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Opinión Jurídica

Print version ISSN 1692-2530On-line version ISSN 2248-4078

Opin. jurid. vol.21 no.45 Medellín July/Dec. 2022  Epub June 15, 2024

https://doi.org/10.22395/ojum.v21n45a22 

Artículos

Populismos atuais e Sul Global: uma amostra dos seus impactos em Brasil, Venezuela e México

Current Populisms and Global South: a Display of its Repercussions in Brazil, Venezuela and Mexico

Populismos actuales y sur global: una muestra de sus repercusiones en Brasil, Venezuela y México

Luiz Guilherme Arcaro Conci1 
http://orcid.org/0000-0001-8502-8990

Heloise de Carvalho Campos2 
http://orcid.org/0000-0002-1487-2059

1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil; Facultad de Derecho de San Bernardo del Campo, Autarquía Municipal São Paulo, Brasil lgaconci@hotmail.com ; lgaconci@pucsp.br https://orcid.org/0000-0001-8502-8990

2 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil heloise.campos@outlook.com https://orcid.org/0000-0002-1487-2059


RESUMO

O presente artigo tem a finalidade de analisar o fenômeno dos populismos com interesse específico na cena latino-americana. Para isso, propõe-se uma atualização de termos e conceitos elaborados pela literatura e de um possível uso analítico para refletir acerca de situações concretas consideradas populistas nessa região. Desse modo, este trabalho analisa a nova ordem de populistas do século XXI em três países da América Latina: Venezuela, Brasil e México, visando verificar seus pontos de contato, semelhanças e diferenças. O estudo foi desenvolvido recorrendo à metodologia qualitativa e descritiva, contemplando revisão bibliográfica e análise empírica. A relevância do tema se justifica pela importância de entender o que vem acontecendo com as democracias em processo de estabilização, especialmente através de um olhar que parte do Sul Global. Como resultado, foi possível concluir que, nos últimos anos, a ascensão da onda populista vem contribuindo para a recessão democrática, de maneira que o populismo voltou a se apresentar - reformulado - na América Latina. O que se tem demonstrado é que os populismos, uma vez instalados no poder, têm um grande potencial para abalar de forma significativa as estruturas democráticas, dificultando a consolidação das democracias constitucionais na região.

Palavras-chave: populistas; democracia; crise democrática; América Latina; autoritarismo; instituições políticas

ABSTRACT

This article aims to analyze the phenomenon of populisms with a specific interest in the Latin American scene. For this, the research proposes an update of terms and concepts developed by the literature and a possible analytical use to reflect on concrete situations considered populist in this region. In this way, this work analyzes the new order of populists of the 21st century in three Latin American countries: Venezuela, Brazil, and Mexico, aiming to verify their points of contact, similarities, and differences. The study was developed using qualitative and descriptive methodology, contemplating literature review and empirical analysis. The relevance of the topic is justified by the importance of understanding what has been happening with democracies in process of stabilization, especially through a perspective that comes from the Global South. As a result, it was possible to conclude that, in recent years, the rise of the populist wave has contributed to the democratic recession, so that populism has returned -reformulated- in Latin America. What has been shown is that populisms, once installed in power, have great potential to significantly undermine democratic structures, making it difficult to consolidate constitutional democracies in the region.

Keywords: populists; democracy; democratic crisis; Latin America; authoritarianism; political institutions

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar el fenómeno de los populismos con un interés específico en el escenario latinoamericano. Para ello, se propone una actualización de términos y conceptos desarrollados por la literatura y un posible uso analítico para reflexionar sobre situaciones concretas consideradas populistas en esta región. De esta forma, este trabajo analiza el nuevo orden de los populistas del siglo XXI en tres países latinoamericanos: Venezuela, Brasil y México, con el objetivo de verificar sus puntos de contacto, similitudes y diferencias. El estudio se desarrolló utilizando metodología cualitativa y descriptiva, contemplando revisión de literatura y análisis empírico. La relevancia del tema se justifica por la importancia de comprender lo que ha venido ocurriendo con las democracias en proceso de estabilización, especialmente desde una perspectiva que proviene del Sur Global. Como resultado, fue posible concluir que, en los últimos años, el crecimiento de la ola populista ha contribuido a la recesión democrática, por lo que el populismo ha regresado - reformulado - en América Latina. Lo que se ha mostrado es que los populismos, una vez instalados en el poder, tienen un gran potencial para socavar significativamente las estructuras democráticas, dificultando la consolidación de democracias constitucionales en la región.

Palabras clave: populistas; la democracia; crisis democrática; América Latina; autoritarismo; instituciones políticas

INTRODUÇÃO

O presente artigo é uma adaptação do texto publicado em Conci, L. G. A., & de Carvalho Campos, H. Populismos atuais e sul global: uma amostra dos seus impactos em Brasil, Venezuela e México. Crise das Democracias Liberais, 56, promovido pelo Grupo de Pesquisas sobre Direitos Fundamentais (GPDF - CNPq/ PUC-SP) e pelo Programa de Pós-Graduação em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais (PEPG GGFPI), publicado com incentivo do Plano de Incentivo à Pesquisa - PUC SP (PIPEq). A obra foi coordenada por Luiz Guilherme Arcaro Conci, que também participou como coautor em conjunto com Heloise de Carvalho Campos.

As últimas décadas vêm sendo marcadas por importantes transformações nos sistemas políticos e partidários não apenas no Brasil, mas em diversas partes do mundo. A crise de representação política, marcada pela "ruptura" entre governantes e governados é um dos principais sintomas desse quadro (Castells, 2018). Desde o fim da Primavera Árabe, um aprofundamento do processo de recessão das democracias passou a ser observado no cenário mundial (Levitsky e Ziblatt, 2018) e, simultaneamente a esse processo, uma nova onda de movimentos e líderes populistas começou a ganhar força, especialmente, a partir dos desdobramentos ocasionados pela crise financeira global de 2008 (Tormey, 2019).

Tal processo poderia ser descrito de diversos modos e a partir de diferentes visões. No caso do presente artigo, apostamos que é necessário pensá-lo a partir do Sul Global e do seu próprio conjunto referencial, mantendo certa distância do respectivo referencial eurocêntrico. Isso não significa, contudo, descartar essa extensa tradição crítica, "ignorando de ese modo las posibilidades históricas de la emancipación social en la modernidad eurocéntrica" (Santos, 2018, p. 25), mas, sim, acrescentá-la ao contexto regional que adotamos como espaço do pensar. Concordamos que é necessário que "experiencias, productos, históricamente discontinuos, distintos, distantes y heterogéneos puedan articularse juntos, no obstante sus incongruencias y sus conflictos, en la trama común que los urde en una estructura conjunta" (Quijano, 2000, p. 348).

A escolha por essa lente epistemológica tem relação direta com a aproximação histórica do surgimento dos populismos modernos, que nos leva a perceber que a América Latina representa peça chave no seu desenvolvimento (De La Torre, 2017) que, depois, passou a se estabelecer no cenário mundial, principalmente, no contexto das democracias firmadas a partir do fim da Segunda Guerra Mundial (Finchelstein, 2019). O peronismo argentino, que se instaurou a partir de 1946, é apontado como o primeiro exemplar de regime populista moderno, e Juan Domingo Perón, como o líder populista que faz esta transição do fascismo ao populismo de modo inaugural. Além do caso argentino, o varguismo no Brasil e o gaitanismo colombiano são outros exemplos do pioneirismo latino-americano no contexto dos populismos. Para Finchelstein (2019), o populismo nesse período surgiu como uma reformulação do fascismo no pós-guerra, quando formas autoritárias de governo passaram a ser fortemente hostilizadas na sociedade. Assim, os populistas do pós-guerra precisavam fundar sua legitimidade através da escolha popular e democrática, pressupondo, assim, uma democracia eleitoral. Contudo, uma vez no poder através do voto, as tendências autoritárias desses líderes passavam a se evidenciar.

