Introdução
Alguns movimentos sociais, organizações não-governamentais e organismos internacionais (PNUD1, Unesco2, OIT3, Cepal4, por exemplo) se deparam com muitos desafios quando tentam aplicar ideias, princípios e formulações teóricas, sobre justiça social, para a construção de diagnósticos (a detecção das múltiplas complexidades que estão na base da produção, reprodução, ampliação e persistência das iniquidades) e as proposições prescritivas de ações práticas com vistas a diminuir as injustiças.
No concernente à identificação das razões estruturais e conjunturais das exclusões e da não-observância dos direitos é, talvez, menos difícil lançar mão de uma gama de conhecimentos para produzir diagnósticos, mas, em relação às prescrições de ações, de políticas públicas e programas sociais, as adversidades e reveses são incalculáveis, ao se tentar fazer este caminho da teoria para a prática.
É mais exequível, pelo que se pode observar nos Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDHs), invocar alguns princípios e conceitos para detectar e descrever os obstáculos ao enfrentamento da pobreza, das exclusões, da não-observância aos direitos e do não-acesso à saúde, à educação e à renda, do que construir proposições prescritivas organicamente ligadas a esta ou àquela teoria da justiça social. Adiciona-se aos desafios desta segunda parte o caráter heterogêneo das realidades sociais ao redor do mundo.
De modo mais genérico, pode-se dizer que, entre as ambivalências e as ambiguidades5 sobre a possibilidade de o desenvolvimento humano avançar rumo à justiça social, os elaboradores e encampadores dos RDHs se agarram à ideia de Sen (2011) segundo a qual, na busca do desenvolvimento, é preciso operar não com uma "concepção de um mundo ideal, [mas sim] com uma ampla noção de moralidade" (Silva, 2011, p.5) ordenadora da busca de um consenso sobre como gerar melhorias que não deixem ninguém para trás6.
Os Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDH), encomendados, editados e encampados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), podem ser tomados como um conjunto de documentos públicos condensadores dos desafios à execução de propostas por meio de molduras de ideias, princípios e conceitos7. Não há dúvida de que as orientações teóricas formuladas por Amartya Sen emolduram os respectivos relatórios, mas não é possível supor que haja neles uma filiação integral às ideias do economista indiano. A denominada abordagem das capacidades do pensador indiano diz respeito a um amplo quadro conceitual destinado a equacionar teoricamente as principais questões da temática do desenvolvimento e, nesse sentido, são pertinentes à elaboração e avaliação de políticas públicas e outras ações.
No entanto, dada a natureza dos documentos e seu intento de orientar políticas e programas sociais, a sua constituição extrapola os marcos postos nas obras de Sen. Os RDH/PNUD/ONU surgem em 1990, no bojo de um amplo debate sobre pobreza e desigualdades multidimensionais bem como sobre a produção e reprodução das injustiças sociais8. Os elaboradores desses documentos têm o intuito de definir as condições que dificultam a implementação de melhorias sociais capazes de, no âmbito da renda, da saúde e da educação, alcançar os mais pobres e vulneráveis. De alguma forma, está embutida nos documentos a ideia de que a justiça social se faz quando os mais vulneráveis são abrangidos pelas políticas sociais.
Nas palavras de Ul Haq (2005), o "propósito básico do desenvolvimento é ampliar a escolha das pessoas" (p. 17; tradução nossa). Concomitante à renúncia a uma conexão direta entre crescimento econômico e desenvolvimento humano, a tese subjacente diz respeito a uma compreensão de que a qualidade do crescimento é mais relevante que os índices quantificadores. Daí a defesa e as tentativas de envidar esforços políticos para que o crescimento econômico leve ao processo de ampliação das liberdades.
Ou seja, as equipes formuladoras dos RDHs9(PNUD/RDH, 1990; 1991; 1993; 2009; 2010; 2011; 2019;RDH-Mercosul, 2009-2010;RRDH-AL, 2010;RDH-Brasil, 2009) dão a entender que não se tratava somente de construir leituras que ajudassem a detectar os problemas sociais (ou diagnósticos) acerca de uma realidade recalcitrante na manutenção e ampliação das injustiças sociais, mas também de elaborar um conjunto de proposições prescritivas dirigidas aos governantes e à sociedade civil organizada, tida esta como essencial na busca de maior equidade social.
