Introdução
Em uma sociedade pluralista e em um regime poliárquico, sob quais condições candidatos(as) a postos na política eleitoral concorrem aos cargos de representação? Assim posta, a questão é muito ampla. Precisamos, portanto, especificá-la. É desejável, em uma sociedade variada e em uma política democrática, que o ponto de partida de competições eleitorais seja próximo do igualitário. Ao concorrer eleitoralmente, candidatos mobilizam uma série de recursos -econômicos, políticos, simbólicos- para tentar distinguir-se dos demais. Embora não seja esperado que a distribuição desses recursos seja exatamente igual para todos os grupos sociais, também é pressuposto da teoria pluralista que as desigualdades não devem ser cumulativas. Isto é, elas devem estar distribuídas entre os grupos, ao invés de concentrar-se apenas em um ou alguns. Portanto, podemos perguntar, de forma mais específica: as condições de acesso aos recursos políticos que tornam candidatos(as) competitivos(as) durante eleições estão distribuídas de forma desconcentrada entre distintos grupos sociais? Em termos mais diretos: qual o grau de concentração de recursos eleitorais numa poliarquia específica?
Este artigo visa responder a essa pergunta. Estudiosos de ciência política reiteradamente têm encontrado que o principal fator para ser eleito no Brasil -sobretudo em eleições para o legislativo- é a grande capacidade de mobilização de recursos financeiros pelos candidatos. Isto é, o volume de dinheiro investido na campanha eleitoral. O acesso a uma rede de doadores é fator decisivo para uma arrecadação bem-sucedida. Esta será nossa variável dependente. A pergunta de pesquisa, portanto, torna-se: os recursos de campanha estão concentrados em apenas alguns grupos identificáveis ou, ao contrário, dispersos entre um conjunto mais amplo no universo de candidatos? Para verificar isso, iremos mobilizar duas variáveis explicativas: a) profissão e b) sexo do(a) candidato(a). Esta é uma forma de avaliar, empiricamente, se, como e em que intensidade atributos sociais interferem na política institucional.
Análises sobre eleições brasileiras lidam quase sempre com variáveis explicativas de tipo institucional, tais como lugar na lista a partir da votação na eleição anterior, ser ou não mandatário, pertencimento à base aliada ao governo, magnitude do distrito eleitoral, tamanho e ideologia do partido político, etc. Em sua extensa sistematização da literatura, Mancuso (2015) não relaciona pesquisas que utilizem um modelo de sociologia política análogo ao que será testado aqui.
Para tratar da concentração social de recursos eleitorais, iremos responder a três questões específicas. Primeira: existe concentração de receitas em determinados grupos sociais, grupos esses identificados segundo as ocupações profissionais dos(as) candidatos(as)? Nossa hipótese é que sim, visto que o profissionalismo político não consegue apagar essas diferenças em sociedades estruturalmente desiguais. Segunda questão: há um direcionamento das receitas de campanha que discrimina os postulantes por sexo? Nossa hipótese, baseada na literatura sobre o Brasil, é que sim. Dados da Inter-Parliamentary Union de dezembro de 2017 registravam que o Brasil ocupava o 151.º lugar numa relação de 187 países, com uma representação de mulheres no Parlamento nacional de apenas 10,7% (55 entre 513 deputadas federais). Comparativamente, a média mundial para as Câmaras Baixas é de 23,6%. Terceira questão: desses dois fatores explicativos (profissão e sexo), há algum deles que é mais preditivo sobre o comportamento da variável dependente? Nossa hipótese é que não, já que ambos os marcadores sociais tendem a atuar de maneira coordenada e cumulativa, o que diminui as chances políticas de candidatos[as] que exercem ocupações de menor rendimento econômico e/ou prestígio social.
A maioria dos estudos sobre perfis de candidatos[as] e eleitos[as] no Brasil (e na América Latina) tendem a focar apenas no parlamento nacional e, mais especificamente, na Câmara dos Deputados. Em um país com as dimensões do Brasil, onde estados e regiões têm níveis de desenvolvimento econômico e social muito diferentes entre si, análises sobre chances eleitorais de postulantes ganhariam em profundidade se tratassem a política no nível subnacional. Assim, este artigo analisa o perfil dos indivíduos que concorreram ao cargo de deputado estadual/distrital1 nos 26 estados brasileiros, mais o Distrito Federal, em quatro eleições sucessivamente: 2002, 2006, 2010 e 2014. Essa perspectiva diacrônica é importante para verificar se e quais mudanças ocorreram nas condições sociais da competição no período de uma década e meia.
Assim, nossa abordagem da política eleitoral tem cinco diferenças em relação à literatura dominante: a) estudamos candidatos(as) (e não os[as] eleitos[as]); b) estudamos os[as] candidatos[as] no nível estadual (e não federal); c) mobilizamos variáveis explicativas de tipo social (e não institucional); d) mobilizamos variáveis sociais de forma combinada (ocupação e sexo); e) tomamos aqui os recursos em dinheiro investidos em campanha como variável a ser explicada (e não como variável independente).2
O artigo está dividido em três partes. Na primeira, discutimos a ideia de desigualdades cumulativas, como e para que estimamos isso, além de apresentar como a variável ocupação profissional prévia deve funcionar no modelo de cálculo das hierarquias político-sociais. Na segunda parte, apresentamos os tipos de dados com os quais trabalhamos, suas fontes, tratamento e o “índice de sucesso de receitas”, uma forma de calcular receitas de campanha por estado que leva em conta os contextos locais (em termos de número de candidatos e do volume do dinheiro que circulou em determinada eleição em um estado específico). Na terceira e na última parte, apresentamos os dados e discutimos qual o significado de pensar essas variáveis juntas.
1. Recursos eleitorais, ocupações prévias e sexo como marcadores sociais
Por que, afinal, a concentração de recursos eleitorais entre postulantes a cargos legislativos é um problema? Para a perspectiva pluralista, a distribuição desigual de recursos não é necessariamente uma adversidade em si mesma. A questão teórica para o pluralismo não é a existência de recursos desiguais -fato quase inerente das sociedades reais-, mas sim que os diversos tipos de vantagens ou desvantagens existentes em dada sociedade estejam concentrados nos mesmos indivíduos. Em suma, trata-se da acumulação de poderes, ou, como Dahl (1961) definiu, uma questão desigualdades não cumulativas.
