Introdução
Processos contemporâneos expressivos como o encarceramento em massa (Wacquant 2002, 2003); a generalização de políticas assistenciais que visam solucionar o problema da chamada "violência urbana", em que as periferias são transformadas em campos de concentração a céu aberto (Augusto 2010), ou a conformação destas como "novas centralidades" resultantes da desarticulação do mercado de trabalho industrial em que se fundara a territorialização polar de centro e periferia; a fusão entre produção e reprodução observada quando a reestruturação impõe o trabalho autónomo, informal e domiciliar (Ribeiro 2019); a reversão de tradicionais dinâmicas de migração temporária para o assalariamento em alternativas de assentamento garantidas por políticas públicas de permanência no campo (Leite 2015); a expansão de barreiras às migrações internacionais; a xenofobia crescente e a proliferação de campos de refugiados e mercados de trabalho restritos para eles, entre outros, guardadas as suas diferenças, parecem exprimir, conforme os termos do debate geográfico, como seu padrão territorial comum, o confinamento.
Neste ensaio, discutiremos as condições da emergência desse padrão territorial - que hoje convive lado a lado com seu polo oposto, o das expulsões, da transumância compulsória e/ou da mobilidade supostamente total (Sassen 2016) -, mostrando como ele corresponde à forma de territorialização das relações sociais capitalistas no momento contemporâneo de sua reprodução, entendido como crise do trabalho (Postone [1993] 2014).
Outros contextos de fusão entre produção e reprodução e economia e política já foram produzidos historicamente pela necessidade de "fechar" aquilo que a bibliografia chamou de "região" (Oliveira 1987) para garantir a mobilização do trabalho e a acumulação do capital. O próprio escravismo colonial na forma da plantation consistia numa das mais completas formas de expropriação e biopolítica (Mbembe 2018), mas que tinha como pressuposto da sua imposição o confinamento. No processo de mobilização do trabalho, com o desenvolvimento da sociedade capitalista, essa forma seria substituída, entretanto, tendencialmente, por aquilo que, de forma apologética, ficou conhecido como "mobilidade perfeita" do trabalho (Gaudemar 1977) e para a qual deveria operar a também apologética "integração nacional". Esse processo produziria as oposições cidade e campo, na escala da produção, e centro e periferia, no processo de metropolização, organizando a circulação daquela mercadoria (a força de trabalho) num mercado nacional, por sua vez, base para a consolidação do território que, enfim, viria substituir os antigos "arquipélagos" (Oliveira 1987) que colonialismo e imperialismo teriam imposto à formação brasileira.
É justamente a crise dessa dinâmica de produção de forças de trabalho para o consumo industrial e da alternância entre sua reprodução e sua utilização produtiva que aparece a emergência do confinamento como forma de territorialização das relações sociais capitalistas contemporâneas. É, apenas para explorar uma das modalidades do problema, a prevalência dos serviços como alternativa para a geração de emprego e renda, em detrimento da indústria, desarticulando o tradicional pêndulo que configurara as metrópoles, em favor de alternativas de trabalho nas próprias periferias que vão de pequenos comércios, salões de cabeleireiro, creches, organizações não governamentais (ONGs) etc., ao comércio do crime - associado à atuação de milícias que têm como o seu principal "negócio" "fechar" territórios. A transcendência da forma prisão, que nunca foi só uma instituição, mas sobretudo uma política, nas políticas assistenciais que acabam por transformar em assistida a liberdade de todos, viria a completar essa forma.
Ainda que seja decisiva a interpretação que hoje reconhece a emergência desse processo como hegemonia da biopolítica (Foucault 2008), torna-se necessário discutir o fundamento dessa mudança na forma de controle que impõe a governamentalidade como uma espécie de substituto da antiga docilização dos corpos para e pelo trabalho. Esse fundamento seria encontrável justamente na crise do trabalho como resultado da contradição central da reprodução capitalista que, ao promover a acumulação, promove também o aumento da composição orgânica do capital responsável tendencialmente por expulsar do processo produtivo o trabalho vivo, formando uma sociedade de sujeitos monetarizados sem dinheiro (Kurz 1992). O desemprego, a flexibilização, a terceirização e a precarização que hoje aparecem como resultado estrito da tónica neoliberal, mas que têm profunda relação com esse processo, estariam, contudo, na superfície desses desdobramentos que coincidiriam não só com a consolidação da gestão de populações como forma diante da qual a exploração do trabalho parece antediluviana, mas também com a produção, inerente a ele, da vida nua (Agamben [1995] 2007), de corpos abjetos (Butler 2015), matáveis porque estruturalmente descartáveis diante do fetichista ponto de vista funcional da própria sociedade capitalista.
Das prisões ao encarceramento em massa, dos desequilíbrios territoriais ao confinamento
Concomitantemente à supressão dos suplícios punitivos e à modificação do objeto principal da repressão do corpo para a alma, Foucault ([1976] 2001) identificou o surgimento da prisão. Em toda a Europa monárquica, o castigo da pena se realizava tradicionalmente mediante um sofrimento físico incessante e brutal infringido sobre o condenado, porque coisa do rei. Com o fim do absolutismo, esse corpo vai se tornando progressivamente objeto de apropriação social, cuja utilidade deve coincidir com a reprodução da sociedade burguesa. Para tanto, sob o julgamento dos delitos codificados, são invocadas paixões, instintos, anomalias, enfermidades e inadaptações, atribuídas a meio ambiente ou hereditariedade, menos para explicar atos que para instituir os padrões desviantes.
