INTRODUÇÃO
"Já estava cansada de viver às margens da vida" (de Jesus, 2019)
O presente artigo é resultado das pesquisas e da atividade acadêmica dos autores no âmbito do curso de graduação em Direito da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Os autores são membros do Grupo de Pesquisas Teoria Crítica do Constitucionalismo e da Rede Brasileira Direito e Literatura e ao longo de quase 3 anos de parceria de pesquisa desenvolveram projetos de pesquisa e artigos que tratam dos efeitos jurídicos e sociais de uma política de invisibilidade e de amnésia social e política no acesso e concretização dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana. Para essas pesquisas, buscou-se como norte epistemológico uma proposta de interseção da Teoria da História e da Memória Política, segundo Walter Benjamin, com o Direito, de modo a reconhecer que a construção política da memória possui um grande potencial para interromper uma lógica política, jurídica, histórica, em suma, estrutural que causou (e ainda causa) muitas injustiças e sofrimentos.
Passados mais de 60 anos da publicação de sua obra "Quarto de Despejo" a escritora, poetisa, crítica social e política Carolina de Jesus segue desconhecida do grande público, mesmo da crítica especializada, ainda que sua obra tenha sido publicada em mais de 15 países e em mais de uma dezena de idiomas. Negra, pobre, semialfabeti-zada, mãe solteira, a autora serve como ponto de partida para o presente artigo não só por ter exercido a atividade profissional objeto dessa pesquisa, ou seja, empregada doméstica, como também por sua voz crítica, contundente e relevante na crítica contra as injustiças sociais a que estava submetida, ou seja, por tornar claro o papel fundamental de uma narrativa construída do ponto de vista das vítimas. Afinal, Carolina fazia uma literatura de negros, com conteúdo feminista, narrando a opressão social e a ineficácia negligente dos direitos humanos, apresentando-se assim como um exemplo vivo e concreto da diferença, em relação àquilo que é hegemônico, àquilo que é apresentando como oficial ou verdadeiro (Toledo, 2010).
Esse artigo se propõe a analisar a condição histórica de vulnerabilidade social e violação de direitos que as trabalhadoras domésticas enfrentam no Brasil e as consequências nefastas e permanentes desta condição, que foi consideravelmente piorada e aprofundada devido a pandemia de Covid-19. Sendo, portanto, o objetivo do trabalho utilizar a figura da empregada doméstica como objeto de estudo para demonstrar que o problema da desigualdade social e da constante violação de direitos fundamentais não é algo novo, é algo perene e, ao mesmo tempo, tão desconhecido no país, tendo o novo coronavírus sido apenas um agente capaz de evidenciar ainda mais essa difícil realidade que se encontra, em muitos sentidos, encoberta. A partir disso, iremos demonstrar como os elementos presentes na Teoria da Memória podem ser potencialmente capazes de emancipar essa classe trabalhadora que é alvo de opressão e invisibilidade há tanto tempo.
Desse modo, foi escolhido o método hipotético-dedutivo para melhor desenvolver o presente artigo, uma vez que o ponto de partida é a condição de vulnerabilidade social das empregadas domésticas, que fora agravada pela pandemia. Essa problemática é ancorada, durante a pesquisa, na hipótese de que, em verdade, essa condição é histórica e que, com a pandemia da Covid-19, ela foi escancarada, demonstrando como, mesmo em um país com um texto constitucional ancorado na dignidade da pessoa humana e na cidadania, ainda é possível sentir os efeitos de um passado que se faz cada dia mais presente.
Com a utilização de revisão bibliográfica e análise documental, o primeiro capítulo se ocupa em apresentar, primeiro, como a Carta Constitucional de 1988 prezou pela observância dos direitos sociais e sociais do trabalho, logo, direitos fundamentais, pelo viés de dois princípios fundamentais basilares: a dignidade da pessoa humana e a cidadania. De forma que, não seria possível falar em efetivação desses princípios sem garantir aos cidadãos condições básicas de existência e de labor. Após discorrer um pouco sobre a importância da constituição conhecida como "cidadã", o primeiro capítulo também trabalha a questão de que, apesar do reconhecimento que passam a ter no rol dos direitos fundamentais constantes nessa constituição, muitos brasileiros parecem estar presos em um limbo passado-presente que os faz não conseguirem terem garantidos e efetivados seus direitos. Sendo, então, demonstrado como o Brasil foi alvo de um projeto de "modernidade" que não deu conta da realidade brasileira existente no século XIX e que tratou de excluir aqueles que não se "encaixavam" nessa nova forma de organização moderna, emergindo desse cenário a figura da empregada doméstica.
O segundo capítulo descreve um panorama geral sobre a pandemia de Covid-19 que assolou o mundo a partir de 2020 e como os efeitos dessa pandemia têm cumprido ao papel de escancarar o nível de desigualdades existentes em vários países, mas, principalmente, naqueles tidos como "periféricos", como é o caso do Brasil. E, novamente, também é demonstrado que esse não é um movimento novo. Nesse sentido, a obra "A Bailarina da Morte", de Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, é uma excelente fonte para demonstrar que durante a pandemia de gripe espanhola que assolou o país em 1919, cento e dois anos atrás, os que mais sofreram seus efeitos também foram as camadas mais pobres da sociedade brasileira à época. Partindo desse panorama geral, o capítulo ainda traz as dificuldades enfrentadas pelo sujeito da pesquisa, isto é, as empregadas domésticas, tendo a análise dessas dificuldades partido da Nota Técnica de n° 75, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), elaborada em conjunto com a ONU - Mulheres (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020).
