Introdução
Este artigo objetiva discutir as estratégias e governo de crianças e jovens desvalidos por meio da análise de duas instituições de assistência pela profissionalização organizadas e mantidas pelo governo brasileiro. Tratase da Companhia de Aprendizes Marinheiros de Sergipe e do Asilo de Meninos Desvalidos localizado na cidade do Rio de Janeiro
Essas instituições asilares/escolares foram forjadas no calor dos discursos sobre a construção do Império do Brasil cuja intenção repousava no desejo de figurar entre as nações ditas civilizadas. Nesse sentido, os debates e ações governamentais sobre o direito a instrução pública foram intensos, notadamente, após a Constituição1 outorgada de 1824, cujo artigo 179, parágrafo 32, previa que "a instrução primária era gratuita a todos os cidadãos".
A partir da referida Constituição o processo de escolarização ocorreu por meio da difusão de saberes elementares entre formas e práticas de educação distintas (Gondra & Schueler, 2008, p. 29), como o exemplo das instituições em análise no presente artigo. Essa diversidade de formas escolares difusas na sociedade brasileira seria condição para que a Nação atingisse padrões de civilidade. Dessa forma, conforme assertiva de Gondra e Schueler (2008),
a escolarização adquiriu legitimidade, de modo a abranger uma população que sequer era considerada, como a dos cegos e surdos-mudos. Na perspectiva dos homens ilustrados da época, a aprendizagem das primeiras letras e ofícios manuais era a combinatória ideal para a realização da utopia de um Império fundado sob os paradigmas de ordem e civilização. (Gondra & Schueler, 2008, p. 107).
Destaca-se que demonstrações de civilidade ocorreram, inclusive, nas Exposições Universais. Observa-se que a partir de 1851, quando realizou-se na Inglaterra a I Exposição Universal, o Brasil passou por momentos efervescentes proporcionados, principalmente, por dom Pedro II, que participava diretamente das Exposições Internacionais, assim como das Nacionais. Nestas últimas, envolvendo-se na organização e no patrocínio. Em tais eventos, os produtos brasileiros eram expostos numa demonstração de modernidade, apesar de ser um país escravocrata. (Schwarcz, 2008).
Nos anos que se seguiram o governo imperial se preocupou em expor o que considerava relevante ser visto pelas nações ditas civilizadas. A título de exemplo, tratando-se de educação e instrução, na Exposição Internacional de Higiene e Educação realizada em Londres no ano de 1884, figuraram, dentre outros materiais, plantas arquitetônicas de três escolas primárias públicas, construídas em co-participação com a iniciativa particular, e vinte e quatro desenhos das fachadas dos Institutos para os surdos-mudos e os cegos; da Escola Normal da Corte Imperial, Rio de Janeiro, e do Asilo de Meninos Desvalidos, objeto de reflexão do presente artigo.
Tratava-se de escolas e institutos públicos, localizados na Corte Imperial, que na visão do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império Francisco Antunes Maciel (1844-1917), proporcionariam aos visitantes da exposição "idéia dos nossos esforços em matéria de instrução e educação"2. Maciel acrescentava que os desenhos e as plantas arquitetônicas foram acompanhados de notícias sobre os estabelecimentos e seus recursos3. Indícios da propaganda do Governo Central sobre a implementação de ações educativas voltadas para conferir "validade" às crianças desvalidas uma vez que tanto o Asilo de Meninos Desvalidos quanto os Institutos para os surdos-mudos e os cegos marcaram presença na mencionada exposição.
Nesse momento cabe salientar que o termo "desvalido", em geral, é encontrado na documentação e na legislação para se referir às crianças em situações marginais. Nas palavras de Veiga (2012):
O prefixo 'des' confere significado a essa situação - não ser válido, do ponto de vista físico, material, cultural. Portanto, há de se investigar que o sentido de 'ter validade' numa sociedade é uma construção histórica. Especificamente no século XIX, a criança desvalida refere-se à criança abandonada, órfã, pobre. (Veiga, 2012. p. 29).
