Introdução
Fronteira terrestre é o limite territorial que demarca a linha divisória de soberania de cada país. Entre os 195 países mundiais, 134 apresentam ao menos uma tríplice fronteira. Quanto aos demais, tratam-se de países insulares (como o Japão), com uma única fronteira (como Portugal) ou com dupla fronteira não adjacente (como os Estados Unidos da América). Portanto, estudar fronteiras sob o viés da criminologia crítica, por si só, já é urgente e necessário.
Importante destacar que o termo "fronteira" não diz respeito apenas ao contexto territorial - elemento limítrofe de um Estado - mas também a outras dimensões securitárias relacionadas com questões econômicas, sociais, políticas e ideológicas nessas regiões.1
No conceito tradicional, é importante destacar duas abordagens de perspectivas semânticas: fronteira atrelada à noção de frontier e fronteira atrelada à noção de borderland. José Carlos dos Santos ensina que a noção de fronteira como frontier compreende o limite territorial comofront de batalha, linha de frente, caracterizando-se por uma fronteira em movimento, em progressivo distanciamento do centro. Em razão disso, é um "espaço marcado por certa fluidez e criatividade, mas também por relações desiguais e pelo poder sem limites". Quanto à fronteira como borderland, destaca que é tratada pelos estudos pós-coloniais como espaço in-between, ou seja, lugar de encontro e negociação, não linear e fluida.2
Numa primeira análise, percebe-se que os meios de controle social intuem as regiões fronteiriças como uma "fronteira-frontier", linha de frente do combate à criminalidade transnacional. Para tanto, de fato tem utilizado a militarização como componente primordial na repressão. Por outro viés, os métodos de controle europeu pressupõem o duplo conceito de fronteiras: fronteiras-frontier e fronteiras-borderland, considerando a questão do fluxo migratório. Essa análise é necessária para o estudo das importações de modelos de controle social adotados nos Estados Unidos e na Europa.
Ainda que haja uma (possível) inadequação na importação dos modelos de controle social, deve-se abordar também sobre a criminologia crítica na América Latina, que inevitavelmente será avaliada sob a perspectiva da dependência histórica dos países latino-americanos (periféricos) com os países europeus (centrais).
Justamente em razão do contexto de exploração colonial, a América Latina apenas importou os modelos jurídicos europeus, o que evidentemente sufocou o desenvolvimento de teorias particulares. Nesse sentido, Lola Aniyar de Castro é mais incisiva ao afirmar que não existe uma criminologia latino-americana, mas uma transnacionalização do saber criminológico e, portanto, do controle social.3
A autora vai além: destaca que a criação da criminologia latino-americana deve ser edificada a partir da metodologia dialética, considerando o processo histórico de dominação cultural e a necessidade de insurgência da luta de classes contra o colonialismo.
Dessa forma, o desenvolvimento desta pesquisa visa contribuir, singelamente, para o avanço acerca do tema, de modo comprometido com o reconhecimento dos movimentos criminológicos e das singularidades das regiões de fronteira.
1. Fronteiras latino-americanas e seus métodos de controle social
Inicialmente, insta pontuar sobre a tradição criminológica da América Latina, verticalizando o estudo para a questão dos métodos de repressão adotados pelos órgãos de segurança pública nas regiões de fronteiras. Comumente, tais órgãos citam a especificidade fronteiriça para justificar determinadas ações controlatórias que potencialmente ferem direitos e garantias fundamentais, sob a égide da necessidade de "combate efetivo" aos crimes transnacionais, principalmente organizações criminosas, contrabando e descaminho, tráfico de drogas, de armas e de pessoas.
Com base na premissa de que fronteiras são meios geográficos facilitadores para a criminalidade (fronteira-frontier), estipula-se, então, um "inimigo visível", próximo e diário de populações vulneráveis, o que autorizaria o policiamento ostensivo e o uso das Forças Armadas. Nesse sentido, o principal argumento para a militarização das fronteiras tem sido o suposto "baixo efetivo de policiais" e a necessidade de ação contra os crimes transnacionais.
