Introdução
Apesar de Foucault 1 em seu livro Vigiar e punir: a história da violência nas prisões relatar as situações disciplinares prisionais, marcadas pela sucessão de penalidades como uma forma de controle da população em geral, percebe-se que tais técnicas disciplinares extrapolavam os muros das prisões e alcançavam outras instituições sociais tais como: escolas, hospícios, orfanatos, indústrias e hospitais.
Neste contexto, não o de "prisões", mas sim o de controle por meio de um poder disciplinador que é exercido pelo poder público sobre a população, é que se discute a situação dos quilombolas e as "punições" a que o sistema público de saúde do Brasil submete esta população. Essa população tem sido historicamente marcada por preconceitos e privações de direitos 2 e punidas em diversos contextos sociais 3, tornando-as, à luz do referencial utilizado, suscetíveis ao controle 1.
Ao considerar o sistema público de saúde brasileiro, entende-se que o mesmo é composto por gestores, profissionais da saúde além de usuários e, assim, as relações (e microrrelações) de poder não devem limitar seus sucessos e insucessos a apenas determinado grupo que compõe este sistema. Assim, é importante pensar a respeito do poder durante todo o texto, abordando como pode ser exercido o poder disciplinar no âmbito da saúde.
As comunidades remanescentes dos quilombos foram constituídas por vários processos diferenciados, como por exemplo, os citados pelas autoras Schmitt, Turatti e Carvalho 4: fugas com a ocupação de terras livres, heranças, doações, compra de terras, recebimento de terras como forma de pagamento de serviços prestados ao Estado, e a permanência nas terras em que trabalhavam dentro das grandes propriedades. O reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por esta população, torna-se importante na preservação da identidade cultural e social desta população 4,5.
Assim, a legalização destas terras é uma forma de garantir um espaço historicamente conquistado, a subsistência desta população e melhorias sociais, inclusive com sua participação em diversos projetos e programas sociais do governo federal tais como: financiamentos agrícolas e programas de auxílio financeiro, a exemplo do Bolsa Família 5.
Os quilombos, também conhecidos como comunidades remanescentes de quilombos, são organizações próprias determinadas, atualmente, pelo autorreconhecimento dos descendentes dos negros africanos escravizados pelos portugueses quando o Brasil era colônia de Portugal 4. Após o término da escravidão, o distanciamento dos centros urbanos da maior parte dos quilombos, apesar de manter seus valores culturais preservados tais como o tipo de alimentos que preparam, a religiosidade, a relação com atividades ligadas ao trabalho com a terra, fez com que esta população permanecesse às margens da sociedade, sobretudo pela escassez de emprego fora dos quilombos, levando-os a permanecer em atividades predominantemente rurais.
O reflexo do descaso com esta população pode ser observado na sociedade atual pelas condições de moradia, atividades laborais rurais ou nas condições desiguais de saúde que se encontram. A organização desta população se tornou uma resistência ao processo de dominação e controle aos quais esta população foi submetida, na tentativa de mitigar as penas que a sociedade insiste em imputar 1, disciplinando esta população de acordo com os interesses da elite brasileira de exercer o controle dos meios de produção ao longo da história do Brasil 2 e, portanto, precisar de trabalhadores em condições similares à escravidão, trabalhadores dóceis e úteis ao sistema produtivo.
Assim, as características rurais destas comunidades foram submetidas ao modo de produção capitalista, sobretudo pelos latifundiários, parte da elite brasileira que vem exercendo seu poder dominante na sociedade desde a época do Brasil colônia. As condições sub-humanas, as chicotadas e os maus tratos sofridos pelos escravos foram suprimidos da história do Brasil e, de forma similar, as penalidades utilizadas no século XIX foram mitigadas. Isso foi fomentado pelo capitalismo, por exemplo, ao criar indústrias, quando surgiu a necessidade de controlar a mão de obra e os meios de produção, o que produziu cidadãos disciplinados e úteis aos meios de produção 6.