Assim, investe-se em educação escolar necessária para que os futuros cidadãos fossem "uteis a si e à sua pátria". Tal investimento possibilitaria que a Nação brasileira alcançasse os padrões de civilização almejados pelo governo.
Quanto ao conceito de civilização apropriado neste estudo, segue a perspectiva do sociólogo Norbert Elias (1994). Para esse autor civilização é um termo abrangente por abarcar a "consciência que o Ocidente tem de si mesmo". Segundo Elias, a sociedade ocidental "se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas «mais primitivas»" (Elias, 1994, p. 1).
No decorrer do século XIX, o Brasil ainda não havia atingido o nível de desenvolvimento e modernidade que se acreditava existirem, notadamente, na França, nos Estados Unidos e na Alemanha. Por outro lado, uma fração da população brasileira livre, segundo o olhar dos dirigentes da nação, não correspondia ao modelo de pessoas consideradas como civilizadas em termos de comportamento social, ou seja, não apresentando características como: cortesia, urbanidade, polidez, boa educação, boas maneiras, delicadeza, etiqueta; tudo que se opunha aos costumes que vinham dos setores sociais "mais baixos" (Abreu, 2002).
Para alcançar o modelo daqueles países, alguns problemas se colocavam aos nossos dirigentes. E o principal dizia respeito à difusão da educação popular para a parcela da população pobre.
Organização da educação popular
A ação governamental com vistas a difundir os saberes elementares associados à aprendizagem de ofícios tinha como objetivo principal alcançar um público específico: as crianças livres e pobres -órfãs ou não-, incluindo os ingênuos, como ficaram conhecidos os filhos do Ventre Livre a partir de 1871.
A promulgação da Lei do Ventre Livre provocou mudanças sociais, principalmente no que se refere às relações de trabalho como a passagem do trabalho servil para o trabalho livre. Um processo que ocorreu de forma gradual, iniciado a partir da proibição do tráfico negreiro, em 1850, com a Lei Euzébio de Queiroz, que o coibiu, seguido da já citada lei assinada em 1871 (Martins, 2004).
Assim, o ideal de civilização esbarrava também nas demandas sobre a emancipação dos escravos. A Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, defendeu a responsabilidade social dos senhores quanto à criação e educação dos menores, dando-lhes a alternativa de entregá-los às associações autorizadas que tivessem por objetivo a educação e formação profissional dos libertos quando as crianças completassem 8 anos, em troca de uma indenização paga com títulos no valor de 600$000. Era necessário resolver esse problema que crescia cada vez mais.
Schueler (1998) afirma que a Lei do Ventre Livre foi um sinal de que a infância passou a ocupar a agenda de médicos, professores e, acrescentamos, do Estado, como um problema social. Segundo o censo de 1872, estimava-se que 24% de um total de 7.000.700 almas eram escravos. Antes da Lei do Ventre Livre os destinos das crianças escravas eram de responsabilidade de seus donos; com a promulgação da referida Lei estas crianças passam a ser preocupação do Estado.
Portanto, uma ação governamental cuja política tinha por objetivo interferir nas condições sociais de vida dos indivíduos. Dessa forma, estrategicamente as forças do poder público atuaram nos setores sociais "mais baixos" visando proporcionar-lhes uma educação para a vida prática. Tratava-se de ensiná-los uma profissão desde a mais tenra idade. Nesse sentido, infere-se que os futuros cidadãos do império precisavam estar em lugares bem definidos: na família, na escola, nas oficinas dos Arsenais da Marinha e do Exército, nos hospitais e nos Asilos acompanhando o movimento dos países considerados civilizados no Ocidente (Rizzini, 2004). Educar essa parcela da população adquire novos sentidos: aprender a ler e a contar, conhecimentos que no período colonial eram suficientes, no Brasil pós independência fez parte de um projeto maior -o da construção de um Estado-Nação (Mattos, 2004; Schueler, 1998), como já referido-.