Em conjunto com a prisão emerge, portanto, uma população que lhe será correspondente e para a qual aquela deve servir como tecnologia de controle voltada à docilização, neutralização da periculosidade e modificação das disposições criminosas. Mais que um prédio ou uma instituição destinada a castigar ou corrigir aqueles indivíduos - para Foucault ([1976] 2001), antes de tudo uma política -, a prisão se caracterizaria por um imanente paradoxo, qual seja: o de ter a reativação das técnicas penitenciárias como único modo de reparar o fracasso permanente destas e de ter a realização do projeto corretivo como único método para superar a impossibilidade de torná-lo realidade. Ao invés de procurar extinguir a criminalidade contra a qual supostamente se volta, contribuiria, com efeito, para sua manutenção num círculo vicioso e sem fim: a prisão sendo dada como seu próprio remédio.
O questionamento que irrompe na reflexão de Foucault ([1976] 2001) sobre o porquê da persistência da prisão mesmo sendo possível seu fim apareceria atualizado por Wacquant com uma pergunta que nos sugere acompanhar as transformações em seu sentido: "Para que serve, finalmente, a prisão no século XXI?" (Wacquant 2003, 155). Por um lado, a tônica do seu argumento se assemelha com algo já proposto por Foucault, voltando-se a enfrentar a cortina de fumaça (ou seria o paradoxo?) que envolve a discussão sobre os objetivos da pena prisional - ressocialização, neutralização, correção daqueles tornados seus objetos. Por outro, trataria de enfatizar a historicidade que tem a emergência contemporânea de um Estado francamente penal, relacionando-a com a liberalização económica, à medida que reforça a ascensão de um salariado precário, seja manifesto no desemprego em massa, seja na miséria laboriosa, e promove, concomitantemente, o desmantelamento das políticas de proteção social, substituídas por aquelas de hipertrofia do aparelho punitivo.
O processo que mobiliza a investigação de Wacquant (2003) é o vertiginoso encarceramento ocorrido nos Estados Unidos da América - doravante EUA -, entre 1975 e 1995. Após a população carcerária estadunidense ter atingido, em 1973, seu nível mais baixo durante o pós-guerra, contra qualquer expectativa, ela aumenta de maneira sem precedentes numa sociedade democrática, dobrando nos dez anos subsequentes e quadruplicando em vinte, aproximadamente, e chegando a ter o incremento de 2.000 detentos por semana durante toda a década de 1990 para alcançar o impressionante número de 600 prisioneiros para 100.000 habitantes.
Mobilizaria sua investigação também o fato de esse aumento não guardar relação alguma com o aumento da criminalidade violenta, resultando, muito mais, do alargamento da reclusão para delitos que, até aquele momento, não incorriam em condenação dessa natureza. A guerra contra as drogas seria o leitmotiv desse modelo punitivo generalizado pelos EUA e depois exportado para a América Latina e para os países europeus, que se fundaria na passagem de uma guerra contra a pobreza para uma guerra contra os pobres.
Sem deixar de sustentar seu argumento sobre a vinculação entre o encarceramento massivo e a ascensão neoliberal que vai pondo fim ao Estado caritivo, num estudo posterior, em que analisa a questão racial nos EUA, Wacquant (2002) dedica-se a relacionar a prisão a outras modalidades do que ele nomeia como "instituições peculiares", as quais teriam se seguido na tarefa de definir, confinar e controlar os afro-americanos nos EUA, a saber, a escravidão, o sistema Jim Crow e o gueto1.
Investigando a existência de uma relação genealógica entre escravidão e superencarceramento, o autor buscaria não apenas continuidades que permitiriam compreender a aparição pouco conflitiva do último, mas também rupturas que acabariam desviando o sentido, mesmo entre equivalentes funcionais. E a mais importante para os propósitos da nossa argumentação consistiria no fato de o encarceramento massivo deixar de operar como operavam as três instituições peculiares precedentes, que serviriam para a simultânea extração de trabalho e condenação ao ostracismo social2.
Para Wacquant (2002), no fim dos anos de 1960, o gueto já estava prestes a se tornar funcionalmente obsoleto, sobretudo do ponto de vista da extração de trabalho, em virtude da passagem de uma economia industrial para uma economia de serviços suburbana e do incremento do mercado de trabalho com imigrantes provenientes do México, Caribe e Ásia3. Nesse contexto, que se definia também pelas conquistas resultantes de décadas de luta dos afro-americanos pelos direitos civis e pelas novas condições por elas proporcionadas para a resistência às formas precedentes de confinamento, a segregação seria recriada pelo engajamento direto dos próprios brancos, os quais abandonavam escolas públicas, deslocavam-se em massa para subúrbios, voltavam-se contra programas sociais e entusiasmavam políticas de segurança de "tolerância zero" responsáveis pela passagem do gueto à prisão, ao menos para seus membros mais difamados e tidos como perigosos4.
Essa falta de funcionalidade que o gueto num determinado momento já apontava se exprimiria completamente na inexistência de missão económica positiva para o encarceramento em massa, no que se refere tanto ao recrutamento como ao disciplinamento de trabalhadores. O sistema carcerário:
serve apenas para armazenar as frações precárias e desproletarizadas da classe operária negra, seja porque não conseguem encontrar emprego devido a uma combinação de falta de preparo, discriminação dos empregadores e competição de imigrantes, seja porque se recusam a submeter-se à indignidade do trabalho abaixo do padrão nos setores periféricos da economia de serviços - aquilo que os moradores do gueto costumam chamar de slave jobs, "empregos escravos".5 (Wacquant 2002, 23)
A substituição do gueto pelo encarceramento em massa - entendida pelo autor como o rompimento da sucessão entre as instituições peculiares, uma vez que a função de extração de trabalho, antes reproduzida simultaneamente à de condenação ao ostracismo social, começa a ser perdida no primeiro para dela não sobrar nada naquele último - seria apresentada, por Augusto (2010), quase que às avessas, referindo-se à sociedade brasileira, e em conjunto com uma crítica à interpretação de Wacquant (2002).
Pensando a partir da experiência brasileira, o autor sugeriria que está a ocorrer uma espécie de flexibilização das austeras práticas prisionais, mas apenas de maneira a perpetuar e aumentar sua incidência sobre as pessoas. Assim, as mudanças não ocorreriam simplesmente na prisão, mas em todo o seu entorno, fazendo com que o encarceramento a extravasasse e ganhasse centralidade no conjunto da vida social, assim, moderada e controlada.