Destaca-se que os quilombolas lutam pelo direito de serem agentes de sua própria história, mesmo submetidos às relações de poder desiguais 4. Desde antes do movimento abolicionista, no qual os negros escravizados lutaram contra a escravidão que existia no Brasil, os quilombos se caracterizaram como locais de resistência que abrigavam escravos rebelados e que já buscavam a igualdade de direitos na sociedade. Estas comunidades eram locais de difícil acesso transformados em uma fronteira social, cultural e com característica militar que, por sua vez, agrupava outras manifestações de protestos, não exclusivo da população negra. Tal movimento de resistência recebia o nome de "quilombagem" 2.
Deve-se pensar sobre as condições históricas ou atuais que levam à continuidade de situações tais como as desigualdades raciais e sociais, que podem levar a um provável afastamento dos serviços de saúde. A luta pela subsistência, as más condições de moradia, o distanciamento dos centros e as precárias condições financeiras são algumas das características que vão interferir no acesso e utilização dos serviços de saúde pelos quilombolas 7-9. A vulnerabilidade social em que esta população se encontra 7 e a presença de agravos à saúde reflete nas condições de acesso aos serviços de saúde, como por exemplo, as más condições de saúde dos quilombolas, a autopercepção negativa de saúde 10,11, os casos de depressão 12 e a prevalência de doenças crônicas 13-15, que acabam impactando em uma menor expectativa de vida 16.
Desta forma, o presente estudo pretende refletir acerca do acesso ao sistema de saúde pública por quilombolas brasileiros. Para isso, utilizou-se como referencial teórico o livro Vigiar e punir: a história da violência nas prisões, do pensador francês Michel Foucault, por discutir as relações de poder em instituições diversas, sobretudo no que se refere ao disciplinamento que visa gerar corpos dóceis, onde tal adestramento pode conduzir as pessoas a terem uma menor capacidade de discernimento político. Portanto, trata-se de uma reflexão teórica que visa apresentar resultados em uma perspectiva interpretativa, de forma analógica ao poder disciplinador em relação ao acesso ao sistema de saúde pública pelas populações quilombolas.
Para isso, primeiramente discutiu-se, à luz do referencial, a questão da garantia dos direitos à saúde pública da população quilombola. Em seguida, foram apresentadas as condições de saúde e de vida em geral desta população e, por último, foram evidenciadas as dificuldades da população quilom-bola quanto ao acesso e utilização dos serviços de saúde pública.
Aspectos legais da saúde pública brasileira: suplícios e punições no acesso à saúde
O Estado brasileiro garante por lei o direito à saúde de sua população, mas percebe-se uma dificuldade de acesso a estes serviços que, por analogia ao referencial teórico de Foucault, 1 trata-se como "suplícios", não como uma forma jurídica-política que evidenciava a manutenção do poder monárquico nos séculos XVI e XVII mas com a evidência do suplício como um agente político e disciplinador que visa ao controle do poder exercido pela elite brasileira e as formas de resistências exercidas pelas populações quilombolas nesta rede de poder 1.
A constituição brasileira, em seu artigo n° 196, diz que "a saúde é direito de todos e dever do Estado" e garante o "acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação" 17. Salienta-se que para se chegar a este documento foram necessárias várias manifestações sociais e discussões políticas contra o sistema de saúde vigente.
Antes de 1988, e da criação do Sistema Único de Saúde (sus), existia uma assistência à saúde ligada à Previdência Social, restrita aos trabalhadores registrados que contribuíam com a mesma; os demais trabalhadores não tinham o direito à saúde gratuita 18,19. Alguns movimentos por parte de universidades, organizações sociais, e profissionais ligados à saúde foram fundamentais para ampliar esta discussão. Alguns eventos contribuíram, como por exemplo: a Reforma Sanitária, no regime militar; a 8a Conferência Nacional de Saúde, em 1986, a qual aprovou a unificação do sistema de saúde, e o dever do estado para com a saúde da população 18-20.
Tais eventos, sobretudo a 8a Conferência Nacional de Saúde, serviram de base para a elaboração da Constituição Federal e a criação do sus e seus princípios, dos quais se destacam a integralidade como uma garantia por parte do governo da assistência à saúde integral, portanto, direito de todo e qualquer cidadão, e o princípio da equidade, com o objetivo de reduzir as desigualdades, através da assistência dada de acordo com as necessidades de cada pessoa ou grupo populacional 20. Assim, parte da população legalmente deixa de ser excluída do sistema público de saúde e passa a ter direito ao tratamento adequado às doenças e, consequentemente, reduzir os casos de morte por falta de assistência médica.