A concentração de recursos é um tema caro à teoria democrática de Robert Dahl. Tal tema, embora apareça às vezes de forma lateral (Dahl 1961), às vezes de forma central (Dahl 1982; Dahl 2006b), perpassa toda a sua obra. Discutindo outro contexto -os aspectos necessários para uma República não tirânica-, Dahl definiu como uma das condições necessárias dessa forma de governo que “a acumulação de todos os poderes [...], nas mesmas mãos, seja de um, de alguns ou de muitos, e seja hereditário, auto-indicado ou eletivo, deve ser evitada” (Dahl 2006a, 11; tradução nossa).3
Embora a definição verse sobre outro elemento analítico -os poderes da República-, podemos expandir o argumento substituindo poderes por “recursos”. Tal expansão teórica não implica distorção da ideia original. Em 1961, Dahl escreveu:
No sistema político da oligarquia aristocrática, recursos políticos eram marcados por uma desigualdade acumulativa: quando um indivíduo tinha muito mais do que outro em um recurso, como riqueza, ele usualmente era melhor em praticamente todos os outros recursos -posição social, legitimidade, controle sobre instituições religiosas e educacionais, conhecimento, cargos. No sistema político atual, desigualdades nos recursos políticos permanecem, mas elas tendem a ser não cumulativas. (Dahl 1961, 89; tradução nossa)4
Ainda que sua preocupação central fosse sempre os recursos políticos dos cidadãos e sua capacidade de participar da democracia, tomamos essa ideia para tratar, como problema teórico, a acumulação dos recursos dos(as) candidatos(as) a postos eletivos. Poderíamos sintetizar essa ideia, grosso modo, como: “recursos políticos podem ser distribuídos de forma desigual, desde que tal desigualdade não seja cumulativa”. Isto é, diferentes grupos podem (ou devem, em um registro normativo) possuir desigualdades diferentes, ou melhor, serem desiguais em fatores diferentes entre si.
Dogan (2003), comentando sobre o conceito de Dahl à luz da discussão sobre “classe dominante”, argumenta que:
A noção de desigualdades não-cumulativas é muito útil para o estudo de estratificação de elites em sociedades caracterizadas por clivagens culturais, étnicas, sociais ou raciais. Isso é muito menos útil para o estudo de sociedade relativamente homogêneas, onde o critério econômico predomina em tal grau que riqueza e renda estão fortemente correlacionadas com a maior parte dos outros recursos. Processos democráticos reduzem as desigualdades, mas eles não realmente as dispersam. Portanto, a noção de desigualdades não-cumulativas não é operacional para testar a teoria da classe dominante. (Dogan 2003, 17; tradução nossa)5
Embora a conclusão de Dogan tenha sido que o conceito não se aplica à análise da “classe dominante”, a ideia de desigualdades não cumulativas é, por outro lado, muito proveitosa para sociedades com grandes clivagens sociais. Portanto, por mais que o conceito não renda analiticamente tanto nas sociedades europeias como poderia, onde distâncias sociais, hipoteticamente, já estão mais “normalizadas”, ele é útil -como demonstraremos neste artigo- para sociedades latino-americanas e, no caso específico, para compreender a dinâmica da competição eleitoral no Brasil.
Recurso eleitoral pode ser entendido de forma mais ampla como todo tipo de meios ou de “capital” -financeiro, social, simbólico e assim por diante- que possa ser utilizado por candidatos(as) para se destacarem dos demais em uma corrida eleitoral. Adotamos aqui, no entanto, entendimento da parte majoritária da literatura em ciência política, que utiliza o termo como sinônimo de “recursos financeiros para campanha”, isto é, financiamento eleitoral.
O impacto de recursos de campanha tem sido há muito estudado no caso brasileiro (Samuels 2001). Nos últimos anos, análises confirmaram a relação estrita entre investimento de campanha e resultados eleitorais (Speck e Mancuso 2014; Benoit e Marsh 2010; Cervi et al. 2015). Da perspectiva dos financiadores, Heiler, Viana e Santos (2015) analisaram a preferência de investimentos dos grandes doadores, que tendem a maximizar seus recursos alocando-os em candidatos mais competitivos. No período entre 2002 e 2010, Mancuso e Figueiredo Filho (2014) concluem que os mandatários tendem a ser mais financiados que os desafiantes. Horochovski e seus associados (Horochovski et al. 2016) demonstraram a localização do partido como ator central, intermediando a alocação de recursos entre candidatos(as) e doadores.
Para testar se desvantagens eleitorais são cumulativas entre distintos grupos, escolhemos duas clivagens sociais: ocupação profissional e sexo.
Aqui, cabe uma discussão teórica mais extensa, pois tais variáveis não compõem o universo analítico pluralista. Embora Dahl não negue a influência potencial de variáveis como estas,6 é verdade que ele as reduz a apenas possibilidades, entre outras variáveis com potencial explicativo. No entanto, optamos intencionalmente por adotar uma abordagem agregada (comprehensive) do fenômeno da concentração de recursos eleitorais, que integra variáveis defendidas pela sociologia política a fim de testar limites da poliarquia brasileira.
A seguir, explicamos como lidamos teoricamente com a variável independente “ocupação profissional” em função da hierarquização de diferentes graus de disposição para a política que distintos ofícios permitem ou incentivam. No outro subitem, discutimos a questão da representação por sexo na política.
1.1 Ocupação profissional e disposição à política institucional
O recrutamento para posições de mando na sociedade é uma das funções centrais dos sistemas políticos. Em regimes democráticos, o recrutamento político envolve dois processos complementares: eleições para cargos representativos e nomeações para cargos administrativos. Vários autores sublinharam que variáveis sociais afetam, positiva ou negativamente, o recrutamento político (Matthews 1962; Czudnowski 1972; Bourdieu 1981; Gaxie 1983); em consequência, incentivam ou barram o acesso de certos grupos sociais à política institucional. Já se sabe que estudos sobre os resultados de processos de recrutamento podem ressaltar a distribuição desigual da influência política de diferentes grupos (sociais, políticos, econômicos) assim como indicar princípios e valores socialmente mais prestigiados numa comunidade (Seligman 1964; Seligman 1971).