Em função desse quadro, que revela a relevância da América Latina na história dos populismos, nossa abordagem tem o intuito de dar espaço para tradições epistemológicas marginalizadas e até suprimidas pela tradição Ocidental (Santos, 2018), dentro de um esforço de repensar alguns pontos de partida tidos como incontestáveis (dogmas).

Partindo desta premissa, este trabalho foi desenvolvido com base na metodologia qualitativa e descritiva, compreendendo revisão bibliográfica e análise empírica. O método de estudos de casos foi aplicado, visando analisar e comparar contextos que se enquadram dentro do fenômeno do populismo na América Latina.

Neste sentido, nossa pesquisa está focada nos casos brasileiro, com Jair Bolsonaro; mexicano, com Andrés Manuel López Obrador (AMLO); e venezuelano, com Hugo Chávez e Nicolás Maduro. A escolha de tais países tem algumas razões. A primeira é que são os grandes países da região, a deter um grau de liderança regional patente (Serbin, 2008, pp. 136-137), todos eles governados por líderes populistas. A segunda delas visa mostrar que tais populismos, como ocorrido anteriormente, podem ter suas ideologias mais à direita (Bolsonaro) ou à esquerda (Chávez, Maduro e AMLO). E a terceira, e última, diz respeito ao personalismo que tais líderes desempenham em seus respectivos espaços políticos e os impactos que podem produzir nas instituições. Ainda, a escolha nos afasta de uma tendência recentemente ampliada que se volta a olhar tais fenômenos no norte global, especialmente nos EUA, com Trump, e na Europa.

Se nos seus primórdios o populismo deixou marcas pelo viés autoritário, a maré populista dos últimos anos não vem sendo diferente. Países localizados em diferentes regiões do mundo vêm vivendo ataques antidemocráticos capazes de abalar significativamente as estruturas das democracias liberais. Ao lado de países como os Estados Unidos, sob a liderança de Donald Trump, a Hungria de Viktor Órban, a Turquia comandada por Recip Erdogan, entre outros numerosos exemplos, o Sul Global também vem sendo alvo de artimanhas populistas. Mais especificamente na América Latina, este movimento volta a ganhar força mais recentemente. A região, celeiro dos populismos modernos, continua a produzir líderes com tal perfil político e ganha espaço a dificuldade de se aprofundar e manter democracias saudáveis, no plano regional, que resistam ao meio populista de fazer política.

A partir do panorama delineado, este artigo tem como objetivo central olhar para o fenômeno populista no contexto sul-americano, buscando explorar as formas variadas com que se expressa e refletir sobre seus impactos nos sistemas democráticos da região. Para isso, antes de proceder à análise dos casos específicos, propõe-se uma aproximação conceitual que visa atualizar os conceitos de populismo desenvolvidos pela literatura, com o intuito de facilitar a identificação do fenômeno político em diferentes contextos. A relevância do tema se justifica pela importância de se entender mais detidamente o que vem acontecendo com as democracias instituídas, especialmente através de um olhar que parte do Sul Global, de modo que entender as relações entre os populismos e as crises das democracias se torna tarefa inadiável.

1. CONCEITO DE POPULISMO

Do ponto de vista conceitual, o populismo representa um termo bastante fluido. Às vezes é definido como uma ideologia, um discurso, uma lógica ou um estilo particularmente performático de fazer política (Tormey, 2019; Moffitt e Tormey, 2014, p. 382). Por ser utilizado em contextos muito diversos e, ainda, por ter ganhado uma conotação negativa ao longo dos anos1, de modo que os populistas não costumam se identificar como tais, delinear uma definição precisa para o populismo revela-se um esforço complexo. Todavia, o fenômeno não desaparece e se percebe uma identidade de ações e narrativas que não podem ser descartados. O que se pode dizer com segurança é que existe uma multifacetada natureza para o fenômeno que aponta para uma desestabilização das democracias existentes (Moffitt e Tormey, 2014, p. 382).

O fenômeno populista é um "pêndulo ideológico" (Finchelstein, 2019, p. 42). Assim como outros "ismos" (como o totalitarismo, por exemplo) o populismo não tem ideologia definida, ou seja, ele pode estar atrelado a qualquer posição do espectro político, desde a extrema direita até a extrema esquerda. O resultado desse fato é que o populismo pode aparecer em variadas formas e em diferentes contextos, representando outro fator que contribui para a dificuldade em se dar uma definição exata para o termo. Cas Mudde (2017), ao definir o populismo como uma forma de ideologia "rasa", contribui para o entendimento das diversas roupagens assumidas por esse fenômeno, já que este se apresenta combinado com outros elementos políticos e ideológicos. Mas Moffitt e Tormey são muito felizes, também, ao focar nos elementos performativos e relacionais do estilo político, que se define como "repertórios de performance que são usados para criar relações políticas" (2014, p. 387).

Apesar disso, existe uma série de características, um núcleo central, que representa uma espécie de denominador comum presente na grande maioria dos fenômenos populistas cuja identificação pode contribuir na compreensão conceitual do termo com que estamos lidando.

Em primeiro lugar, a centralidade da ideia de povo é característica marcante dos populismos. O povo, nesses contextos, é formado por uma massa homogênea que ganha forma quando levamos em conta outro grupo importante nos populismos: a elite (Mudde e Kaltwasser, 2017; Tormey, 2019). Esses dois grupos são colocados como verdadeiros antagonistas na sociedade. Os populistas desenvolvem em seu discurso a ideia de que o povo está sendo vítima das atitudes de um grupo reduzido, a elite, muitas vezes representada pelo establishment político, ou financeiro, é acusada de interferir no exercício do poder político para o benefício próprio. Na prática, o que se observa é que o "verdadeiro povo" ao qual o populista se refere é, na verdade, um recorte específico do que representa, de fato, o povo, sendo formado apenas por aqueles que são seus seguidores. A elite, por sua vez, é formada por membros da oposição política ou social e são vistos como inimigos do povo, merecendo a destruição ou anulação, pois não devem ser merecedores da convivência em tais sociedades que os populistas pretendem cada vez menos plural.

O populismo reforça a concepção de soberania popular, tomando emprestada a ideia rousseauniana de volonté générale (vontade geral). O populista se dirige diretamente ao "seu povo" afirmando estar ali para respeitar e fazer valer essa vontade. Ele busca agir sem a intermediação de outras instituições, pois acusa a burocratização do sistema de ser responsável por permitir que as elites "sequestrem" o poder político, que pertence ao povo, e o instrumentalizem a seu favor. Assim, observa-se a personificação do povo pelo líder, que age pelo e para o povo. Por isso, é possível afirmar que a representação do povo pelo líder, natural das democracias liberais representativas, é substituída pela ideia de transferência de autoridade para ele, o que acaba justificando práticas autoritárias, na medida que o populista diz agir voltado ao atendimento da vontade e dos desejos do povo. Pelo desdobramento desses aspectos o populismo foi definido como uma "forma de democracia autoritária" (Finchelstein, 2019, p. 27).

O populismo tende também a ser antipluralista. Sua lógica de funcionamento, baseada na visão dualista da sociedade (povo vs. elite), acaba expulsando o pluralismo e incentivando um regime baseado na intolerância (Müller, 2017), o que ocorre com mais clareza em regimes populistas de direita, que costumam desprezar a complexidade e diversidade que compõem o tecido social, onde a diversidade de etnias, religiões, nacionalidades, convicções políticas, gêneros se impõe. Ao negar o pluralismo, propõe ser representante de um povo homogêneo (judaico-cristão, nacional, indígena, etc.).