Analogamente à perspectiva de Foucault, pode-se afirmar que antes destes marcos legais o sistema de saúde atendia interesses diversos do Estado e dos empreendedores da área hospitalar privada que suprimiam os direitos coletivos como, por exemplo, a expansão de hospitais particulares com dinheiro público. Estes hospitais atendiam uma parcela pequena da população, aquela que possuía trabalho registrado, logo eram contribuintes do sistema de Previdência Social do governo. Desta forma, pareciam "punir" àqueles que não contribuíam com a Previdência Social deixando-os sem o direito ao acesso à saúde pública, o que os levava ao agravamento de morbidades ou à morte, verdadeiras situações de "suplícios" não ostentadas pela mídia devido ao controle social exercido pelo sistema ditatorial militar que proibia a divulgação de tais informações por meio de censuras 1,18,19.
Para que estas mudanças ocorressem, observa-se que anterior à Carta Magna das leis brasileiras, a opressão social e a falta de acesso aos serviços de saúde pública, pela maior parte da população, fez com que a sociedade se organizasse 20 dentro de uma rede de poderes que envolvia diversos setores como associações de bairros, sindicatos de trabalhadores, dentre outras instituições que se mobilizaram em busca de adquirir direitos à saúde para todos. Deste modo, a Constituição Federal teve grande avanço político, gestor e social para a saúde brasileira: mudou o discurso e visou atender toda a população brasileira e pode-se afirmar que, do ponto de vista legal, existe uma consistência teórica e estrutural bem fundamentada 21.
No sus, sistema de política pública inclusiva, reconhecida internacionalmente, observa-se que aproximadamente "75% da população brasileira depende do sus para ter acesso aos serviços de saúde" (18, p2), entretanto, percebe-se uma subutilização dos serviços de saúde por parte dos quilombolas 11. Neste sentido, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), portaria n° 992/2009, tendo como um de seus objetivos específicos garantir e ampliar o acesso da população negra do campo e da floresta, em particular as populações quilombolas, às ações e aos serviços de saúde.
Pesquisadores brasileiros 20 publicaram que, apesar de existirem avanços na discussão e implementação da PNSIPN, no Estado da Bahia, por exemplo, não se percebeu uma efetivação destas ações. Tal fato se deve, principalmente, à falta de investimentos em ações para a concretização das etapas de implantação desta lei, sobretudo no que se refere à definição e atualização de indicadores de avaliação e monitoramento da PNSIPN para que se possa comparar as diferentes localidades e se obter, de fato, o impacto e avanços desta política 20.
Mesmo com a garantia constitucional e a publicação da portaria n° 992/2009, observou-se que tais propostas não foram concretizadas, não só em um Estado 20, mas em todo o território nacional. Este fato obrigou o Conselho Nacional de Saúde a publicar a "Recomendação n° 030/2012" direcionada ao Ministério da Saúde por considerar que, dentre outras coisas, o mesmo não cumpriu o proposto na Portaria n° 922/2009 22.
Tal recomendação mostra preocupação em: elaborar um sistema de monitoramento e avaliação da implementação das ações da PNSIPN; criar uma estratégia de gestão direta da PNSIPN na esfera federal; também desenvolver ações para eliminar iniquidades raciais, de gênero, classe e território, e promoção da equidade (destaca-se a população negra) dentro do modelo de regionalização das Redes de Atenção à Saúde 22.
Desde o ano 1988 (efetivação da constituição federal) até 2012 (publicação da recomendação n° 030/2012), há vinte e quatro anos de suplícios no cumprimento dos direitos à saúde da população negra e dos quilombolas. Tal "sofrimento" parece coexistir explicitamente, mesmo cinco anos após a publicação da recomendação ao Ministério da Saúde. Reflete-se sobre o não cumprimento dos direitos no Brasil onde se tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo em estruturação e que, mesmo com os avanços, ainda não atingiu sua excelência em acesso e atendimento 18,20. Há leis nacionais bem formuladas, mas que não são cumpridas, então se questiona: Quais tecnologias de poder são exercidas sobre os sujeitos? E quais mecanismos de controle são aplicados para reproduzir esse poder?