Na sequência, o terceiro capítulo expõe a importância de dar voz e vez àqueles que não tiveram, sequer, a oportunidade de serem lembrados. É apresentada a Teoria da Memória Política, sob o viés do que propôs Walter Benjamin, para explicar como a exclusão e as injustiças praticadas em face dos "indesejados" da história são encaradas como um custo humano necessário para que seja atingido um determinado patamar de "progresso". No caso do Brasil, em nome de um projeto modernizante, foram excluídos do projeto da república pretos e pobres e essa escolha reverbera até os dias atuais em uma perversa realidade agravada pelo cenário pandêmico. Por fim, o capítulo três ainda elucida como seria possível aplicar essa Teoria da Memória para tentar interromper com a cadeia de injustiças presente na vida das empregadas domésticas brasileiras, sendo isso possível diante do testemunho dessas pessoas ao momento da implementação de políticas públicas destinadas a assegurar os direitos fundamentais e condições básicas de vida como, por exemplo, o auxílio emergen-cial oferecido pelo governo federal brasileiro para minimizar os efeitos econômicos provocados pela pandemia da Covid-19, sobretudo os efeitos que atingiram as populações socialmente mais vulneráveis.
1.1. A PROMESSA CONSTITUCIONAL: OS DIREITOS SOCIAIS COMO CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA CIDADANIA E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Neste tópico, se discorrerá sobre a importância e a centralidade dos direitos fundamentais como ferramenta para a efetivação do Estado Democrático de Direito no Brasil. Sendo, para tanto, trabalhada a perspectiva de que todo cidadão brasileiro, perante a lei, é sujeito de direitos fundamentais, direitos esses que devem ser observados e realizados, para além dos direitos individuais e políticos, sob a ótica dos direitos sociais. Afinal, é preciso que os cidadãos estejam alimentados, com um teto sobre suas cabeças, tendo acesso à saúde, educação e segurança para que, só então, seja possível exercerem suas liberdades e participarem da democracia. De modo que, se pode afirmar que uma efetiva cidadania depende da efetivação de direitos que devem ser materializados visando a justiça social e que exigem o reconhecimento "do direito de ter voz e de ser ouvido, da satisfação de condições necessárias ao desenvolvimento humano, do atendimento a prioridades e exigências de direitos humanos" (Bittar, 2006, p.130).
Isto posto, tem-se que a Constituição promulgada no Brasil em 1988, que ficou popularmente conhecida como "Constituição cidadã", desde seu primeiro artigo, elenca fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro como a cidadania, a dignidade da pessoa humana, o pluralismo político etc., deixando evidente a centralidade da proteção e participação do cidadão no projeto de nação que se pretendeu estruturar a partir da redemocratização do Brasil, após o período da ditadura civil-militar (que durou de 1964 à 1985). Nesse sentido, é importante destacar dois dos fundamentos do Estado Democrático de Direito dispostos nos incisos II e III, do art. 1° da CRFB/88, quais são: a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Ao elencar esses fundamentos, observa-se que há "(...) o encontro do princípio do Estado Democrático de Direito e dos direitos fundamentais, fazendo-se claro que os direitos fundamentais são um elemento básico para a realização do princípio democrático, tendo em vista que exercem uma função democratizadora" (Piovesan, 2016, n.p.).
Portanto, a nova Constituição, ao elencar a dignidade humana como um de seus fundamentos, manifesta que para o efetivo exercício da cidadania é necessária a observância dos direitos fundamentais, sem os quais não é possível promover uma vida digna àqueles entendidos como "cidadãos". Esse novo modelo de Estado é resultado da "(... ) democratização social, fruto das políticas do Welfare State, o advento da democracia no segundo pós-guerra e a redemocratização de países que saíram de regimes autoritários/ditatoriais (...)" (Streck, 2003, p. 262) que trouxeram "(...) a lume Constituições cujos textos positivam os direitos fundamentais e sociais" (Streck, 2003, p. 262).
Em vista disso, a respeito da gama de direitos fundamentais elencados na Constituição, o deputado Ulysses Guimarães, logo no início de seu célebre discurso como presidente da Assembleia Nacional Constituinte, disse: "é só cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa". Essa curta, mas poderosa, frase traz consigo a mudança de paradigma, à título de direitos fundamentais, inaugurada com a "Constituição cidadã" a fim de promover a efetividade dos direitos sociais, ressaltando a sua importância para a construção do Estado Democrático de Direito. Isso porque, é reconhecida a inovação da Constituição de 1988 ao reconhecer a importância dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais à dignidade humana. (Piovesan, 2016, n.p.)
Sendo os direitos sociais aquelas "prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente (... ) que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais" (Silva, 2014, p. 289), é perceptível a importância de sua efetivação, uma vez que eles "servem de substrato para o exercício de incontáveis direitos humanos fundamentais (art. 5° e 7°)" (Bulos, 2018, p. 823). Portanto, a Carta Constitucional de 1988 marca o compromisso com o fundamento da dignidade humana, fundador do Estado Democrático de Direito, ao indicar que para serem compreendidas como cidadãs, as pessoas necessitam, antes, terem asseguradas aquelas condições essenciais para a existência e manutenção de suas vidas.