Uma das variáveis mais frequentes em estudos desse tipo, que dão relevo a fatores sociais em detrimento de fatores institucionais convencionais, é “ocupação”. Ocupações que precedem a carreira política são usadas como um indicador do meio social de proveniência, como um referente para deduzir tomadas de posição em defesa de grupos de interesses, mas também como um trunfo que pode impulsionar decisivamente o ingresso na arena legislativa. Weber (1994) argumentou que haveria um grau de afinidade importante entre a profissão de origem dos indivíduos e as capacidades dela derivadas para atuar politicamente. Certas ocupações profissionais confeririam, de modo decisivo, uma série de recursos simbólicos (status), habilidades políticas (dons de retórica, redes de influência) e condições materiais (tempo livre, independência financeira) aos interessados em seguir carreira na política profissional. Daí a notável presença, nos parlamentos europeus no início do século XX, de titulares das talking professions: juristas, jornalistas, diplomatas, etc.
Nessa linha de argumentação, Norris e Lovenduski (1997, 165-166) sugeriram ordenar as profissões dos candidatos ao Parlamento britânico levando em conta os atributos que afetam as chances reais dos competidores eleitorais. A variável “ocupação prévia” à política poderia então, se pensada mais sociológica do que mecanicamente, identificar e iluminar alguns handicaps produzidos antes mesmo da disputa eleitoral e estimar, assim, as oportunidades sociais que diferentes métiers profissionais possibilitam.
Sistematizando o conjunto de atributos encontrados por Norris e Lovenduski (1997) em seu estudo sobre o Reino Unido, Codato, Costa e Massimo (2014) estabeleceram três critérios ligados à ocupação do aspirante a um cargo eletivo que permitem medir as oportunidades oferecidas pelo sistema de relações sociais em que eles estão inseridos a fim de calcular seu sucesso político potencial: a) tipo de carreira profissional; b) status social da ocupação; c) afinidade da ocupação com a atividade política. O que se pretende é determinar os graus de “disposição para a política” propiciados pelas respectivas ocupações que os candidatos exercem no mercado.
O primeiro critério, tipo de carreira profissional, estima o quanto determinado candidato, em função da sua ocupação de origem, consegue controlar o tempo disponível para dedicar-se à militância na política e se ele possui independência financeira e autonomia profissional. Em resumo, se ele tem ou não uma carreira profissional flexível. O segundo critério, status social, estima a posição de determinada ocupação ante outras de acordo com o reconhecimento e o prestígio socialmente atribuído a ela por uma comunidade. Em resumo, se ele usufrui de um status mais alto ou mais baixo em função do seu ofício. O terceiro critério, afinidade com a atividade política, estima o quanto uma determinada ocupação permite maior ou menor familiaridade com o funcionamento da máquina pública, conhecimentos técnicos ou possibilidade de estabelecer uma rede de contatos (networks) importantes no meio político. Esses três critérios permitem avaliar, para cada ocupação declarada na ficha de inscrição dos candidatos nos Tribunais Regionais Eleitorais, se ela produz ou não disposição para a política institucional e em que grau (alto, médio ou baixo). Há então, conforme o modelo proposto por Codato, Costa e Massimo (2014), profissões com: a) alta disposição para a atividade política (presença dos três critérios: carreira profissional flexível, status social elevado, ocupação com afinidade política); b) média disposição para a atividade política (presença de dois critérios); c) baixa disposição ou d) nenhuma disposição para a atividade política (presença de um ou ausência completa de algum dos critérios). A Tabela 1 sistematiza esse índice.
Carreira profissional flexível | Status social elevado | Ocupação com afinidade política | Pontuação máxima | |
Alta disposição | 1 | 1 | 1 | 3 |
Média disposição | 0 ou 1 | 0 ou 1 | 0 ou 1 | 2 |
Baixa disposição | 0 ou 1 | 0 ou 1 | 0 ou 1 | 1 |
Nenhuma disposição | 0 | 0 | 0 | 0 |
Fonte: elaborada a partir de Codato, Costa e Massimo (2014).
Para operacionalizar essas classes de análise, utilizamos a base de dados do Tribunal Superior Eleitoral do Brasil (TSE) para candidatos(as) e eleitos(as) a deputado estadual em 2002, 2006, 2010 e 2014. Pontuamos cada uma das 251 ocupações declaradas pelos 51.860 candidatos (as) de zero a três, de modo que possuir cada um dos critérios estabelecidos fazia com que se somasse um ponto por critério em cada ocupação.
Se a lógica interna do argumento sobre o qual se constrói o modelo de disposição à política é válida -isto é, “ocupações que permitem familiaridade com a máquina pública e com os estratagemas da política ou propiciam uma rede de contatos importantes no meio” (Codato, Costa e Massimo 2014, 355-356)-, esse modelo deve ser capaz de explicar, ao menos em parte, o fenômeno da quantidade das receitas de campanha, visto que estas estão relacionadas justamente à referida capacidade desses agentes de mobilizar uma rede de contatos e de recursos.
1.2 Os candidatos e o sexo
Para mensurar empiricamente o framework proposto neste artigo, por exemplo, o peso da acumulação das várias desigualdades, optamos por integrar o modelo de disposição à política com a variável “sexo” dos competidores. Nos anos recentes, “sexo” tem sido uma das variáveis mais estudadas em termos das desigualdades produzidas na política eleitoral devido à sub-representação feminina entre a classe eleita, incluindo aí desigualdades de gênero no financiamento de campanha (Barber, Butler e Preece 2016).
A luta por condições equânimes entre os sexos na competição eleitoral reflete o que Pitkin (1967) chamou de representação descritiva. Isto é, o modelo de representação política em que os representantes reflitam, tal qual um espelho, as características sociais daquela população. Embora seja verdade que a vontade do eleitorado não obrigatoriamente deva atender a esse tipo de representação, nas sociedades democráticas contemporâneas há a ambição por aproximar as características do corpo parlamentar às características da sociedade, ainda que longe de realmente “espelhar” sua população. Alia-se ao contexto brasileiro da sub-representação feminina um agravante. Segundo Norris (2006), ao compilar dados de 175 países, mulheres possuem quase duas vezes mais chances de serem eleitas em um sistema eleitoral proporcional, como o brasileiro, do que em sistemas eleitorais majoritários, como os Estados Unidos.