Certamente, as perguntas acima não serão plenamente respondidas, mas servirão de reflexão sobre quais interesses existem por parte dos gestores públicos na manutenção de uma saúde pública precária, entretanto, com potencial de melhora. Nota-se que o avanço dos aspectos legais em prol da população, como um todo, fez com que ela se tornasse alvo do poder disciplinar. Foram criados mecanismos para o enfraquecimento do potencial político da população, como pode ser percebido no chamado Controle Social, por meio, principalmente, da participação nos conselhos de saúde, nos quais as redes de relações entre gestores, profissionais e usuários são estabelecidas e o poder é exercido, muitas vezes, de forma desigual.
Os Conselhos de Saúde foram criados para que os diversos segmentos que compõem a saúde pública no controle social pudessem participar por meio do controle social das políticas públicas na área da saúde. Desta forma, pode-se considerar o poder disciplinar como exercício estabelecido na rede que compõe um Conselho de Saúde e não como prerrogativa do estado 1. No entanto, nota-se que a composição dos conselhos muitas vezes torna os usuários úteis aos interesses dos gestores e dos profissionais, seja por uma sensação de vigilância iminente aos gestores que compõem o conselho ou por um conhecimento evidenciado pelos profissionais de saúde em geral sobre os temas discutidos em reuniões.
Ao analisar os membros de um conselho de saúde, por exemplo, percebeu-se que os conselheiros de saúde mais antigos e os gestores do sistema de saúde pública apresentavam maior conhecimento do que seus pares, usuários, trabalhadores de saúde e conselheiros mais novos; tal saber remete a um maior exercício do poder no direcionamento das políticas de saúde 23. Este fato contribui para uma não participação efetiva da sociedade civil nestes espaços de construção de políticas públicas de saúde e dificulta que o controle social aconteça de fato 24.
Tal situação beneficia a saúde privada, por meio do crescimento dos planos de saúde particulares e a quantidade de clínicas e hospitais privados, agravada pela não mobilização dos usuários dos serviços de saúde contra essa situação 19,25. Na perspectiva de Foucault 1, pode-se considerar que a sociedade é disciplinada e enfraquecida politicamente pelo sistema ao contribuir para que o poder exercido se mantenha disciplinado.
Características de saúde dos quilombolas: superando os corpos dóceis
Ao conhecer as condições sociais e de saúde que são impostas às comunidades quilombolas, é possível melhorar a compreensão da situação desta população. A busca pela mudança dessa realidade se faz necessária, principalmente por meio de lutas para a garantia do cumprimento das leis e da participação social e, assim, não serem comparadas aos conhecidos "corpos dóceis", disciplinados e úteis à manutenção do sistema 1.
A implantação da PNSIPN foi um dos avanços do sus no Brasil. Contudo, sabe-se que a garantia dos direitos nacionalmente não é algo fácil, sobretudo, para as comunidades quilombolas. Assim, aumenta-se a responsabilidade destas comunidades a se organizarem em associações quilombolas registradas e reconhecidas legalmente, na busca da garantia aos direitos de acesso e utilização dos serviços públicos de saúde, com o desenvolvimento de ações de saúde específicas aos quilombolas.
No Brasil, a maior parte da população é formada por negros e devido ao processo histórico de desigualdades a qual foi submetida, pode apresentar seu estado de saúde agravado ou uma menor expectativa de vida, certamente por ser mais fragilizada nas questões sociais e econômicas 16. Precisa-se perceber que as lutas anteriores dos quilombolas (queda do regime escravocrata e, posteriormente, pelo reconhecimento de seus territórios e sua identidade) não retira a possibilidade de buscar novas lutas na atualidade e fortalecer esses novos desafios, sobretudo, na área da saúde.
As populações quilombolas caracterizam-se por: residirem em áreas rurais, possuírem baixo nível de escolaridade, cor de pele negra e viverem em condições precárias 5,26,27. Tais condições de vida acarretam problemas de saúde diversos como: parasitoses intestinais, depressão 12, síndrome metabólica 13, hipertensão arterial 7,14,15,27 e parasitoses intestinais 27.