Desse modo, tem-se que para além da cooperação da própria sociedade, cabe ao Poder Público, através da promoção dos direitos sociais "melhorar a vida humana, evitando tiranias, arbítrios, injustiças e abusos de poder" (Bulos, 2018, p. 823). A partir dessa perspectiva, é importante, para fins de recorte da pesquisa aqui desen volvida, pontuar que essa forma integrada de compreensão a respeito dos princípios fundamentais constitucionais mencionados, dignidade da pessoa humana e cidadania, e dos direitos fundamentais se estende também aos direitos sociais do trabalho. (cf. Bittar, 2006, p.134)
Essa percepção é crucial para melhor compreender adiante como a negação histórica de direitos à parte da população brasileira atuou, e ainda atua, em várias frentes. Dessa forma, a parte do povo que é fadada ao descaso e ao desamparo não é só refém da fome, da miséria e de condições indignas de moradia, como também da falta de condições dignas de trabalho. Principalmente quando é observado que a esses indivíduos são designados determinados tipos de emprego, como aquele que é objeto de estudo nos tópicos seguintes, ou seja, a figura da empregada doméstica.
Apesar de todo o exposto, o Brasil ainda enfrenta dificuldades e obstáculos à implementação e garantia dos direitos sociais para grande parte da população e, não por acaso, essa parcela da sociedade é a mesma que desde os primórdios da estruturação do Estado brasileiro tem sua história apagada e seus direitos negligenciados. Para melhor compreensão de quem são essas pessoas, será desenvolvido no item seguinte uma sumária perspectiva de como foi sendo estruturada a sociedade brasileira desde a abolição da escravidão.
1.2. A "RALÉ" BRASILEIRA E SEU HISTÓRICO DE SUBALTERNIDADE
Após a exposição anterior acerca dos direitos fundamentais consagrados na Constituição brasileira de 1988, faz-se necessário analisar porque parte significativa da população brasileira ainda não tem acesso à vários deles, principalmente, quando se tratam dos direitos sociais. O fato de existirem disposições constitucionais determinando o direito do povo em ter acesso à educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados, não significa, infelizmente, que esses direitos vêm sendo devidamente efetivados por parte do Estado brasileiro. Em suma, apesar da Constituição de 1988 elencar a dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito a fim de que todos os brasileiros tenham garantidos seus direitos fundamentais, a realidade é que parte da população nunca teve e ainda não tem acesso a recursos básicos. Esse desamparo estatal, no entanto, não é recente e tampouco desconhecido. Está presente nas entranhas da sociedade brasileira, desde quando teve início seu processo de construção e desenvolvimento como estado-nação.
Diante disso, a negação de direitos para determinada parcela da população, principalmente pretos e pobres, é parte da catástrofe gerada pela importação de uma "modernidade" que restou frustrada. Ocorreu no Brasil, como em muitos dos seus vizinhos latino-americanos, um influxo dos valores "pré-moldados" e presentes em sociedades ocidentais tidas como modernas como, por exemplo, Estados Unidos, França e Alemanha, para dentro dessa "nova periferia" "tomada de assalto (...) por uma cultura material e simbólica cujo dinamismo e vigor não deixaram muito espaço para compromisso ou reação" (Souza, 2006, p. 96). O modelo de modernidade importado da Europa, ao chegar no Brasil, serviu ao propósito de construir uma sociedade essencialmente racista e desigual, uma vez que a realidade social brasileira do século XIX nada se parecia com o cenário europeu e, tampouco, norte-americano. Enquanto nas sociedades ditas "centrais" existia a noção jurídica de cidadania, entendida como um componente vital para que pudesse se constituir uma comunidade político-jurídica, nas sociedades consideradas "periféricas", basicamente os países latino-americanos e africanos, tal noção é inexistente (Moreira, 2010, p.126).
Devido ao cenário social brasileiro, composto por uma "elite" latifundiária e escravocrata e uma massa de escravos, camponeses e indígenas, que sobreviveram ao massacre promovido nos séculos anteriores, a modernidade importada tratou de difundir o racismo como uma de suas mais profundas raízes, devendo aqui ser definido o racismo por seu caráter sistêmico, isto é,
Não se trata, portanto, de um ato discriminatório ou mesmo de um conjunto de atos, mas de um processo em que condições de subalternidade e de privilégio que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos da política, da economia e das relações cotidianas. (Almeida, 2019, n.p.)
Perceptível, portanto, a presença do racismo na gênese "moderna" do Estado brasileiro, visto que o Brasil não teve uma transição adequada do período escravocrata para o republicano. As pessoas libertas foram, propositalmente, marginalizadas graças à falta de planejamento em relação a sua inserção na sociedade. O plano de descaso e abandono da população negra serviu ao propósito de manter o poder na mão, dos até então, "colonizadores", latifundiários e senhores de escravos. Assim, no dia seguinte ao 13 de maio de 1888, o povo preto foi completamente deixado à própria sorte e, devido à falta de oportunidades, esses indivíduos não conseguiram distinguir muito bem "a venda de força de trabalho da venda dos direitos substantivos à noção de pessoa jurídica livre" (Souza, 2006, p. 155). A marginalização desse estrato social promoveu a manutenção da já mencionada "elite" em posições de poder, de modo que essa classe branca, ao privar de direitos e oportunidades a população negra, fez com que vigorassem "(... ) parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia do grupo racial no poder" (Almeida, 2019, n.p.).