A questão específica, então, é: por que, décadas após conquistar direitos iguais de votarem e serem votadas, as mulheres não se elegem em patamares similares aos dos homens? Respostas diferentes têm sido oferecidas pela literatura. Podemos classificar os argumentos em três tipos, resumindo muito o debate. O primeiro tipo localiza as barreiras eleitorais na sociedade. Nessa perspectiva, há algum tipo de preconceito ou sexismo de ordem cultural pelos eleitores, que rejeitariam a possibilidade de votar em candidatas mulheres (Lawless 2009). A segunda perspectiva é de ordem sociológica. Ela localiza nas dificuldades que mulheres enfrentam em suas vidas privadas e perante a sociedade, no momento anterior à entrada na carreira, o filtro para barrá-las na política (Fox e Lawless 2004). A terceira corrente explicativa é de cunho institucional. Ela busca em variáveis do próprio campo político as explicações para a ausência feminina, tal como as tendências criadas pelos sistemas eleitorais (Norris 2006) ou o déficit na oferta de candidaturas competitivas (Norris e Franklin 1997).
O diagnóstico correto sobre qual a causa da sub-representação feminina é fundamental para o prognóstico adequado para o tratamento do problema. Para a primeira corrente, a solução seria mudar a mentalidade e os costumes de toda a sociedade; para a segunda corrente, a solução seria normalizar distâncias sociais e o papel da mulher na sociedade; para a terceira corrente, a solução seria normalizar as condições de competição e garantir recursos financeiros equânimes, com eventual ajuste de certas regras eleitorais.
Evidentemente, tais perspectivas não são mutuamente excludentes e podem ser pensadas em conjunto. Contudo, são necessárias mais pesquisas que, efetivamente, integrem variáveis de distintas correntes explicativas para identificar, dentre os diversos fatores possíveis, qual ou quais exercem maior influência. Neste artigo, realizamos isso, ainda que em uma escala pequena. Isto é, integramos sexo a uma variável de ordem social (ocupação profissional), a fim de testar uma variável de ordem institucional (financiamento eleitoral).
Resultados de pesquisas sobre o Brasil apontaram que as candidatas têm arrecadações de campanha significativamente menores do que sua contraparte masculina (Sacchet e Speck 2012b; Sacchet e Speck 2012a). Sacchet e Speck, ao comparar as eleições de 2006 e 2010 no Brasil, mostraram que, já então, havia ocorrido uma queda no sucesso das mulheres na arrecadação de uma para outra eleição. Araújo e Borges (2013) argumentaram que pesa contra as mulheres a dificuldade para se inserirem em redes que lhes garantam apoio financeiro. Essa questão também foi analisada por Thomsen e Swers (2017). Eles argumentaram que candidatas teriam um percalço adicional na competição visto que precisam construir sua própria rede de doadores. A pesquisa de Junckes et al. (2015), com a aplicação de análise de redes entre candidatos e doares, também demonstrou que mulheres são progressivamente excluídas das redes de arrecadação eleitoral, em um processo de marginalização e isolamento das candidaturas femininas.
Speck e Mancuso (2013), ao analisarem os fatores para eleger-se prefeito -em um modelo com diversas variáveis, que incluíam sexo do candidato-, encontraram que já estar no cargo, concorrendo à reeleição, tinha um grande impacto nas chances eleitorais, para ambos os sexos. Os autores lançam uma dúvida: “Não está claro ainda, porém, se esta vantagem competitiva expressa um talento ou uma característica do candidato, ou se o capital político está vinculado ao cargo, sendo ativado por diferentes mecanismos durante a disputa eleitoral” (Speck e Mancuso 2013, 124). A dúvida -entre uma habilidade natural do político ou as vantagens do cargo-, de fato, só existe no modelo que considera apenas mandatários que ocupam o cargo, e não demais políticos profissionais. O modelo de disposição à política (que inclui todos os políticos, tanto no cargo como não), articulado também à variável sexo, testado neste artigo, dialoga diretamente com tal questionamento e propõe uma resposta.
2. Dados e métodos
Entre 2002 e 2014, 51.860 indivíduos tiveram suas candidaturas deferidas pelo TSE do Brasil e concorreram ao cargo de deputado estadual às Assembleias Legislativas nos 26 estados brasileiros, além do Distrito Federal. Destes, 13.582 candidatos(as) ou não fizeram a prestação de contas à Justiça Eleitoral, ou esta não foi atualizada pelo tse em sua base de dados pública.7 Como este é um elemento central da análise, eliminamos tais candidatos(as); portanto, o banco de dados utilizado aqui foi composto por 38.278 indivíduos.
A fonte de todas as informações utilizadas neste estudo são as bases de dados oficiais da Justiça Eleitoral do Brasil. Agregamos 22 bancos de dados fornecidos separadamente pelo TSE (sobre características socioprofissionais dos candidatos(as) e receitas de campanha) para chegar às informações analisadas. A origem das variáveis “profissão” e “sexo” é a autodeclaração do indivíduo no momento de registro de sua candidatura no TSE.8 As ocupações declaradas foram recodificadas em termos do quantum de disposição à política, conforme o índice explicado na seção anterior.
Há uma distinção importante no modelo testado diante das análises correntes da literatura.
A fim de poder avaliar separadamente o peso de ser incumbente, separamos aqueles que se autodeclararam “deputado” como uma quarta categoria, denominada “mandatário”, e deixamos os demais políticos profissionais classificados em “alta” disposição.9
Quanto às receitas de campanhas, ao tratar em termos longitudinais e comparativos (entre diferentes unidades da federação), temos que ponderar que os valores monetários não são diretamente comparáveis dadas as diferenças entre os estados no Brasil em termos de taxas de inflação, médias salariais, preços em geral, etc. Um valor monetário $100 não vale o mesmo, em termos de poder de compra, em São Paulo do que valem em Sergipe. O mesmo valor $100 não vale o mesmo, em termos de alcance e impacto, em um colégio eleitoral com 1 milhão de eleitores do que em outro com 10 milhões de votantes. Estes $100 não valem o mesmo, em termos monetários e inflacionários, em 2014 do que valiam em 2002. Por isso, para tornar esses aspectos comparáveis, utilizamos o índice proposto por Sacchet e Speck (2012b), batizado de Índice de Sucesso de Receitas (ISR).