Além disso, a centralidade de um líder carismático e mobilizador, que propõe uma política redentora ("nova política"); o discurso carregado de apelo emocional, que se preocupa em transmitir apenas mensagens simples para problemas complexos, e não ideias complexas e racionais de difícil compreensão; a linguagem apelativa e pouco polida, para que seja concebido como "um de nós" (Ostiguy, 2009, p. 5), não se confundindo com as boas maneiras da elite; e o ataque às mídias tradicionais e independentes, são outras características que comumente estão presentes em contextos populistas.

Por fim, vale mencionar que, exatamente pelos traços discursivos descritos, as redes sociais se revelaram espaços propícios para as narrativas populistas tendo em vista que apresentam a vantagem de proporcionar uma comunicação muito menos restrita do que nas mídias tradicionais, já que não há nenhuma regulamentação rigorosa que iniba as publicações e o seu estilo discursivo, e, ainda, favorecem a circulação excessiva de fake news, que têm se revelado uma poderosa e perigosa arma utilizada pelos populistas que ascenderam ao poder nos últimos anos (Finchelstein, 2020).

No caso latino-americano, sobre o qual nos debruçamos, os populismos que emergem na região a partir do final dos anos 1930 apresentam características próprias. Estão cercados por uma realidade em que as forças oligárquicas tradicionais entram em crise, e, assim, seu modus fundado no patrimonialismo também, além do modelo de sociedade prevalentemente rural. São processos de urbanização, industrialização e uma crise de representação paternalista que fazem com que emerjam tais populismos. Em alguns deles, em realidades menos avançadas, são estes líderes que expandem a participação política popular, que lutam contra as fraudes eleitorais e contra valores internacionais, impondo um olhar nacionalista renovado, como no caso da Argentina (Perón) e do Equador (Velasco Ibarra). Em espaços nacionais mais desenvolvidos economicamente, como no Brasil, no México, mas também na Argentina, impõe-se, ainda, processos de nacionalização e de redistribuição de políticas públicas sociais. Nos casos da Bolívia, Peru e no Equador, em contextos mais agrários, faz-se uma ampliação daqueles que participam da política, antes excluídos (De La Torre, 2017, p. 252). No caso argentino, por exemplo, Perón expandiu a participação política de 18% para 50% da população tendo, em 1951, quando as mulheres passam a deter direitos políticos, obtido 64% destes votos (De La Torre, 2017, p. 253).

Sobre este populismo clássico (De La Torre, 2017, pp. 252-252; Finchelstein, 2017, p. 134), interessante perceber o uso estratégico do pluralismo como fórmula de agregação das massas ao corpo de cidadãos aptos a escolher seus representantes, naquele momento, mas, por outro lado, com as vitórias eleitorais a partir desta inclusão de votantes, vai se construindo uma nova realidade em que se superavalia a legitimidade democrática destes líderes populistas em detrimento das instâncias de freios e contrapesos existentes (De La Torre, 2017, p. 254). É o caso do Peronismo na Argentina, o primeiro deles nesta modalidade clássica. A partir de 1945, para criar esse modelo de populismo, adotou-se as eleições como meio de manutenção do poder, tendo destruído, para isto, a ditadura militar na qual o mesmo Perón funcionava como líder desde 1943, quando, dentre outras decisões, proibiu legalmente os partidos políticos (Finchelstein, 2017, p. 144). Este regime militar era inspirado por uma "ideologia nacionalista(...), neutra, autoritária, anti-imperialista e clérico-fascista" (Finchelstein, 2017, pp. 144-145). No Brasil pós Estado Novo, com a vitória de Vargas nas eleições de 1951, também se mantinha, tal qual na Argentina, a contrariedade com o comunismo e com o liberalismo, associada às políticas de massa em matéria de direitos sociais, de forma a manipular as classes trabalhadoras (Finchelstein, 2017, p. 152).

Esse processo, aberto pelos populistas clássicos, passou por transformações tanto nas Américas quanto em outros lugares do mundo. A partir do final dos anos 1980, há uma guinada neoliberal nas crenças e ações de novos movimentos e líderes populistas, como Collor de Mello (Brasil, 1990-1992), Abdala Bucaram (Equador, 1996-1997), Alberto Fujimori (Peru, 1990-2000) e Silvio Berlusconi (Itália, 1994-1995; 2001-2006; 2008-2011). Tais lideranças aparecem para solucionar as crises advindas das políticas de substituição das importações e o aumento exagerado da inflação com o consequente empobrecimento das classes menos favorecidas (De La Torre, 2017, p. 256). Para tanto, demonizar as elites de então, os partidos tradicionais e suas lideranças, era o meio de alcançar o poder mediante eleições. Toda esta construção do personalismo na América Latina gera, também, uma realidade própria onde líderes fortes convivem com partidos políticos fracos (Kaltwasser, 2019, p. 36).

O personalismo destas novas lideranças foi ganhando espaço como mecanismo de salvação nacional e suas políticas neoliberais como modo de alcançar a inclusão em um mundo que se integrava economicamente por meio de mecanismos de abertura de mercados nacionais, desregulação econômica e políticas tributárias renovadas. A maleabilidade dos populismos aparece, mais uma vez, quando estes processos neo-liberais, na verdade, afetam justamente políticas criadas por outros populistas que os antecederam (De La Torre, 2017, p. 256). Mediante programas de austeridade, surgiram estes novos populismos para enfrentar a recessão econômica, mas acabaram aumentando as desigualdades mediante a diminuição das capacidades estatais de intervenção na ordem social (Finchelstein, 2019, p. 207).

Uma nova onda de populismos foi tomando a América Latina a partir do final dos anos 1990, mas, naquele momento, indicando um retorno aos modelos de esquerda. É dizer, que determinam o aumento das prestações estatais em matéria de direitos sociais, ainda que, por outro lado, tenham reforçado, também, características pouco republicanas, como a captura dos mecanismos de checks and balances, com intromissão excessiva nas estruturas judiciais, mediante políticas contra a mídia tradicional, dentre outras. Tudo isso ocorrendo mediante políticas clientelistas identificadas com líderes carismáticos (Finchelstein, 2019, p. 207). Temos, assim, a volta do binômio políticas sociais e regressos democráticos. Este movimento pode ser visto em lideranças como Hugo Chávez (1999-2013), sucedido por Nicolás Maduro (2013), Rafael Correa (2007-2017) e Evo Morales (2006-2018), podendo tais movimentos encontrar contrapartes na Europa com Podemos, na Espanha, e Syriza, na Grécia.

Esta realidade, assim, ganha novos contornos na nossa região com Jair Bolsona-ro, eleito em 2018 com uma plataforma de extrema-direita, neoliberal, por um lado, e tradicional, por outro, com apelos ao cristianismo, aos valores conservadores e à necrose da política tradicional, que então se sujeitava a um pêndulo que ia da cen-tro-esquerda à centro-direita, desde o processo de redemocratização dos anos 1980 e, de outra banda, com Andrés Manuel López Obrador, no México, com prevalência do discurso nacionalista desenvolvimentista, à esquerda, mas com ações a narrativas que identificam-no com outros populistas. Ademais, veremos um governo populista mais antigo (Chávez-Maduro) e seus efeitos.

Nossa intenção, assim, é analisar esta nova ordem de populistas do século XXI nos três países referidos, para verificar seus pontos de contato e, consequentemente, suas semelhanças e diferenças.

2. POPULISMOS ATUAIS NO SUL GLOBAL, ESPECIFICAMENTE NA AMÉRICA LATINA: OS CASOS DE VENEZUELA, BRASIL E MÉXICO

Considerando o panorama apresentado, e procurando ilustrar como os populismos se revelam em contextos concretos, serão apresentados casos emblemáticos considerados populistas, que demonstram como o fenômeno em estudo pode assumir aspectos distintos, variando com o momento, com o tempo, com a região e com as condições específicas do território em que se desenvolve. Com o intuito de analisar os populismos que se aproximaram da América Latina nos últimos anos, serão analisados, primeiramente, o caso da Venezuela chavista, um caso clássico de populismo latino-americano, enquadrado historicamente como uma forma de presidencialismo de esquerda que teve origem no fim dos anos 1990. Em seguida, veremos o caso brasileiro, que representa um populismo de características diversas, dado que advindo de um líder e de um governo de direita, aliado, ao mesmo tempo, ao antipluralismo e ao antielitismo, mas que, de outro modo, adota uma narrativa neoliberal no que diz respeito ao agir estatal. Ao final, será feita uma análise do caso mexicano, no comando de López Obrador e seu projeto de poder.