Estado e sociedade civil são chamados a encampar políticas que possam ampliar os índices de desenvolvimento humano (IDH), ou seja, de renda, longevidade e educação. Nesse aspecto, percebe-se uma expressiva influência de Sen quanto à necessidade de programar ações e práticas, que envolvam, prioritariamente, mas não só, o Estado, o governo, a sociedade civil organizada.
No contexto dos países em desenvolvimento, a necessidade de iniciativas da política pública na criação de oportunidades sociais tem importância crucial. Como já discutido, no passado dos atuais países ricos encontramos uma história notável de ação pública por educação, serviços de saúde, reformas agrárias etc. O amplo compartilhamento dessas oportunidades sociais possibilitou que o grosso da população participasse diretamente do processo de expansão econômica. (Sen, 2010, p. 190)
Porém, é necessário que os muitos agentes sociais cheguem a alguns consensos em torno de ações e de procedimentos que tenham a capacidade de abrir espaços para a justiça social. Tais consensos são viáveis, ou não; dependem dos arranjos sociais e políticos vigentes num dado tipo concreto (e não abstrato) de organização social. "A elaboração e a execução de políticas públicas são, tal como a política, a arte do possível, sendo importante ter isso em mente ao combinarem-se insights teóricos com interpretações realistas sobre a exequibilidade prática" (Sen, 2010, p. 175). O economista Marcos Fernandes da Silva (2011), na resenha ao livro A ideia de justiça (Sen, 2011), assinala que tais "construções de consensos [só podem se dar] em torno do que uma sociedade de carne e osso julga ser razoável" (p. 5).
Deve-se destacar, no entanto, que há nos referidos documentos uma distância difícil de mensurar entre os diagnósticos e as prescrições, as quais parecem, quase sempre, dependentes da construção de alguns consensos para se efetivarem. Situam-se aí os apelos para que empresários, por exemplo, apoiem as políticas voltadas ao desenvolvimento humano.
Dada a extensão dos referidos documentos e as suas formas tortuosas de incorporar as diversas teorias e embates contemporâneos sobre (in) justiça, serão indicadas, tanto na teoria quanto na prática, algumas tensões, ambivalências e ambiguidades, nas proposições prescritivas presentes nos Relatórios do Desenvolvimento Humano, entre as quais estão aquelas derivadas da prevalência, na incorporação de muitos traços da abordagem das capacidades de Sen (1981; 1999; 2008), combinada com alguns aspectos da abordagem de J. Rawls10. Há, então, nesses materiais, uma dada concepção de justiça social que, em alguns momentos, dialoga com traços dos pressupostos presentes na obra de John Rawls (1971; 2000).
Em quais contextos, circunstâncias e situações os produtores de alguns RDHs mencionam a. Sen e j. Rawls nas prescrições sobre justiça social?
Os formuladores dos RDHs e o emprego das pressuposições de Amartya Sen sobre desenvolvimento e justiça
Ao lerem-se os RDHs, faz-se mister considerar que eles não são de natureza acadêmica. Porém, a sua constituição dialoga com frequência, explicita ou implicitamente, com muitos debates acadêmicos acerca da pobreza, das desigualdades, da justiça social, da inclusão, da equidade, da participação política e do acesso a direitos. As equipes produtoras dos respectivos documentos, influenciadas por "princípios muito diferentes na avaliação de problemas de justiça social (...) recorrem a considerações normativas de igualdade social, necessidade individual ou realização pessoalmente investida" (Honneth, 2010, p.382).
Nos RDHs, enfatizam-se expressivamente as disposições individuais como sendo o básico para a geração de práticas sociais capazes de propiciar a todos maior justiça social. Todavia, o investimento dos governos, na educação e na saúde, é tido como a condição fundamental para a ampliação das disposições sociais das pessoas; é requisito essencial que as habilita a agirem em prol da ampliação de suas liberdades e a participarem da vida econômica, política e social.
Nota-se, nesse tipo de recomendação prescritiva, uma aproximação à perspectiva de Sen, a qual assinala que é preciso, nas proposições de políticas sociais, não se ater somente ao crescimento econômico, uma vez que "expandir as liberdades que temos [...] permite que sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e influenciando esse mundo" [...] (Sen, 2010, p. 29).
A ideia seniana que alicerça esta perspectiva está situada na distinção avaliativa entre realização e liberdade para realizar. Segundo o autor indiano são muitas as formas de conceituar e avaliar as desigualdades e as injustiças. "Um dos aspectos da avaliação da desigualdade que tem recebido menos atenção do que merece associa-se à distinção entre realização [achievement] e a liberdade para realizar [freedom to achieve]" (Sen, 2008, pp. 33-34).