Dessa forma, a educação e a instrução primárias passam a ter importância fundamental para o desenvolvimento da "ordem social" e do "progresso", lemas que, de maneira bastante freqüente, foram identificados com a República. No entanto, Ordem e Progresso, ou a preocupação com estes termos, tornados solidários, mutuamente dependentes, estiveram presentes nos debates ao longo da monarquia. Prevalecia entre os dirigentes e a sociedade civil uma intenção: colocar ordem onde havia desordem -condição de nação civilizada- porém mantendo as relações de poder entre senhores e escravos. Nos dizeres de Mattos, (2004):
Manter uma Ordem significava, efetivamente, garantir a continuidade das relações entre senhores de escravos, da casa grande e da senzala, dos sobrados e dos mocambos; do monopólio da terra pela minoria privilegiada que deitava raízes na Colônia e no tempo da Corte portuguesa no Rio de Janeiro; das condições que geravam a massa de homens livres e pobres. (p. 293).
Manter a Ordem, portanto, significava a suposta passividade de uma parcela considerável da população composta por pessoas livres e pobres, conservando mundos distintos e hierarquizados que a dividiam. Essa massa populacional era um problema que se colocava para o ideal de civilização desejada, pois não representava os atributos desejáveis dos indivíduos daquela sociedade que se queria civilizada, conforme os trazidos por Abreu (2002), ou seja, boa educação, etiqueta, boas maneiras e outros. Nessa direção a educação e a instrução viriam a cumprir papel fundamental numa sociedade que mantinha a interdição dos escravos, nas escolas primárias, expressa desde a Lei Provincial de 21 de janeiro de 1837, que regulava a instrução primária (Mattos, 2004, p. 274) e reafirmada na letra da Lei da Reforma do Ensino Primário e Secundário da Corte de 1854, elaborada por Couto Ferraz, no que se refere às idades, condição social e saúde, como consta no artigo 69: "Não serão admitidos à matricula, nem poderão freqüentar as escolas: §1° Os meninos que padecerem de moléstias contagiosas. §2° Os que não tiverem sido vacinados. §3° Os escravos" (Tambara & Arriada, 2005, p. 54). E no artigo 70: "Às lições ordinárias das escolas não poderão ser admitidos alunnos menores de 5 annos, e maiores de 15 annos" (Tambara & Arriada, 2005, p. 54).
Como vimos, o anseio dos dirigentes brasileiros em conduzir o país rumo à civilização que se dizia haver no além-mar, especialmente a civilidade advinda dos países "modelos", marcou os debates sobre a educação no Brasil Imperial. Nesse processo, a discussão referente à organização didático-pedagógica da educação popular ocupou a agenda dos diferentes sujeitos, cujos interesses envolviam questões políticas, ideológicas, religiosas, sociais e econômicas. Poder-se-ia afirmar que o debate assinalava uma preocupação com as formas de acesso aos bens culturais, como instrução para todas as classes, guardadas as interdições já mencionadas.
Outra questão a ser enfrentada pelos dirigentes brasileiros estava relacionada à necessidade da difusão da instrução profissional como condição para o exercício do trabalho qualificado necessário ao desenvolvimento industrial, como demonstraremos a seguir.
Criação de indústrias e organização do ensino profissional: debates
Parte da historiografia brasileira demonstra que a criação de indústrias no Brasil do século XIX ocorreu por meio de esforços isolados. Para compreender melhor essa assertiva vale observar que dois foram os eventos responsáveis pelo surto industrial ocorrido no fim da década de 1860: a guerra civil nos Estados Unidos (1861-1865) e a guerra do Paraguai (1866-1870).
A partir dessas circunstâncias, expandiram-se, principalmente, as indústrias de química, de papel, de cigarro, de vidro, de couro, de instrumentos óticos e náuticos, etc. Já as indústrias têxteis, desenvolveram-se com a crise das lavouras de algodão, açúcar e café, cujos investimentos, antes empregados nessas lavouras, foram direcionados para esta atividade econômica (Faria, 2002). Em vista disso, Faria (2002) concluiu que, de modo geral, a indústria no Brasil do século XIX dependia, em grande parte, dos interesses dos empresários cafeicultores e de decisões políticas fiscais.