A leitura proposta tem como finalidade identificar e destacar alguns traços populistas desses governos como forma de entender os impactos dos populismos sobre os modelos democráticos. Por isso, não se pretende aprofundar, nesse momento, na análise dos fatos históricos que envolvem os contextos mencionados.

2.1. A Venezuela chavista

O chavismo venezuelano tem como figura central o líder Hugo Chávez, responsável pela implementação de uma proposta transformadora de regime político - do ponto de vista não só político, mas também econômico e social - denominado por ele de "Revolução Bolivariana"2. A proposta de governo de Chávez, a partir de 2013, teve continuidade dada pelo seu sucessor e atual presidente da Venezuela, Nicolás Maduro.

Hugo Chávez chegou ao poder em 1998, através de eleições diretas, com um discurso pautado no combate à pobreza. Sua chegada à presidência foi o desdobramento de um processo de sucessivas crises que marcou a história política da Venezuela, sobretudo, em torno dos anos 1980 em diante.

Por volta de 1978 uma mudança significativa marcou o cenário econômico venezuelano. No período de 1951 a 1978, a Venezuela experimentou um forte crescimento econômico, marcado pela modernização do país propiciada pelas riquezas provenientes do petróleo. A partir da década de 1980, esse cenário de crescente expansão se reverteu rapidamente para um contexto de retração da economia. Com isso, ao longo dessa década, a Venezuela viveu um aumento significativo dos índices de pobreza da população. De acordo com dados fornecidos pelo Banco Mundial, em 1989, os índices de pobreza do país atingiram a expressiva marca de 53 % da população (Adi-nolfi e Goulart, 2014).

Diante do cenário de crise econômica que avançava a passos largos, entre 1983 e 1989, o governo da época - notadamente formado por partidos tradicionais venezuelanos3 - tomou uma série de medidas econômicas voltadas à contenção de gastos e ao controle cambial. Essas medidas, entretanto, apenas contribuíram para a intensificação da crise já instalada. Assim, as décadas de 1980 e 1990 na Venezuela foram caracterizadas por fortes recessões econômicas, crescimento da dívida externa, desemprego e corrupção, fatores que desencadearam um cenário de profunda descrença da população nos partidos tradicionais, bem como na própria estrutura democrática liberal (Adinolfi e Goulart, 2018).

Os contextos de crises são terrenos férteis para ascensão de líderes populistas e o caso venezuelano ilustra bem essa situação. O cenário de decadência e a crise de legitimidade política associada à crise econômica e social venezuelana, foi cavando um buraco relacional entre os governantes, que se mantinham na defesa de políticas de austeridade, e a população, que sucumbia na pobreza, reivindicando a necessidade de auxílio estatal. Com isso, o sistema institucional e partidário tradicional da Venezuela foi se desintegrando e abrindo espaço para que discursos contra as elites políticas puntofijistas4 e promessas políticas de transformação radical da política, através de medidas específicas voltadas aos setores populares e ao combate à pobreza, ganhassem popularidade.

Foi através dessa narrativa, que, em 1988, o tenente-coronel reformado do exército venezuelano e político Hugo Rafael Chávez Frias foi eleito presidente da República Bolivariana da Venezuela, com 56 % do voto popular, iniciando seu mandato presidencial em 1999.

Visto esse panorama, torna-se possível a análise de algumas características do governo chavista que permite enquadrá-lo como um autêntico regime populista.

Uma característica central do populismo e, visivelmente, presente no projeto cha-vista de governo, relaciona-se ao conceito de povo, isto é, ao recorte dado a esse conceito. No caso em análise, o processo de definição do povo que caracteriza os contextos populistas tem suas bases em critérios, principalmente, econômicos. Desse modo, a classe identificada como o povo, o "verdadeiro povo", pelo chavismo é caracterizada pelos oprimidos, pela parcela pobre da população, que, com os desdobramentos da crise descrita, ficaram em condições de absoluta precariedade. Nesse sentido, frequentemente, é possível correlacionar nos discursos de Chávez, os setores populares com aqueles que ele identificava como "a verdadeira nação venezuelana" (Scheidt, 2014). Inclusive, nota-se, durante os seus anos de governo, uma relação direta entre o apoio da população venezuelana à Hugo Chávez e seu nível de renda, de modo que a aprovação em relação ao líder se revelava inversamente proporcional aos níveis de renda dos cidadãos, isto é, quanto menor o nível de renda de determinada parcela, maior o apoio ao líder entre seus integrantes e vice-versa. (Adinolfi e Goulart, 2018).

Como visto, a classificação de povo pressupõe, ainda, a identificação de seu contraponto: a elite. Esta, no contexto em estudo, se constituía fundamentalmente pelos políticos puntifijistas e seus aliados, ou seja, a elite política tradicional venezuelana, acusada de corrupta e de agir contra os interesses do povo, já que continuavam restringindo os gastos públicos, enquanto o povo necessitava de maior ação do Estado através de medidas sociais. Ademais, é de se pontuar, que em países nos quais a organização econômica é estruturada em torno de apenas um setor - como é o caso da Venezuela, cuja economia depende quase que exclusivamente das atividades petrolíferas - cria-se um contraste muito grande entre aqueles que participam dos processos desse setor, obtendo seus benefícios diretos, e as classes populares, que se vêm privadas dos frutos dessa atividade central, a não ser pelas iniciativas distributivas do Estado. Assim, outro aspecto constituinte da elite no contexto populista venezuelano representava-se por esses atores que estão diretamente envolvidos na extração, produção e venda do petróleo. O antagonismo povo vs. elite no contexto chavista pode então ser resumido em, de um lado, o povo, composto pela parcela pobre e oprimida da população e, de outro, a elite, economicamente privilegiada, ao lado dos políticos tradicionais, acusados de organizarem suas estratégias políticas favorecendo sua própria classe e, ainda, de forma alinhada a diretrizes imperialistas neoliberais.

Outra característica marcante do populismo identificada no chavismo é a centralidade da figura do líder forte e carismático. Hugo Chávez ganhou notória popularidade em função de seus discursos persuasivos e efusivos, que revelou grande potencial mobilizador. A presença enfática de Chávez, capaz de atrair e mobilizar amplamente os setores populares, se deu em função da possibilidade da construção de um vínculo identitário entre o líder e essas instâncias menos favorecidas da sociedade. Esse vínculo se deu por uma série de fatores. Primeiramente, destaca-se as características físicas de Chávez. Seus traços mestiços, resultante da combinação entre negros e indígenas, atribui a ele um aspecto de homem pertencente à essa fração (popular) da sociedade venezuelana, predominantemente formada pelos resultados de variações dessa mesma mestiçagem, facilitando com isso sua aproximação com esses segmentos dominados da sociedade através desse aspecto: a identificação física. A ênfase em seus discursos aos feitos nacionais, relacionados à história da independência venezuelana, também é considerado outro aspecto relevante na construção desse vínculo identitário, contribuindo para a ideia chavista de "nação venezuelana". Além disso, o reforço constante acerca do antagonismo da sociedade, dividida em opressores e oprimidos, é tido como outro aspecto importantíssimo no que tange a essa questão, na medida em que os que se identificavam como pertencentes à classe oprimida, viam em Chávez uma perspectiva de mudança em suas condições de vida (Adinolfi e Goulart, 2018).