Tal posição é distinta, portanto, das propostas teóricas e políticas que defendem uma distribuição de renda ou de recursos ou de bens primários, como o caso de Rawls, como critério de justiça. É necessário, segundo Amartya Sen, que se considere as condições anteriores que cada pessoa ou grupo têm para realizar seus funcionamentos valorizados; o autor está preocupado, neste ponto, com o problema da conversão dos meios em realizações. Igualar a parcela de recursos pode não significar que as pessoas tenham condições iguais de liberdade para converter seus recursos ou bens primários em realizações.
Tendo isto em vista entende-se a razão pela qual a perspectiva seniana, segundo a qual o desenvolvimento humano, que amplia a justiça social, se dá com o aumento das chances de renda, educação, trabalho, moradia e direitos, de quem não as têm, e não subtraindo de quem as tem (Sen, 2001), bem como com as reflexões, que se fazem sobre os "abrangentes poderes do mecanismo de mercado, [os quais] têm de ser suplementados com a criação de oportunidades sociais básicas para a equidade e a justiça social"11 (Sen, 2010, p. 190).
Esta visão do desenvolvimento humano possibilita aos formuladores dos RDHs fazerem a defesa de "medidas e políticas sociais que promovam o acesso [aos] direitos por meio tanto do mercado (moradias) como do Estado (ensino primário gratuito)" (PNUD/RDH, 2000, pp. 8-9).
Destaque-se ainda que, além dos elementos assentados em arranjos12 sociais mais amplos, a condição subjetiva (perspectivas, expectativas, motivações, disposições) dos indivíduos ganha, em Sen, um papel importante no concernente à geração de uma sociedade mais justa, entendida como mais equânime, já que tais indivíduos teriam de estar incumbidos de proceder de modo a ampliar as possibilidades do desenvolvimento como liberdade13.
Isso por que "a expansão dos serviços de saúde, educação, seguridade social etc. contribui diretamente para a qualidade da vida e seu florescimento" (Sen, 2010, p. 191). Ou seja, "o desenvolvimento significa [remoção dos] obstáculos [...], tais como analfabetismo, falta de saúde, impossibilidade de acesso a recursos, ou ausência de liberdades civis e políticas" (Fukuda-Parr14, 2002, p.3). Uma vez que os obstáculos são removidos, cresce o que Amartya Sen (2008) denomina "aspecto da condição de agente" (p. 103), isto é, as possibilidades de realizar com êxito os objetivos que cada pessoa tem razão para almejar e buscar.
O progresso do desenvolvimento humano implica a capacidade de gerar rendimento e convertê-lo em capacidades, incluindo melhores resultados ao nível da saúde e da educação. Este processo desenrola-se ao longo do ciclo de vida. O desenvolvimento de cada pessoa começa cedo - mesmo antes do nascimento, com a nutrição, o desenvolvimento cognitivo e as oportunidades de educação ao dispor das crianças. (PNUD/RDH, 2019, p. 68)
Assim, em parte orientados pela proposta de Sen, os formu-ladores dos RDHs dão destaque ao papel de cada indivíduo no processo gerador do desenvolvimento humano, entendido como aquele que possibilita "que as relações humanas sejam [mais] equitativas" (PNUD/RDH, 1991, p.42).
Isso ganha destaque nos relatórios, pois a geração de condições equânimes ainda que tenham, nos RDHs, uma âncora no Estado, nos governos, este arrimo parece frágil. Ou seja, como con-sequência das inúmeras dificuldades de extrair compromissos efetivos dos Estados15, na maioria dos casos, no decorrer das décadas de 1990, 2000 e 2010, os documentos dão também ênfase àquilo que as pessoas poderiam fazer para exigir do Estado ações favoráveis ao desenvolvimento equitativo.
Percebem-se, nos RDHs, ambiguidades e ambivalências quanto à possibilidade de ser a justiça, como equidade, alcançada ora pelo empenho do Estado, ora pela participação efetiva dos indivíduos ora, ainda, pelo encontro concomitante desses dois envolvimentos somados às organizações privadas.