Essa ambiência, provavelmente, inspirara o advogado e político José Liberato Barroso (1830-1885) a pensar sobre a importância atribuída ao ensino profissional. Nesse sentido, Liberato Barroso o definira da seguinte maneira:
Comprehendendo-se, que o ensino profissional, como uma garantia social, deve salvar o futuro. Se lançarão pelo desenvolvimento desse ensino os primeiros esteios de uma nova organisação, que hoje dificilmente se poderá estabelecer sem se quebrarem as molas da sociedade actual. (Barroso, [1867], 2005, p. 179).
Logo, o ensino profissional, no entendimento de Liberato Barroso, além de supostamente ter condições de promover mudanças nos pilares de sustentação da sociedade oitocentista -trabalho escravo-, teria valor econômico, se fosse fundado sobre as bases do ensino primário. Nas suas palavras:
a falta de instrucção primaria nos obreiros, ainda os mais intelligentes, declararão os chefes de estabelecimentos industriaes mais eminentes, era um dos maiores e mais nocivos obstáculos, que se oppunhão ao desenvolvimento de suas faculdades e ao progresso da industria. (Barroso, [1867], 2005, p. 181).
A partir desse cenário, Liberato Barroso apontava que a responsabilidade pela organização e implementação do ensino profissional caberia ao Estado, cuja ação deveria ser ampliada para subvencionar e recompensar aos que se dedicassem por concessão de pensões ou socorros aos alunos pobres.
Vale registrar que, segundo Rosanvallon (1997), a perspectiva de Estado-protetor teve origem na Europa, na ideia de "produtor de segurança e redutor de incertezas", estando associada ao processo de elaboração da garantia de direitos civis e políticos que se consolidaram no século XIX. Para esse mesmo autor, a passagem do Estado-protetor para o Estado-providência se deu a partir dos pressupostos de que o mesmo não teria apenas por função proteger a vida ou a propriedade. Ou seja, deveria visar, igualmente, a ações positivas, tais como: redistribuição de renda, regulamentação das relações sociais, responsabilização por certos serviços coletivos, etc.
Nesse contexto, o Estado-providência exprime a ideia de substituir a incerteza da providência religiosa pela certeza da providência estatal. O referido autor ainda acrescenta que a passagem do Estado-protetor ao Estado-providência deveu-se às mudanças nas formas de representação dos indivíduos -a emergência do indivíduo como categoria política, jurídica e também na sua dimensão econômica-, assim como nas suas relações com o Estado e pela própria representação que a sociedade passou a ter de si mesma. Esse processo favoreceu o surgimento de "uma necessidade de corrigir e de compensar os efeitos de um certo «desencaixe social»" (Rosanvallon, 1997, pp. 19-20).
Liberato Barroso chamava a atenção de que a "correção dos efeitos de um certo desencaixe social" referidos por Rosanvallon exigia mudanças na sociedade das formas de auxiliar as crianças pobres. Afirmava que a "nossa desmoralizada falta de iniciativa individual e de espírito de associação" justificaria a proteção do Estado como
lhe cumpre, estes dous modos por que se manifesta e se desenvolve a liberdade humana, e nós conquistaremos o lugar, que a Providencia nos destinou no meio dos povos americanos. Se esses dous elementos do progresso moderno não podem dar-nos ainda todos os bellos resultados, que os outros paízes têm colhido, e por isto se torna necessária a intervenção mais directa e imediata do Estado. Não se perca de vista com tudo, que é sobre esse principio que se deve basear todo o desenvolvimento da indústria e da riqueza do paiz. (Barroso, [1867], 2005, p. 184).