Em função desse vínculo de identidade com a população, a narrativa chavista alcançou um nível maior de permeabilidade na sociedade. Elementos como a exaltação da soberania popular, do povo como motor e protagonista do sistema político, a ruptura com a ordem anterior (com a "velha política") através da "Revolução Bolivariana", além da referência a seus opositores como inimigos do povo, classificados como "golpistas" e "fascistas", podem ser recorrentemente observados nos discursos chavistas ao longo dos anos (Scheidt, 2014).

A valorização da soberania popular e a temática discursiva da necessidade de o "povo" restituir seu poder soberano, que teria sido historicamente usurpado pelas classes oligárquicas alinhadas ao imperialismo neoliberal, consiste em pontos cruciais da narrativa chavista. Nessa linha de pensamento, o líder venezuelano defendia a tese de uma revolução democrática, marcada, sobretudo, pela implementação de mecanismos democráticos participativos, como forma de recuperação da soberania popular plena. O governo chavista foi, nesse sentido, marcado pela sedimentação de uma democracia mais participativa. Nota-se, neste ponto, que em momentos nos quais as lutas sociais se intensificavam, ressaltando a cisão nos setores sociais venezuelanos, ficava mais evidente no discurso chavista que a defesa do "amplo" direito de participação do "povo" era, na verdade, direcionado a setores específicos, ou seja, aos seguidores do governo, como camponeses, trabalhadores, operários, indígenas e jovens. Os grupos elitistas, que não integravam o "verdadeiro povo", eram afastados desse direito. Assim, a clássica divisão populista entre bem e mal, se evidenciava na medida que o "povo", a "nação venezuelana" deveria participar ativamente das escolhas políticas, ao passo que a elite deveria ficar de fora, tendo em vista que agiam contra os interesses populares e a partir de influências externas.

Observa-se que há indícios de que alguns mecanismos de participação popular direta no regime político deram espaço para práticas clientelistas e de corrupção. É o caso, por exemplo, dos Conselhos Comunais, que, em vez de constituírem-se como organizações sociais autônomas e plurais com caráter decisório no contexto da democracia participativa, se revelaram, muitas vezes, como instâncias clientelis-tas, ligadas ao Executivo através desse tipo de práticas (Mendes, 2013).

Outros dois aspectos importantes devem ser destacados nesse esforço de demonstrar o chavismo como forma populista de governo: (i) a tendência autoritária da democracia chavista e (ii) as relações entre a mídia e o governo. No que tange ao primeiro ponto, é importante lembrar que Chávez começou a ganhar popularidade no cenário político venezuelano em função de sua participação na tentativa fracassada de um golpe de Estado contra o presidente Carlos Pérez, em 1992. Em seguida, percebeu que sua ascensão ao poder do governo venezuelano não teria como se dar pela força, assim, submeteu sua candidatura, chegando, desse modo, ao poder pela via legítima do pleito eleitoral democrático. Contudo, não se pode negar que a tentativa frustrada de golpe deixou marcas do viés autoritário de Chávez. Outro dado que confirma essa característica do percurso do líder consiste no fato de que, eleito em 1998, assim que assumiu, em 1999, sua primeira ação como presidente foi a elaboração de uma nova Constituição para a Venezuela, a Constituição de 1999, medida historicamente vinculada a atitudes de líderes autoritários. Com isso, é possível observar um processo de concentração de poder na figura do presidente, o que evidentemente se afasta dos pilares da democracia liberal, em função do desequilíbrio que esse aspecto representa na esfera da separação de poderes. Como desdobramento desse processo, observa-se ainda no governo venezuelano um mecanismo de aparelhamento do Estado, estruturado a partir de elementos favoráveis ao chavis-mo. Valendo destaque, neste ponto, à enfática mobilização dos militares em prol do governo chavista. Esses aspectos destacados possibilitam enquadrar o governo cha-vista no contexto das democracias autoritárias.

Em 2007, para satisfazer a preponderância do líder sobre seus liderados, cria-se um partido, uma personificação de Chávez, o Partido Socialista Unido da Venezuela, que, na verdade, consolidava um modelo de política da liderança maior contra as instâncias políticas tradicionais.

Ainda, justamente em função desse alargamento do Estado que caracteriza o governo chavista, as mídias públicas tradicionais andavam lado a lado ao governo. Nesse contexto, as mídias privadas eram aquelas encarregadas de direcionar críticas ao governo, o que as tornavam alvo frequente de fortes ataques por parte do governo, que as acusavam de estarem alinhadas a interesses oligárquicos e imperialistas externos, sendo, portanto, meios, veículos golpistas.

Com a morte de Hugo Chávez, Nicolás Maduro foi eleito seu sucessor em 2013. Aliado ideológico do ex-presidente, Maduro assumiu o comando venezuelano replicando essa mesma lógica descrita do governo anterior. Investidas autoritárias como as ocorridas nos últimos cinco anos, como a dissolução do Congresso Nacional, a convocação de Assembleia Constituinte e a antecipação das eleições, são exemplos de como o atual líder vem dando continuidade ao legado populista e autoritário, abalando fortemente as estruturas democráticas venezuelanas. As guinadas populistas de Maduro vêm, com isso, trazendo como reflexo um aprofundamento da crise no país, fazendo a democracia venezuelana ser fortemente questionada pela comunidade internacional. As eleições antecipadas de 2018, por exemplo, que levaram Maduro ao seu segundo turno, causou fortes controvérsias sobre sua legitimidade, de modo a ocasionar uma situação de aberração política, na qual o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, se autoproclamou em 2019 "presidente em exercício", tendo sido reconhecido por mais de cinquenta países, entre eles o Brasil. O cenário de crise econômica, social e humanitária vivido atualmente pelos venezuelanos revela como a atuação de um líder populista fragiliza a democracia, gerando instabilidades que inclusive transcendem o âmbito interno do país.

2.2. Bolsonaro e a renovação do populismo no Brasil

Os ventos populistas que a crise financeira de 2008 ajudou a alastrar pelo mundo vieram se intensificando cada vez e não tardaram a chegar no Brasil. Seus efeitos, atingiram o país em momento (in)oportuno através da propalada onda bolsonarista, que também traz uma figura central preeminente, no caso brasileiro, representada pelo até então deputado federal Jair Messias Bolsonaro.

Ao lado de Viktor Orbán e Donald Trump, entre outros protagonistas, Bolsonaro faz parte da "turma" da "Nova Direita" que veio ganhando força no cenário político mundial. Essa "Nova Direita" é representada por um aglomerado ideológico mais ou menos coeso, na qual "misturam-se ideias do conservadorismo, do libertarianismo e do reacionarismo (...)" (Carapanã, 2018, p. 34).

Com um posicionamento ultradireitista, antipluralista e saudosista dos tempos da ditadura militar brasileira, o capitão reformado do Exército - jamais cogitado anteriormente como um possível nome à Presidência da República - aproveitou a onda populista mundial e a crise de legitimidade política nacional e conseguiu ascender ao cargo político mais alto do país nas eleições de 2018.

Em um cenário de crise(s) - política, social, econômica, institucional etc. - que vinha se instalando no território brasileiro desde 2012 (Seleghim e Vieira, 2020) o solo se tornou fértil para a volta do populismo por aqui. Estava desenhada a conjuntura propícia para aqueles que não desperdiçam as oportunidades que surgem pelas instabilidades, pelas crises, para enfatizarem as inadequações do establishment político indicando categoricamente a necessidade de novas proposições políticas para a solução dos problemas da sociedade.

O contexto brasileiro agravou-se ainda mais em função dos desdobramentos gerados pela Operação Lava-Jato. Balizada pelo princípio do combate à corrupção, recorrendo e disseminando a narrativa de que toda a política é corrupta, sendo o Sistema de Justiça o que melhor representa (e defende) a moral do Estado, a Lava-Jato teve papel significativo no aumento da insatisfação com a política tradicional e da crise de legitimidade que já vinha se aprofundando no eleitorado brasileiro. As repercussões dessa operação culminaram no enfraquecimento de alguns dos atores mais importantes do cenário político brasileiro e na consequente fragilização e desmantelamento das forças políticas tradicionais para as eleições majoritárias (Biroli, 2017).