As condições de saúde e a precariedade em que vivem as populações quilombolas, caracterizando-as como uma população pobre e com a saúde debilitada, remete ao pensamento discutido por Foucault sobre as disciplinas e as formas de poder exercidas nos séculos XVII, XVIII e XIX sobre a formação de corpos dóceis que, simultaneamente, são uteis ao sistema econômico, mas são condicionados a uma menor participação política 1.
A manutenção das condições precárias, social e de saúde, das comunidades remanescentes de quilombos, contribuem para uma autopercepção de saúde negativa, que pode ser associada à dimensão sociodemográfica e a escolaridade 10,28. A autoavaliação negativa de saúde também tem sido associada a: cor da pele classificada como preta ou parda, presença de doenças crônicas, atividades da vida diária comprometidas, maior apoio social e realização de consultas médicas 28. Outros autores 10 encontraram a associação da autoper-cepção de saúde com idade, hipertensão arterial, diabetes, artrite, depressão, problemas de coluna e morbidade autorreferida.
Percebe-se a variedade de condições de saúde que precisam de maior atenção, sobretudo, a associação da autopercepção de saúde com as condições sociodemográficas em que estão inseridos. Desta forma, as associações mostram que os quilombo-las precisam buscar a fuga de um "corpo dócil" ao não reivindicar seus direitos e deixar de ser um "corpo útil" a um sistema que parece sofrer com um gerenciamento público precário. Pois, dentro do pensamento de Michel Foucault 1, sabe-se que o poder, sobretudo na forma disciplinar, não é prerrogativa de ser exclusiva do Estado, mas é exercido por todos que compõem a sociedade gerida por ele.
Além da busca pela sua identidade étnica, social e cultural, os quilombolas tem um desafio constante na atualidade que é a luta pelas melhorias socioeconómicas e de saúde. Visa-se maior participação nos conselhos de saúde e demais espaços políticos (universidades, associações, organizações não governamentais, mídia, movimentos sociais, audiências públicas, dentre outros). Sabe-se que a certificação e reconhecimento das comunidades contribuem no desenvolvimento de políticas públicas diversas 4, entretanto, mesmo em comunidades já reconhecidas, os problemas de acesso aos serviços de saúde pública permanecem, seja pelas condições precárias em que se encontram 27, pelo distanciamento geográfico predominante em áreas rurais 11,26 ou outras causas.
Percebe-se que a organização legal das comunidades quilombolas em associações que buscam melhorias para as diversas áreas e para a saúde, especificamente, constitui um espaço de relações de poderes. O poder não se resume a uma única coisa, a um único fato, ele acontece em uma rede composta por diferentes lutas e forças que se relacionam 29. Nesta comunidade organizada, podese perceber ainda o início de uma rede de poderes exercido pelos quilombolas e que pode ser exercido no âmbito da saúde coletiva alertando os setores responsáveis sobre as suas reais necessidades relacionadas aos serviços de saúde.
A estrutura social da sociedade brasileira contribui para o disciplinamento de tais condições vividas pelas comunidades quilombolas e dificultam o exercício do poder destas pessoas em diversos setores da sociedade, dentre eles, no sistema público de saúde. Analogamente ao pensamento de Foucault 1, o sistema de saúde pode contribuir para que esta população se normalize, ou seja, não saia das normas que, historicamente, vêm disciplinando esta população e a deixa vulnerável.
Observa-se que o próprio sistema de saúde tem acesso às informações de saúde da população 30 por meio de relatórios dos sistemas informatizados, além da existência de publicações científicas que denunciam os problemas e especificidades da saúde dos quilombolas, como a existência de depressão 12, síndrome metabólica 13, hipertensão arterial 15, dentre outras, ou seja, as informações necessárias para o desenvolvimento de ações que estão "vigiadas", existem.
No entanto, assim como as leis que dão garantia de direitos, tais informações muitas vezes não são utilizadas como subsídios para intervenções efetivas que melhorem os serviços de saúde. Assim, ao considerar-se a analogia com Foucault 1 ao abordar o ato de vigiar, percebe-se que existe a falta de visibilidade de quem vigia por aqueles que são vigiados, fato que pode gerar uma preocupação nas pessoas vigiadas e torná-las mais úteis.