Essa conjugação das liberdades, direitos e desenvolvimento humano como forma de alcançar a justiça, entendida como equidade, está assentada nos pressupostos de que "os direitos políticos e civis oferecem às pessoas a oportunidade de prestar atenção às necessidades gerais e demandar uma ação política adequada" (Sen, 2006, p.66). Por essa razão, "a resposta de um governo ao sofrimento de sua gente depende, em boa medida, da pressão que se exerce sobre ele" (Sen, 2006, p.66). Neste caso, "o exercício dos direitos civis e políticos [é] crucial para a boa vida dos indivíduos entendidos como seres sociais. A participação política e social tem um valor intrínseco para a vida e o bem-estar das pessoas" (Sen, 2006, p.73).
A noção de justiça em Sen é inseparável das noções de capacidades e funcionamentos, pois a falta "de capacidades' (...) não [é] apenas a perda de recursos, mas [também] a perda da liberdade de realizar" (Giddens, 2007, p.255). O exercício dos direitos civis e políticos depende da expansão de capacidades e funcionamentos, passíveis de serem definidos como "estados e ações que uma pessoa pode realizar. A capacidade é, portanto, um conjunto de vetores de funcionamentos"16 (Sen, 2008, p. 80).
Como os elaboradores dos RDHs dialogam com algumas pressuposições de John Rawls?
Em razão da natureza dos documentos, por não possuírem, em suas páginas, objetivos teóricos e acadêmicos, não é possível encontrar uma discussão sobre sua filiação integral a este ou àquele conceito de justiça. Na verdade, à medida que seus formuladores conduzem as proposições prescritivas, voltadas para um desenvolvimento humano capaz de alcançar os mais vulnerabilizados, no âmbito social e político, transparecem embutidas diversas noções de justiça social. Tais noções carecem de muitos diálogos, uma vez que são muitos os documentos e muitas as equipes produtoras.
Conforme foi dito anteriormente, em alguns momentos transparecem, nos RDHs, certas tentativas, de combinar o "debate de Sen (2011) com as teses de John Rawls (1992) sobre a justiça como equidade" (Rezende, 2021, p.9), porém tais intentos são diluídos ao longo dos materiais. Todavia, há uma linha sustentadora dos documentos que mostra que seus argumentos "encontram-se mais próximos da abordagem de Sen, que deseja se afastar de 'uma visão de justiça focada em arranjos' (Sen, 2011, p. 50) e se aproximar de uma 'compreensão de justiça focada em realizações' (Sen, 2011, p. 40)" (Rezende, 2021, p.9). No entanto,
nota-se que [os formuladores desses materiais prescritivos] estão empenhados em exaltar [tanto] as razões públicas, que justificam a busca da justiça17, como equidade (Rawls, 1992), [quanto] a realização da justiça, como capacidade. Nesse aspecto, os elaboradores desses documentos têm interface com os dois pensadores. (Rezende, 2021, p.9)
O RDH de 2002, dedicado a fazer prescrições para ampliar os processos democráticos no mundo, insistia na necessidade da expansão da ação coletiva, como modo de alcançar maior equidade (PNUD/ RDH, 2002, p.53). Observa-se nesse documento uma ampla defesa de procedimentos capazes de promover uma ordenação mais equitativa das instituições, isso porque "as ligações entre democracia e desenvolvimento humano não são automáticas: quando uma pequena elite domina decisões econômicas e políticas, a ligação entre democracia e equidade pode romper-se" (PNUD/RDH, 2002, p. 4).
Nesse aspecto é possível encontrar alguns pontos de contato com a formulação de Rawls, assim redigida: "[...] a equidade caracteriza[-se], em primeiro lugar, [como] procedimento de deliberação que deve conduzir à eleição [de alguns] princípios de justiça" (Ricoeur, 1990, p.587). No texto ¿Es posible una teoría puramente procesal de la justicia? A propósito de la teoría de la justicia de John Rawls, Ricoeur (1990, p.587) afirma que, para Rawls, a "[...] justiça como equidade é um procedimento equitativo com vista à justa ordenação das instituições".