Ainda segundo Liberato Barroso, o ensino profissional seria uma "consequência lógica e necessária", sem o qual a agricultura e a indústria não poderiam realizar os "admiráveis progressos4, que fazem hoje [séc. XIX] a admiração dos povos civilizados" (Barroso, [1867], 2005, p. 185). Além disso, seria abrangente, pois ensinaria "os conhecimentos especiais" necessários ao desenvolvimento do trabalho agrícola, industrial e comercial e, ainda, funcionaria como controle de possíveis sedições, pois dirigiria "as ideias do povo para as fontes do trabalho" (p. 179).
Ressaltamos que proposta de Liberato Barroso não é entendida como uma novidade, mas sim, mais uma dentre outras que existiram, como o exemplo da proposta de Antonio de Almeida Oliveira (1843-1887), político e bacharel em Direito, em seu trabalho intitulado O ensino público5. Essas proposições atribuíam a difusão da educação escolar para o "povo" como pré-condição para que o país alcançasse progresso econômico e social.
Nesse movimento, importou perceber que diferentes forças operaram provocando entre nós as condições de existência das instituições em exame: o Asilo de Meninos Desvalidos da Corte Imperial e a Companhia de Aprendizes Marinheiros de Sergipe. Essas Instituições asilares/ escolares -compostas por internatos- integraram um vasto conjunto heterogêneo de experiências a que a população de ingênuos, órfãos, pobres e/ou abandonados foi submetida. Nelas, o contato do interno com a sociedade e com a família foi rigidamente controlado (Rizzini, 2004, p. 168).
Asilo de Meninos Desvalidos da Corte imperial e Companhia de Aprendizes Marinheiros de Sergipe
É importante observar que as instituições asilares/escolares em análise eram parte integrante de um conjunto de instituições preventivas e não integravam o conjunto de escolas públicas primárias regulares, embora constatado a existência de um programa de ensino primário amplo, como relataremos adiante.
No Relatório ministerial da Justiça relativo ao ano de 1873 (p. 30), no item IV, intitulado Polícia e força pública, o ministro da Justiça, Manuel Antonio Duarte de Azevedo, discorre sobre o que denominou as instituições preventivas: tratava-se de asilos de mendicidade para tantos infelizes que por falta de forças físicas, por abatimento moral não tinham meios de se manterem e asilos para meninos desvalidos/desamparados. Para aquela autoridade a urgência na organização e manutenção de tais instituições devia-se à seguinte constatação: "muitos menores ainda não sujeitos à ação da justiça criminal mas por falta de amparo e protecção compõem a população que vaga pelas ruas da Corte Imperial" (Duarte, 1873, p. 30).
Há evidências de que tanto o Asilo de Meninos Desvalidos da Corte Imperial quanto a Companhia de Aprendizes Marinheiros de Sergipe foram instituições organizadas visando compensar um certo "desencaixe social" das crianças desvalidas, que deveriam receber educação que lhes proporcionasse uma inserção social mais qualificada, provavelmente uma estratégia governamental de construção de uma ordem civilizada.
Nesse sentido, é possível sustentar que no Brasil houve crescente participação do Estado nas questões de proteção aos menos favorecidos. Há evidências, ainda no período colonial, com as Ordenações Filipinas (1985), inclusive com vigência durante o período pós-independência6. No período imperial, além das Ordenações Filipinas, outras normalizações se fizeram para a proteção das crianças desvalidas. Este é o caso da Reforma Couto Ferraz, já referida, na tentativa de resolução dos problemas desse grupo social na cidade do Rio de Janeiro.
Destacamos a reforma de ensino Couto Ferraz por considerar que essa norma nos fornece condições para analisarmos o movimento de proteção à infância pobre por parte do Estado Imperial. A reforma de 1854 estabeleceu a instrução primária associada ao ensino de ofícios manuais em instituições que acumulassem as funções de asilo e de escola. Tal dado pode ser conferido nos termos do artigo 62:
Se em quaisquer distritos vagarem menores de doze anos em estado de pobreza que, além da falta de roupa decente para freqüentarem as escolas, vivam em mendicidade, o governo os fará recolher a uma das casas de asilo que devem ser criadas para este fim com um Regulamento especial. Enquanto não forem estabelecidas os meninos poderão ser entregues aos párocos ou coadjutores, ou mesmo aos professores dos distritos, com os quais o Inspetor Geral contratará, precedendo aprovação do governo, o pagamento da soma precisa para o suprimento dos mesmos meninos. (Tambara & Arriada, 2005, p. 47).