A quem serve a manutenção de uma gestão que não garante os direitos da população quilombola? Talvez essa reflexão seja explicada pelas formas do exercício do poder que transforma projetos de governos em projetos políticos divergentes daquilo que é realmente necessário para a melhoria da saúde da população. A rede de poder existente na gestão pública, em grande parte, é composta por políticos (gestores), sem representatividade significativa da população estudada.
Enquanto os gestores exercem o poder nas esferas municipais, estaduais e nacionais, parte da população deixa de ocupar espaços nesta rede de poder e fica excluída do direito de participação popular na gestão, passando a ser conivente com as decisões dos gestores 23,24. Neste sentido, vale refletir sobre Foucault 1 quando se refere ao século XVIII, dentro do princípio da clausura: deve-se evitar as concentrações em grupos e dividir tais grupos, na medida do possível, e vigiá-los para facilitar a dominação por meio de uma organização disciplinar, em prol do exercício do poder.
Vê-se a necessidade da participação popular efetiva na escolha e acompanhamento de seus representantes políticos, tanto nos órgãos executivos, quanto nos órgãos legislativos. Entretanto, o desconhecimento das políticas públicas ainda pode ser uma barreira a esta participação 23, a exemplo de um estudo com população negra no qual se constatou que 90 % dos usuários do sus que foram pesquisados desconheciam a existência da política de saúde para a população negra 16.
Entender como funciona o sistema de gestão pública voltada à saúde, bem como as leis que regem este sistema, pode fornecer instrumentos de um saber teórico que possa facilitar a participação dos quilombolas para exercerem o poder e o saber que permitirão discutir melhorias de suas condições de saúde. Desta forma, a busca desse saber pode facilitar o exercício do poder nesta rede composta pelos membros do sistema de saúde ao se apoderarem das discussões e ao procurar a garantia de direitos, pois esta população conhece suas próprias necessidades e especificidades e assim pode dialogar com mais segurança 30.
Ao abordar o sistema jurídico no século XVIII, que podem ser atuais nesta reflexão, Foucault 1 mostra que as disciplinas classificam, hierarquizam e dividem em torno de uma norma e geram uma assimetria nos poderes exercidos. Desta forma, as desigualdades enfrentadas pelas populações quilombolas podem ser agravadas pelo exercício de poder de forma assimétrica, levando-as a uma hierarquização social e de saúde desfavorável, e enfraquecimento da coletividade.
Nesse sentido, as desigualdades étnicas e raciais devem ser consideradas ao se exercer o poder dentro da rede de gestão em saúde. Com esse intuito, publica-se a recomendação n° 030/2012 do CNS que sugere a necessidade de "realizar uma avaliação institucional da implementação do quesito raça/cor em todos os sistemas de informação do sus" (22, p2).
Conhecer a realidade desta população pode contribuir para minorar as questões de desigualdades étnico-raciais no âmbito da saúde. Há, por exemplo, pesquisas que apontam que as comunidades quilombolas são vitimadas pelo preconceito racial, assim, "evidenciar e discutir as desigualdades e as discriminações étnicas e raciais é um passo determinante para entendê-las e enfrentá-las" (31, p253).
Acesso dos quilombolas aos serviços de saúde pública: liberdades, punições e o exercício de poderes
As condições de acesso à saúde pelas comunidades quilombolas são dependentes da vontade de agir deste grupo populacional que, por sua vez, relaciona-se com o saber que gera a verdade para esta população e o posterior exercício pela "liberdade". Entretanto, nota-se que a PNSIPN parece não ter "libertado" a população negra da segregação racial nos sistemas públicos de saúde.
Mesmo com as diversas morbidades e fragilidades sociais existentes, observa-se que a população quilombola, historicamente, não tem o devido acesso aos sistemas públicos de saúde 8,11,25. Defende-se que a PNSIPN visa garantir a equidade na atenção à saúde desta população, porém percebe-se uma dificuldade com a discriminação racial na efetivação desta política 16. O racismo se torna uma forma de controle, disciplinando ações sutis para esta população.