Segundo o livro Segurança pública nas fronteiras: diagnóstico socioeconómico e demográfico: estratégia nacional de segurança pública nas fronteiras (Enafron), "o efetivo policial por habitante é um indicador bastante utilizado para avaliar a presença do Estado na segurança da população". No entanto, o próprio estudo aponta que, "a partir da análise dos dados [...] é possível afirmar que a alocação do efetivo policial na Faixa de Fronteira obedece a uma lógica que tende privilegiar as cidades-gêmeas4o que nem sempre corresponde aos padrões de criminalidade violenta observados."5
Nesse sentido, o uso de prognósticos de riscos elaborados com base em estatísticas criminais já era alertado por Mauricio Dieter:
O processo de mensuração do risco de um criminoso tem por núcleo a atribuição de um valor numérico à suas diferentes características individuais e sociais para depois comparar essa informação com os dados de diferentes sujeitos já criminalizados, com o objetivo de ordená-los dentre desse padrão e decidir o que fazer com ele em função de sua posição relativa.6
Sob a argumento do "baixo efetivo", busca-se então militarizar as fronteiras latino-americanas com operações ostensivas que utilizam tanques e metralhadoras. Assim, o controle social é realizado por blitz, interceptações telefônicas, câmeras de vigilância e ações conjuntas entre Polícia Federal, Receita Federal, Polícia Rodoviária Federal e Forças Armadas. Nessa direção, destaca-se o modelo do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteira (Sisfron), tido como um modelo de vigilância, controle e atuação de fronteiras terrestres, que "contribuiria para a inviolabilidade do território nacional, para a redução dos problemas advindos da região fronteiriça e para fortalecer a interoperabilidade, operações interagências e a cooperação regional."7
O projeto piloto do Sisfron emprega tecnologia de ponta, com sistemas de vigilância com equipamentos modernos de radares, softwares, sensores, comandos de controle fixos e móveis, armamentos, binóculos de visão termal, além de uma estrutura integrada de comunicação estratégica. A estrutura permite que as informações captadas pelos postos de vigilância cheguem em tempo real nos centros de operações, sejam interpretadas e usadas como suporte para a tomada de decisão.
Como nota-se, houve um processo de implementação do panoptismo nas fronteiras brasileiras, reformulado sob a égide militarista e com performance terrestre, marinha e aérea. Para a vigilância marinha, já é utilizado o modelo de policiamento do Núcleo Especial de Polícia Marítima da Polícia Federal, responsável pelo patrulhamento ostensivo. Quanto à vigilância aérea, destaca-se o modelo Vant (sigla para "veículo aéreo não tripulado"), equipamento de fabricação israelense dotado de câmeras de vigilância, com autonomia de voo para mais de 20 horas.
A premissa de que regiões de fronteiras são territórios facilitadores de criminalidade permite ações de controle social baseadas em formulações de teorias do conflito, especialmente do neorretribucionismo. Evidencia-se tal afirmativa nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem brasileiras, que, como bem denota o nome escolhido, tem como premissa a intolerância à prática de quaisquer delitos. Em análise, percebe-se que essa ofensiva militar é baseada em modelos americanos e europeus de "combate à criminalidade fronteiriça", obviamente sem considerar e ponderar sobre as diferenças geopolíticas existentes.
Já bem afirmava Roberto Bergalli que o desenvolvimento cultural dos países latino-americanos sempre teve uma relação de dependência com ideias estrangeiras.8 No mesmo sentido, Rosa del Olmo já questionava a "importação do saber de países centrais", mediante a importação de modelos (de controle social) incompatíveis com nossa realidade periférica.9
Por que tais importações de modelos de controle social baseados nas fronteiras americanas e europeias não surtem os efeitos esperados na América Latina? No artigo "Violência, contrabando e a ausência de paz nas regiões de fronteira: uma visão crítica", o professor Fernando José Ludwig declara sobre o problema latino-americano:
No que se refere à institucionalização da violência nas regiões de fronteira, devemos também nos atentar ao fato do chamado spill over effect, em que há de facto uma soberania exercida por aqueles que controlam essa indústria, "soberania do tráfico", reduzindo assim o poder Estatal em relação ao uso legítimo da força dentro de seu território nacional. A primeira, e talvez a mais evidente, consequência desta realidade, é a corrupção dos entes públicos responsáveis justamente pelo combate a esta prática ilegal.10
Dessa forma, entende-se que o problema de segurança pública nas fronteiras latino-americanas passa pela questão do tráfico de drogas, armas, contrabando, descaminho e agrotóxicos, crimes que gerariam violência social. Por isso, a justificativa de ações conjuntas de órgãos de repressão estatal.