No que tange à posição teórica de Rawls, é possível observar, no interior dos documentos do PNUD, algumas considerações críticas, como as encontradas no Relatório de 2019 afirmando que "Sen (1980) foi além da teoria dos bens sociais primários de Rawls, adotando, essencialmente, o mesmo argumento - de que os mesmos são, na melhor das hipóteses, instrumentais" (PNUD/RDH, 2019, p. 31). No entanto, há também o reconhecimento das contribuições de John Rawls para as teorias da justiça pensadas a partir da equidade. No documento de 2011 lê-se:
O pensamento contemporâneo sobre a equidade deve muito ao trabalho do filósofo norte-americano John Rawls, que defendia que os resultados justos são aqueles que as pessoas aceitariam sob um "véu de ignorância", ou seja, se não soubessem o estatuto que viriam a deter na sociedade. A ideia de justiça de Rawls abraçava a ideia das liberdades básicas e da justiça processual e permitia desigualdades apenas se fosse possível prever de forma razoável que fossem vantajosas para todos (e se reduzi-las piorasse a situação de toda a gente). (PNUD/RDH, 2011, p. 21)
O reconhecimento das contribuições de Rawls para a temática da justiça e da equidade está presente também na obra de Amar-tya Sen, um de seus principais interlocutores. De acordo com o autor de "Desenvolvimento como liberdade", John Rawls é responsável por trazer ao debate uma preocupação processual com a temática da justiça, "dando prioridade à liberdade, por um lado, passando pela resistência a privilégios arbitrários, por outro, e finalmente a uma irredutível preocupação com a eficiência e equidade na distribuição dos recursos básicos, como a parte final desta reivindicação complexa" (Sen, 2000, p. 20; tradução nossa)18.
Os autores do RDH global de 2011 parecem levar para dentro do documento uma abordagem que conjuga uma noção de justiça como equidade aos pressupostos fundamentais da abordagem das capacidades ao postularem que:
As preocupações com a sustentabilidade e a equidade são semelhantes num sentido fundamental: ambas se prendem com a justiça distributiva. Os processos não equitativos são injustos, tanto entre grupos como entre gerações. As desigualdades são especialmente injustas quando desfavorecem sistematicamente grupos específicos de pessoas, quer devido ao género, raça ou local de nascimento, quer quando o fosso é tão largo que a pobreza extrema se torna elevada. (PNUD/RDH, 2011, pp. 21-22)
No RDH de 2002, defende-se a participação individual e coletiva no processo de construção de uma política com maior equidade. Isso pressupõe a necessidade de expandir, cada vez mais, a atuação de forças plurais. Assim, "[...] a liberdade política habilita as pessoas a reivindicarem os seus direitos econômicos e sociais, ao passo que a educação faz aumentar a sua capacidade para reivindicar políticas econômicas e sociais que respondam as suas prioridades" (PNUD/RDH, 2002, p. 53).
Esse tipo de prescrição pressupõe que a política, como equidade, só é possível se ela for capaz de incorporar as diferenças e as pluralidades no embate político e, com afirma Francesc-Xavier Marin (2001, p.427): "[...] a diferença na pluralidade representa um desafio difícil para modelos que, como afirma Rawls, são formal e universalmente humanos". Com efeito, ao indicar a equidade de bens primários como objeto da justiça, Rawls está assinalando a necessidade de encontrar "uma base pública praticável de comparações interpessoais baseada nas características objetivas das circunstâncias sociais dos cidadãos que são passíveis de exame, tudo isso dado o contexto do pluralismo razoável" (Rawls, 2000, p. 229 - grifo nosso).
No Relatório de desenvolvimento humano sobre o Brasil, de 2009-2010, há uma referência ao conceito de razão pública, que está sendo empregado no decorrer do documento. Nele é dito que "[...] o conceito de razão pública é muito utilizado na discussão de liberdades constitucionais19 (...), mas [o sintagma] é aqui [neste documento] mais amplamente usado para referir-se a razões compartilhadas (políticas, filosóficas etc.) com outras pessoas na sociedade" (PNUD/ RDH-Brasil, 2009-2010, p.13).
Deriva daí a necessidade de criar uma razão pública em torno de políticas e de instituições, que deliberem em favor do desenvolvimento humano. Por isso, a insistência dos encampadores dos RDHs na necessidade de convencer governantes, agentes públicos e privados como também membros da sociedade civil organizada, em todas as suas vertentes, a difundirem ideias, ações e práticas que levem a relações humanas mais e mais equitativas (PNUD/RDH, 1991, p.42)20.
Todavia, deve-se considerar que, ao lançar mão da noção de razão pública, o relatório sobre o Brasil (PNUD/RDH-Brasil, 2009-2010, p.13) está passando ao largo das condições dificultadoras da formação dessa razão pública nos termos postos por Rawls. Isto porque não há, no país, elementos sustentadores da expansão de tal razão, conforme é destacado por Nicolás Alles (2016), no texto Kant, Rawls y la razón pública (p.77):
La razón pública es la razón de un pueblo democrático, de los ciudadanos democráticos (entendidos como libres e iguales), y su objeto es el bien público. Se trata de una forma de razonamiento, no de una mera manera de discutir. Encarna una estrategia de justificación política, es decir, plantea una determinada manera de tratar los asuntos del Estado. Su contenido es público y está dado por los ideales y principios expresados por la concepción de la justicia política que tiene la sociedad, los cuales pretenden ser desarrollados de un modo abierto y visible.