O descaso das autoridades, perante a situação daqueles recém libertos, foi reforçado devido a promoção de um certo "esquecimento" quanto ao período escravocrata vivenciado no Brasil (Souza, 2006, p.103). É em face desse esquecimento que o estímulo da lembrança, principalmente por meio do testemunho daqueles que sofreram, a respeito do período da escravidão é extremamente crucial, uma vez que, entendendo o trauma como "uma ferida da memória" (Seligmann-Silva, 2000, p. 84), é necessário buscar "a libertação da cena traumática" (Seligmann-Silva, 2000, p. 90) a partir do exercício de memória sobre determinado evento. Sendo, portanto, preciso "considerar esses fracassos ou vítimas não como dados naturais que estão aí como estão os rios ou as montanhas, mas como uma injustiça, como uma frustração violenta de seu projeto de vida" (Mate, 2011, p. 159). Contudo, não foi isso que ocorreu no Brasil. Pelo contrário, o fantasma do período escravocrata gerou uma espécie de "presença ausente da escravidão" (Souza, 2006, p. 122) e fez com que o racismo, que é estrutural, fosse disseminado por meio de práticas de discriminação racial engendradas no cotidiano brasileiro nas mais diversas esferas e nichos da sociedade. Nesse sentido, cabe esclarecer que:
A discriminação racial, por sua vez, é a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados. Portanto, a discriminação tem como requisito fundamental o poder, ou seja, a possibilidade efetiva do uso da força, sem o qual não é possível atribuir vantagens ou desvantagens por conta da raça. (Almeida, 2019, n.p.)
Essa mentalidade racista e discriminatória era tão marcante à época que até mesmo a Constituição Republicana de 1891 tornou a população negra inapta de exercer o direito de votar (Schwarcz & Starling, 2020, p. 19). Ao optar por excluir, do alistamento eleitoral, os analfabetos, a constituinte de 1891 caçou o direito do povo preto de exercer sua cidadania, uma vez que recém-libertos, os negros foram negligenciados de vários direitos, dentre eles, o da educação e, em função disso, não detinham a escolarização necessária para serem alfabetizados.
O álibi jurídico para excluir a população negra, recém liberta, pode ser bem entendido com a omissão da Constituição de 1891, ao não mais trazer a previsão da gratuidade do ensino aos cidadãos, como fazia a Constituição Imperial de 182420, dado que, se assim o fizesse, teria de garantir instrução aos ex-escravizados e seus descendentes, o que lhes proporcionaria mais chances de inclusão. A instrução primária deixou de ser mencionada, pois, evidentemente, em sua formalidade, daria direito de instrução às populações negras que, com a instrução (alfabetização), alcançariam a cidadania formal, isto é, direito ao voto. (Pereira, 2019, p. 204)
O abandono da população negra, a negligência de direitos básicos e a estrutura social racista colaboraram para que ocorresse a "(... ) estratificação social, um fenômeno intergeracional, em que o percurso de vida de todos os membros de um grupo social - o que inclui as chances de ascensão social, de reconhecimento e de sustento material - é afetado" (Almeida, 2019, n.p.). Essa estratificação social também alcançou outra camada da população presente no país, à época da transição para a república, sendo ela aquela que englobava a figura dos "dependentes" ou "agregados". Essas pessoas de qualquer cor e formalmente livres detinham como única forma de sobrevivência ocupar lugares que eram indesejados na sociedade como um todo, tidos como homens e mulheres dispensáveis, sem qualquer espécie de vínculo com os processos essenciais à sociedade (Souza, 2006, p. 122).
Desta forma, foi sendo estruturada e constituída no país uma espécie de "ralé" composta por aqueles "inadaptados às demandas da vida produtiva e social modernas, constituindo-se numa legião de imprestáveis" (Souza, 2006, p. 184). A construção daquilo que podemos chamar de "subcidadania", termo cunhado por Jessé de Souza, gerou consequências "tanto existenciais, na condenação de dezenas de milhões a uma vida trágica sob o ponto de vista material e espiritual, quanto sociopolíticas como a endêmica insegurança pública e marginalização política e econômica desses setores" (Souza, 2006, p. 184).
A exclusão social gerada por todo esse processo é ampliada e transformada num fenômeno de massa no Brasil, uma vez que a proposta de Estado interventor posta em prática no século XX, ao invés de difundir práticas que levassem ao bem-estar social, serviu para aumentar o abismo de desigualdades existentes e sedimentar, ainda mais, a subcidadania. (Moreira, 2010, p. 155). A existência desse fenômeno, para além de uma exclusão social que negligencia uma série de oportunidades aos ditos "subcidadãos", acabou por gerar, também, uma exclusão jurídica desses sujeitos, uma vez que:
(...) Na prática se retira dos excluídos a dignidade humana, retira-se-lhes mesmo a qualidade de seres humanos, conforme se evidencia na atuação do aparelho de repressão: não-aplicação sistemática dos direitos fundamentais e de outras garantias jurídicas, perseguição física, 'execução' sem acusação nem processo, impunidade dos agentes estatais da violação, da opressão ou do assassínio (...). (Müller, 2010, p. 76)
Infelizmente, a proposta de um Estado Social que emergiu no cenário nacional, dentre as primeiras décadas do século XX, colaborou com uma "brutal apropriação do espaço público pelo interesse privado por alguns favorecidos pela esquematização da desigualdade político-jurídico-social" (Moreira & Paula, 2020, p. 131). Assim, "(... ) o intervencionismo estatal, a partir do século XX, mais especificamente em sua primeira metade, contribuiu, de fato, para a sedimentação da subcidadania, ampliando-a e transformando-a num fenômeno de massa no Brasil (Moreira & Paula, 2020, p. 133).
Dessa maneira, apesar de atualmente muitos avanços terem sido alcançados inclusive com a Constituição de 1988, quando analisada a dinâmica da sociedade é notório que o "quadro social brasileiro hodierno no quesito distribuição de renda (desigualdade social) segue desolador e pode ser constatado quase cotidianamente" (Moreira & Paula, 2020, p. 136).