Quanto às fronteiras europeias, Licínia Simão (professora de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra) denuncia que há dinâmicas peculiares que marcam as fronteiras da União Europeia. A primeira envolve a questão da migração ilegal. A Comissão Europeia apresentou, em 2011, uma proposta de abordagem global à migração e à mobilidade que, entre suas medidas, está a criação da Agência Europeia para a Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia (Frontex). Assim, a Frontex agiria como uma agência de práticas securitizadoras11 das políticas de asilo da União Europeia. Militarizam-se as fronteiras europeias e se combatem imigrantes ilegais pelos mesmos sistemas e meios do combate ao terrorismo e ao crime organizado.
Em segundo, o setor de desenvolvimento tecnológico de gestão fronteiriça é visto por empresas privadas de segurança como um mercado lucrativo, com estimativa de movimentação financeira de USD$56.520.000,00 (cinquenta e seis milhões, quinhentos e vinte mil dólares) em 2022. Esse processo é apelidado como a criação de um "mercado global de tecnologias de repressão".12
Quanto às fronteiras americanas, a problematização envolve a barreira terrestre com o México, tão somente. Cite-se a construção de 376 quilômetros de muro nos estados da Califórnia, do Novo México e do Arizona e no México, sob o argumento da proibição de migrantes ilegais, drogas, traficantes de seres humanos e organizações criminosas. Segundo Rafael Francisco França, as autoridades estadunidenses entendem que o governo mexicano é fraco ou até mesmo corrupto demais para fazer frente aos cartéis que dominam o narcotráfico entre os dois países.13
Apesar dessa (pretensa) preocupação com o narcotráfico, indica-se que a verdadeira intenção da vigilância envolve a questão da migração ilegal mexicana, naquilo que Zaffaroni já bem explicava como "exercício do poder dirigido à contenção de grupos determinados e não à repressão do delito, num grau de arbitrariedade seletiva dirigida".14 Como demonstração, cite-se a criação dos "xerifes virtuais'" que patrulham a fronteira entre o México e o Texas por meio do Programa de Monitoramento Virtual da Fronteira do Texas, pelo site Blueservo.net. O programa já custou 4 milhões de dólares e convida civis para visitarem o site e observarem transmissões ao vivo de 21 câmeras de vigilância instaladas ao longo da fronteira.15
Em tempo, é necessário realizar uma observação: nos estudos envolvendo o tema "fronteiras americanas", não foi encontrada qualquer justificativa de controle em razão do terrorismo, supostamente a principal preocupação de segurança pública americana. Isso pode ser considerado, de fato, uma reafirmação à citação de Zaffaroni: "contenção de grupos determinados e não repressão do delito" - direito penal do inimigo voltado aos migrantes mexicanos. Como bem adverte Peter Andreas, "os responsáveis pelos ataques ao Pentágono e às Torres Gêmeas não ingressaram no território americano apoiados por coiotes ou cruzando a fronteira com o Canadá."16
Assim sendo, volta-se à problemática inicial de fronteiras latino-americanas vigiadas, controladas e militarizadas sob a reprodução de modelos importados. Em uma rápida observação, verifica-se que as justificativas são diferenciadas: na América Latina, combate à criminalidade de drogas, armas e contrabando; na Europa e Estados Unidos, combate à migração ilegal.
2. Premissas para desenvolvimento de uma criminologia crítica para as fronteiras latino-americanas
Do conceito tradicional de fronteira, entende-se como o limite territorial que demarca a linha divisória de soberania de cada país. Contudo, com a globalização, deve-se considerar que essas zonas limítrofes são dinâmicas, com transações comerciais e fluxo de pessoas.
A fronteira tanto separa países quanto os põe em contato. Ademais, nessas circunstâncias, está a presença do Estado, que, a seu modo, deve estar reiteradamente instituindo o "espírito nacional". Acrescenta-se ainda a estes elementos de alteridades o simpl,...,es ato de cruzar a fronteira, que é o elemento que define o outro como estrangeiro, forasteiro. Converter um ambiente fronteiriço em algo fluido, em que o espírito de nacionalidade seja enfraquecido, não justifica o conceito de que a fronteira, enquanto limite, seja apenas uma abstração.17
Como citado, a consideração das fronteiras latino-americanas apenas sob o viés "frontier" gera a visão dessas regiões como territórios marcados por violência e altos índices de criminalidade. Portanto, "se há guerra", aceita-se então a presença maciça de polícias e entidades militares que buscam a forte repressão como forma de controle social. Quanto à criminologia crítica latino-americana, percebe-se que há uma completa lacuna sobre o assunto "fronteiras". Nada se tem criado sobre o que permite a continuação do processo de decolonialização com a importação de tais modelos centrais inadequados à realidade periférica.