Esse processo não ocorreria, contudo, senão reproduzindo distinções, objetificando diferencialmente os espaços e tendo as periferias das metrópoles de São Paulo, mas não só, como alvos prioritários de uma intervenção específica. Pelo espectro dos controles que aí incidem, responde a um conjunto de opções que induzem ou convocam os moradores a não saírem ou a voltarem muito rapidamente, isso no caso daqueles que chegam a trabalhar fora dos locais em que residem, porque, para muitos, o confinamento açambarca inclusive sua circulação no mercado de trabalho6. Nesse processo, conjugado com a lógica em curso, de uma sociedade do controle (Deleuze 1999) expansiva a ponto de incorporar não apenas policiais, prisioneiros e delinquentes, mas "todos e mais um pouco, até mesmo [os] que ainda não tenham sido transformados em perigo para a sociedade" (Augusto 2010, 268), as periferias se tornariam "campos de concentração a céu aberto".
Por não se ocupar tão especificamente de instituições, e sempre guardadas as devidas diferenças entre os EUA e o Brasil, o passo crucial que dá Augusto (2010) com relação a Wacquant está no reconhecimento da constituição de outra espécie de gueto - se o artifício da comparação entre gueto e periferia como campo de concentração a céu aberto pode ser mobilizado exclusivamente à medida que expõe certa dimensão confinada de nossa experiência social - não a ser substituído pelo encarceramento massivo, mas realiza-se como prolongamento do seu sentido que deve persistir para além dos muros da prisão.
O destaque dado por Wacquant (2002) para a inflexão que representa a massificação do encarceramento passa, contudo, ao largo da análise de Augusto (2010), por este estar preocupado sobretudo com uma crítica irrestrita da prisão. Com isso, ele acaba deixando de considerar o nexo entre aquela inflexão e a perda de qualquer missão económica positiva da instituição e dos próprios desproletarizados, seus objetos.
Referências a esse contexto até aparecem em sua análise, por exemplo, quando ele relaciona a ampla presença da sociedade civil no exercício daqueles controles plurais com prescrições neoliberais. Não chegam, todavia, a oferecer uma explicação de conjunto do processo, ficando circunscritas ao reconhecimento de uma espécie de visão de mundo que o autor identifica como a "crítica neoliberal" simplesmente "absorvida" pelos Estados, conquanto isso ocorra em escala "planetária", como ele mesmo reconhece (Augusto 2010, 269).
Retomando Rusche e Kirchheimer ([1993] 2004) a propósito da relação entendida como necessária entre um desenvolvimento específico das forças produtivas e o estabelecimento de penalidades que lhe são correspondentes, o ensaio de Pedro Rocha de Oliveira (2016) parece dar conta de algumas insuficiências destacadas acima. À medida que se preocupa em investigar a emergência hodierna de uma prática punitiva de caráter territorial, divisa, por um lado, o prolongamento da prisão além do prédio ou da instituição e, por outro, ao identificar como objetivo dessa abordagem territorial uma exclusão populacional seletiva, retoma a desproletarização, inclusive contextualizando-a em políticas populacionais para as quais sempre há punição adequada.
O autor passa pelo escravismo, pelas casas de correção da aurora manufatureira, pela contiguidade existente entre fábrica e prisão e pela possibilidade de monetarização das penas para classes proprietárias no pós-guerra, para chegar à política penal sob o neoliberalismo como exclusão potencial de parte da população do mercado de trabalho. Sem embargo, a ideia de discriminação econômica, que fundamenta e ordena as mencionadas políticas populacionais, definindo os termos da seleção dos economicamente supérfluos, apresenta alguns limites, pois não incorpora, conceitualmente, a discriminação racial que, sem a menor dúvida, ao passo que era produzida, também produziu as políticas populacionais que se desdobraram com o desenvolvimento capitalista.
Seu ponto de partida para a análise da política penal contemporânea é igual ao de Wacquant: o aumento do encarceramento não corresponde a um aumento da criminalidade, mas, sim, da abrangência do que é criminali-zável e coincide com a implementação de uma verdadeira guerra às drogas. E já que as políticas penais respondem à alteração do sentido econômico da população, elas teriam raiz no regime de acumulação contemporâneo, qual seja: não se trata propriamente de uma guerra ao crime organizado, posto que este não passa de uma faceta da atividade econômica irregular no mundo do trabalho precário. À guerra às drogas, corresponde a ação governamental que tem por objeto "os pobres puníveis que vivem além das margens da economia formal" (Oliveira 2016, 257).
Só que, além de essa ação abarcar confronto armado, encarceramento e tutela judicial, ela também compreende o estigma da não empregabilidade para essa população, segregando-a para áreas específicas das cidades, o que revela a expressão territorial daquele governo armado e punitivo7. O autor passa por alguns exemplos, que incluem a política de "tolerância zero" em Nova York e a definição das Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), hoje, Bairros Prioritários, em toda a França, onde, desde 1996, a polícia concentra policiamento intensivo e proativo, e, desde onde, espalharam-se os inúmeros motins ocorridos em 2005, para chegar até a política de ocupação e administração armada empreendida no estado do Rio de Janeiro mediante o programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), inaugurado em 20088.
