Introdução
Na Alameda da Memória, localizada na cidade de Lima (Peru), encontra-se um monumento composto por um monólito de granito de cerca de um metro de altura com uma pequena pedra arredondada no topo, de onde continuamente pingam gotas de água em uma pequena poça cercada por um labirinto de círculos concêntricos compostos de pequenas pedras circulares. O memorial Ojo que Llora, que representa a Mãe Terra (Pachamama) chorando por seus filhos e filhas, foi erguido em 2005 para rememorar as vítimas do conflito armado ocorrido no Peru entre os anos 1980 e 2000, cujos nomes e datas (de morte ou desaparecimento) constam nas pedras circulares que o compõem.
A obra é patrimônio cultural da nação pelo Ministério da Cultura do Peru desde janeiro de 2022 devido a seu valor artístico, histórico e intelectual.1 Este reconhecimento, contudo, foi ofuscado pela controvérsia que marca o monumento desde 2006, ano em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte idh) ordenou a inclusão, no Ojo que Llora, dos nomes das vítimas fatais de um massacre ocorrido durante o conflito como medida de reparação devida pelo Peru.2 O comando proferido pelo tribunal teve profundas repercussões nas dinâmicas de memórias no país, oferecendo uma oportunidade ímpar para a análise do papel de cortes e organizações internacionais na construção da memória oficial de uma nação, usualmente analisada pela perspectiva das instituições nacionais.
Inserido neste contexto, este artigo realiza um estudo de caso das medidas de reparação ordenadas pela Corte idh no caso Prisão Miguel Castro Castro vs. Peru (2006) relativas ao Ojo que Llora à luz dos estudos de memória. Assim, após a apresentação do contexto fático relativo ao conflito, à concepção do monumento e ao julgamento da Corte idh, serão tecidas considerações sobre o impacto da ordem de reparação proferida em 2006, incluindo o panorama geral das disputas de memória na sociedade peruana referentes ao conflito ocorrido entre 1980 e 2000, o Ojo que Llora como lugar de memória e lugar de conflito, o impacto da decisão da Corte IDH na definição de “vítima” no Peru e a desconsideração da vontade das vítimas do massacre pelo tribunal.
Contextualização fática: o Ojo que llora e o julgamento da Corte idh no caso Prisão Miguel Castro Castro vs. Peru
A concepção do monumento Ojo que Llora em memoria das vítimas do conflito armado no Peru
Entre 1980 e 2000, o Peru passou pelo conflito armado de maior duração e maior impacto sobre o território nacional e de mais elevados custos hu-manos e econômicos vivido durante toda sua história.3 O embate se deu, em sua maior parte, entre as forças subversivas4 do Partido Comunista Sendero Luminoso e o governo peruano.5 A Comissão da Verdade e Reconciliação (cvr) foi instaurada em 2001 para investigar as violações de direitos humanos que ocorreram no período e identificar os responsáveis, bem como propor medidas para fortalecer a paz e a reconciliação entre os peruanos.
A cvr recebeu relatórios de 23 969 peruanos mortos ou desaparecidos, mas estima que o número de vítimas fatais no conflito interno foi de 69 280 pessoas, estabelecendo que a maioria (46 %) das mortes foram causadas pelo Sendero Luminoso, 30 % por agentes estatais e 24 % por outros agentes e circunstâncias.6 A cvr também constatou a ocorrência de ao menos 6 442 atos de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante, com 74,90 % tendo sido cometidos pelo Estado e 22,51 % pelo Sendero Luminoso.7 Assim, ao passo em que também denunciou a violência perpetrada pelo Sendero Luminoso, a cvr tornou público o antes nebuloso papel do Estado nas violações de direitos humanos durante o conflito.