O cálculo realizado no ISR e nesta pesquisa pode ser sintetizado na seguinte fórmula:
em que:
Rc = receitas do candidato(a);
Nc = número de candidatos(as) no pleito;
Rt = total da receita de todos os candidatos(as) naquele pleito.
Fonte: adaptado de Sacchet e Speck (2012b).
O cálculo do índice é realizado separadamente para cada estado e para cada ano eleitoral, o que torna possível a comparação entre diferentes estados e em distintas eleições. No isr, a média do grupo é sempre igual a um. A análise, portanto, não ocorre sobre os valores absolutos, mas em termos de distâncias da média. Assim, podemos verificar a posição dos candidatos (as) em termos contextuais em relação a seus adversários.
3. Resultados e discussão
Inicialmente, apresentamos um histograma sobre a distribuição dos dados. Como se percebe, eles estão difundidos desigualmente, com uma proporção paretiana 90-10.
O Gráfico 1 mostra que há forte concentração de dinheiro investido em pouquíssimas candidaturas eleitorais, o que confirma um fato já revelado pela literatura de financiamento de campanha no Brasil.
A Tabela 2, por sua vez, traz a distribuição em porcentagens do número de candidatos para a categoria de profissões segundo a disposição à política, comparativamente com o sexo dos candidatos. Os valores totais e outras informações não puderam ser inseridos aqui por uma questão de espaço, mas encontram-se para consulta nos anexos deste artigo.
Disposição à política | Total | ||||||
Baixa | Média | Alta | Mandatário | ||||
2002 | Sexo | Masculino | 83,9% | 85,5% | 89,2% | 85,2% | |
Feminino | 16,1% | 14,5% | 10,8% | 14,8% | |||
Total | 100,0% | 100,0% | 100,0% | 100,0% | |||
2006 | Sexo | Masculino | 83,9% | 87,0% | 88,4% | 88,9% | 85,7% |
Feminino | 16,1% | 13,0% | 11,6% | 11,1% | 14,3% | ||
Total | 100,0% | 100,0% | 100,0% | 100,0% | 100,0% | ||
2010 | Sexo | Masculino | 75,2% | 82,6% | 85,5% | 87,6% | 79,1% |
Feminino | 24,8% | 17,4% | 14,5% | 12,4% | 20,9% | ||
Total | 100,0% | 100,0% | 100,0% | 100,0% | 100,0% | ||
2014 | Sexo | Masculino | 63,5% | 77,3% | 84,9% | 87,0% | 70,9% |
Feminino | 36,5% | 22,7% | 15,1% | 13,0% | 29,1% | ||
Total | 100,0% | 100,0% | 100,0% | 100,0% | 100,0% |
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados do TSE do Brasil.
Mulheres são sempre minoria em todos os estratos de disposição para a política, mas elas vêm aumentando progressivamente na categoria “baixa disposição” (maior valor em 2014, 36,5% dessa categoria). Elas também são minoria em “mandatários”, com valores muito distantes daqueles dos homens.
A partir daqui, iremos utilizar somente o índice de distâncias da média, conforme explicado na seção anterior, o que nos permite comparar diretamente os dados entre si.
Os Gráficos 2 e 3 exibem, respectivamente, a diferença de médias para ambas as categorias (sexo declarado pelo candidato e disposição para a política com base no background profissional) analisadas separadamente e, então, no O Gráfico 4, um cruzamento das duas categorias. (Gráfico 2)
Os recursos para as mulheres disputarem uma cadeira nas Assembleias Legislativas dos estados caem de forma constante de 2002 a 2014; neste último ano, a diferença entre os sexos foi a maior registrada. Enquanto homens receberam, em 2014, uma média de R$ 117.858,00, as mulheres receberam, em média, R$ 47.513,00, isto é, duas vezes e meia menos, (gráfico 3).
Quando consideramos apenas a aptidão política dos candidatos(as), a hierarquia é praticamente perfeita. A menor quantidade de dinheiro está em baixa disposição, depois vêm os candidatos (as) com média disposição (e os valores diminuem a cada eleição). Acima deles, estão concorrentes com alta disposição política. Seus valores eram declinantes até 2010 e, em 2014, voltaram a subir, contudo sem alcançar os patamares de 2002.
Por sua vez, mandatários possuem receitas de campanha muito mais elevadas que quaisquer outros grupos. Além disso, é importante notar como os valores para os incumbentes aumentam a cada rodada e como, portanto, as distâncias vão ficando maiores com o passar do tempo.
O Gráfico 4 apresenta todas essas informações juntas. A Tabela 3 apresenta o teste de Bonferroni de diferenças de médias, para as informações ilustradas no referido gráfico. Nessa tabela, por fins de inteligibilidade, mantivemos somente as comparações de sexo dentro do mesmo estrato de disposição à política.
Disposição à política | Comparação por sexo | Mean Difference (I-J) | Std. Error | Sig. | 95% Confidence Interval | ||
Lower Bound | Upper Bound | ||||||
2002 | Baixa | Homem -Mulher | -,55431 | ,15779 | ,007 | -1,0176 | -,0910 |
Média | Homem -Mulher | ,35386 | ,23188 | 1,000 | -,3270 | 1,0347 | |
Alta | Homem - Mulher | ,18611 | ,24824 | 1,000 | -,5428 | ,9150 | |
2006 | Baixa | Homem - Mulher | -,11110 | ,11734 | 1,000 | -,4778 | ,2556 |
Média | Homem - Mulher | ,14967 | ,16640 | 1,000 | -,3703 | ,6696 | |
Alta | Homem - Mulher | ,00465 | ,21218 | 1,000 | -,6584 | ,6677 | |
Mandatário | Homem - Mulher | -,00871 | ,35473 | 1,000 | -1,1172 | 1,0997 | |
2010 | Baixa | Homem - Mulher | ,15789 | ,07798 | 1,000 | -,0857 | ,4015 |
Média | Homem - Mulher | ,36267 | ,12209 | ,083 | -,0188 | ,7442 | |
Alta | Homem - Mulher | ,23424 | ,17207 | 1,000 | -,3034 | ,7719 | |
Mandatário | Homem - Mulher | -,28625 | ,28837 | 1,000 | -1,1873 | ,6148 | |
2014 | Baixa | Homem - Mulher | ,35030 | ,06820 | ,000 | ,1372 | ,5634 |
Média | Homem - Mulher | ,51710 | ,10765 | ,000 | ,1808 | ,8535 | |
Alta | Homem - Mulher | ,68206 | ,18270 | ,005 | ,1112 | 1,2529 | |
Mandatário | Homem - Mulher | ,66634 | ,31785 | 1,000 | -,3268 | 1,6594 |
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados do tse do Brasil.