O prolongamento da prisão e o caráter territorial assumido pelo processo se definem claramente aqui numa análise que incorpora ainda a transformação das políticas penais e seu nexo com o desenvolvimento capitalista. Contudo, na conclusão, ao invés de ganhar destaque a descontinuidade que representa o estado de coisas descrito, marcado pela especificidade que representa a exclusão potencial de parte da população do mercado de trabalho e a existência de uma população efetivamente supérflua, Pedro Rocha de Oliveira (2016) dilui-a numa explicação genérica e indeterminada acerca de uma estrita desigualdade econômica desde a migração interna até as fronteiras agrícolas e, ao mesmo tempo, específica, ao referir os espaços de pobreza como característicos do capitalismo brasileiro. Dentro desse quadro analítico, o autor menciona, muito de passagem, nos últimos dois parágrafos do seu ensaio, uma distinção entre o surgimento do capitalismo e seu momento contemporâneo em virtude de haver, inicialmente, a expectativa de incorporação no mundo do trabalho dos punidos que ele mesmo identificou como supérfluos, enquanto agora essa perspectiva civilizatória teria desaparecido - da nossa perspectiva, somente assim realizada a efetiva superfluidade.
Sem tratar de relacionar abrangência territorial, política penal e encarceramento, uma vez que se ocupa de outras problemáticas, tais como o conceito de desterritorialização, dos territorialismos das sociedades tradicionais até a desvinculação extrema de todo e qualquer território, Haesbaert (2012) formula a noção de aglomerados de exclusão, em que afirma mais explicitamente a ruptura de cuja interpretação acima reclamávamos. Tais amontoados humanos seriam formados por uma massa de despossuídos sem o menor acesso às redes que promovem sua exclusão e sem a menor autonomia para definir seus circuitos de vida. Resultantes de um novo padrão tecnológico imposto pelo capitalismo, são totalmente marginalizados ante o processo de produção e não podem ser entendidos segundo a acepção marxista de exército de reserva: "Daí sugerimos o termo aglomerados de exclusão para os espaços ocupados por esses grupos" (Haesbaert 2012, 166).
Mais que espaços excluídos e amorfos, seriam desordenados por neles se cruzarem uma multiplicidade de redes e territórios que não permitem definição e identidades claras. É como se de fato tivessem certo vazio de sentido, o mesmo encontrado na noção de "massa" para o qual os aglomerados seriam a contrapartida geográfica9. Os exemplos trazidos pelo autor dessa relação seriam os de grupos sem-teto, campos de refugiados e do emaranhado de disputas territoriais em que ocasionalmente se inserem narcotráfico, bicheiros, polícia, igrejas pente-costais etc., nos morros cariocas. Com respeito a estes últimos, contudo, ele argumenta ser necessário investigar se não ocorrem formas de reterritorialização à margem da legalidade ou da territorialidade dominante, conformando nítidos territórios, segregados, mas internamente coesos no que se refere a regras e valores10.
O estado de exceção constitutivo da soberania moderna
O vínculo entre o surgimento da prisão e a instituição de desviantes, o vínculo desta com outras instituições ou políticas igualmente ancoradas na identificação de uma população que lhes corresponde e especialmente seu extravasamento na produção de uma abrangência territorial para controle e segregação, que viemos investigando nos autores apresentados, podem ser pensados igualmente com referência à relação entre soberania e estado de exceção. Mas não a soberania entendida de maneira normativa como "autoinstituição" e "autolimitação" nos quadros daquela concepção em que a política aparece como um projeto de autonomia e como realização do acordo entre uma coletividade que se comunica e se reconhece. Ao contrário, considerando-a em seu sentido negativo, como a possibilidade de decidir sobre o estado de exceção, por exemplo, suspendendo as leis numa situação tratada como de emergência11.
Em primeiro lugar, porque o exercício da soberania tem íntima relação com o estabelecimento de relações de inimizade, o que pressupõe a produção de inimigos, mais ou menos como no caso dos desviantes. No cerne da elaboração de Foucault ([1999] 2005) sobre o biopoder e o exercício do direito soberano de matar decorrente do estado de exceção, aparece a produção de populações pela separação das pessoas. Inclusive a subdivisão da espécie humana em grupos e o erguimento de uma cesura biológica entre uns e outros, o que ele entende por racismo, seria justamente uma tecnologia destinada a permitir e justificar o exercício do biopoder.
Em segundo lugar, porque implicou historicamente a constituição de zonas onde os controles e as garantias de ordem judicial ou não existem ou podem ser suspensos. Para Mbembe (2018), antes da emergência dessa zona nos campos estabelecidos pelo Estado nazista12, a colónia e, sobretudo, a plantation já operavam assim. Nelas, a condição de escravo se definia pela alienação: da sua origem, dos direitos sobre seu corpo e de qualquer estatuto político numa humanidade que não passava de uma sombra personificada. Apesar de mantido vivo, por ser propriedade do senhor, o escravo tinha sua existência instrumentalizada mediante crueldades e horrores diversos13. Essa representação da colónia como zona onde a soberania consiste no "exercício de um poder à margem da lei (ab legibus solutus) e no qual a 'paz' tende a assumir o rosto de uma 'guerra sem fim'" (Mbembe 2018, 32-33) alinha-se à noção de soberania, sugerida por Schmitt ([1950] 2014) 14.
O trabalho do autor desenvolve-se em torno da crítica daquela perspectiva positivista que toma o campo jurídico como uma convenção. Ele seria um resultado concreto do nomos da terra (Schmitt [1950] 2014), cuja localização é o solo europeu justamente porque lá se estabeleceria o Estado15. Sua primeira forma de existência seria o Jus publicum europaeum, que pode ser entendido como o Direito Público Internacional que vigorara entre os Estados territoriais europeus delimitados por fronteira que se reconhecem mutuamente e asseguram a soberania uns dos outros16. Sem embargo, tal soberania só teria se tornado possível porque, em diferente lugar, havia terras livres, espaço livre. Schmitt ([1950] 2014) traçava, assim, um vínculo direto entre civilização e colonização, apresentando esta última como condição imperecível da primeira, já que ela só se manteria à custa de que os novos territórios apropriados livremente pelas potências europeias em disputa jamais se transformassem em Estados, eliminando aquela separação17.