Dentre outras medidas visando à reparação pelas violações de direitos humanos, a cvr recomendou que fosse realizado um programa de repa-rações simbólicas por meio de gestos públicos, atos de reconhecimento, lugares de memória, entre outras condutas visando a reconciliação.8 Os beneficiários de tais medidas deveriam ser as vítimas de violações de direitos humanos e da violência em geral, bem como os cidadãos dos territórios afetados pelo conflito interno.9 Inspirada pelas recomendações da cvr, a escultura holandesa-peruana Lika Mutal concebeu o monumento Ojo que Llora como uma homenagem às vítimas do conflito, cujos nomes seriam inscritos nas cerca de 32 000 pedras que o compõem. Os nomes, retirados da lista de vítimas do conflito elaborada pela cvr, foram inscritos durante uma iniciativa coletiva em que participaram dezenas de artistas, ativistas de direitos humanos, entre outros cidadãos.10
As pedras foram posicionadas na forma de um labirinto cujo caminho demanda uma espécie de peregrinação, em que visitantes caminham “em busca de perdão [...] e reconciliação consigo mesmos e com outros”.11 Era a intenção de Mutal construir um monumento que “além de ser um tributo às vítimas, ser[ia] um instrumento eficiente para fazer a população adquirir maior consciência do que aconteceu no Peru durante os anos de conflito interno e promover reflexão”.12 Com efeito, após sua inauguração em 28 de agosto de 2005, o memorial rapidamente se tornou um local pacífico para luto e reflexão, celebrado em âmbito nacional e internacional. Conforme apontou o escritor peruano Mario Vargas Llosa, não havia polêmicas sobre o monumento antes da Corte idh proferir julgamento no caso Prisão Miguel Castro Castro vs. Peru em 2006.13
O massacre na Prisão Miguel Castro Castro
Conforme foi revelado pela cvr, durante o conflito interno, o Estado peruano perpetuou uma série de execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados de pessoas suspeitas de pertencerem aos grupos armados partes do conflito, como o Sendero Luminoso.14 Ademais, o Estado manteve, em seus estabelecimentos prisionais, uma série de práticas contrárias às obrigações assumidas internacionalmente pelo Peru no que se refere aos direitos humanos.15 Nesse contexto, inserese a Prisão Miguel Castro Castro, cujos pavilhões 1A e 4B eram ocupados, respectivamente, por cerca de 175 e 400 detentos. Tais áreas concentravam pessoas acusadas ou condenadas por crimes de terrorismo e traição devido a serem alegadamente membros do Sendero Luminoso -muitas das quais foram posteriormente inocentadas-.16 O Estado recebia recorrentemente denúncias da mídia de que o Sendero Lu-minoso estaria exercendo controle territorial e planejando diversos ataques de dentro dessa prisão.
Em maio de 1992, foi instaurado o “Operativo Mudanza 1”, que tinha como alegado objetivo transferir as mulheres do pavilhão 1A para uma prisão exclusiva para mulheres.17 Sabese hoje, no entanto, que a operação tinha como real objetivo realizar um ataque aos prisioneiros localizados nos pavilhões 1A e 4B.18 Durante a operação, as forças da Polícia Nacional derrubaram parte da parede externa do bloco 1A utilizando explosivos e abriram buracos no telhado da prisão, de onde dispararam tiros nos detentos. Os agentes do Estado, a polícia e o exército usaram armas de guerra, explo-sivos, bombas lacrimogênias, vomitivas e paralisantes, bem como bombas, fogo de morteiro e granadas lançadas de helicópteros. A operação resultou na morte de dezenas de detentos e centenas de feridos. Os sobreviventes foram espancados e agredidos, sendo mantidos sem atendimento médico adequado por vários dias.
O julgamento do caso Prisão Miguel Castro Castro vs. Peru pela Corte IDH
A Corte idh é um tribunal internacional constituído em 1979 no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) para julgar alegada violações à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Convenção),19 um tratado internacional que prevê um rol de direitos humanos a serem respeitados e promovidos pelos estados-parte. Quando a Corte idh verifica a ocorrência de uma violação aos direitos garantidos na Convenção,20 ela ordena que o Estado violador realize a reparação dos danos causados. Nesse sentido, a Corte idh possui uma ampla jurisdição para decidir sobre quais medidas são cabíveis para reparar um determinado cenário de violação de direitos humanos.21