Os resultados apresentados no Gráfico 4 e na Tabela 3 mostram dois achados importantes. Primeiro, até 2010, somente em um caso as diferenças de médias da variável “sexo” foram significativas, quando comparadas dentro do mesmo estrato de disposição à política. É o caso da disposição baixa em 2002, quando a média de receitas de campanha das mulheres foi maior do que a dos homens. Em todos os demais casos, considerados os valores intraclasse, não existe diferença estatisticamente significativa entre as receitas de campanha de homens e mulheres.
A despeito das diferenças de sexo registradas no Gráfico 2, quando as duas variáveis estão trabalhadas em conjunto, as diferenças entre homens e mulheres tendem a se normalizar. Por exemplo, tanto em 2006 quanto em 2010, mulheres em posição de “mandatário” arrecadaram um valor mediano superior ao dinheiro arrecadado por candidatos homens. É verdade que, na maioria dos momentos, elas ainda estão nominalmente atrás, mas as distâncias das posições, consideradas intraclasse, são muito mais próximas do que se tomados apenas os valores para “sexo” de forma isolada.
Isso pode nos indicar que o marcador social de desigualdade na arrecadação de receitas de campanha não é “sexo”, mas a posição social, aferida a partir da ocupação profissional dos indivíduos.
O segundo achado é que esse cenário muda quase que radicalmente em 2014, quando apenas na categoria mandatário não ocorre diferença de arrecadação entre os sexos. Isto é, mesmo considerando os valores dentro do mesmo estrato de disposição à política, homens arrecadaram mais dinheiro do que mulheres nesse ano, nas categorias baixa, média e alta. Isso pode nos indicar que as diferenças de sexo na política brasileira, ao invés de estarem diminuindo -conforme seria o esperado em termos de avanço democrático-, estão se agravando.
Por fim, a Tabela 4 apresenta uma regressão linear (por meio do Método dos Mínimos Quadrados, OLS) para revelar o poder explicativo de nossas variáveis sobre a distribuição das receitas de campanha.
Para medir o real impacto de cada categoria do modelo de disposição à política, as variáveis foram transformadas em binárias. Logo, o resultado da variável binária refere-se a ela em relação a todas as demais. Para evitar redundância e colinearidade, a categoria mais baixa (baixa disposição à política) teve que ser omitida do modelo, sendo, portanto, base para as demais. A variável dependente é o índice de receitas em log.10
A tabela a seguir sintetiza os principais valores obtidos no resultado. Nos anexos, é possível encontrar o modelo completo, inclusive com os resultados para testes de colinearidade (nenhuma variável utilizada no modelo apresentou valor acima do permitido), (tabela 4).
β | Sig. | r | r2 | ||
2002 | (Constant) | ,000 | 0,291 | 0,084 | |
Sexo | -,017 | ,142 | |||
Disposição média | ,159 | ,000 | |||
Disposição alta | ,301 | ,000 | |||
2006 | (Constant) | ,000 | 0,438 | 0,192 | |
Sexo | -,004 | ,719 | |||
Disposição média | ,155 | ,000 | |||
Disposição alta | ,276 | ,000 | |||
Disposição mandatário | ,409 | ,000 | |||
2010 | (Constant) | ,000 | 0,444 | 0,197 | |
Sexo | -,072 | ,000 | |||
Disposição média | ,140 | ,000 | |||
Disposição alta | ,250 | ,000 | |||
Disposição mandatário | ,401 | ,000 | |||
2014 | (Constant) | ,000 | 0,489 | 0,239 | |
Sexo | -,166 | ,000 | |||
Disposição média | ,150 | ,000 | |||
Disposição alta | ,264 | ,000 | |||
Disposição mandatário | ,389 | ,000 | |||
Dependent Variable: Índice receitas (log) |
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados do TSE do Brasil.
Como resultado do modelo, percebemos -em consonância com o que havia sido indicado nos resultados do Gráfico 4 e na Tabela 3- que a variável “sexo” é pouco explicativa. Como já havíamos visto nas diferenças de médias, quando comparados homens e mulheres dentro da mesma “classe profissional”, a variação entre receita entre sexo é pequena.
Para os anos de 2002 e 2006, o sig indica que a variável sexo sequer deve ser considerada como preditora de alguma variação das receitas. Ou seja, não há relação, para esses anos, entre sexo e receitas. Para 2010 e 2014, a variável sexo é significativa. Em 2010, é aquela com resultado mais baixo de todas as trabalhadas, conforme se nota pelos valores indicados no β padronizado. Em 2014, contudo, seu valor torna-se mais significativo do que a “disposição média”, mas ainda menos explicativo do que as disposições alta e mandatário. As disposições para a política média, alta e “mandatário” seguem a mesma ordem crescente que já havíamos percebido no Gráfico 3, cada uma com maior poder explicativo do que a outra, o que demonstra que a lógica interna da construção do indicador procede.
Em termos de mudanças na série histórica, podemos notar o aumento crescente do coeficiente de determinação (r2). O r2 indica o quanto o conjunto de variáveis utilizada explica a variação das receitas de campanha. No caso, há um crescimento a cada ano, que atinge 0,239 em 2014. Significa dizer que 23,9% de toda a variação de receitas analisadas pode ser explicada pelo conjunto de variáveis utilizado. Um poder explicativo razoável, em termos de ciências sociais. Também significa que, com o passar dos anos (de 2002 a 2014), tornou-se mais importante, para acessar as redes de financiadores eleitorais, fazer parte das classes profissionais de alta disposição à política.
Conclusões
A título de conclusão, sistematizamos nossos achados a partir das hipóteses de pesquisa formuladas inicialmente.