Ou seja, a "ralé" constituída ao longo dos anos no seio do corpo social brasileiro tem, historicamente, seus direitos, e até mesmo sua existência, ignorados tanto pela sociedade, como pelo Estado brasileiro que corroborou a seu modo para invisibilização dessa parcela da população, posto que "em terra brasilis, o assim denominado Estado Social foi um simulacro" (Streck, 2003, p. 280). A fim de delimitar o objeto de análise da presente pesquisa, no próximo tópico será abordada a figura, considerada um dos frutos das sombras da escravidão, que compõe uma significativa parcela da "ralé" da sociedade brasileira, qual seja, a empregada doméstica.
1.2.2. AS EMPREGADAS DOMÉSTICAS COMO PARTE DA "RALÉ"
A existência de uma Constituição que assegura à toda população brasileira direitos fundamentais básicos, norteadores do ordenamento jurídico brasileiro não tem sido suficiente para garantir a efetivação desses direitos na prática. Sobretudo, em relação àquela parcela "subcidadã" do povo a quem, historicamente, foram negligenciados direitos e, até mesmo, ignorada sua existência. Devido à ausência de uma transição adequada do período colonial/imperial para a república, as condições anteriormente presentes perduraram e perduram até os dias de hoje, porque
(... ) no contexto do capitalismo moderno/colonial eurocentrado, passou-se a constituir uma divisão racial e sexual do trabalho, em que inicialmente os europeus e seus descendentes recebiam salários, enquanto o colonizado - partícipe da divisão do trabalho como escravo ou servo - não era digno de salário. (Bernardino-Costa, 2015, p. 150)
Assim, o desamparo e abandono da população negra recém-liberta e a não superação da mencionada divisão racial e sexual do trabalho fizeram com que os integrantes da chamada "ralé" tivessem seus lugares e funções sociais previamente determinados. Isso porque, ao ter sido constituída, no período colonial, uma "hierarquia racial e de gênero" (Bernardino-Costa, 2015, p. 150), os negros "ficaram presos a determinadas posições dentro do sistema de estratificação social brasileiro" (Bernardino-Costa, 2015, p. 151), mesmo após a abolição da escravidão e a proclamação da república. Ou seja, "com o fim da escravidão, a mão-de-obra escrava passou a ser livre e continuou desempenhando os mesmos papéis" (Lima, 2018, p. 5). Como um dos maiores exemplos dessa continuidade, surge a figura da empregada doméstica, profissão que se desenvolve sobretudo a partir da abolição da escravidão no Brasil, ao se tornar fonte principal de emprego para as mulheres então libertas da escravidão, e que acarretou no caráter precário a que estão submetidas essas trabalhadoras desde suas primeiras experiências. (Carrieri, Teixeira & Saraiva, 2015, p. 163).
A criação da profissão de trabalhador doméstico, por óbvio, não é exclusividade do cenário brasileiro. No entanto, o ponto que aqui merece destaque a respeito do surgimento desse tipo de trabalho no Brasil é, justamente, a sua "herança" escravocrata, sendo "(... ) fundamental ter em mente que essa ocupação está vinculada à história mundial da escravidão, do colonialismo e outras formas de servidão. No Brasil, historicamente, é um trabalho desempenhado predominantemente por mulheres negras e de baixa renda (...)" (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p.10).
As mulheres pretas libertas, sem qualquer espécie de amparo e oportunidade para aprenderem novos ofícios, encontraram no trabalho doméstico uma das únicas formas de se sustentarem enquanto pessoas livres. Como parte desse legado de injustiças destinadas à essa parcela da população, é possível destacar o verdadeiro abandono jurídico feito à classe das empregadas domésticas, uma vez que:
A categoria doméstica não recebeu qualquer proteção jurídica do Direito do Trabalho na fase clássica de institucionalização desse campo jurídico (1930, em diante). Por décadas permaneceu excluída de qualquer cidadania trabalhista, pre-videnciária e institucional.
De fato, a CLT excluiu, expressamente, os empregados domésticos do âmbito de suas normas protetivas (art. 7°, "a"). A categoria permaneceu, assim, por extenso período, em constrangedor limbo jurídico, sem direito sequer a salário mínimo e reconhecimento previdenciário do tempo de serviço. (Delgado, 2019, p. 451)
Como observado, a categoria também foi alvo de uma longa "fase de exclusão jurídica" (Delgado, 2019, p. 451), fator esse que só corroborou com a manutenção da miséria e da desigualdade presentes nas vidas daqueles que ocupavam estes postos de trabalho. Apesar de pequenos avanços legislativos ao longo dos anos, as pessoas que exercem trabalhos domésticos começaram a ter uma gama maior de direitos (como salário mínimo, irredutibilidade de salário, 13° salário etc.) reconhecida com a promulgação da Constituição de 1988.
Contudo, ainda não era o suficiente, de modo que a "(... ) Emenda Constitucional n. 72, de 2-4-2013, alterou a redação do parágrafo único do art.7° da Constituição Federal para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais" (Bulos, 2018, p. 844). Sendo a EC n° 72/2013 de extrema importância luta pela conquista de direitos aos empregados domésticos, pois "levou à maturidade a fase de inclusão jurídica da categoria doméstica, estendendo-lhe 16 novos direitos (... ) Alguns desses direitos ostentam efeito jurídico imediato, desde 3.4.2013, ao passo que outros ficaram na dependência de regulação legal (...)" (Delgado, 2019, p. 454).
A regulação legal mencionada tomou forma com a Lei Complementar n° 150/2015, sendo ela "(... ) diploma normativo de grande amplitude e minúcia, instaurando novo patamar de regência legal sobre os contratos de trabalho doméstico no País" (Delgado, 2019, p. 457).