Apesar de ter se limitado, nos primórdios de sua atuação, a ordenar reparações monetárias, a Corte idh expandiu o rol de medidas que con-sidera como potencialmente cabíveis após violações de direitos humanos, contemplando hoje, além da referida compensação financeira, as seguintes categorias: restituição (providências que restauram, na medida do possível, a situação em que a vítima se encontrava antes das violações); reabilitação (prestação de assistência médica e psicológica, bem como serviços jurídicos e sociais); não-repetição (diligências para prevenir novas violações); e satisfação (condutas diversas como a investigação das violações, pedidos públicos de desculpas e medidas simbólicas).22 Entre as medidas simbólicas de reparação já ordenadas pela Corte idh aos Estados, constam a memo-rialização das vítimas por meio da nomeação de ruas, de estabelecimentos educacionais, de bolsas de estudo ou de praças, bem como da instauração de placas comemorativas ou da construção de monumentos.23
O Peru é parte da Convenção Americana desde 1978 e está sujeito à competência da Corte idh de julgar violações alegadamente perpetradas pelo Estado desde 1981. Devido a isso, após procedimentos perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,24 esta pôde remeter o caso à Corte idh em 2004.25 Após determinar e analisar os fatos do caso, o tribunal proferiu sentença em 25 de novembro de 2006 e declarou o Peru como responsável, entre outros, pela violação do direito à vida de 41 detentos, bem como do direito à integridade e a não ser torturado de 185 detentos.26 No âmbito das discussões sobre as medidas de reparação cabíveis, a Comissão requereu à Corte idh que ordenasse ao Estado:
Erguer um monumento ou destinar um lugar, na área de Canto Gran-de, onde o Centro Criminal “Miguel Castro Castro” é localizado, em memória de todas as vítimas do massacre, em consulta com as vítimas sobreviventes e os parentes das vítimas fatais.27
A representante das vítimas, por sua vez, requisitou que a Corte idh ordenasse:
a criação de um parque na área de Canto Grande, onde as vítimas e os parentes do falecido [...] possam plantar uma árvore “como gesto simbólico de vida em nome de um ente querido falecido”, bem como a ereção de um monumento no parque em homenagem às Mães das vítimas [...]. Este último deve ser construído de acordo com os desejos das vítimas. Elas não querem que “museus ou monumentos de natureza diferente sejam colocados no referido parque”.28
O Estado, em resposta, alegou não estar de acordo com a medida su-gerida, pois:
um monumento (chamado Ojo que Llora) já foi erguido em local público da capital em favor de todas as vítimas do conflito, em um lugar público da capital da República, e que é objeto de contínuos atos memoriais e comemorativos.29
Considerando os requerimentos da Comissão e da representante das vítimas, bem como a resposta do Estado, a Corte IDH se pronunciou sobre a medida simbólica cabível:
a Corte valoriza a existência do monumento e do espaço público chamado “El Ojo que Llora”, criado a pedido da sociedade civil e com a colaboração das autoridades estatais, que constitui um importante público reconhecimento às vítimas da violência no Peru. Entretanto, o Tribunal considera que, no prazo de um ano, o Estado deve assegurar que todas as pessoas declaradas como vítimas falecidas no presente julgamento sejam representadas no referido monumento. Para isso, deve coordenar com os parentes das vítimas falecidas um ato, no qual elas podem incluir uma inscrição com o nome da vítima, conforme corresponde de acordo com as características do monumento.30
Assim, a Corte idh ordenou, entre as medidas de reparação, a inscrição dos nomes das 41 vítimas fatais da operação na prisão Miguel Castro Castro no monumento Ojo que Llora.
A repercussão e as consequências do julgamento da Corte IDH
Considerando a associação das vítimas do massacre na Prisão Miguel Castro Castro com o Sendero Luminoso e o fato de que boa parte da socie-dade peruana atribui ao grupo a responsabilidade pelo conflito, o julgamento causou grande comoção na classe política e na opinião pública.31 Em relação à totalidade do julgamento, o então presidente Alan García declarou ser “indignante que um tribunal chegou a uma conclusão que prejudica um país que foi vítima da insanidade e destruição diabólica de uma seita que buscou destruir a nossa Pátria”.32 Ao se referir especificamente às alterações ordenadas ao Ojo que Llora, comentou que “[a Corte] não vai encontrar um único peruano disposto a colocar um tijolo em favor dos assassinos no Peru”.33 Outros políticos defenderam que a Corte IDH não poderia estabelecer um paralelo entre os senderistas e as “vítimas inocentes” e, ao lado de outras vozes, inclusive da Associação de Famílias das Vítimas do Terrorismo, clamaram que o governo peruano se desligasse da Corte.34