Abraçar e defender políticas de desenvolvimento mais equitativas levariam à formação de uma razão pública favorável ao amplo investimento em melhorias da renda, da educação e da longevidade. Por isso, os RDHs investem esforços para que se forme uma perspectiva razoavelmente aceita de que "[...] uma quarta parte das pessoas nos países em desenvolvimento ainda não tem satisfeitas as necessidades humanas básicas, carece de níveis mínimos de renda e de serviços sociais decentes" (PNUD/RDH, 1991, p. 39).
Dever-se-ia também formar um consenso assentado na orientação de que "os governos não deveriam abordar a pobreza depois do crescimento econômico. Deveriam antes adotar modelos de crescimento econômico que incluíssem, como um de seus principais objetivos, a eliminação da pobreza" (PNUD/RDH,1991, p. 40). E "[...] ao melhorar a vida da geração presente não se devem obstar as oportunidades das gerações futuras, ou seja, o processo de desenvolvimento deve ser sustentável" (PNUD/RDH 1991, p. 42).
Seria ainda fundamental a formação de uma razão pública acerca da "garantia de direitos humanos, incluídas as liberdades de expressão e de associação; império do direito; eleições livres e imparciais; um sistema multipartidarista [e] uma transição ordenada de um governo a outro" (PNUD/RDH, 1993, p. 28).
Por que é possível correlacionar essas questões com os escritos de John Rawls? Grosso modo, essas indicações contêm elementos (não filiações) de alguns pressupostos que podem ser encontrados em alguns de seus textos, em especial no intitulado El derecho de gentes (Rawls, 2001), que destaca o direito à vida e à seguridade. Esse pressuposto está na base da noção de segurança humana que será amplamente discutida nos RDHs.
Francesc-Xavier Marin (2001) afirma que o livro El derecho de gentes traz uma mensagem muito clara sobre o fato de que "as pessoas têm o dever de ajudar outros povos que vivem em condições desfavoráveis para que a realização de um regime social e político justo e decente seja possível" (p.427). É notório que esse pressuposto atravessa todos os relatórios.
Um outro dado que vale a pena destacar é que a existência dos próprios RDHs está ancorada no pressuposto de que as Nações Unidas é um organismo internacional com capacidade de construir processos de cooperação, nacionais e internacionais, que levem às relações humanas mais equitativas (PNUD/RDH, 1991). Numa passagem do livro El derecho de gentes, Rawls anuncia que as Nações Unidas, entre outras organizações, "pueden estar investidas de autoridad para condenar a las instituciones domésticas que violen los derechos humanos" (Rawls, 1997, p.15).
Os elaboradores do relatório de 2000, o qual trata da correlação entre Desenvolvimento e direitos humanos, parecem ter como pressuposto o fato de que a ONU, no caso representada pelo PNUD, tem o dever e a obrigação de persuadir os diversos países a desenvolverem políticas que considerem a pobreza, a miserabilidade, a exclusão social e política, o analfabetismo etc., como inobservância grave aos direitos humanos.
Há um elemento essencial, no interior dos documentos em análise; são prescrições que insistem que as políticas de desenvolvimento humano21 devem orientar-se de modo a alcançar os mais desfavorecidos. O Relatório Regional do Desenvolvimento Humano voltado para o Mercosul (PNUD/RDH-Mercosul, 2009-2010, p.56), apoiando-se no "princípio da diferença" de Rawls22, defende esta ideia. Seus elaboradores dizem: "Como afirma Rawls (1971), un arreglo social es justo sólo si, comparado con otros arreglos sociales, es el mejor para aquellos relativamente más postergados de la sociedad".
Note-se que a equipe formuladora deste relatório voltado para o Mercosul, no mesmo parágrafo, no qual se diz escorada na ideia de Rawls sobre a necessidade de arranjos sociais e políticos capazes de alcançar os mais desfavorecidos, passa a defender uma política de inclusão social que seja resultado da integração de ações individuais e coletivas (PNUD/RDH-Mercosul (2009-2010, p.56).