Devido a dupla invisibilização que recai sobre a classe dos domésticos, tanto social como jurídica, e mesmo após a conquista de direitos trabalhistas e a sua equiparação aos demais trabalhadores, a "herança" de um passado escravocrata ainda é muito visível no Brasil. Em 2018, dentre as 6,2 milhões de pessoas que estavam empregadas no serviço doméstico, 4 milhões dessas pessoas eram negras e 3,9 milhões eram mulheres negras (Pinheiro, Lira, Rezende, & Fontoura, 2019, p. 12). Isto é, 63 % do total de trabalhadores domésticos eram mulheres negras.
Esses números apontam que, mesmo com o passar do tempo, a maioria dos indivíduos integrantes da "ralé", tendo aqui como exemplo as mulheres negras, ainda estão fadados a ocuparem funções sociais que lhe foram designadas desde os tempos do Brasil escravocrata. Outra constatação que chama atenção na análise dos dados mencionados é a forte presença feminina na realização dos trabalhos domésticos, sendo, portanto, perceptível que "o próprio fato da maioria de trabalhadores domésticos serem do sexo feminino já nos diz a quem é atribuído, socialmente, o lugar e as tarefas domésticas" (Carrieri, Teixeira & Saraiva, 2015, p. 164).
Mesmo levando em consideração todos os avanços da luta feminina por direitos, são muitos os estigmas existentes relacionados ao papel da mulher na sociedade e, dentre eles, encontra-se o suposto "dever" das mulheres em exercer o trabalho doméstico. Essa percepção existe em razão do trabalho doméstico - remunerado ou não - parecer algo natural e, por isso, não é entendido como trabalho, porque reproduz o cuidado feminino (Sanches, 2009, p.885). Sendo uma de suas possíveis definições a seguinte:
O trabalho doméstico remunerado é o pagamento a uma pessoa pela realização de uma ampla gama de tarefas necessárias à manutenção e reprodução da vida, o que engloba também o que a teoria denomina de reprodução da força de trabalho, embora não se reduza a isso. O trabalho doméstico não gera produtos ou serviços diretamente para o mercado, mas gera e mantém (reproduz) a força de trabalho que será vendida no mercado de trabalho. (Sanches, 2009, p. 884)
Devendo ser compreendido o trabalho reprodutivo como aquele que "consiste das atividades que produzem a força de trabalho - atividades que transformam matérias-primas e mercadorias compradas com um salário, para manter, cotidianamente, o(a) trabalhador(a)" (Boris, 2014 p. 103). De modo que essa manutenção do trabalhador é realizada por meio de atividades como "serviços de limpeza, arrumação, cozinha, cuidado das roupas e outros itens de vestuário, e, em muitos casos, cuidado de crianças, idosos ou mesmo plantas e animais domésticos" (Sanches, 2009, p. 880).
Embora, como demonstrado, o trabalho doméstico englobe atividades de extrema importância para a manutenção da vida de uma família, "as habilidades necessárias para limpar, cozinhar, lavar, cuidar das crianças e dos doentes e para outras tarefas parecem ser naturais, ficando seu valor econômico obscurecido" (Boris, 2014, p. 104).
Dada a desvalorização das tarefas domésticas e de seu valor econômico, aquelas pessoas que desempenham tais atividades são reféns de uma má remuneração em troca de seus serviços. Em 2018, "a razão do rendimento médio mensal das trabalhadoras domésticas (trabalho principal) em relação ao das demais mulheres ocupadas era de menos da metade, aproximadamente 45 %" (Pinheiro, Lira, Rezende, & Fontoura, 2019, p. 38). Ou seja, as empregadas domésticas recebem, em média, menos de 50 % do valor percebido por mulheres que desempenham outro tipo de trabalho como seu ofício principal.
Diante disso, ao tratar da figura da empregada doméstica, é preciso compreendê-la a partir da interseccionalidade. Esse determinado "conceito é utilizado para referirse à forma pela qual o racismo, as relações patriarcais, a opressão de classe e outros eixos possíveis de poder e discriminação criam desigualdades" (Bernardino-Costa, 2015, p. 151). Isto posto, constata-se que grande parte das empregadas domésticas são vítimas de discriminação e opressões que surgem de, ao menos, três vertentes diferentes: a racial, a de gênero e a de classe.
A partir do exposto, o intuito deste tópico, ao mencionar todos esses aspectos a respeito da figura das empregadas domésticas no Brasil, é demonstrar como essa combinação de fatores corrobora para a ampliação da condição de vulnerabilidade social das empregadas domésticas. Em sua maioria, mulheres negras e pobres que "cumprem extensas jornadas de trabalho" (Sanches, 2009, p. 883) para garantir o sustento de suas famílias.
No próximo capítulo, será demonstrado como o cenário da pandemia de COVID-19 tem agravado o contexto de vulnerabilidade social das empregadas domésticas brasileiras. Diante da proliferação do vírus que já causou a morte de quase 4 milhões de pessoas no mundo (Gazeta do Povo, 2021), essas trabalhadoras encontram desafios diários para continuar sobrevivendo.
2. UM NOVO VÍRUS E UMA MESMA HISTÓRIA: COMO O CORONAVIRUS POTENCIALIZOU A CONDIÇÃO DESIGUAL DAS DOMÉSTICAS NO BRASIL
2.1. PANORAMA PANDÉMICO E SEUS ALVOS HISTÓRICOS
Em 31 de dezembro de 2019, o governo chinês promoveu o primeiro alerta a respeito de casos de uma pneumonia de origem até então desconhecida, na cidade de Wuhan e, após a realização de primeiras análises, em 9 de janeiro de 2020 o mundo conhecia a existência de um novo vírus que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e as autoridades chinesas, era o causador da onda de pneumonia que vinha assolando a China (Alves, 2020). Diante da alta taxa de transmissão do novo coronavírus, a doença por ele provocada, a Covid-19, rapidamente se espalhou pelo planeta, tendo a América Latina seu primeiro infectado no dia 26 de fevereiro de 2020, justamente no Brasil. O paciente era um homem de 61 anos, residente de São Paulo, que retornou da Itália e apresentou sintomas da nova enfermidade (Ortiz & Oliveira, 2020).