A polêmica atingiu um novo patamar quando, em 3 de janeiro de 2007, o jornal Expreso publicou uma matéria que revelou que os nomes das vítimas do caso Prisão Miguel Castro Castro já constavam inscritos no monumento desde sua inauguração.35 O periódico afirmou, assim, que o Peru tinha um monumento “para terroristas” e que o Ojo que Llora era composto por pedras com “nomes de terroristas misturados com nomes de vítimas inocentes”.36 A artista Lika Mutal havia se baseado na lista de vítimas do conflito publicada pela cvr, mas declarou que desconhecia que membros do Sendero Luminoso encontravamse entre os nomes inscritos. Observar que o monumento de sua autoria passou a ser classificado como uma “homenagem a terroristas” foi, para Mutal, “o momento mais inacreditável da sua vida”.37
A ampla publicação desse fato, que antes não era de conhecimento pú-blico e não havia sido levantado durante os procedimentos perante a Corte idh, fez com que surgissem, na opinião pública, demandas pela remoção dos nomes e até mesmo pela destruição do memorial.38 Por outro lado, o monumento foi defendido por ativistas de direitos humanos e algumas figuras de proeminência política e cultural, entre eles o escritor Vargas Llosa em um editorial para El País.39 Em 21 de janeiro de 2007, houve uma marcha em defesa do memorial.40
O memorial foi atacado em ao menos oito ocasiões.41 A instância mais notável ocorreu na noite de 23 de novembro de 2007, quando um grupo de pessoas carregando um balde de tinta e marretas invadiram o local em que se encontra o Ojo que Llora, agrediram e imobilizaram o policial que o patrulhava, pintaram o monumento de laranja e o desmembraram.42 A maior parte da mídia e da classe política denunciou o ataque, mas alguns apoiadores de Fujimori o aplaudiram.43 Dias depois, ocorreu outra marcha em defesa do memorial e em protesto ao ataque, contando com a presença de defensores de direitos humanos e de Lika Mutal.44
O debate chegou ao conhecimento da Corte idh durante o processamento da solicitação de interpretação do julgamento que havia sido apresentada pelo Peru em março de 2007.45 Em fevereiro de 2008, o Peru apresentou à Corte uma carta de Lika Mutal em que ela afirmava ter a esperança de que os nomes das vítimas do caso Prisão Miguel Castro Castro vs. Peru não fossem incluídos no monumento, pois ela não queria sua obra associada com “pessoas que possuem um histórico comprovado de crimes contra a humanidade”.46 Em resposta, a representante das vítimas afirmou que foi o próprio Estado peruano que havia proposto à Corte idh a inclusão dos nomes das vítimas fatais do massacre no Ojo que Llora , relembrando que as vítimas haviam solicitado a construção de uma área verde como medida simbólica de satisfação.47 Após considerar os argumentos das partes, a Corte idh determinou que o Estado criasse um parque ou construísse um monumento que pudesse satisfazer o sentido e a finalidade da medida de reparação originalmente ordenada em seu lugar.48
Com o tempo, “a natureza tomou conta do apagamento”, nas palavras de Mutal ao se referir aos raios de sol que desbotaram as inscrições dos nomes no Ojo que Llora.49 Alguns grupos voltaram a escrever alguns nomes nas pedras, mas a maioria continuava em branco (incluindo as pedras referentes às vítimas da Prisão Miguel Castro Castro).50 A artista, contudo, não queria que a maioria das pedras ficasse vazia e enfatizou sua vontade de reinscrever os nomes das “vítimas inocentes” no monumento, sem os “terroristas” ao seu lado.51 Eventualmente, uma nova lista de nomes foi inscrita nas pedras do monumento, mas, desta vez, com base na lista do Registro Único de Vítimas (RUV) criado pela Lei n. 28592 do Peru,52 cujo regulamento exclui “os membros de organizações subversivas” do conceito de vítimas,53 de forma que a não englobar os detentos vitimizados pelo massacre.
Mesmo com estas alterações, a associação do monumento com grupos “terroristas” não foi eliminada da opinião pública. Quando o Ojo que Llora foi reconhecido como patrimônio cultural da nação em janeiro de 2022, congressistas condenaram a listagem do monumento, alegando, entre outros, que ele seria “pró terrorista” e “uma afronta às pessoas que sofreram ataques por criminosos terroristas”.54 Tais acusações foram nega- das pela associação responsável pela administração do monumento e pela antiga presidente do Conselho de Reparações (responsável pela elaboração do ruv), que reforçaram que os nomes foram inscritos com base na lista do ruv -que não inclui membros de organizações subversivas-.55 Nota-se, assim, que as controvérsias relativas à rememoração do conflito ocorrido no Peru estão longe de serem pacificadas.