A separação entre a Europa e o novo mundo foi estabelecida pelas amity lines (linhas de amizade) que integravam literalmente o quadro mais geral de uma cartografia metafórica de linhas globais, das quais as rayas hispano-ibéricas foram um exemplo. Enquanto aquém-linha vigorava o Direito Público europeu, para além dela, era instaurada uma espécie de vale-tudo que incluía roubo, apresamento e pirataria, nas disputas entre nações europeias que não estavam necessariamente em guerra e contra os "selvagens" que habitavam as colônias. A soberania europeia seria garantida pelo estado de exceção permanente territorializado além da linha18.
Para que a crescente violência política na Europa pudesse ser contida, teriam sido necessárias terras disponíveis onde tal escalada não encontrasse limites. Para que existissem borders, as fronteiras que delimitavam a terra e permitiam que dela emanasse o nomos, o Direito Público, teria sido necessária uma frontier para a expansão europeia. Sua ordem advinha da instauração da desordem mundial19.
Desordem na qual se inseria o território que viria a se consolidar como Brasil, submetido aos desígnios da colonização e do estado de exceção que, todavia, à medida que o processo de modernização das relações de produção foram adquirindo ossatura na forma de um projeto nacional de modernização, guardava a promessa de se integrar às amity lines e superar o estado de vale-tudo ao qual se encontrava submetido. Promessa essa que, entretanto, não pareceu se realizar plenamente, ao menos de acordo com as melhores contribuições da tradição crítica brasileira (Arantes 2016). Em outras palavras, para aquela tradição, o processo de modernização nacional não teria sido capaz de superar seus aspectos arcaicos, estivessem eles numa forma de acumulação assentada na extração de mais-valia absoluta ou na não universalização dos direitos (Paoli 2007). Buscando criticar essa matriz de interpretação da sociedade brasileira (guardadas suas diferenças internas que não poderão ser aqui apresentadas e discutidas), como ficará claro adiante, estamos propondo um olhar sobre a forma de territorialização contemporânea do confinamento contrário à ideia de reposição daquelas condições, mas à luz das novidades históricas produzidas pela dinâmica temporal específica do capital (Postone 2014), entendido este último como uma "contradição em processo" (Marx 2011, 588).
Da docilização à governamentalidade, da "região" ao confinamento
O caminho percorrido até aqui sugere uma relação entre formas de gestão populacional emergidas em conjunto com o capitalismo contemporâneo, como o encarceramento em massa ou a transformação das periferias em campos de concentração a céu aberto, e outras, mais antigas, que parecem ter sido suas correlatas na formação do capitalismo, como o escravismo colonial ou as casas correcionais (Augusto 2010; Oliveira 2016; Wacquant 2002). E não somente no que se refere às suas funções de controle, condenação ao ostracismo social ou extração de trabalho, cuja eficácia pode, inclusive, ter se perdido. Mas, também, com relação ao estatuto jurídico (ou a falta dele) tanto das primeiras formas como das últimas, caracterizado por ter a exceção como regra (Arantes em TV Boitempo 2016; Bercovici 2013; Mbembe 2018). O próximo passo é ultrapassar a mera analogia, morfológica, funcional ou restrita ao estatuto jurídico, em direção a uma análise da metamorfose histórica e categorial dessas formas em sua relação com o processo de modernização, o que exigirá também uma metarreflexão sobre as perspectivas teóricas em debate.
De modo distinto da ideia de gestão ou governo de populações ou, mais precisamente, do conceito de população mobilizado em muitas das referências que viemos discutindo até agora20, Marx (1983) desdobraria, a partir de problemas espelháveis ou assemelháveis, a questão da mobilidade do trabalho21.
A mobilidade do trabalho se define, primeiramente, pelo fato de o trabalho ser uma mercadoria e de esta ser diferente de todas as outras, posto ser a única que pode ir sozinha ao mercado e cujo consumo produtivo cria valor novo, viabilizando a reprodução ampliada do capital22. O seu consumo produtivo depende, todavia, de que a força de trabalho seja encontrada disponível na circulação. Para tanto, seus proprietários precisam haver se tornado livres num duplo sentido: devem dispor dela à sua vontade e estarem livres de qualquer outra mercadoria para a troca (e dos meios de produção e de subsistência), que não seja sua própria força de trabalho. Essa condição, resultante do processo de expropriação, da assim chamada "acumulação primitiva" (Marx 1984) ou da mobilização do trabalho, é que forma a mobilidade.
A reprodução ampliada do capital não depende, no entanto, apenas da existência do trabalho como mercadoria e da sua disponibilidade no mercado. Ela impõe, ainda, ao trabalho, a mesma fluidez que deve ter o capital. Essa fluidez, dimensão com a qual completamos o quadro de referências da mobilidade do trabalho, diz respeito à forma como o trabalhador se insere no mercado de trabalho e interage com suas características multidimensionais, estando constantemente sujeito à migração, às mudanças de emprego, ao conteúdo da atividade produtiva e às horas trabalhadas. No limite, ele tem de ser adaptável e indiferente às qualidades específicas do conteúdo do seu trabalho.
E mesmo a existência do trabalho como mercadoria, sua disponibilidade no mercado, fluidez e adaptabilidade não são, sozinhas, garantias da reprodução ampliada do capital. Para que ela ocorra, finalmente, os salários não podem subir a ponto de perseguirem de perto o novo valor produzido, prejudicando a acumulação pelo rebaixamento da extração de mais-valia. Marx (1984) descobrira ainda que a manutenção dos salários dentro de tais limites dependia da produção daquilo que chamou de "superpopulação relativa". Seria necessário que, além da população empregada, houvesse também um exército industrial de reserva que pertencesse ao capital da mesma maneira que a primeira, na medida em que pressiona para baixo seus salários23.