Apesar do termo "equidade" não aparecer comumente nos estudos em conjunto com o termo "acesso", é preciso verificar simultaneamente estas dimensões e seu impacto no sistema de saúde 32,33. As pessoas do sexo feminino, que não concluíram o ensino fundamental, não brancas e sem plano de saúde possuem mais chances de se sentirem discriminadas por médicos ou profissionais de saúde, dentro dos serviços de saúde 34. O racismo contra a população negra é fruto de um poder exercido na sociedade brasileira e subjuga esta população, privando-a de seus direitos e ampliando as desigualdades, raciais e sociais. Assim, utiliza-se o pensamento de Foucault para afirmar que a liberdade que os quilombolas teriam de acesso equânime aos sistemas de saúde foi privada 1.
Além da desigualdade no conhecimento da população estudada sobre as políticas de saúde 19,23, existem no sus as desigualdades geográficas e sociais, especialmente em grupos minoritários 20, a exemplo de uma comunidade quilombola onde se percebeu a dificuldade de promoção dos processos inclusivos de universalidade e equidade em saúde 8. Notou-se uma subutilização de serviços de saúde por parte dos quilombolas pesquisados 11.
Encontra-se, ainda, desigualdades raciais que impactam na saúde da população negra, iniquidades raciais na saúde vitimadas pelo racismo, mas que por meio da ação de gestores podem ser superadas 30. Foucault 1, ao questionar as prisões sobre o seu funcionamento na fabricação de uma delinquência a qual teria que combater, aborda que as prisões acabavam por ampliar as desigualdades sociais por meio da criação da figura do "delinquente" e o diferenciavam do chamado "infrator". Assim, dentro do pensamento de Foucault, pode-se afirmar que a desobediência às leis que garantem o atendimento equânime dos quilombolas acontece por causa do racismo nos serviços de saúde que acaba ampliando estas desigualdades e assume o papel do delinquente.
No século XIX, percebia-se a existência de uma diferenciação social onde o delinquente era caracterizado por crimes mais brandos, os quais eram punidos com penas mais severas, e praticados por pessoas de classe social mais baixa, enquanto as pessoas das classes sociais mais altas praticamente não eram punidas ou, quando acontecia, as penas eram irrisórias perante o crime cometido 1. Nesse sentido, considera-se que, no atual contexto, a desigualdade social sofrida pela população negra e comunidades quilombolas, que possuem menor renda na sociedade, parece contribuir para que estas populações tenham maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde do que outros grupos populacionais.
Foucault afirma que o disciplinamento que acontecia nas prisões transpôs as paredes do cárcere e se infiltra nas diversas instituições da sociedade: escolas, hospitais, administração pública, dentre outras, buscando a manutenção do poder 1. Mesmo sem cometer algum ato infracional contra o governo, os quilombolas historicamente, socialmente e politicamente foram mantidos como "corpos dóceis" disciplinados a serviço da sociedade, o que os tornavam produtivos. Esta situação culminou na marginalização desta população no acesso ao sistema público de saúde.
Dentre as dificuldades de acesso universal e equânime ao sistema de saúde da comunidade quilombola 8, tem-se que pode estar atrelada ao discipli-namento da saúde pública, marcado pela discriminação de usuários, geralmente de baixa escolaridade 19,34, não garantindo acessos igualitários à saúde 34. Outra dificuldade de acesso aos serviços de saúde é que em algumas comunidades quilom-bolas existe pouca quantidade de unidades básicas de saúde em seu território, mesmo que todas elas apresentem cobertura dos então chamados Programa de Saúde da Família (PSF), atualmente Estratégia Saúde da Família 11.
Destaca-se o alto resultado de referência ao serviço de saúde de uso regular (74,4 %) e de cobertura pelo PSF (82,8 %) 11. Tal fato refere-se à importância da participação das equipes de saúde no gerenciamento de informações e repasse aos gestores em geral. Neste caso, o "acesso" parece atender a necessidade da população, mas as dificuldades encontradas devido às condições sociais, econômicas, de infraestrutura, na capacitação dos profissionais sobre o modo de vida, cultura e as especificidades dos problemas de saúde dos quilombolas poderiam melhorar o acesso e utilização dos serviços de saúde 7,11,28.
