1. Introdução
O livro é uma leitura primorosa para se pensar a relação da universidade com a sociedade e os movimentos sociais do/no campo/cidade! A principal contribuição é tentar aliar as pesquisas com ações de projetos de extensão realizados, demonstrando um pensamento profundo que se propõe à reflexão acadêmica que busca implementar ações sociais.
É um trabalho de fôlego (teórico/bibliográfico) que traz importantes aportes conceituais para se pensar a práxis nos territórios-lugares. Sintetiza questões teóricas amplas para a construção de um desenvolvimento territorial que contemple a construção de uma consciência de lugar-território.
Na introdução, há um resgate de elementos teóricos da geografia voltados à compreensão do território e de sua produção. O objetivo é refletir sobre as questões de poder e a importância dos conhecimentos/saberes científicos/ populares para o pensamento consciente, a ação, (re)criação, (re)construção e (re)invenção de contra-hegemonias, liberdades, autonomias populares face aos processos de subordinação, espoliação, exploração investidos pelo capital sobre as classes trabalhadoras e os homens simples vistos nos territórios latino-americanos.
O capítulo 1, A formação histórica, dependente e exploradora da América Latina mostra a formação histórica de sistemas de produção que escravizam (indígenas, negros). Enfatiza o modelo agroexportador/importador dependente da América Latina em relação aos centros colonizadores. Pari passu ao modelo de concentração fundiária, aponta à desintegração e/ou subordinação das comunidades indígenas e da sociedade rural face ao avanço do modelo do agronegócio, com acentuada concentração da riqueza. E face ao êxodo rural, que evidencia nos países da América Latina uma acentuada pobreza urbana.
No capítulo 2, É possível a construção de um paradigma latino-americano contra-hegemônico a partir dos pensamentos indo-americanos e africano? O autor traz argumentos para a afirmação inicial. Aponta à necessidade de uma nova epistemologia voltada à pluriversidade (aceitação das alteridades culturais, econômicas, políticas, produtivas), valorizando os saberes, territórios, lugares indígenas e africanos. E enfatiza a não dicotomização das relações homens-natureza-comunidade-mitos-ritos etc., como elemento chave para um pensar embasado numa práxis efetiva.
No capítulo 3, O território/territorialidade, a reciprocidade e a práxis, o autor afirma que para agir há que se ter consciência do território-lugar: consciência de si na relação com o "outro". Pertencimento, valorização, sinergia, cooperação, solidariedade são termos fundamentais. E a consciência do lugar-território é vista como ponto crucial para uma práxis territorial que é sempre fruto de um processo de "co-construção": intercâmbio de experiências que implementam ações coletivas socialmente ancoradas. Para trilhar uma "auto-organização/governança" do território, há a necessidade de (in)formações que instaurem pensamentos e práticas para além do abstrato. Daí a importância de pautar um pensamento atido às relações concretas referentes a: contexto histórico, atributos naturais, sociais, culturais, afetividades, etc., propiciando o diálogo (entre os sujeitos territoriais) capaz de criar a "consciência do lugar-território". O desenvolvimento (melhorias das condições de vida do povo) daí brotará guiado pela partilha territorial, processo que pode tornar as pessoas mais felizes.
No capítulo 4, Aprendizados camponês agroecológico, artesanal e urbano numa temporalidade lenta, o desenvolvimento territorial e a construção da contra-hegemonia exigem aprendizados coletivos e historicamente produzidos, vivenciados, compartilhados. Exemplificando, evidencia como projetos vinculados à agroecologia foram desafiadores à atuação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) na busca de ancoragens para Pesquisa/Pensamento + Ação. Um ponto primordial foi a aprendizagem conjunta com entidades/movimentos sociais no que tange à reflexão/ação acerca de conteúdos urbanos e rurais buscando instaurar uma práxis/prácticas (rurais/urbanas) agroecológicas voltadas à melhoria das condições de vida das populações com vistas a construir resistências, desenvolvimento e ações que façam frente aos avanços perversos do agronegócio e de políticas excludentes às necessidades do povo. O autor exemplifica a partir da atuação em projetos de extensão universitária da UNIOESTE: "Projeto Vida na Roça" e "Projeto Vida no Bairro" ensaiaram um pensamento/ação de descolonização, de consciência de classe e de lugar, buscando o desenvolvimento territorial.