Analisando a proposta do economista britânico Wakefield para produzir trabalhadores assalariados nas colónias, conhecida como "colonização sistemática", Marx (1984) descobre também que a produção daquela superpopulação relativa necessariamente exigiria um controle do acesso à terra que fizesse os colonos emigrados terem que trabalhar antes para o capital que para si mesmos24. Era o segredo da metrópole revelado pela colónia, por ser ele um fundamento comum a ambas25. Isso por um lado. Por outro, o exame da colónia evidenciava a particularidade de cada processo de mobilização do trabalho que já não poderia ser restrito aos moldes da acumulação primitiva inglesa. Permitiria até dizer que cada processo de mobilização e mobilidade do trabalho é acompanhado de um padrão, correlato, assumido pela territorialização do capital (Leite 2015).
Investigando a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre no Brasil, também pudemos identificar um desses padrões26. O campo em questão era informado por um antagonismo entre autores que interpretavam, para darmos um exemplo, o colonato, a morada ou a agregação, como formas de um quase assalariamento, embora houvesse produção direta dos meios de vida, ou como formas quase camponesas, embora houvesse momentos da relação mediados por remuneração monetária. Propusemos a tese de que aquelas eram as formas possíveis de mobilizar trabalho num contexto de ampla disponibilidade de terras e de impossibilidade de manutenção do cativeiro do trabalho (Boechat 2013; Leite 2015; Toledo 2008). Com a fronteira fundiária aberta e um nível de desenvolvimento técnico que, sozinho, não assegurava a expulsão relativa de braços do processo produtivo, a superpopulação relativa não podia se formar. O acesso à terra e a possibilidade de produção direta dos meios de vida respondiam justamente a isso. Para que ambos pudessem ser mobilizados na acumulação capitalista, contudo, era necessário um tipo de domínio sobre as terras acessadas que a fazenda ou exercia ou pretendia impor, no caso de encontrar posseantes no seu processo de expansão. Assim, não estavam criadas as condições para que se autonomizassem nem o trabalho da terra nem o capital da terra e da violência. O coronelismo, o domínio político ou mesmo o curral foram formas de aparecimento dessa relação porque ela efetivamente implicava uma espécie de fechamento territorial que circunscrevia a mobilização do trabalho na forma territorial particular de reprodução do capital identificada como regional27.
O processo de abertura das regiões rumo à chamada "integração nacional" consolidou o exercício da mobilidade do trabalho por parte dessa população antes confinada nas regiões. O exercício dessa liberdade contraditória (Gaudemar 1977), porque submetida aos desígnios da reprodução ampliada do capital, não apenas produziu um deslocamento dessa população internamente ao território nacional, na forma das chamadas "migrações internas", mas sobretudo a produção de espaços e novos padrões de territorialidade. A migração para São Paulo, que alcançou o auge na década de 1970, foi fundamental no processo de industrialização e metropolização, uma vez que a variável demográfica, como já salientado anteriormente, é de fundamental importância para a imposição da relação capital (Marx 1984) e para a reprodução ampliada. A mobilidade do trabalho como resultante da implosão dos regimes de confinamento pregressos consubstanciados nas regiões produzirá um tipo particular de metropolização fortemente horizontal que deve ser aqui brevemente perscrutada de forma a delinear o processo de transformação das periferias naquilo que Augusto (2010) qualificou como "campos de concentração a céu aberto".
O processo de metropolização por expansão de periferias não póde prescindir da conhecida e tão debatida prática da autoconstrução (Kowarick 1979; Oliveira 2003) como forma de acesso à moradia por parte do contingente migrante tornado trabalhador urbano superexplo-rado em São Paulo. O rebaixamento político dos custos de reprodução da força de trabalho consubstanciado na institucionalização do salário-mínimo, segundo a leitura de Oliveira (2006), vedou aos trabalhadores a possibilidade de acessarem moradia por meio do mercado imobiliário, empurrando-os para loteamentos periféricos desprovidos de infraestrutura, exigindo-lhes a adesão à autoconstrução como forma de fazer valer seu direito à moradia. Tal estratégia envolveu se tornarem pequenos proprietários fundiários, muitas vezes ilegais, informais, clandestinos etc. Em outras palavras, uma relativa imobilização espacial numa territorialidade forjada pelo pleno exercício da mobilidade do trabalho28. A autoconstrução, entendida aqui como momento necessário dessa "espécie de reprodução ampliada da periferização" (Rodrigues e Seabra 1986), servia aos claros propósitos de extração de mais-valia absoluta, já que a casa autoconstruída se configuraria como trabalho não pago extorquido aos trabalhadores fora do âmbito produtivo, a despeito de esta não ser expropriada pelo setor privado (Oliveira 2003). Portanto, a forma particular de incorporação desse contingente de trabalhadores sob um regime de assalariamento caracterizado pela superexploração de suas forças de trabalho coincidiu com um padrão territorial fortemente marcado pela segregação socioespacial, a impulsionar a acumulação endógena de capital. Portanto, uma segregação que se encontrava umbilicalmente conectada com uma missão economicamente positiva desse contingente trabalhador como produtor de mais-valia dos capitais urbano-industriais, não obstante a aquisição do lote de terra operasse como um óbice à mobilidade perfeita do trabalho (Gaudemar 1977), assim como da terra29. Valeria ainda salientar que, segundo Kowarick (1979), a depreciação dos salários abaixo dos custos de reprodução desses trabalhadores também seria reforçada pela presença de um exército industrial de reserva já resultante da conhecida lei geral da acumulação capitalista (Marx 1984)30 e do desenvolvimento das forças produtivas, em oposição ao mecanismo da colonização sistemática.
Do ponto de vista das transformações territoriais verificadas nessas mesmas periferias autoconstruídas, compreendidas como um processo de autonomização entre terra, trabalho e família (Giavarotti 2017) e, portanto, de implosão daquela solidariedade forçada (Maricato 1982), o que importa reter aqui é que a consolidação dos loteamentos periféricos autoconstruídos ao tecido urbano suplantaram materialmente aspectos que configuravam aquela segregação socioespacial pregressa, inclusive promovendo a plena mobilidade da terra e de seus imóveis autoconstruídos (Giavarotti 2017). De outro modo, o tempo histórico (Postone [1993] 2014) do capital consubstanciado no incremento material experimentado pela população moradora dessas periferias ofereceu a aparência de um processo de desenvolvimento ascendente, próprio da teleologia do capital, embora, em sua essência, portasse uma contradição que lhe é imanente: o aumento da composição orgânica do capital implica a expulsão sistemática do trabalho vivo da produção - e é justamente a mobilização de trabalho vivo o fundamento único do processo de valorização31.