A privação dos direitos a que estas comunidades estão submetidas podem ser percebidas quando pesquisadores concluíram que, em um estudo com quilombolas idosos, era necessário ampliar o acesso aos serviços de saúde, integralidade e continuidade da assistência oferecida a esta parte da população, além de propor melhorias das condições socioe-conômicas as quais podem afetar as condições de saúde e a qualidade de vida desta população 9.
Outro exemplo em relação ao acesso à saúde das comunidades quilombolas encontra-se no estudo que constatou que "a persistência de fragilidades relacionadas às questões sociais e de saúde" (8, p610) foi considerada como um "grave problema" em debates que abordam as "análises das responsabilidades público-privadas quando das questões da exclusão-inclusão, desigualdade-igualdade, iniquidade-equidade, do gerenciamento do sistema sanitário e do respeito à cultura e identidade étnica" (8, p617).
Nota-se que as comunidades quilombolas parecem presas ao sistema de saúde, amarradas pelas precariedades, e vivem tentando superar a invisibilidade perante o sistema de saúde 8, penalizadas pelo desrespeito característico de uma sociedade construída sob a égide da escravização e do elitismo 2,3,8, muitas vezes controladas sutilmente sem perceberem que foram disciplinadas para chegar neste estado 1.
Assim, para exercer o poder nas decisões políticas na saúde brasileira, sobretudo em participações de Conselhos de Saúde, a população quilombola, usuária deste serviço, precisa se apoderar de conhecimentos 23. O saber e o poder podem ser exercidos por meio da aquisição de conhecimentos, na rede de relações de poder constituída entre usuários, trabalhadores, e gestores do sistema público de saúde. Estas redes transformam-se em espaço de discussões que encontra no poder não somente um caráter repressivo 1, mas um constructo histórico produtivo, caracterizado por efeitos de verdade, de subjetividade e de lutas 2. Reflete-se que a liberdade de decisão e o poder são indissociáveis, e importantes à medida que visam aprofundar o debate em prol das políticas públicas e, sobretudo a ação ao enfrentar esta realidade 1.
As estruturas de poder impostas aos quilombolas parecem privar a liberdade dos quilombolas por meio da supressão de direitos adquiridos por força de lei ao longo da história e que hoje são suprimidos por um racismo no sistema de saúde que amplia as desigualdades sociais e raciais. Na perspectiva de Foucault 1, entende-se que a busca pelo saber contribuirá no fortalecimento das relações das redes de poder para o avanço da saúde pública, tendo em vista que o poder não se concentra em um só espaço.
Considerações finais
Pode-se refletir que, mesmo com os direitos à saúde garantidos por lei e por possuírem necessidades específicas de atendimento, as populações quilombolas não têm seus gritos ouvidos e sim suprimidos pelas condições de vida precárias em que se encontram. Dessa maneira, percebe-se que o sistema de saúde brasileiro não consegue ser equânime em garantir o acesso à toda a população.
Os questionamentos feitos nesta reflexão não vêm retirar o mérito do sistema de saúde pública brasileiro, mas chamar a atenção para a recorrência das dificuldades de acesso aos serviços de saúde pelas populações quilombolas. Dessa forma, deve-se considerar a corresponsabilidade de todos os envolvidos neste processo: gestores, usuários e trabalhadores da saúde que formam redes de relações de poder enfraquecidas politicamente, e o poder disciplinador existente na sociedade e, consequentemente, no sistema de saúde pública.
Os quilombolas e as diferentes equipes de saúde exercem um papel de corpos disciplinados e podem ser conduzidos sutilmente a deixar de fiscalizar e cobrar ações mais concretas como as propostas previstas em leis, decretos e recomendações. Tal fato sugere um aprofundamento das relações de poder existentes na rede composta pelo sistema de saúde nacional.
O exercício do poder na saúde brasileira deve perpassar pelas questões da busca de conhecimento e contribuir para a garantia de direitos adquiridos por lei como também pode ocasionar mais discussões contrárias ao racismo nas instituições de saúde pública, fatos que podem ajudar a reduzir as desigualdades étnicas e raciais no atendimento e oferta de serviços públicos de saúde.
Assim, percebe-se que, à luz do referencial teórico de Michel Foucault, o "poder" político existente nas relações das comunidades quilombolas com os serviços de saúde pública, cria dificuldades diversas e se perpetua há anos.