No capítulo 5, A descolonização e a práxis territorial e contra-hegemônica no desenvolvimento, Saquet aponta que a descolonização exige a desmistificação da opressão e dos pensamentos e a instauração de epistemologias e outras que pensem para além de eurocentrismos e esquemas conceituais monolíticos. Destaca a necessidade da valorização de saberes dos povos (indígenas, afros; camponeses etc.), cujos patrimônios culturais e de saberes tecem epistemologias descoloniais, de fronteira, que instauram práticas de partilha de conhecimentos horizontalmente dialogados. Instauram saberes que potencializam respostas a problemas do desenvolvimento e da gestão territorial imbuídos da consciência de classe/lugar. Para serem transformadoras as universidades precisam se abrir à produção coletiva de: conhecimentos (junto com o povo), já que tal prática abre possibilidades de emancipação do povo; práticas agroecológicas/ ambientais; e de valorização dos heterogêneos multiversos vistos nos estilos de desenvolvimento territorial na América Latina.
2. Dialogando com o autor do livro
Além da pobreza urbana (cap. 1), o autor poderia abordar também a pobreza rural e o papel de espoliação que o camponês experimenta como sustentáculo de um sistema de acumulação (exportador). Pois ao camponês é legada a produção de alimentos baratos para o consumo dos trabalhadores. Tal papel é utilizado para sustentar o sistema do agro e da indústria. E, nessa condição, aufere poucos rendimentos para sua reprodução.
Houve um esforço argumentativo (bibliográfico), no cap. 2, para mostrar sua tese: ser possível a construção de um paradigma latino-americano contra-hegemônico indo-americano/africano. Abordou elementos importantes. Mas a mim pareceu que a pesquisa deverá continuar a buscar mais elementos que tragam substância à tese abraçada - que deve ser aprofundada em novas pesquisas. Em nossa percepção, este capítulo entronizou uma tese que Saquet está convicto a explorar/evidenciar/aprimorar em futuras pesquisas.
Em relação à diversidade de grupos indígenas (na América Latina), talvez possa buscar dados quantitativos sobre a quantidade de povos/línguas/ etnias etc., estão aí presentes. No livro: "Geografia das lutas no campo", por exemplo, Oliveira (2005) traz alguns dados (embora desatualizados) sobre os indígenas brasileiros.
O capítulo 3 é fantástico! Aprendi muito com ele! A reflexão que propicia sobre o tema (a partir dos autores trabalhados) é uma enorme contribuição para pensar a temática! Para mim, um capítulo irretocável!
Os capítulos 4 e 5 trazem de forma sintética o que eu chamaria de debate teórico e prático sobre a necessidade de descolonização do pensamento e a valorização de epistemologias vinculadas aos saberes populares. E sugere o importante papel das universidades nesse processo. Tal sugestão dá vistas à necessidade de repensarmos a "elitização histórica das universidades brasileiras". Tal questão é tocada no livro em alguns momentos. Mas a discussão da importância da relação universidade/sociedade em termos da amarração ensino, pesquisa, extensão: eis um ponto a se valorizar e realçar mais em próximos trabalhos evidenciando com mais ênfase a importância da extensão universitária (a partir do holismo ensino/pesquisa/extensão) como um ponto fundamental para que as universidades contribuam para uma práxis socioespacial. Para que nossas geografias e as ciências em geral possam ajudar a avivar a construção de práticas (pensar + agir), ativando consciências de classe/lugar/território transformadoras dos espaços de nossos campos e cidades. Tal ideia até é contemplada, mas fica diluída no livro.