Na medida que os dias foram passando, o cenário mundial foi sendo sufocado por esse vírus que é "invisível, impalpável, etéreo, quase abstrato (...) mira a respiração, rouba o fôlego e provoca uma morte horrível. É o vírus da asfixia" (Di Cesare, 2020, p. 13). Em 11 de março de 2020, a OMS declarou que se tratava de uma de uma pandemia do novo coronavírus, sendo o termo "pandemia" utilizado quando determinada doença já foi disseminada por vários continentes com transmissão comunitária (G1, 2020). Sendo imprescindível salientar que a pandemia atual, eclodida em um mundo globalizado, é sem precedentes. Não só pela enorme rapidez do contágio, devida não apenas à agressividade do vírus, mas também por causa da sua acelerada circulação planetária" (Di Cesare, 2020, p. 103).
E, apesar de todos os alertas e recomendações internacionais, o Brasil, infelizmente, não soube lidar de forma adequada com a crise sanitária que estava sendo instaurada. Ao invés de adotar medidas pautadas na ciência, o que se observou foi a presença de um negacionismo enraizado no pensamento e também nas ações daqueles que estão no comando da nação, de forma que "especialmente Bolsonaro quem se destacou, visto que, até o último momento, reduziu o vírus a uma 'gripezinha', negando a emergência sanitária, uma 'fantasia' alimentada pela mídia" (Di Cesare, 2020, p. 72). Tendo sido travada uma verdadeira luta entre o governo federal e os estados e municípios, pois enquanto o presidente da república Jair Messias Bolsonaro promovia discursos em prol da "volta à normalidade" e "fim do confinamento em massa", em 24 de março de 2020, governadores afirmaram que manteriam a medidas restritivas impostas para a contenção da pandemia de Covid-19 (G1, 2020).
As consequências, por certo, foram e continuam sendo terríveis para o povo brasileiro. Ao tempo que está sendo produzida a presente pesquisa, o país totaliza a triste marca de 515.985 (quinhentos e quinze mil, novecentos e oitenta e cinco) óbitos e conta com 18.513.305 (dezoito milhões, quinhentos e treze mil e trezentos e cinco) casos confirmados da doença (Brasil, 2021).
Decerto, os problemas que envolvem o cenário pandêmico não param por aí. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 30 de abril de 2021, o Brasil encerrou o mês de fevereiro de 2021 - um ano após o primeiro caso de Covid-19 no país - com 14,4 milhões de desempregados (Campos, 2021).
Ou seja, com a crise sanitária provocada pela pandemia do novo coronavírus, os problemas tendem a se ramificar para várias áreas para além da saúde como, por exemplo, a economia e a educação. Contudo, apesar do vírus ter sido considerado por alguns como "democrático", dada sua alta letalidade em infectar e tomar a vida de pessoas pertencentes aos mais variados estratos sociais, será aqui defendida a posição de que, em verdade, o coronavírus "agravou e exacerbou uma situação já consolidada, que de repente torna-se clara em todos os seus aspectos mais sombrios e nefastos" (Di Cesare, 2020, p. 43).
Mesmo que em um primeiro cenário a doença tenha acometido aquelas pessoas consideradas parte da "elite", que trouxeram a doença para o Brasil vindas de passeios internacionais, a partir do momento em que o coronavírus atingiu a transmissão comunitária restou evidente que "la desigualdad social y económica asegurará que el virus discrimine. El virus por sí solo no discrimina, pero los humanos seguramente lo hacemos, modelados como estamos por los poderes entrelazados del nacionalismo, el racismo, la xenofobia y el capitalismo" (Butler, 2020, p.62). O vírus por si só não discrimina, afinal ele não escolhe quem irá infectar ou matar, no entanto as condições de desigualdade pré-existentes, principalmente em sociedades periféricas como o Brasil, asseguram que a população em situação de maior vulnerabilidade social sofra de forma intensa as consequências da pandemia de Covid-19.
Esse agravamento da situação de desigualdade no Brasil perante uma pandemia, apesar de contar com um novo vírus como o vilão, não tem nada de novo. Pelo contrário, tal fenômeno segue o curso da história de forma surpreendentemente similar ao que ocorreu com o cenário socioeconômico do Brasil de 1919, período em que a gripe espanhola assolou o país:
Embora a gripe espanhola tenha efetivamente atravessado toda a pirâmide social, sua aparência "democrática" precisa ser observada com muita desconfiança. A maioria das vítimas provinha das camadas populares e daqueles grupos chamados de "indigentes" pelas autoridades. A pandemia escancarou, uma vez mais, a perversa desigualdade social brasileira. (Schwarcz & Starling, 2020, p. 66)
As semelhanças existentes entre as consequências da gripe espanhola e a Covid-19, sendo as pandemias separadas por 102 (cento e dois) anos, são assustadoras, mas não se pode falar que são surpreendentes. O que permanece até hoje é a indiferença quanto às classes menos abastadas da sociedade, consolidando um projeto de nação que não se preocupa em incluir aqueles tidos como indesejados ou, como trabalhado no capítulo anterior, aqueles que compõe a "ralé".