Análise: o impacto do julgamento da Corte IDH nas dinâmicas de memória
Do panorama geral das disputas de memória na sociedade peruana
Após um conflito da magnitude do que assolou o Peru entre 1980 e 2000, enatural que surjam diferentes memórias sobre o ocorrido entre os distintos grupos que compõem a sociedade. Assim como aponta Halbwachs, o autor precursor dos estudos da memória coletiva,56 apesar da existência de uma dimensão individual da memória, ela é um fenômeno sobretudo coletivo, cuja construção é determinada pelo contexto social em que o indivíduo está inserido.57 A memória coletiva está ligada ao compartilhamento de lembranças, tradições e valores por um dado conjunto de indivíduos que constituem um grupo social, o qual encontra o sentimento de pertença e elo no tempo através dessa memória em comum.58 Nesse sentido, a memória coletiva é múltipla: há tantas memórias coletivas como grupos humanos, e elas sempre representarão o que resta do passado vivido por esses grupos ou o que esses fazem com esse passado, atualizando-o no presente.59
A depender do status de um determinado grupo na sociedade, sua memória coletiva se tornará mais ou menos conhecida e disseminada. Assim, nas interações entre grupos sociais, cada grupo luta para tornar a sua visão do passado dominante, e quem prevalece nessa batalha torna a memória coletiva do seu grupo a versão preponderante na sociedade como um todo. Assim, grupos dominantes conseguem promover aspectos específicos das narrativas sobre o passado que os ajudam a conquistar visibilidade e reconhecimento, o que reforça ainda mais sua posição de poder -sendo, portanto, notável a relação entre memória e poder-.60
Uma memória coletiva se torna memória oficial quando autoridades, como instituições e governos, reconhecem essas memórias e as dão caráter permanente. Dessa forma, emergem com mais força as memórias oficiais, institucionalizadas, autorizadas, em detrimento de todas as outras.61 Confor-me aponta Pollak Halbwachs considera a nação como a forma mais acabada de um grupo, e a memória nacional (aqui denominada memória oficial), a forma mais completa de uma memória coletiva.62 Para ele, Halbwachs não vê na memória coletiva uma imposição, uma forma de dominação ou violência simbólica,63 e acentua as funções positivas desempenhadas pela memória comum, como o reforço da coesão social não pela coerção mas pela adesão afetiva ao grupo.64 Não obstante, a memória oficial pode possuir um caráter “destruidor, uniformizador e opressor”.65
Além da memória, o esquecimento também é parte fundamental da coesão de um grupo, e para fazer parte de um grupo, os indivíduos devem, além de lembrar o que possuem em comum, esquecer suas diferenças. Assim ocorre, segundo Burke, “a organização social do esquecer, as regras de exclusão, supressão ou repressão de memórias”.66 Tais processos são, inclusive, fundamentais para a construção de uma nação.67 No entanto, o esquecimento pode gerar severos ressentimentos de grupos sociais de cujas memórias se busca o apagamento, bem como injustiças. Nota-se que, em sua seminal obra centrada na relação entre memória, história e esquecimento, Ricoeur separa problemáticas referentes ao fenômeno do esquecimento (que se rela-ciona com a fidelidade ao passado) e ao perdão (centradas na atribuição de culpa e na reconciliação com o passado),68 o que reforça que o apagamento de uma memória traumática não necessariamente leva à conciliação social.
Como visto, a memória está sujeita a manipulações e esquecimentos para servir aos interesses dos grupos sociais prevalentes. Considerando a pluralidade de grupos e, portanto, de memórias coletivas, bem como as dinâmicas do esquecimento, é esperado que ocorram disputas de memória entre os diferentes grupos.69 Nesse sentido, surgem as “memórias concorren-tes” (por constituírem uma visão distinta) ou “memórias subterrâneas” (por serem oriundas de grupos marginalizados) quando outros grupos sociais reivindicam a memória.70
Tais conceitos são aplicáveis às dinâmicas de memória observáveis na sociedade peruana. O conflito entre o governo e o Sendero Luminoso gerou uma cisma na população, com alguns setores da sociedade apoian-do a ação dos grupos subversivos, enquanto outros apoiavam a repressão estatal. Com o colapso das forças senderistas, os porta-vozes do governo veicularam amplamente uma mensagem que, apoiada por formadores de opinião e ampliada pela mídia, tornou-se senso comum no Peru: as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado Peruano durante o conflito foram o “custo necessário” que o país teve que pagar para acabar com a violência perpetrada por grupos terroristas.71 Em uma política de “memória da salvação”, o esquecimento das violações perpetradas pelo Estado havia prevalecido.72 Assim, as memórias coletivas favoráveis às ações do governo durante o conflito eram sancionadas e promovidas pelo Estado e tornaram-se memória oficial, enquanto as memórias das violações perpetradas pelo Estado passaram por um processo de esquecimento.
No entanto, conforme aponta Degregori (antropólogo integrante da CVR), sempre existiram narrativas, memórias subterrâneas e concorrentes, que questionavam a memória oficial, sendo as mais visíveis aquelas produzidas por organizações de direitos humanos ou pela imprensa oposicionista.73 Havia também memórias persistentes que sobreviviam no contexto local ou familiar, reprimidas pelo medo e por uma falta de canais para expressá-las. Assim, estava configurada uma disputa de memória, na qual prevalecia a narrativa oficial.