Assim, o autor poderia ressaltar mais a importância das universidades (conjuntamente com os movimentos sociais/entidades, etc.) na produção de contra-hegemonias, à guisa de Paulo Freire (1981; 1983; 1989) que anota a importância da leitura de livros, mas de mãos dadas com a leitura da realidade; a importância da cultura na pesquisa/ação; e, sobretudo, "a importância da extensão universitária", amiúde considerada coisa de somenos importância no bojo das políticas universitárias. Como vemos, as universidades brasileiras têm sido historicamente afetadas por um espírito de elitização que não estimula abraçarmos a visão de que a academia deve estar antenada e conectada com uma práxis voltada às necessidades dos povos indígenas, quilombolas, desempregados, favelados etc. Sugeriríamos que tal temática mereceria até mesmo um capítulo sobre o tema.
Indo adiante em nossa análise, além da importância da razão (homo sapiens) e do homem que fabrica (homo faber) visto às páginas 62-3, Saquet também poderia trazer à luz em próximas produções a questão do homo luddens, à moda de Huizinga (2000): a dimensão do homem que brinca, joga, dança, faz poesia, canta, goza da presença do outro; aprende e ensina brincando. Eis a geografia da festa e o elemento da emoção abordado por Silva (2018); pois a emoção produz a alma de um território-lugar: evoca pensamento/reflexão. As místicas que a Assesoar (Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural) de Francisco Beltrão (PR) faz em suas práticas, por exemplo, não deixam de integrar no pensamento sobre a sociedade o seu lado emotivo, festivo das coisas. O conceito de emorazão que Milton Santos (2006) extrai de outros filósofos em seu livro "A natureza do espaço" ajudaria a construir essa ideia!
Nesse sentido, poderia lembrar das artes (música/poesia/literatura, etc.) como elementos de alienação das ideias/percepções. As artes podem propiciar acobertamentos das realidades: a exemplo dos monumentos urbanos que ocultam relações de poder/dominação, etc., como ensina Pierre, Nora (2008) sobre os "lugares de memória". Outros autores que ajudam em tal discussão: Lukács, Gyõrg (2010); Benjamin, Walter (1994); e Dal Lago, Giordano (2014).
Uma questão fundamental para o debate da descolonização das mentes/ percepções é que as artes também agem como agregadoras de consciência voltada à liberdade e autonomia do pensar (Schiller, 2002).
Já que faz um resgate histórico interessante, poderia enfatizar (na história dos povos) a importância da dominação simbólica: "a dominação das memórias coletivas" (rurais ou urbanas), à guisa dos ensinamentos de Halbwachs (1990) e Ecléa Bosi (1987; 2003).
Tal observação é importante porque em vários momentos, em capítulos diferentes, o autor faz alusão à importância da memória no processo de desenvolvimento territorial. E, tanto quanto os livros, que patrocinam os "universalismos abstratos" mencionados por Saquet, a dominação das memórias reproduz a ocultação das lutas e levantes populares nos campos e cidades: os monumentos oficiais celebrativos ocultam as realidades históricas inscritas nas territorialidades humanas: lutas populares, sofrimentos, modos de viver, fazer, brincar, etc... (Flávio, 2011). Minha observação é de que não há como descolonizar as mentes sem passar pela "descolonização das memórias coletivas".
Ligado ao ponto anterior, vale a pena enfatizar que para pensar uma práxis territorial precisamos refundar nossa cultura - ou o "movimento de (in)formação político e cultural" asseverado pelo autor (p. 63), a fim de engendrarmos uma cultura de resistência. Renovação cultural significa, portanto, lutarmos tanto pela renovação das ideias quanto pela renovação dos objetos geográficos que produzem representações (monumentos e artes urbanas em geral -grafite, etc.).
Para finalizar nossas considerações, abraçamos uma geografia tecida com poesia (ver Flávio, 2019). E apresentamos, abaixo, alguns poemas por nós elaborados em diálogo com os temas abordados por Marcos Saquet. Mas num diálogo tecido sob a forma de poesia:
Transformar o território-lugar
Proximidade, enraizamento,
amizade, pertencimento,
identidade, solidariedade,
cooperação, auto-organização
comunhão de conhecimentos...