Nessa contradição, Marx (1986) encontra o fundamento de uma queda tendencial da taxa de lucro, a qual, a despeito de pressões resultantes das contratendências, acarreta a existência de uma crise imanente da reprodução capitalista e do próprio capital. De um ponto de vista da dinâmica demográfica própria à reprodução capitalista que estamos buscando delinear para pensar nas diferenças históricas que a reprodução contemporânea do capital guarda com seu processo de formação, o aumento da composição orgânica movida pela revolução microele-trónica (Kurz 1992) produz ao menos duas importantes mudanças: a emergência do desemprego estrutural e a realocação de trabalhadores do setor secundário para o terciário, ambas imersas num processo exacerbado de concorrência entre a própria população trabalhadora.
No que se refere ao desemprego estrutural, já é possível vislumbrar a maneira como estamos compreendendo o significado da prisão no século XXI, para retomarmos a pergunta de Wacquant (2003), conquanto oferecendo um aspecto do problema ausente de sua teoria. O autor (2002), à sua maneira, parecia ter intuído isso quando argumentava que o gueto estivera prestes a se tornar funcionalmente obsoleto e que o encarceramento em massa o teria substituído, corroborando a inexistência de missão económica positiva para aquela sobra relativa de trabalhadores que já havia sido tão necessária para não impossibilitar a acumulação do capital32.
Centrado, todavia, numa leitura acerca dos efeitos do neoliberalismo ou da forma de ser do capitalismo contemporâneo, sem conseguir alcançar categorialmente os termos da crise fundamental da reprodução capitalista, seguira associando o processo à precarização ou desproletarização de parcelas, apenas, da classe trabalhadora, sem compreender o nexo entre as diferentes formas de expressão da mesma crise.
Com isso, não pretendemos dizer que tal crise se manifeste igualmente para todos os trabalhadores como se a sociedade não fosse marcada por distinções e hierarquias de gênero e referidas à racialização, à xenofobia ou ao antissemitismo, entre outras. Nesse aspecto, Wacquant (2002) acerta "em cheio". Não se trata apenas de punir, mas há um corte racial que é instaurado e reproduzido pelas chamadas "instituições peculiares". Trata-se da necessidade de pensarmos o problema das diferenças sem tirar do horizonte a reprodução da totalidade, mas, desta vez, compreendendo-a enquanto totalidade fragmentária, instituída ela própria pela colonização e pelo escravismo, e, portanto, pela racialização daí derivada bem como pela dissociação entre os sexos e pela constituição de suas atribuições de gênero segundo as quais o valor é o homem, é o branco, é o ocidental (Scholz 2004), ou seja, o universal. É diferente de dizer que o encarceramento em massa tem corte racial. É dizer que o encarceramento em massa reproduz tal corte racial e, como momento da descarta-bilidade generalizada da crise do trabalho, esta só pode ser também racializada.
Do ponto de vista do exercício da mobilidade do trabalho e do espraiamento da forma do confinamento para além da prisão, é oportuno voltarmos às transformações verificadas nos territórios periféricos. É possível dizer que, tanto do ângulo da clivagem geracional que veio transformando os filhos e os netos das famílias de assalariados fabris nos chamados "microempreendedores" (devido ao desemprego estrutural e à piora das condições do assalariamento) quanto da perspectiva dos antigos proprietários que, em sua maioria aposentados, vieram mobilizando os cómodos de suas casas para moradia de aluguel ou abertura de microempreendimentos (muitas vezes entabulados por seus filhos e/ou netos), é possível afirmar que a incorporação de atividades "produtivas" num território historicamente voltado à reprodução dos trabalhadores e suas famílias bem como à mercantilização de atividades reprodutivas vêm corroborando para o processo de confinamento que estamos procurando esboçar. Essa fusão do espaço produtivo com o espaço doméstico também pode ser confirmada, por exemplo, nas oficinas de costura em que trabalham bolivianos na cidade de São Paulo, a qual implica diversas modalidades de trabalho não pago e um asselvajamento da violência patriarcal (Ribeiro 2019). Tal incremento das atividades "produtivas" nas próprias periferias, esboroando a distinção entre produção e reprodução, tem sido responsável pela emergência do chamado "trabalho social" levado adiante por ONGs, compondo a reconfiguração territorial das periferias como campos de concentração a céu aberto.
Nesse sentido, a reconfiguração territorial brevemente delineada em consonância com os desdobramentos contraditórios da reprodução do capital comporta, ao menos, dois movimentos simultâneos articulados àqueles já descritos: de um lado, a ameaça constante da desclassificação social de uma população crescentemente redundante para as necessidades do capital e, de outro, a transformação de trabalhadores simples em trabalhadores complexos (Marx 1983), que enxergam, na chance de se tornarem gestores e funcionários de ONGs localizadas nessas periferias, a possibilidade de permanecerem trabalhando. Como corolário, esses territórios são objeto de práticas de exceção exercidas pelo aparato policial, que tem como alvo principal a juventude negra tornando estas novas centralidades territórios de exceção, em que se testemunha simultaneamente um genocídio em curso, promovido pelo mesmo aparato de repressão responsável pela expansão extraordinária do encarceramento acusada no Brasil desde o início da década de 1990. Para aquém dos expedientes de violência extraeconómica necessários à reprodução dessa forma de confinamento, mas não menos importante, deve-se ressaltar que o deslocamento verificado nos territórios periféricos significou, em nível categorial33, a transformação daquela população de produtores de mais-valia em seus consumidores, seja na forma da renda da terra aquinhoada por meio de seus humildes patrimónios, seja na forma dos chamados "faux-frais" (Marx 1986) dos empreendimentos que operam na esfera da circulação (Giavarotti 2017), seja, por fim, na forma do crédito pessoal e "produtivo", que apontam para o processo contemporâneo de autonomização entre trabalho e dinheiro, a produzir uma ficcionalização irreversível da reprodução do capital34, diferenciando-se radicalmente do processo de formação do capitalismo.