Partimos da ideia de que há, nas disputas eleitorais nos estados brasileiros, concentração de receitas para campanhas eleitorais em determinados grupos sociais, identificados segundo as ocupações de origem dos competidores. Os testes mostraram que sim. Há uma transposição da hierarquia social (medida como “disposição” das diferentes profissões) para a hierarquia política, sendo esta uma espécie de expressão simbólica daquela. O modelo confirmou também algumas descobertas da literatura segundo as quais mandatários são competidores quase imbatíveis quando se trata de reunir dinheiro para disputar uma cadeira legislativa.
Em segundo lugar, confirmamos parcialmente para o universo da política estadual brasileira os achados para o mundo político nacional: parece haver um direcionamento das receitas de campanha que discrimina os postulantes por sexo, que prioriza candidatos homens em relação às mulheres. Contudo, isso precisa ser ponderado à luz dos resultados da terceira hipótese. A principal evidência sobre as distinções de sexo é que essa desigualdade aumenta com o tempo, a cada eleição, e aumenta em termos absolutos, em valores.
Por fim, uma terceira questão, essa mais ambiciosa, era se, entre esses dois fatores explicativos (profissão e sexo), haveria algum deles que seria mais preditivo sobre o comportamento da variável dependente (financiamento eleitoral). A hipótese inicial era que não, já que se esperaria que esses “marcadores sociais” atuassem cumulativamente, mesmo no universo estadual. Essa hipótese foi rejeitada.
O que encontramos foi que as diferenças de sexo, quando comparado no mesmo nível de ocupação profissional, caíram drasticamente, quando considerado o período entre 2002 e 2010 -esse cenário se altera em 2014, o que pode indicar um agravamento das distâncias sociais. A não cumulatividade foi demonstrada tanto nas diferenças de médias que cotejaram as duas variáveis concomitantemente quanto em um modelo de regressão linear. Quando disputam dentro do mesmo nível de hierarquia social, homens e mulheres obtêm valores em patamares equivalentes de financiamento eleitoral, quando não as mulheres superam os homens. Significa dizer que a variável de posição social é o grande marcador da distinção existente entre candidatos(as) e o fator explicativo de alguns terem acesso a redes de financiamento ao passo que outros não.
Logicamente, isso não implica dizer que esta é a única variável de distinção existente no cenário político-eleitoral. Como frisamos no começo, existem diversas naturezas de recursos eleitorais que podem ser mobilizados, assim como diversos âmbitos e naturezas de vantagens ou desvantagens que podem ser acumulados entre grupos sociais. Neste artigo, testamos duas variáveis. Neste caso, claramente as desigualdades não são cumulativas, uma vez que as desigualdades de sexo se dissipam dentro da mesma classe social. Os resultados também chamam a atenção para a importância de construir modelos analíticos abrangentes, que contemplem diversas variáveis, sob o risco de, caso contrário, se produzirem falsos positivos, isto é, resultados que afirmem, incorretamente, a existência de dada condição.
Robert Dahl formulou o argumento, que tomamos como hipótese neste artigo, que em uma sociedade pluralista, as desvantagens sociais não deveriam ser cumulativas entre distintos grupos sociais. Os resultados da análise estatística de dados sobre mais de 38 mil candidatos, em 27 unidades federativas, em quatro eleições, ao longo de 12 anos no Brasil, mostraram que o argumento pode ser considerado, ao menos parcialmente, verdadeiro para a sociedade brasileira. (tablela 5) (tablela 6) (tablela 7).
N | % dentro “Disposição” | % dentro “Sexo” | ||||
2002 | Disposição à política | Baixa | Masculino | 2886 | 86,3% | 49,4% |
Feminino | 460 | 13,7% | 54,1% | |||
Total | 3346 | 100,0% | 50,0% | |||
Média | Masculino | 1421 | 87,1% | 24,3% | ||
Feminino | 211 | 12,9% | 24,8% | |||
Total | 1632 | 100,0% | 24,4% | |||
Alta | Masculino | 1535 | 89,6% | 26,3% | ||
Feminino | 179 | 10,4% | 21,1% | |||
Total | 1714 | 100,0% | 25,6% | |||
Total | Masculino | 5842 | 87,3% | 100,0% | ||
Feminino | 850 | 12,7% | 100,0% | |||
Total | 6692 | 100,0% | 100,0% | |||
2006 | Disposição à política | Baixa | Masculino | 3356 | 84,5% | 46,1% |
Feminino | 616 | 15,5% | 53,2% | |||
Total | 3972 | 100,0% | 47,1% | |||
Média | Masculino | 1969 | 86,9% | 27,1% | ||
Feminino | 298 | 13,1% | 25,8% | |||
Total | 2267 | 100,0% | 26,9% | |||
Alta | Masculino | 1437 | 88,9% | 19,7% | ||
Feminino | 179 | 11,1% | 15,5% | |||
Total | 1616 | 100,0% | 19,2% | |||
Mandatário | Masculino | 517 | 89,0% | 7,1% | ||
Feminino | 64 | 11,0% | 5,5% | |||
Total | 581 | 100,0% | 6,9% | |||
Total | Masculino | 7279 | 86,3% | 100,0% | ||
Feminino | 1157 | 13,7% | 100,0% | |||
Total | 8436 | 100,0% | 100,0% | |||
2010 | Disposição à política | Baixa | Masculino | 4342 | 78,8% | 50,9% |
Feminino | 1169 | 21,2% | 61,0% | |||
Total | 5511 | 100,0% | 52,8% | |||
Média | Masculino | 2300 | 83,7% | 27,0% | ||
Feminino | 449 | 16,3% | 23,4% | |||
Total | 2749 | 100,0% | 26,3% | |||
Alta | Masculino | 1348 | 86,0% | 15,8% | ||
Feminino | 220 | 14,0% | 11,5% | |||
Total | 1568 | 100,0% | 15,0% | |||
Mandatário | Masculino | 537 | 87,5% | 6,3% | ||
Feminino | 77 | 12,5% | 4,0% | |||
Total | 614 | 100,0% | 5,9% | |||
Total | Masculino | 8527 | 81,7% | 100,0% | ||
Feminino | 1915 | 18,3% | 100,0% | |||
Total | 10442 | 100,0% | 100,0% | |||
2014 | Disposição à política | Baixa | Masculino | 4376 | 65,0% | 47,4% |
Feminino | 2352 | 35,0% | 67,8% | |||
Total | 6728 | 100,0% | 52,9% | |||
Média | Masculino | 2806 | 78,1% | 30,4% | ||
Feminino | 786 | 21,9% | 22,7% | |||
Total | 3592 | 100,0% | 28,3% | |||
Alta | Masculino | 1518 | 86,0% | 16,4% | ||
Feminino | 248 | 14,0% | 7,2% | |||
Total | 1766 | 100,0% | 13,9% | |||
Mandatário | Masculino | 540 | 87,0% | 5,8% | ||
Feminino | 81 | 13,0% | 2,3% | |||
Total | 621 | 100,0% | 4,9% | |||
Total | Masculino | 9240 | 72,7% | 100,0% | ||
Feminino | 3467 | 27,3% | 100,0% | |||
Total | 12707 | 100,0% | 100,0% |
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados do TSE do Brasil.