Com os sucessivos escândalos de corrupção divulgados pela mídia tradicional envolvendo, sobretudo, membros dos dois principais, e mais tradicionais, partidos políticos brasileiros - Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) - a distância entre as instâncias que governam e as que são governadas se transformou num derradeiro abismo, abalando definitivamente as estruturas políticas e institucionais. Fatores cruciais para o funcionamento regular do regime político, como a relativa estabilidade e confiabilidade das instituições democráticas, foram fortemente abalados. Em 2018, o Indice de Confiança Social (ICS) dos brasileiros se revelou o mais baixo dos dez anos anteriores, confirmando a derrocada desenfreada do modelo político vigente.

Diante de uma população nitidamente desiludida, desacreditada e decepcionada com a política e com os políticos que vinham governando o país, o candidato vencedor das eleições de 2018 encontrou o momento ideal para que seus ideais políticos e sua narrativa populista conquistasse seguimentos significativos da sociedade, agitando e inflamando o cenário eleitoral brasileiro.

Com isso, fatores como a contraposição do povo em relação a determinadas elites, consideradas inimigas da nação; o antipluralismo, afirmado a partir da tentativa de considerar povo somente aqueles que fazem parte da "tradição judaico-cristã"; discursos com alto apelo emocional, promovendo uma visão redentora da "Nova Política"; o ataque às mídias tradicionais; e uma tendência autoritária de governo, são traços marcantes nos contextos populistas, que podem ser facilmente notados no atual governo brasileiro.

A visão maniqueísta da sociedade, ou seja, o esforço em se enfatizar um antagonismo existente entre o povo (o bem) e a elite (o mal), destaca-se como um traço forte da retórica que levou o atual presidente ao poder. Neste caso, eram apontados como "inimigos" do povo especialmente a elite política tradicional, ou seja, aqueles que compõem o establishment político, ao lado de outros atores como a elite intelectual, científica, as mídias tradicionais e seus representantes.

Outro fator importante, que se revela através de discursos inflamados e carregados de apelo emocional, que pautou a campanha política do então candidato à presidência, consiste na deslegitimação da "Velha Política". Acusando esta de clientelista e corrupta, o candidato baseou sua narrativa na proposição categórica de uma "Nova Política" que desafiaria e confrontaria o status quo. Alegava, reiteradamente, que a nova forma de governar seria através de políticas elaboradas ao lado de ministros escolhidos por sua "competência técnica", não por "indicações políticas" (Limongi, 2019), e mediante um cenário em que parlamentares individualmente e bancadas temáticas dariam suporte ao projeto político do governo, ao lado de parte do segmento militar.

Também, em frequentes alusões messiânicas, fortemente atrelado aos valores evangélicos, de onde saiu parte considerável de seus eleitores, era possível perceber no discurso bolsonarista referências ao líder como "escolhido de Deus". Nesse aspecto, apesar de prometer mudanças extraordinárias e redentoras, o então candidato à presidência não apresentava diretrizes concretas acerca da implementação de suas possíveis proposições, saindo pela tangente sempre que era questionado sobre suas propostas para áreas essenciais como a economia, a saúde e a educação (Limongi, 2019).

Isto posto, acrescenta-se que sua estratégia eleitoral foi, majoritariamente, impulsionada pelo ambiente virtual das mídias digitais (Seleghim e Vieira, 2020). Sendo assim, o ataque às mídias tradicionais foi elemento importante para a propagação da retórica populista de direita do atual líder do governo. Declarando literalmente guerra aos jornalistas e acusando a mídia tradicional de golpista, se recusando a participar das formas tradicionais de discursos políticos - como os convencionais debates entre candidatos que antecedem as eleições - o atual presidente brasileiro encontrou nas redes sociais, seguindo a tendência de outros líderes com o mesmo perfil, uma forma de se dirigir diretamente ao "seu povo" através de sua usual linguagem performática, imprópria, chula e/ou, muitas vezes, de baixo calão, geralmente pouco tolerada nos meios de comunicação convencionais.

Uma vez eleito, o primeiro ano de governo do presidente foi marcado pela tentativa de um encaminhamento tipicamente populista da política. Ensejando "construir" e bancar a prometida "Nova Política", os partidos políticos - componentes clássicos da elite política à qual se contrapunha em seu discurso - não foram chamados para compor o novo governo, que teve seus ministérios formados por escolhas pessoais do presidente e de seus seguidores mais próximos e seguia o caminho de também dar postos-chave a militares e aliados ideológicos, em detrimento de políticos. Interessante ressaltar que, desde então, o presidente não está filiado a nenhum partido político, o que ocorre pela primeira vez desde a redemocratização dos anos 1980.

Procurava, como mencionado, adotar uma postura de relação direta com o povo, encaminhando o sistema político a algo que pode ser entendido como uma espécie de presidencialismo plebiscitário (Teixeira, 2020). Nesse jogo político, tentava diminuir ao máximo a ação de instituições intermediárias, que, de acordo com a sua narrativa, colocavam-se como obstáculos à realização da agenda política do governo.

Considerando sua legitimidade popular superior àquela dos demais atores políticos, Bolsonaro insistia em querer assumir uma postura de figura central no sistema político. Apostou, então, no desequilíbrio na divisão constitucional dos poderes. Extrapolando suas atribuições legislativas, o presidente aderiu a uma estratégia governamental baseada na sucessiva edição de decretos presidenciais e medidas provisórias.

Ainda, manifestando o antipluralismo declarado desde a campanha eleitoral, o atual presidente, confirmando sua postura populista, vinha optando por uma agenda política diminuta que, apesar de representar apenas o núcleo restrito que o elegeu, entendia estar legitimando a vontade popular. Nesse aspecto, as redes sociais se mantiveram como importantes dispositivos de comunicação do governo com a população, de modo que alguns estudos vêm revelando que as plataformas digitais vinham sendo utilizadas como "termômetro" para a tomada de decisão governamental, além de serem usadas também como meios de fomentação da polarização ideológica que foi decisiva no resultado das últimas eleições (Seleghim e Vieira, 2020).

O sistema presidencialista brasileiro tem, contudo, duas características centrais que determinam a sua dinâmica: (i) é considerado um hiperpresidencialismo, mas também é um (ii) presidencialismo de coalizão. Isto significa que, ao mesmo tempo em que concede amplos poderes ao presidente, a efetiva concretização desses poderes depende da formação de alianças com os partidos políticos que compõem o parlamento. É dizer, para garantir governabilidade, o governo necessita de uma base suficientemente sólida no Congresso Nacional, para que, assim, sua agenda consiga ser implementada. Para isso, em um sistema partidário altamente fragmentado e volátil como é o brasileiro, o chefe de governo normalmente tem que negociar com uma ampla gama de partidos políticos para garantir essa base.

Diante desse enquadramento institucional, a atitude populista do presidente Jair Bolsonaro não encontrou meios de se firmar. Na tentativa de manter acesa a luta contra a "Velha Política", o chefe de governo não se movimentou no sentido de formar alianças que lhe assegurassem uma base no Congresso, tendo em vista que isso significaria ceder à política do "toma lá da cá" a qual se contrapunha em seu discurso. Contudo, sem uma coalizão minimamente estável, a agenda política do presidente revelou-se de muito difícil implementação, o que gerou uma situação política de constantes derrotas no parlamento. Vertiginosamente, a frágil consistência das promessas eleitorais foram se desconfigurando. Tudo isso fez com que um contexto de grave bloqueio institucional, marcado pela paralisia decisória do governo, se instalasse no cenário político brasileiro, o que levou o próprio presidente a afirmar ser (ele) a "Rainha da Inglaterra" (Pessoa, 2019).