Esse estrangulamento na circulação no mercado de trabalho que se manifesta na transformação das periferias em campos de concentração é a mesma que possui expressão nacional encontrável, por exemplo, no desmonte de circuitos históricos de migração temporária associadas ao agronegócio e, de outra maneira, também nas soluções emergenciais e limitadas dadas pela demarcação de territórios das chamadas "populações tradicionais", quase sempre uma contrarreforma agrária que "distribui" a pior terra, indenizando seus proprietários com preços muito maiores que as médias de mercado e exigindo dos tradicionais a produção ativa da legitimação da sua identificação (Leite 2015).
Conforme sugerimos inicialmente, contudo, o confinamento como forma de territorialização contemporânea das relações sociais capitalistas não se reproduz senão paralelamente ao seu polo oposto, das expulsões, da transumância compulsória e/ou da mobilidade supostamente total enquanto padrão territorial constitutivo da mesma totalidade que corresponde à crise do trabalho. Embora não tenhamos colocado neste ensaio foco nas mencionadas expulsões, trazê-las ao debate é decisivo, pois dão os contornos dos próprios limites de determinadas expressões fenoménicas do confinamento mencionadas. Em todo o Brasil, da mesma maneira que o desmonte dos circuitos históricos de migração temporária foram coincidentes ou até conduziram à constituição de soluções emergenciais e limitadas de demarcação de territórios tradicionais, todo esse processo foi acompanhado bastante substancialmente pela expansão da agricultura de exportação no contexto do "boom das commodities", que culminou em inúmeras formas de apropriação de terras hoje conhecidas no debate internacional como "land grabbing' (Sauer e Borras 2016).
Longe de restringirem-se ao Brasil e manterem-se restritas aos clássicos processos de expropriação e grilagens ou à familiar desigualdade como forma de entender as patologias do capitalismo global, as expulsões assinaladas abrangem um processo muito mais amplo de descarte, por meio de novas lógicas que ainda precisam ser estudadas (Sassen 2016), de trabalhadores, famílias, populações e até Estados nacionais da ordem social e económica de reprodução capitalista da crise do trabalho, cuja gestão só pode ser a gestão da barbárie.
Considerações finais
Partindo das considerações de Michel Foucault sobre a prisão, passando posteriormente por considerações críticas acerca da centralidade adquirida por essa instituição na vida social e no debate público desde a década de 1970, devido à emergência do encarceramento em massa e, por fim, do reconhecimento por parte de alguns autores foucaultianos contemporâneos sobre o espraiamento de sua lógica para além de seus muros, certificando sua dimensão política e não apenas institucional, fomos em busca de analisar as insuficiências dessas análises tendo em vista identificar e historicizar as particularidades do padrão territorial do confinamento contemporâneo.
Para explicitar tal particularidade, discutimos experiências similares de confinamento ao longo do processo de modernização brasileiro e americano, num cotejamen-to entre as instituições peculiares apresentadas por Lolc Wacquant (escravismo, Jim Crow Law, gueto e prisão) e a forma particular adquirida por essas experiências de confinamento no processo de modernização brasileiro, passando pela plantation escravista, a região, até alcançarmos a formação e a reprodução dos territórios periféricos no contexto de metropolização, que teriam se tornado campos de concentração a céu aberto, segundo a leitura de Augusto (2010). À medida que fomos articulando os padrões territoriais de confinamento à luz da mobilidade do trabalho e da acumulação do capital, este último o sujeito da dinâmica temporal do capital, nos termos discutidos por Postone ([1993] 2014), exploramos onde o exercício da mobilidade do trabalho se cruza com aquele da biopolítica. Ao aproximarmos a mobilidade do trabalho e a biopolítica, com base na dinâmica temporal do capital, entendido como uma forma social que guarda em si uma contradição fundamental porque serra o galho em cima do qual está sentado, foi-nos possível circunscrever algumas rupturas que marcam as experiências pregres-sas de confinamento daquelas existentes atualmente. Dois aspectos são centrais em nosso argumento para qualificar tal ruptura: a descartabilidade dos corpos dos trabalhadores determinada pelo desenvolvimento das forças produtivas (revolução microeletrónica ocorrida na década de 1970) e a correspondente ficcionalização do capital decorrente da diminuição absoluta de trabalho vivo nos processos produtivos, elementos determinantes da emergência de um padrão territorial de confinamento que não pode ser equiparado, sem mais, a outros tipos de controle político que historicamente se abateram sobre as classes não proprietárias. Por esse caminho, afirmamos que os padrões de territorialidade correspondem ao tipo de incorporação dos trabalhadores à reprodução ampliada do capital, inclusive quando se tornam mera população sujeita à politização total (Agamben [1995] 2007), já que o trabalho em crise perde sua capacidade de oferecer nexo às relações sociais. É quando a biopolítica, argumentamos, adquire sua força explicativa e crítica, pois se torna evidentemente o meio naturalizado de gerir e confinar (de formas particulares a serem discutidas caso a caso) a população supérflua ou potencialmente descartável. Forma de gestão que, todavia, começa a se realizar como necropolítica (Mbembe 2018), uma vez que opera num horizonte de gestão da falência do projeto integrador do mundo do trabalho que também determina a mobilidade total, pois esta última é a forma por excelência da superfluidade que caracteriza e fundamenta a existência de um mercado mundial em colapso.