Nesse sentido, Zaffaroni destaca a deslegitimação do direito penal mediante a perpetuação do poder e domínio de classes por meio da violência dos órgãos que compõem o sistema. No entanto, há uma distinção conceitual entre violência e criminalização. Não há qualquer dúvida que uma determinada ação possa ser classificada como uma violência, mas a prática da criminalização é um aprimoramento e uma sofisticação dessa violência.
No direito penal subterrâneo, o processo de criminalização dos indivíduos é engendrado pelo estereótipo do delinquente como membro de classe desfavorecida e de sua conservação na marginalidade social.
No sentido de criminalização dos indivíduos latino-americanos, Rosa Del Olmo narra que a construção do sistema punitivo marginal passa obrigatoriamente pela criminologia positivista, que num primeiro momento elegeu o indígena e o negro como "criminosos natos".18 Em pleno 2019, isso ainda faz total sentido, já que nas regiões de fronteiras são considerados criminosos os indivíduos que compõem as sociedades marginais, compostas, em sua maioria, de descendentes indígenas.
Abordando sobre o interacionismo simbólico, Alessandro Baratta pontua: "os criminólogos tradicionais examinam problemas do tipo 'quem é o criminoso?', 'como se torna desviante?', 'com que meios se pode exercer controle sobre o criminoso?' Ao contrário, os interacionistas, se perguntam: 'quem é definido como desviante?', 'que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?', 'quem define quem'?"19
Nesse processo de seletividade e vulnerabilidade, percebe-se que as agências repressivas acabam selecionando aqueles que circulam pelos espaços delimitados como "áreas de guerra" com figurino social dos delinquentes. Uma vez marginalizados, perpetuam o ciclo da criminalização:
A inevitável seletividade operacional da criminalização secundária [...] provoca uma distribuição seletiva em forma de epidemia, que atinge apenas aqueles que tem baixas defesas perante o poder punitivo, aqueles que se tornam mais vulneráveis à criminalização secundária porque: a) suas características pessoais se enquadram nos estereótipos criminais; b) sua educação só lhes permite realizar ações ilícitas toscas e, por consequência, de fácil detecção e c) porque a etiquetagem suscita a assunção do papel correspondente ao estereótipo, com o qual seu comportamento acaba correspondendo ao mesmo (a profecia que se auto-realiza).20 (destaque não previsto no original)
Maximo Sozzo já discorria que os conflitos do processo de colonialização não são de mero interesse histórico. O impacto das expropriações do passado - violência nas fronteiras, segregação e controles administrativos autocráticos ancorados em supostas leis de "proteção" e "bem-estar", esforços conjuntos de dizimação cultural (desmembramento de famílias e remoção de crianças), alcançam o presente, afetando negativamente a população local.21
Portanto, a violência nas fronteiras pode ser vista como uma decorrência histórica da colonialização, e não como uma decorrência imperativa da (suposta) criminalidade de fronteira. Por isso, é urgente uma emancipação teórica e prática que reflita a problemática das tríplices fronteiras e o controle social, não se limitando à questão territorial.
Considerações finais
O tema "fronteiras" tem despertado a atenção das agências públicas e da academia em razão de dois problemas principais suscitados: fluxo migratório e criminalidade internacional. O fato de algumas cidades serem limítrofes com outros países faz com que sejam palco da chamada "criminologia de fronteira".
Nesse cenário, visualiza-se que os métodos de controle social são usualmente importados e copiados dos modelos europeu (como o modelo de polícia Frontex) e americano (como o escritório de inteligência e vigilância ostensiva Fusion Centers), mas sem as devidas considerações sobre as especificidades latino-americanas.
Com base em Lola Aniyuar e Rosa Del Omo, compreende-se que os métodos de combate à criminalidade de fronteira são inadequados, devendo ser adequados ao método dialético, que romperá com o processo de perpetuação de dominação social e cultural.