Neste aspecto, nota-se que a equidade só pode ser construída com a atuação das instituições e dos indivíduos, ao mesmo tempo.
La capacidad integradora de la política se refiere a la política como generadora de poder democrático, en el que los distintos agentes, o actores, intercambian argumentos y propuestas para construir opciones. De esta manera, una política de, por y para los jóvenes debería hacerse responsable por la diversidad de subjetividades y condiciones estructurales. (PNUD/RDH-Mercosul, 2009-2010, p.56)
Não se está supondo que os formuladores dos RDHs tomam como iguais os pressupostos de Rawls e de Sen acerca da justiça social, como equidade, mas sim que, em alguns momentos, aparecem tentativas para dar razão aos dois. Isso porque valorizam-se os arranjos institucionais como capazes de promover uma política com maior equidade, mas destaca-se também a necessidade de considerar a importância da atuação individual que incentiva pessoas capacitadas e habilitadas, política e socialmente, a promover o bem-estar a um número maior de pessoas. Em alguns trechos dos documentos, apesar de Sen prevalecer, os seus elaboradores se apegam aos pressupostos de Rawls.
A dificuldade de lidar com a distribuição de riqueza e com a desconcentração da renda é um fator que desafia as prescrições apresentadas nos RDHs. Os produtores do documento insistem, seguindo Amartya Sen, que a distribuição deveria se dar "não pelo lado negativo, ou seja, diminuindo a riqueza dos ricos" (Sen, 2001, p.6), mas pelo lado positivo, ou seja, melhorando a vida dos mais desfavorecidos, tese contestada por Celso Furtado (2002). Para ele, não lidar com a desconcentração de renda e patrimônio era algo inconcebível quando se tratava do desenvolvimento humano, entendido como expansão das habilidades e capacidades sociais e políticas. Tais concentrações "bloqueavam o processo de habilitação" (Furtado, 1999, p.11).
Ganham relevo nos RDHs, de modo geral, as prescrições que ressaltam a necessidade de os mais pobres serem alcançados por políticas que tenham mais consideração por sua vida. Ainda que abracem, em tese, a perspectiva das habilidades e capacidades de Sen, não enfrentam o problema central, ou seja, o da concentração de recursos, renda e patrimônio, que bloqueiam o próprio processo de expansão de habilidades e capacidades. Fica, assim, evidenciado, nos relatórios, que as propostas objetivam alcançar melhorias nas políticas de "cuidados" (da mulher, da criança, do jovem). Tanto a operacionalidade das capacidades básicas quanto a operosidade das altas capacidades passam por políticas de cuidados (PNUD/RDH, 2019, p.15). Veja-se o que consta no RDH de 2019:
Os impostos -quer incidam sobre o rendimento, a riqueza ou o consumo- podem fazer muito pela correção das desigualdades. Permitem a arrecadação de receitas para a melhoria de serviços públicos fundamentais (cuidados de saúde e escolas) e a oferta de prestações sociais -beneficiando quer as pessoas desfavorecidas quer as que se situam nos escalões intermédios da distribuição do rendimento. (PNUD/RDH, 2019, p.15)
Há, neste aspecto, muitos pontos de contatos com a tese de Rawls, o qual "entende que o 'devido cuidado' é mais realista do que o 'princípio da distribuição global'" (Marin, 2001, p. 428). Esta visão, presente nos documentos, que busca a efetividade das capacidades e habilidades por meio das políticas de cuidados, aparece nitidamente em muitas prescrições. Os impostos são pensados, como forma de melhoria dos recursos para os cuidados e não como fator de redistribuição efetiva de renda, recursos e patrimônio.
Em razão destas questões, algumas críticas feitas a Rawls têm similaridade com aquelas que recaem sobre os Relatórios do desenvolvimento humano. Paul Ricoeur (1990, p.592) diz que os pressupostos de Rawls são atacados por "dois grupos de adversários. Pela direita [há a acusação de ele] defender o igualitarismo, [isto é, de dar] prioridade absoluta aos mais desfavorecidos. Pela esquerda acusam-no de legitimar as desigualdades" (Ricoeur, 1990, p.592).