A presença da assistência estatal, aos pobres desvalidos, esteve presente também no artigo 63:
Os meninos que estiverem nas circunstâncias dos Artigos antecedentes, depois de receberem a instrução do 1° grau, serão enviados para as Companhias dos Arsenais, ou de Imperiais Marinheiros, ou para as oficinas públicas ou particulares, mediante um contrato, neste último caso, com os respectivos proprietários, e sempre sob a fiscalização do Juiz de Órfãos. Aqueles porém que se distinguirem, mostrando capacidade para estudos superiores, dar-se-á o destino que parecer mais apropriado à sua inteligência e aptidão. (Tambara & Arriada, 2005, p. 51).
As palavras de Couto Ferraz sinalizavam para uma crescente participação do Estado na gerência e garantia do direito que as crianças pobres tinham de acesso aos asilos/escolas. Consideramos também que essa ação diminuía os custos futuros da política social.
Finalmente, em 1873, com a aprovação da Lei de Orçamento relativa aos anos de 1873-1874, em sessão da Câmara do dia 04 de agosto de 1873, o Governo Central estimou as condições orçamentárias a fim de colocar em prática o artigo 62 da reforma educacional de 18547. Resolvidos os entraves financeiros, o Asilo de Meninos Desvalidos foi definitivamente criado por meio do decreto n°. 5532, de 24 de janeiro de 1874, ficando subordinado à Diretoria de Higiene e Assistência Pública.
Apesar das prescrições legais, a referida instituição só foi inaugurada, oficialmente, em 14 de março de 1875, na cidade do Rio de Janeiro, pelo Conselheiro e Ministro do Império João Alfredo Correia d'Oliveira (1835-1915) (Braga, 1924). Essa instituição asilar/escolar a partir de 1894, a fim de dar mais ênfase à dimensão da profissionalização, passou a ser administrada, exclusivamente, pela Diretoria de Instrução Pública, quando se tornou Instituto Profissional, em 1894 já na vigência da República.
No que se refere às ações militares destacamos as Companhias de Aprendizes Marinheiros. Todas essas instituições existentes no Brasil Imperial foram de origem estatal e regulamentadas pelas disposições do Decreto n° 1517 de 04 de janeiro de 1855, que definia a organização, o comando e administração das Companhias8.
No caso da Companhia de Aprendizes Marinheiros Sergipana a mesma foi criada pelo Decreto n° 4142 de 05 de abril de 1868, cujo objetivo era preparar os meninos desvalidos, maiores de sete anos, para servirem de mão de obra especializada à Marinha e ao Brasil, tanto em tempos de paz quanto em caso de guerra.
A entrada de menores na Companhia de Aprendizes Marinheiro acontecia a qualquer momento, podendo ser encaminhados por várias pessoas, desde os próprios pais, ou tutores, até pelo Presidente da Província ou pelo Juiz de Menores. Ao ingressarem na instituição os menores eram inspecionados pelo médico e pelo comandante da Companhia, que verificavam se o candidato estava apto ou não para o serviço, ou seja, se não apresentava alguma moléstia ou constituição física a ser desenvolvida.
Depois do ritual de inspeção, ocorria o assentamento. A Companhia de Aprendizes Marinheiros de Sergipe teve funcionamento irregular e em 1905 recebeu a denominação de Escola de Aprendizes Marinheiros - conforme o Decreto n° 5532 de 05 de Maio de 1905-. Nesse momento, a proposta educacional da instituição sofreu algumas alterações, dentre elas: a idade do menor ficou restrita entre os 13 e 16 anos. O ensino foi dividido em elementar e profissional e se incentivou a entrada de aprendizes já alfabetizados.