Conforme apontado acima, a cvr surgiu justamente como uma tentativa de combater o esquecimento da violência que o Peru sofreu e a narrativa do regime fujimorista. A participação significativa do governo nas violações de direitos humanos ocorridas durante as duas décadas foi trazida à luz e, assim, a memória correspondente pode emergir, sendo oficializada pela CVR. O conflito deixou de ser entre uma memória oficial e uma memória supri-mida para se tornar um conflito entre duas memórias institucionalizadas (embora em níveis diferentes). Deste modo, a memória oficial passou a ser composta por uma dialética74 entre a memória que havia sido produzida de cima, pelo governo, e pela memória surgida de baixo, produzida por organizações de direitos humanos e preservada pelas famílias vitimizadas pela violência estatal.75
Do Ojo que Llora como um lugar de memória e um lugar de conflito
Uma característica da memória apontada por Nora é o fato de que ela “se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”.76 É nesse contexto que o autor introduz o conceito de lugares de memória, lugares no mundo físico que permitem a ancoragem e a articulação da memória coletiva para seu uso político e social. São os espaços que guardam os vestígios das ações passadas, que imortalizam o tempo e impedem o esquecimento, lugares em que a memória trabalha e que, na maioria das vezes, são criados de maneira intencio-nal.77 Exemplos de “lugares de memória” são museus, arquivos, festas, coleções, cemitérios, tratados, santuários, associações e, notadamente, monumentos.78
O Ojo que Llora foi construído para homenagear e rememorar as víti-mas da violência no Peru durante o conflito interno. É, assim, um lugar de memória onde se ancora a memória coletiva que corresponde à dialética entre as memórias oficiais promovidas pelo governo peruano e pela cvr sobre o ocorrido. Ao inscrever os nomes das vítimas do massacre da prisão Miguel Castro Castro no monumento, Lika Mutal, ainda que sem intenção, possibilitou que eles pudessem conviver pacificamente com os nomes das vítimas consideradas “inocentes” pela sociedade peruana,79 ao menos por um tempo. Assim, o equilíbrio na dialética entre as memórias oficiais parecia estável. É possível dizer que, ao impor a inscrição dos nomes das vítimas do massacre no monumento Ojo que Llora, a Corte idh acabou por encerrar tal convivência pacífica entre os nomes de todas as vítimas. Nesse sentido, ao buscar a reparação das vítimas, a Corte afetou outro aspecto importante em contextos pós violações massivas de direitos humanos: a reconciliação.80
Por outro lado, pode-se argumentar que nunca houve uma verdadeira convivência pacífica entre os nomes das vítimas, pois a presença dos nomes de alegados senderistas no monumento não era de conhecimento público. Tratar-se-ia de uma harmonia falsa, baseada no desconhecimento -e não na reconciliação-. De qualquer forma, ao ordenar que o Peru inscrevesse o nome das vítimas do massacre no Ojo que Llora, a Corte idh demonstrou a fragilidade do equilíbrio da dialética entre as memórias institucionalizadas concorrentes e a importância de “cuidadosamente e, por vezes, criticamente, escutar as vozes das vítimas e, também, daqueles sujeitos em outras posições, como perpetradores, colaboradores, observadores, e comentadores” ao dis-cutir políticas relativas a memórias traumáticas.81 Com efeito, ressentimentos e cismas anteriores reemergiram, ficando claro que as feridas do passado ainda não haviam sido cicatrizadas.
Cabe destacar que a emergência do conflito em torno do monumento não é inerentemente negativa. Não há dúvidas de que a decisão da Corte idh e a “descoberta” da existência de que havia nomes de alegados senderistas no monumento o deram maior visibilidade -o memorial já recebia visitantes antes do julgamento, mas, depois, tornou-se um intenso lugar de debate público-.82 Ademais, o ciclo de destruição e apagamento dos nomes, quando seguido de restauração e reescrita, faz com que o monumento seja palco de um ato performativo que reiteradamente revive aqueles “apagados” pelo conflito,83 em um processo que pode fazer com que as pessoas gradualmente lidem com suas feridas abertas. Ao contrário de outros monumentos, que são estáticos e sujeitos à mera contemplação passiva, o Ojo que Llora engaja seus observadores, tornando-os participantes no processo de construção de seu significado, com o público se tornando parte da escultura.84 No entanto, os recorrentes ataques ao monumento levaram o governo a cercá-lo, o que diminuiu seu potencial interativo.85
Em relação a tais atos de destruição, cumpre destacar que o marcante ataque ao monumento ocorrido no dia 23 de setembro de 2007 foi realizado [247] um dia após a polícia chilena extraditar Fujimori para o Peru para enfrentar acusações criminais de violação de direitos humanos e corrupção. Nota-se também que o ataque ao monumento foi marcado pela cobertura de sua pedra central com tinta laranja, cor associada aos apoiadores de Fujimori. Tal fato sustenta um aspecto importante da teoria da memória coletiva em Halbwachs: a chamada “abordagem presentista”,86 segundo a qual a memó-ria está sendo constantemente reconstruída em função das necessidades do presente. Pollak reforçou este ponto ao apresentar a memória como um fenômeno construído marcado pela sua organização em função das preo-cupações pessoais e políticas do momento.87
A tentativa de destruição do monumento foi condenada por magistrados da Corte idh como o Juiz Cançado Trindade, que afirmou que o ataque foi um ato de violência “dirigido ao respeito pela memória daqueles que perderam suas vidas durante o ciclo de duas décadas de extrema violência que flagelou o país”.88 Para o Juiz:
Os agressores do memorial, não movidos pelas numerosas víti-mas fatais de violência de diferentes origens, viraram seu ódio contra um memorial relativo à memória das vítimas. Ao mesmo tempo, foi um ataque contra o futuro (a busca da paz através da justiça no Peru) e o passado (o respeito pelos mortos, as vítimas da violência e repressão).89
Cançado Trindade também apontou que tais atos “não atingem o ob-jetivo prejudicial que buscam, de apagar a memória das vítimas”, o que foi demonstrado pelo aumento da frequência de discussões públicas sobre o monumento e, por consequência, sobre a memória das vítimas.
