menores e com recurso a mais do que uma imagem por estudante.
Propõe-se que novos estudos sejam realizados com a utilização do Photovoice, o que possibilitaria evidenciar as suas vantagens. Além disso, são necessários novos estudos que permitam potenciar o "pensar família" em enfermagem. Espera-se que este percurso traga subsídios a outras investigações.