Média | Mediana | Desvio padrão | ||||||||
Masc. | Fem. | Total | Masc. | Fem. | Total | Masc. | Fem. | Total | ||
2002 | Baixa | 1,20 | 1,76 | 1,28 | 0,25 | 0,27 | 0,26 | 2,53 | 3,95 | 2,78 |
Média | 1,93 | 1,58 | 1,89 | 0,68 | 0,45 | 0,64 | 3,43 | 3,02 | 3,38 | |
Alta | 2,60 | 2,41 | 2,58 | 1,43 | 1,15 | 1,40 | 3,54 | 3,79 | 3,57 | |
Total | 1,75 | 1,85 | 1,76 | 0,53 | 0,45 | 0,53 | 3,11 | 3,72 | 3,19 | |
2006 | Baixa | 0,74 | 0,85 | 0,76 | 0,12 | 0,12 | 0,12 | 1,91 | 2,28 | 1,97 |
Média | 1,42 | 1,27 | 1,40 | 0,29 | 0,27 | 0,29 | 2,99 | 2,58 | 2,94 | |
Alta | 1,76 | 1,75 | 1,76 | 0,73 | 0,49 | 0,70 | 2,89 | 3,32 | 2,94 | |
Mandatário | 5,35 | 5,36 | 5,35 | 4,09 | 4,14 | 4,12 | 4,47 | 4,33 | 4,45 | |
Total | 1,45 | 1,35 | 1,44 | 0,29 | 0,24 | 0,28 | 2,91 | 2,87 | 2,91 | |
2010 | Baixa | 0,69 | 0,54 | 0,66 | 0,11 | 0,08 | 0,10 | 1,97 | 1,45 | 1,88 |
Média | 1,21 | 0,85 | 1,15 | 0,24 | 0,14 | 0,22 | 2,44 | 2,03 | 2,38 | |
Alta | 1,57 | 1,33 | 1,53 | 0,71 | 0,36 | 0,65 | 2,37 | 2,69 | 2,42 | |
Mandatário | 5,60 | 5,89 | 5,63 | 4,16 | 4,79 | 4,24 | 4,87 | 4,77 | 4,85 | |
Total | 1,28 | 0,91 | 1,21 | 0,22 | 0,12 | 0,19 | 2,71 | 2,25 | 2,63 | |
2014 | Baixa | 0,67 | 0,32 | 0,55 | 0,10 | 0,05 | 0,08 | 1,99 | 1,39 | 1,81 |
Média | 1,31 | 0,79 | 1,19 | 0,25 | 0,08 | 0,19 | 3,08 | 2,33 | 2,94 | |
Alta | 1,86 | 1,18 | 1,76 | 0,75 | 0,26 | 0,70 | 2,85 | 2,50 | 2,82 | |
Mandatário | 6,85 | 6,18 | 6,76 | 5,29 | 4,56 | 5,18 | 6,34 | 5,01 | 6,19 | |
Total | 1,42 | 0,63 | 1,20 | 0,22 | 0,07 | 0,15 | 3,23 | 2,09 | 2,99 |
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados do tse do Brasil.
Coeficientes não padronizados | Coeficientes padronizados | t | Sig. | Colinearidade | |||||
B | Erro Pad. | Beta | Tolerância | VIF | |||||
2002 | (Constant) | -1,278 | ,090 | -14,207 | ,000 | ||||
Sexo | -,054 | ,037 | -,017 | -1,467 | ,142 | ,998 | 1,002 | ||
Disposição média | ,765 | ,060 | ,159 | 12,731 | ,000 | ,888 | 1,126 | ||
Disposição alta | 1,419 | ,059 | ,301 | 24,048 | ,000 | ,887 | 1,128 | ||
2006 | (Constant) | -1,976 | ,075 | -26,196 | ,000 | ||||
Sexo | -,011 | ,030 | -,004 | -,360 | ,719 | ,997 | 1,003 | ||
Disposição média | ,736 | ,050 | ,155 | 14,786 | ,000 | ,870 | 1,150 | ||
Disposição alta | 1,473 | ,056 | ,276 | 26,381 | ,000 | ,877 | 1,140 | ||
Disposição mandatário | 3,391 | ,084 | ,409 | 40,384 | 0,000 | ,936 | 1,068 | ||
2010 | (Constant) | -1,741 | ,064 | -27,144 | ,000 | ||||
Sexo | -,197 | ,024 | -,072 | -8,133 | ,000 | ,993 | 1,007 | ||
Disposição média | ,676 | ,045 | ,140 | 15,134 | ,000 | ,903 | 1,107 | ||
Disposição alta | 1,489 | ,055 | ,250 | 27,184 | ,000 | ,912 | 1,096 | ||
Disposição mandatário | 3,633 | ,081 | ,401 | 44,654 | 0,000 | ,953 | 1,049 | ||
2014 | (Constant) | -1,348 | ,056 | -24,168 | ,000 | ||||
Sexo | -,398 | ,019 | -,166 | -21,068 | ,000 | ,963 | 1,039 | ||
Disposição média | ,712 | ,039 | ,150 | 18,383 | ,000 | ,894 | 1,118 | ||
Disposição alta | 1,626 | ,050 | ,264 | 32,306 | ,000 | ,897 | 1,114 | ||
Disposição mandatário | 3,845 | ,078 | ,389 | 49,019 | 0,000 | ,952 | 1,051 | ||
Variável dependente: Índice receitas (log) |
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados do TSE do Brasil.