Diante disso, os resultados da tentativa do presidente em bancar a "Nova Política" foram o incentivo a um protagonismo retaliatório por parte do Congresso Nacional, que se empoderou progressivamente, e a reiterada judicialização das decisões do Executivo. O efeito produzido foi, então, de um "presidencialismo disfuncional", marcado pela completa falta de harmonia entre as instituições democráticas, culminando em um ambiente político, jurídico e social de alta instabilidade (Abranches, 2019).

Todavia, em meados de 2020, o líder do governo brasileiro passou a alterar sua postura política. Constatando que não haveria outra forma de garantir governabilidade, o presidente começou a restituir no cenário nacional o ambiente tradicional dos governos de coalizão. Disposto a ganhar "governabilidade" e "fugir do impeachment", Bolso-naro se propôs a fazer aliança com um "consórcio" de partidos políticos tradicionais (os mesmos que dizia reprovar) para que sua agenda pudesse ser defendida.

Com isto, os aliados de primeira hora começaram, aos poucos, a serem substituídos pelos de última hora, de modo a enfrentar a realidade de um governo de coalizão. Por outro lado, o discurso populista, ainda frequente, vem se tornando cada vez mais um instrumento de manutenção da base eleitoral tradicional, sem apoio na realidade partidária brasileira. Isso afasta o cenário brasileiro de um governo populista para consolidar a realidade de um governo com narrativa populista - algo ocorrido em outros momentos e lugares, independente do viés ideológico da liderança populista no governo (Mudde, 2017).

Entretanto, tal qual outros governos populistas, uma vez no poder, esforçou-se seguidamente pela destruição dos mecanismos de checks and balances com a captura da direção da Polícia Federal, com a nomeação de um ministro ao Supremo Tribunal Federal de perfil conservador, com a destruição da participação social nos diversos colegiados (comitês e comissões) existentes na estrutura do Poder Executivo, com o recurso à demonização da mídia tradicional, exceto aquele que aderiu logo ao seu governo, dentre outras decisões. Tais atitudes e narrativas acabaram por causar impactos extremamente danosos no contexto brasileiro.

Discursos intolerantes promovidos pelo atual governo, legitimam e autorizam que atitudes e posturas assim se espalhem no tecido social através de seus seguidores e simpatizantes. Ainda, decretos expedidos pelo presidente, como os relacionados ao relaxamento das regras para o porte de armas, assim como das normas ambientais, já têm revelado impactos preocupantes. A tragédia ambiental que tem sido assistida no Brasil, como as queimadas na Amazônia e no Pantanal, representam alguns desses impactos arrasadores.

No que diz respeito à pandemia mundial da COVID-19, os estragos são igualmente preocupantes. A postura negacionista do presidente que, desde o início da crise sanitária, vem desconsiderando as orientações científicas, politizando o órgão de referência mundial nos assuntos de saúde global (OMS) e incrementando sua narrativa neoliberal, que coloca "economia" a frente da saúde (e da vida) da população, levou o país a ocupar o segundo lugar em número de mortes pelo coronavírus e o pior do mundo na gestão da pandemia (Leng y Lemahieu, 2021). O incentivo ao uso de medicamentos sem eficácia cientificamente comprovada, além do completo despreparo para implementar um plano de vacinação eficiente - o que não é surpresa em um governo que manteve um discurso anti-vacina - são outros exemplos de atitudes que ajudam a compreender como o Brasil chegou no quadro descrito.

Mesmo assim, o caso brasileiro tem possibilitado mostrar um sistema de freios e contrapesos, que, até agora, tem conseguido, em alguma medida, conter as tendências autoritárias do governo, concedendo alguma proteção às estruturas democráticas do presidencialismo vigente. Contudo, as posições, as atitudes e as narrativas populistas têm gerado impactos sociais decisivos, de difícil reversibilidade e que fragilizam paulatinamente a democracia brasileira.

2.3. México e o populismo morenista de Andrés Manuel López Obrador (AMLO)

O México é outro caso importante para entender a expansão dos populismos na região. Dominado por uma política sedimentada na soberania de um único partido por aproximadamente 80 anos (PRI), somente superado uma única vez pelo PAN, nas eleições nacionais de 2018. Essa hegemonia acabou por produzir um processo de desestabilização de um sistema partidário dos mais estáveis da América Latina.

Desde a transição democrática, de 1997, somente três partidos haviam se colocado em posição de reais competidores (Partido Revolucionário Institucional - PRI, Partido da Revolução Democrática - PRD e o Partido Ação Nacional - PAN). É a partir de um quarto ator, que aparece com a formação Movimento da Regeneração Nacional (Morena), com a liderança personalista de Andrés Manuel López Obrador (AMLO), que uma narrativa de índole populista, que demoniza a oposição como parte de uma elite corrupta que precisa ser derrotada e anulada por um povo verdadeiro, esquecido pela política forjada por tal elite corrupta, aparece (Serrano, 2019). Tal qual os dois líderes estudados anteriormente, AMLO despreza as instituições partidárias e suas estruturas, confundindo-se, ele próprio, com o partido no qual está filiado e é criador.

É neste cenário que o antissistemismo de AMLO ganha força, contra essa "máfia no poder" e seus privilégios (Marini, 2018, p. 169), colocando em risco a confiança na democracia e nas instituições, dado que os processos de controle da corrupção generalizada por elas não podem ser radicados, pondo em xeque todo o sistema político (Monsivais-Carrillo, 2020).

Além disto, a religiosidade católica de AMLO, tido como um "messias tropical" que se compara a Jesus Cristo no que diz respeito a ter sido perseguido por poderosos dado o seu viés popular, mostra mais uma faceta do líder do Morena (Krauze, 2006). Este discurso religioso e messiânico acompanha a construção do personagem simples e popular (Marini, 2018, p. 168).

Esse espaço se abre a partir de uma sequência de eventos que são muito bem definidos por Hawkins e Kaltwasser (2018, p. 5), para quem são necessários uma ruptura da ordem social em função da ausência de confiança dos cidadãos em restaurá-la, além do descrédito da classe política, uma mudança da comunicação de massa, a disseminação de mensagens diretas entre líder e povo e a paralisia dos partidos tradicionais. Esse era o cenário que se descortinava no México antes das últimas eleições. AMLO, que já havia sido candidato a presidência anteriormente, inclusive não reconhecendo a derrota pra Peña Neto nas eleições anteriores, "abre espaço" neste cenário.

O discurso voltado ao povo contra as elites corruptas, e, consequentemente, aos partidos tradicionais que as representavam, ganha força também nas eleições proporcionais, quando Morena ganha maioria no parlamento federal. Ganha corpo, assim, uma narrativa contra a impunidade e a corrupção em um cenário de crise econômica profunda (Serrano, 2019, p. 160), pavimentando caminho para que um líder carismático e personalista se projetasse com o uso massivo e eficiente das redes sociais (Serrano, 2019, p. 162).

Interessante a maleabilidade discursiva de AMLO a respeito do PRI, partido o qual entende ser corrupto e neoliberal, além de ter esquecido de criar políticas para o povo verdadeiro. Por outro lado, diz que tem bons sentimentos das políticas priistas que antecederam os anos 1980, quando adotava uma plataforma nacionalista, com um "misto de protecionismo e livre comércio, com a ingerência do Estado na economia" (Marini, 2018, p. 162), fazendo com que também se apresente o regresso ao passado glorioso (Marini, 2018, p. 169).

Ademais, a ausência de porosidade das estruturas partidárias, perdidas em lutas internas ou contra os demais partidos, fez com que AMLO e seu Morena tivessem preparado a sua chegada ao poder federal, dado que saíram incólumes deste processo e conseguiram "resgatar" a vontade do povo.