Por outro lado, ao passo em que, antes da decisão, os familiares das vítimas do caso Prisão Miguel Castro Castro vs. Peru poderiam ver a memória de seus entes queridos refletidas no Ojo que Llora ao visitá-lo, a substituição da lista da cvr pela lista do ruv acabou por impedir sua representação. Tal desfecho é ainda mais danoso no caso de vítimas desaparecidas, cujas famílias não possuem um túmulo onde localizar seus processos de rememoração.
Das distintas definições de “vítimas” na sociedade peruana
Antes do julgamento da Corte idh, a noção de “vítima” representada no Ojo que Llora possuía uma qualificação genérica e despolitizada,90 que não diferenciava entre “vítimas culpadas” e “vítimas inocentes”. Isso se deu porque a lista de vítimas da CVR, inicialmente adotada por Mutal, considerava como vítima “todas aquelas pessoas [...] que, pelo motivo ou em razão do conflito armado interno que o país viveu entre maio de 1980 e novembro de 2000, haviam sofrido atos ou omissões que violam normas do direito inter-nacional dos direitos humanos”.91 Apesar da cvr ter excluído de tal definição “aquelas pessoas que foram feridas, lesionadas e mortas em enfrentamentos armados e que pertenciam, nesse momento, a uma organização subversiva terrorista”, 92 considerando que os detentos da Prisão Miguel Castro Castro não foram mortos ou lesionados durante um enfrentamento armado, eles foram considerados vítimas. Esta classificação aproximava-se do entendi-mento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que considera todas as vítimas de violações de direitos humanos como igualmente vítimas.93
Quando a Corte idh chamou a atenção do público ao fato de que alega-dos senderistas também estavam incluídos na definição de vítimas da cvr e representados no monumento, contudo, houve um choque de opiniões sobre a quem poderia ser atribuído tal status. A série de debates e conflitos que su-cederam à decisão culminou na reinscrição de nomes no monumento ter se baseado na lista do ruv, que exclui completamente “membros de organizações subversivas” do conceito de vítimas,94 impedindo a inscrição dos nomes dos detentos vitimizados pelo massacre na Prisão Miguel Castro Castro.
Com efeito, após um conflito, uma das maiores dificuldades políticas e simbólicas é definir quem foi vítima e quem foi perpetrador.95 Em muitos casos, a sociedade define que as “vítimas verdadeiras”, aquelas que devem ser alvo de políticas de reparações, são as “inocentes”, ou, em outras palavras, aquelas consideradas “de mãos limpas”.96 A Relatora Especial do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH) para o campo dos direitos culturais, em relatório sobre processos de memorialização, apontou para a importância de se evitar tais definições “preto no branco” de vítimas, e que “processos de memorialização que identificam apenas um grupo como vítimas enquanto obliteram crimes sérios cometidos contra outras partes do conflito geram preocupação”.97 Tal inquietação reflete o ocorrido no Peru, em que parte da população ainda considera as vítimas do massacre da prisão Miguel Castro Castro como “ungrievable” (não passíveis de luto).98
Não obstante a importância de adotar concepções de “vítima” que reflitam as complexidades inerentes à maioria dos conflitos, traçar equivalências diretas entre diferentes grupos de vítimas pode gerar reações negativas da sociedade contra as “vítimas culpadas” e legitimar mais violência contra elas,99 como visto, por exemplo, nos repetidos ataques contra o Ojo que Llora.