Eis os elementos principais
que permitem refundar
e traçar a resistência
em que as comunidades
do campo e da cidade
são capazes de refundar
uma práxis territorial
para vir a transformar
um território-lugar...
Nele, as comunidades
vão buscar as ancoragens
que permitem revigorar
as paisagens do lugar...
As ações para refundar
as feições de um lugar
se valem então, afinal,
de mapear, nos lugares,
os elementos essenciais
sociais e naturais
que ancoram e empalmam
a alma de um território
e que podem transformar
as paisagens do lugar...
Partilha do território
Não há desenvolvimento
se os habitantes do lugar
não ganharem a consciência
de que o território habitado
por eles e seus iguais
seja algo partilhado
por pessoas, pelo Estado,
por empresas e outros mais...
Não há desenvolvimento
sem o visto acolhimento
do que atiça, a todo tempo,
igualdade e justiça
tecendo, no dia a dia,
geografias que partilham,
pelos campos e cidades,
o que traz amor e paz.
Não há desenvolvimento
se os habitantes do lugar
só vivem entristecidos
por não serem reconhecidos
como gente importante,
e valorizada, portanto,
por umas tantas políticas
dessas que se implantam
no campo ou na cidade
de modo a contemplar
uma vida em que vigora
e se elabora com alegria
a partilha do território...
Geografias do gosto
Cada homem traz um gosto
por comidas e por pratos
ligados à identidade
do espaço-geografia
do campo ou da cidade
onde um dia sua vida
e suas comidas gostadas
foram no tempo produzidas
sob o acento de cores,
saberes e sabores
cultivados pelo povo
para servirem aos homens
e matarem sua fome,
além de lhe oferecer
boa fonte de prazer...
As geografias do gosto
nos lugares espraiadas
traduzem também, na vida,
a força, a guarida
e o gosto por geografias
onde as nossas comidas,
muitas delas preferidas,
foram um dia criadas,
produzidas, consumidas,
ensinadas e reinventadas...
A via da agroecologia
A agroecologia
é devota do divórcio
da vida que se faz sócia
do que é o modo de ser
e viver do agronegócio...
Enquanto o agronegócio
se apossa de mais-valias
e gosta de fazer fartura
em monoculturas doentias,
carregadas de agrotóxicos,
a bendita agroecologia
é devota de outra via...
A da vida, lá na roça,
que se recria e se remoça
na boa solidariedade
que cultiva a alegria
e dá vivas a toda vida
que abriga a diversidade...
A boa agroecologia
recusa a monocultura,
esegue a via da cultura
a qual planta geografias
que dão cores e sinergia
ao cultivo do agricultor
para que este cultive
o amor e o valor
bem ligado ao que ativa
uma roça bem sadia...
Assim, a agroecologia
cultiva no agricultor
o valor que mais se guia
cativo pelo amor
à cor da polissemia
que nos dá comida boa,
pois se entoa sadia...
Desenvolvimento e lugar
O desenvolvimento tão falado,
por muitos desejado,
podemos o alcançar
se bem nos atentarmos
e então considerar
Natureza e sociedade,
nos reinos de cada lugar,
apeiam rugosidades
e elementos combinados
que são sempre diferentes...
É com estes elementos
num espaço e tempo dados,
com suas possibilidades,
que poderemos aproveitar
para darmos os assentos
do desenvolvimento desejado
que podemos engendrar
com uma práxis lapidar
em um território-lugar...
Ler a "palavramundo"
Ler não é só compreender
palavras ou livros.
É decodificar de modo fecundo
vindo a interpretar por inteiro,
a “palavramundo”,
qual ensinou Paulo Freire...
A “palavramundo”, a ser ensinada,
envolve abraçar a solidariedade,
na vida, nas escolas e universidades,
entre linguagens e realidade.
Ambas, linguagens e realidade
devem então se darem as mãos
para instigarem um abraço
à compreensão dos espaços,
revelados estes nas configurações
das paisagens de lugares
territórios e regiões...