Neste ponto, vale tratar um pouco do conceito de povo para AMLO e o populismo de esquerda, pois aqui radica uma diferença interessante com os populismos de direita, pois se considera o povo como ordem plural, o que é típico dos populismos ditos inclusivos (Mudde e Kaltwasser, 2013, pp. 158-160), que entendem a variedade do povo5, onde não cabem, especialmente no caso mexicano, a "elite corrupta" e a "tecnocracia neoliberal dos últimos governos" (Rodriguez, 2019. p. 165), ou, como afirmado na Declaração de Princípios do Morena, não há oposição aos empresários, somente à "riqueza mal havida, à corrupção, aos monopólios e à exploração humana" (Morena, 2012). Trata-se, assim, de um populismo antineoliberal, por um lado, mas que comporta uma variedade de sujeitos para compor este povo "verdadeiro".

Chegado ao governo, a realidade discursiva vai se alterando. Populismos de esquerda, como Syriza, na Grécia ou Podemos, na Espanha, apresentam, tal qual Morena, uma tendência de rearticulação em direção à moderação exigida para governar, passando, assim, a se aproximar de outros partidos, o que exige moderação e negociação (Mudde, 2017b, p. 28). O que foi visto na Grécia se viu, também, no México, com as medidas de "austeridade republicana" apresentadas por AMLO (Basilio & Júnior, 2019), que acabaram por estabelecer cortes orçamentários para investimentos estatais. Com a sua 'Ley Federal de Austeridad Republicana" se pretendia dar eficiência aos gastos públicos supérfluos sem tocar em direitos sociais, mas, ao final, não foi o que ocorreu (Lopez-Durán, 2020, p. 300).

A sanha pelos mecanismos de participação democrática direta também vai sendo implementada. Logo após a posse, consultas populares foram feitas, com baixa participação, mas que acabaram por ratificar as vontades do governo, ou de um "líder populista caprichoso" (Talanquer, 2020, p. 411).

Existe, ainda, uma preocupação com ações de controle das instituições havidos como parte dos mecanismos de checks and balances. Tais preocupações aparecem nas discussões sobre a criação de uma nova Guarda Nacional voltada a conter a violência, sempre alta no país, quando tal questão aparece nas casas parlamentares (Pedroza, 2019). O histórico de AMLO, quando da sua derrota, em 2006, indicava uma contrariedade com as instâncias judiciais, que não reconheceram fraudes eleitorais que dizia prejudicá-lo (Salinas-León, 2019). Ao verificar dificuldades de implementação de seu programa, AMLO centralizou decisões no Executivo, reduziu poder decisório da burocracia estatal, enfraqueceu instâncias independentes, o que acabou gerando mais poder ao próprio mandatário e receios no seu próprio partido (Talanquer, 2020, pp. 403-404).

Percebe-se, pelo que se viu, que a realidade política mexicana vai se transformando e, consequentemente, o risco de um playbook acentuadamente populista vai crescendo concomitantemente.

CONCLUSÕES

Os populismos se apresentam como um fenômeno complexo que em razão de suas diversificadas manifestações tornam a sua compreensão imediata uma tarefa árdua. Existem, contudo, características comuns através das quais os populistas se revelam e que representam uma espécie de denominador comum entre as atitudes, narrativas e ações praticadas por esses atores políticos que podem contribuir para sua análise.

O que tem se demonstrado inquestionável é que os populismos, uma vez instalados no poder, têm um grande potencial para abalar de forma significativa as estruturas democráticas, representando elemento crucial na compreensão da descida vertiginosa das democracias liberais ao redor do mundo. Líderes populistas com vieses evidentemente autoritários estão assumindo o poder em diferentes regiões do mundo e impondo uma agenda de depreciações democrática clara.

O Sul Global tem sua história marcada por diferentes lideranças populistas no período em que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial. Nos últimos anos, a ascensão da onda populista vem contribuindo para a recessão democrática e voltou a se apresentar, reformulado, na América Latina, ocasionando o seu reestabelecimento na região que, aliás, deixou de encontrá-los somente em curtos períodos de tempo.

Ao longo do século XX a região latino-americana passou por uma "montanha-russa" de autoritarismos e redemocratizações, resultando em estruturas democráticas pouco sólidas se comparado a outros países mais estáveis, que também passaram a encontrar as suas representações populistas, seja no nível do mero discurso político, seja ao nível governamental. Com isso, qualquer investida autoritária contra as democracias do Sul Global desperta grande preocupação e, neste sentido, países como a Venezuela, o Brasil e o México estão atualmente submetidos às consequências de lideranças populistas.

O que se pode notar a partir da análise desses casos, é que, apesar das expressões do fenômeno populista serem bastante distintas em cada um desses lugares, a desconstrução dos mecanismos de freios e contrapesos, com a consequente fragilização do Estado de Direito, a oposição à mídia tradicional e o recurso aos mecanismos de contato direto com o povo, especialmente às redes sociais, a luta contra uma elite corrupta que despreza as vontades deste povo, as declarações de nacionalismo exacerbado, entre outras características típicas do playbook tradicional dos populismos ganham força na região, onde partidos políticos não estão habilitados a estabelecer controles para tais lideranças que "são o próprio partido".

A fragilização democrática regional, que é acompanhada da erosão da confiança na democracia e nas instituições estatais, abre uma senda de oportunidade a estes populismos com seu oportunismo retórico, que se apresentam como contraparte ao que está estabelecido e prometem uma revolução para consolidar a vontade do povo. Os resultados, até o momento, são a ascensão de lideranças populistas que, nos seus diferentes estilos, têm - longe de implementar as promessas eleitorais - apenas contribuído para o desmonte paulatino, de dentro para fora, de frágeis democracias liberais latino-americanas, comprometendo especialmente a harmonia e o bom funcionamento dos três poderes, através da debilitação dos mecanismos de freios e contrapesos, além da mídia tradicional, tida como partidária das "elites", e dos partidos políticos constituídos, que ocupam um papel acessório nesta nova ordem.

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1Neste sentido, discordamos que os populismos têm uma função corretora das democracias, tal qual exposto por alguns autores, mais fortemente por Laclau e Mouffe, em diversas obras (p. ex., Mouffe, 2018 e Laclau, 2005), para quem democracia é um conceito contingente.

2O termo provém do nome do general venezuelano do século XIX Simón Bolívar, que liderou os movimen tos de independência da Venezuela, da Colômbia, do Equador, do Peru e da Bolívia. Assim, "Revolução Bolivariana" é a expressão criada para designar as mudanças políticas, econômicas e sociais iniciadas após sua chegada ao poder. Convencionou-se, nesse sentido, chamar de bolivarianos os governos de esquerda na /América Latina que questionam o neoliberalismo e o Consenso de Washington (doutrina macroeconômica ditada por economistas do FMI e do Banco Mundial).

3Acción Democrática (AD) e Unión Republicana Democrática (URD), de centro-esquerda, e Comitê de Orga nização Política Eleitoral Independente (Copei), de orientação social-cristã.

4Acordo político firmado em 31 de outubro de 1958, entre os três grandes partidos venezuelanos (AD; URD e Copei), por meio do qual criaram um sistema de alternância de poder no país, proscrevendo a esquerda radical e visando assegurar estabilidade ao país após a derrocada da ditadura de Marcos Pérez Jimenez alguns meses antes das eleições de dezembro do mesmo ano (Miranda, 2014).

5En Morena participan mujeres y hombres; empresarios, productores y consumidores; estudiantes y maestros; obreros, campesinos e indígenas. Estamos convencidos que sólo la unidad de todos los mexicanos hará posible la transformación del país. Sabemos que para sacar adelante a México se necesita a todos los sectores de la economía: el sector público, al sector social y el privado. (Morena, 2012, disponível em: https://lopezobrador.org.mx/wp-content/uploads/2013/02/Declaracion-de-Principios-MORENA.pdf).

Recebido: 22 de Setembro de 2021; Aceito: 19 de Julho de 2022

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