Ademais, em 31 de março de 2007, o presidente Garcia introduziu uma lei que estabeleceu que os membros das forças armadas e da polícia nacional que morreram durante o conflito interno teriam seus nomes publicados no El Peruano (diário oficial do Peru) como “novos heróis da nação” e passa-riam a ser homenageados por meio da nomeação de ruas.100 Tal postura, potencialmente motivada pela decisão da Corte idh,101 afeta as vítimas da violência estatal de forma negativa, pois, ao designar agentes estatais como “heróis”, a medida invisibiliza as violações perpetradas contra elas. Ainda, ela reforça a memória do conflito com uma narrativa “preto no branco” diametralmente contrária às recomendações internacionais.
Da desconsideração da vontade das vítimas do massacre
De acordo com a Relatora Especial do cdh, um elemento essencial para o sucesso de um processo de memorialização é a colaboração entre as au-toridades, cidadãos e sociedade civil, em especial as pessoas mais afetadas pelos eventos em questão.102 No mesmo sentido, estudos já demonstraram que é mais provável que memoriais se tornem lugares de cura se as famílias das vítimas são consultadas sobre eles.103 Considerando que monumentos construídos como reparação por violações de direitos humanos não são apenas um produto final, mas sim, um processo,104 a participação das vítimas e de seus familiares deve se dar em todos os momentos, incluindo o planejamento, a construção e iniciativas posteriores relativas ao memorial.
Ao determinar medidas simbólicas de reparação, a Corte idh costuma ordenar que o Estado as implemente em consulta com as vítimas, seus familiares e seus representantes, respeitando, assim, o importante aspecto participativo do processo reparatório. No entanto, ao proferir sentença no caso Prisão Miguel Castro Castro vs. Peru, a Corte falhou em respeitar tal entendimento de duas maneiras: ao ordenar que o Estado realizasse uma iniciativa de memorialização diferente da solicitada pelas vítimas (que haviam requisitado a dedicação de um parque) e ao demandar a memorialização dos nomes das vítimas em um monumento que já estava construído, retirando delas qualquer possibilidade de participação no processo de sua concepção.
Assim, a Corte idh, ao optar pela solução aparentemente mais “simples”, ignorou o contexto local e as demandas das vítimas, bem como a sensibilidade das dinâmicas de memória no Peru. Ainda, ao ordenar a inscrição de nomes que já constavam no monumento, pode ter impactado negativamente sua legitimidade, ao demonstrar desconhecimento da realidade local.
Conclusão
A atuação da Corte idh na determinação das reparações devidas pelos Estados às vítimas de violações de direitos humanos é uma de suas maiores contribuições para o Direito Internacional.105 A sua competência para determinar, dentro das categorias de restituição, compensação, satisfação, não repetição e reabilitação, quais medidas concretas são mais aptas a reparar o dano sofrido pelas vítimas de uma determinada violação e a impedir sua recorrência torna-a mais eficaz em contribuir para a solução de problemas estruturais no continente que a maioria dos outros tribunais internacionais.106
Nesse contexto, ganha destaque a atuação da Corte idh ao ordenar a construção de monumentos após contextos de violação de direitos humanos, que atende a propósitos como a lembrança dos acontecimentos, o reconhecimento de culpa, a exposição da verdade e a facilitação da reconciliação social.107 Ainda, tais memoriais servem como lugares de luto para vítimas e seus parentes, e são fundamentais em casos em que a vítima de uma violação foi desaparecida e, portanto, não possui um túmulo.108 No entanto, memoriais podem também ter efeitos como reabrir feridas, gerar novas forma de trauma e até mesmo causar conflitos.109 Assim, o estudo da repercussão do julgamento da Corte idh no Peru demonstra a necessidade de cautela por parte do tribunal ao determinar medidas simbólicas de reparação e um especial cuidado com as demandas das vítimas e seus representantes, bem de buscar compreender as circunstâncias locais antes de ordenar julgamentos com o potencial de interferir com as dinâmicas de memória locais.
Este estudo demonstrou que, ao ordenar a inscrição do nome das vítimas fatais do caso Prisão Miguel Castro Castro vs. Peru no Ojo que Llora, a Corte idh trouxe à tona a existência de memórias coletivas severamente conflitantes entre os distintos grupos que compõem a sociedade peruana ao rememorarem o embate entre as forças governamentais e os grupos “sub-versivos” no fim do último século. A interferência do tribunal internacional nestas complexas dinâmicas de memória transformou a obra de Lika Mutal no principal campo de batalha entre distintas narrativas sobre o conflito, em especial, sobre quem pode ser considerado como “vítima”. Assim, o caso suscita importantes reflexões no campo dos estudos de memória sobre as consequências da interferência, por parte de instituições internacionais, nas dinâmicas de memória internas aos países e evidencia a necessidade de considerar sua influência no campo dos estudos de memória.