Já no Asilo de Meninos Desvalidos, para garantir a matrícula, os pais e responsáveis precisavam apresentar os seguintes documentos: certificado de batismo ou nascimento, certidão de óbito dos pais, destacando o atestado de pobreza que era expedido pelo vigário da freguesia onde o responsável pelo menino residisse, requisição de admissão que servia como forma de controlar a entrada dos alunos. Tais documentos comprovariam que os meninos eram desvalidos e dessa forma garantia-se a matrícula.
Assim como nas escolas regulares aos portadores de doenças contagiosas ou incuráveis, em especial a varíola e a tuberculose, doenças que assolavam a população da cidade na época, eram proibidas as matrículas nos dois estabelecimentos. No caso do asilo de Meninos Desvalidos aqueles que possuíam algum "defeito físico" que os impossibilitassem para os estudos e o aprendizado de um ofício também não eram admitidos, em conformidade com o artigo 2° do Regulamento de 1875 e o artigo 6° do regulamento de 1883.
Ambas as instituições, além do ensino de ofícios, tinham um programa de ensino que as aproximava das escolas regulares no que dizia respeito à cultura física -ginástica-, a cultura científica -noções de química e física (integrantes do ensino primário de segundo grau)-, a cultura artística -ensino do desenho aplicado às artes e ofícios, música vocal e instrumental-, além de Geografia e História do Brasil e instrução militar.
Afastavam-se das escolas regulares no tocante ao regime de funcionamento e objetivos de formação, isto é, funcionavam em regime de internato objetivando a formação primária profissional, desde a mais tenra idade, de um público numa condição social especifica: desvalido.
A partir de 1878, sete anos após a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, encontramos matrículas de meninos filhos do Ventre Livre no Asilo de Meninos Desvalidos. Foi possível identificar, na documentação consultada da referida instituição, um percentual de 5,89% de alunos sem sobrenome e de 2,24% de cartas de alforrias. A ausência do sobrenome, em 5,89% como uma das características de identificação dos filhos dos escravos, no caso do Asilo, não nos autoriza a afirmar que todos os alunos identificados apenas pelo prenome, fossem filhos de escravos.
Considerações finais
O estudo das instituições em tela nos permitiu perceber a incipiente movimentação do braço do Estado assumindo o valor da formação para o trabalho livre e qualificado numa sociedade que implodia em função do trabalho escravo. Dessa forma, a formação profissional para o trabalho livre e remunerado torna- se um valor para inserção social de crianças e jovens do sexo masculino considerados desvalidos.
Assim, desde meados do século XIX, observa-se o crescimento de ações do Estado protetor para o trato da criança desvalida. Um conjunto de acontecimentos que estavam em curso, como a industrialização, a urbanização, as mudanças nas relações de trabalho, possibilitaram a emergência da forma racionalizada de pensar a assistência estatal em conexão com a educação escolar, tanto de ordem civil quanto militar.
Desse modo, observa-se que essa forma de proteção manteve alguma similitude, tanto no que se refere às ações de ordem do governo Central, quanto aquelas promovidas pelos governos locais -aqui, a Província de Sergipe-.
Nesse sentido, o estudo problematizou a intercessão existente entre essas duas instituições visando compreender as práticas da emergência do assistencialismo público, ou seja, o funcionamento de instituições públicas, civis e militares, que acumularam as funções de asilo e de educação escolar profissionalizante para além da escola regular.
A partir da análise das práticas de assistência pela profissionalização das referidas instituições percebemos que tais ações foram soluções encontradas pelo poder público para a assistência à pobreza. Foi possível destacar o protagonismo do Estado na consolidação desta concepção. Vale ressaltar que no caso brasileiro, como afirmado comumente, a intenção de profissionalização de crianças e jovens desvalidos para inserção social não foi uma invenção republicana, mas sim parte do processo histórico de organização da nação brasileira ao longo do período imperial que, desde então, instituiu-se como dever do Estado e direito social. As instituições em tela, criadas no Império, perduraram até a República como Escola de Aprendizes Marinheiros de Sergipe (1905) e Instituto Profissional Masculino (1894).