Deve-se considerar que esses dois grupos de críticas recaem também sobre os RDHs, que têm como ponto central a ideia de que as políticas de desenvolvimento humano devem dar relevo aos que vivem em condições precárias. Isto leva os grupos mais à direita a críticas veementes contra as proposições prescritivas presentes nos relatórios, já que elas seriam de caráter igualitarista. Há, ainda, grupos à esquerda que também levantam várias críticas aos documentos pelo fato de as proposições prescritivas não atacarem a fundo as desigualdades de renda, recursos e riqueza23. José Eli da Veiga (2011) observa que os organismos internacionais não têm
Qualquer propensão a encarar as necessárias 'grandes transformações estruturais das economias e das sociedades'. Isto é, as transformações globais e nacionais de caráter redistributivo que nenhum setor da ONU, da OCDE, do FMI ou do BIRD ousaria sugerir ou aconselhar. Afinal esse é o maior tabu das relações internacionais, apesar das evidências de que as desigualdades atrofiam o bem-estar. (p.3)
Reflexões finais
Conforme foi assinalado, no início deste texto, os Relatórios do Desenvolvimento Humano são documentos amplos e possuem muitas ambivalências e ambiguidades, que se percebem nos momentos em que os diagnósticos e as prescrições parecem beber em teorias diversas da democracia, do desenvolvimento, da cidadania, de desigualdades e da justiça social.
No caso da justiça social, é possível perceber diálogos mais frequentes com as pressuposições de Sen e menos frequentes com as de Rawls. Mas, ainda assim, há aqui e ali alguns congraçamentos, construídos pelas equipes produtoras dos RDHs, das propostas destes dois pensadores. As ambiguidades, muitas vezes, saltam aos olhos ao apontarem os formuladores dos documentos para muitas direções simultaneamente.
Em alguns argumentos, no entanto, a ambivalência vem à tona com mais força. Isto é visível quando os elaboradores desses materiais parecem convencidos de que é necessário, na construção de suas propostas de ações aos governantes e à sociedade civil organizada, opor a ideia de justiça de Rawls e a ideia de justiça de Sen.
Pode-se detectar isso no RDH de 2010, no qual consta que o livro A ideia de justiça (Sen, 2011), "(...) é uma incisiva crítica de uma ideia dominante na filosofia política atual, exemplificada pela afirmação de Rawls (1971), de que é possível garantir o acordo sobre o que constitui uma sociedade justa e quais as normas e instituições a ela associadas"24 (PNUD/RDH, 2010, p.16).
Os formuladores desse documento de 2010 debatiam-se para encontrar formas de viabilizar, junto a Estados, governos e organizações da sociedade civil, encaminhamentos de políticas públicas de combate às iniquidades sociais. E consideravam que era necessário construir alguns consensos sobre como alcançar alguns resultados favoráveis aos mais desfavorecidos. Mas, inicialmente diziam que estavam de acordo com Sen (2011) sobre o fato de "que as diferenças entre as perspectivas razoáveis das pessoas tornam o acordo perfeito inviável" (PNUD/RDH, 2010, p.16). Todavia, o acordo perfeito não só era inviável como desnecessário "tanto para a formulação de políticas como para o diagnóstico da injustiça" (PNUD/RDH, 2010, p.16).
Um ano depois, ou seja, no RDH de 2011, observou-se que as equipes produtoras desse relatório insistem sobre a necessidade de a discussão a respeito da justiça social reconhecer o quanto o debate atual sobre equidade era devedor dos trabalhos desenvolvidos por Rawls (PNUD/RDH, 2011, p.21), para o qual "os resultados justos são aqueles que as pessoas aceitariam sob um 'véu de ignorância', ou seja, se não soubessem o estatuto que viriam a deter na sociedade" (PNUD/RDH, 2011, p.21).
A equidade exigiria, neste caso, que fossem eleitos alguns princípios de justiça capazes de alcançar os mais desfavorecidos. As equipes produtoras dos referidos documentos parecem estar em busca de uma definição mais clara e coesa desses princípios. Para efetivá-lo chamam os governantes, as organizações da sociedade civil, os representantes dos setores privados, os Estados e os organismos internacionais, os quais devem atuar para que seja possível estabelecer um entendimento coeso sobre o que seria justo fazer a fim de alcançar melhores índices de desenvolvimento humano; índices que teriam de garantir aos mais pobres e excluídos um lugar social e político que os habilitassem e os capacitassem para uma vida com menos sofrimentos sociais. Os formuladores do RDH de 2019 ressaltam que há, na atualidade, um "consenso entre muitos pensadores econômicos (Dworkin, Rawls, Roemer, Sen) [que] postula que o bem-estar final é inadequado à avaliação da justiça distributiva (PNUD/RDH, 2019, p. 259).