Em 1919, "mocambos, casebres, palafitas, favelas, permaneciam invisíveis para os governantes. Condições insalubres, ausência de serviços básicos - água, esgoto, luz - e a falta de acesso à assistência hospitalar explicam o número maior de vítimas em meio à população carente" (Schwarcz & Starling, 2020, p. 67). Mesmo estando em 2021, com a existência de uma constituição que deveria garantir os direitos sociais a todos, as favelas e os bairros periféricos continuam com os mesmos problemas de infraestrutura, obviamente em diferentes proporções, e sua população seja pela falta de moradia digna, pelo acesso difícil à saúde ou pela ausência de condições dignas de trabalho, como é o caso das empregadas domésticas, também continua sendo a mais afetada. Em pesquisa realizada pelo Instituto Data Favela, em parceria com a Locomotiva - Pesquisa e Estratégia e a Central Única das Favelas (Cufa), foi constatado que 71 % das famílias sobrevivem, atualmente, com menos da metade da renda que percebiam antes da pandemia (Bocchini, 2021). Ou seja, mesmo com mais de 100 (cem) anos separando os dois eventos pandêmicos, resta permanente o estado de vulnerabilidade das camadas mais pobres da sociedade, dada a manutenção da invisibilidade dessa parcela de "subcidadãos".
Para Medina, a pandemia cumpriu muito bem ao papel de deixar ainda mais miseráveis aqueles que já estavam sujeitos a alguma forma de vulnerabilidade social: "Lo cierto es que la cuarentena para aquellos que se encontraban históricamente en la cuerda floja entre la pobreza y la pobreza extrema ha empujado a un precipicio a los más vulnerables" (2020, p. 99). Nesse sentido, será trabalhado no próximo tópico a condição de vulnerabilidade, diante da pandemia de COVID-19, que vem sendo vivenciada por uma das figuras que compõem essa massa de invisibilizados e esquecidos: as empregadas domésticas, tendo sido essas pessoas escolhidas como objeto desse estudo visto que possuem "(... ) uma ocupação que se caracteriza pela invisibilidade, desvalorização e baixa regulamentação, o que expõe as trabalhadoras a situações precárias de trabalho e a uma grande vulnerabilidade, que se intensifica em momentos de crise, como este da pandemia do coronavírus" (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 10).
2.2. REALIDADE AUMENTADA: A PANDEMIA DE COVID-19 COMO CONDIÇÃO AGRAVANTE NA SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE ENFRENTADA PELAS DOMÉSTICAS
Como trabalhado no primeiro capítulo, a Constituição brasileira de 1988 é ancorada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania, devendo os mesmos se realizarem a partir de uma gama de direitos fundamentais que deveriam alcançar a todos os cidadãos brasileiros. Porém, historicamente, uma parcela considerável da população tem seus direitos negligenciados pelo Estado e pela sociedade.
Nesse contexto, emerge o serviço doméstico, realizado, em sua maioria, por mulheres, negras e periféricas que além de serem vítimas da exclusão social por conta de sua raça, gênero e situação econômica, ainda sofrem com a desvalorização de sua forma de trabalho. Mesmo com os avanços legislativos e a recente constitucio-nalização de direitos do trabalho estendidos aos trabalhadores domésticos, com a chegada da pandemia o déficit social já existente e as violações de direitos em face desse grupo só aumentaram.
Em junho de 2020, foi publicada a Nota Técnica de n° 75, produzida pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em parceria com a ONU - Mulheres, que tratou das "Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no contexto da pandemia de Covid-19 no Brasil". O documento traz uma análise esclarecedora a respeito da condição das empregadas domésticas, sendo a exposição de tais constatações necessárias para melhor compreender a dimensão do drama vivenciado por essa classe.
Segundo a pesquisa realizada, as domésticas são alvos de uma dupla vulnerabilidade, sendo ela separada por dois eixos distintos:
O primeiro eixo está no tipo de trabalho realizado por essas mulheres e nas condições em que este se realiza, que as expõe, de forma muito intensa, à circulação do vírus. É preciso ter em mente que essas trabalhadoras atuam no interior de domicílios que não são os seus, lidando com corpos e com movimentos que estão fora de seu controle (...). Na verdade, ao serem mantidas em suas funções rotineiras no contexto da pandemia, rompe-se o isolamento social tanto da família contratante do trabalho doméstico quanto da família da própria trabalhadora.
O segundo eixo dessa vulnerabilidade está na falta de proteção social e na impossibilidade dessas trabalhadoras encontrarem no Estado apoio, seja para reposição da renda, caso sejam demitidas (seguro-desemprego), seja no caso de ficarem doentes e precisarem se afastar do trabalho (auxílio-doença). Como demandar isolamento social de trabalhadoras que, na grande maioria dos casos, não possuem vínculos formais de trabalho e, portanto, não possuem garantia alguma de manutenção da renda? (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 8)
Quanto ao primeiro eixo, que trata da vulnerabilidade decorrente do tipo de trabalho realizado, merece ser ressaltado que essas trabalhadoras estão mais suscetíveis de serem contaminadas pelo novo coronavírus dado que "a sobrecarga do sistema de saúde provocada pela pandemia, aliada ao medo das pessoas de se contaminarem nas emergências dos hospitais, faz que vários procedimentos que antes seriam realizados em instituições de saúde sejam tratados em casa" (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 10). E não só serviço relativos ao cuidado da saúde tiveram considerável aumento, como também "as medidas de distanciamento social, necessárias ao enfrentamento da pandemia, implicam o fechamento de serviços de acolhimento de idosos, escolas, creches e atividades de contraturno, ampliando a carga de trabalho doméstico das famílias" (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 10).
Para corroborar com esse argumento, seguem trechos retirados de denúncias registradas junto ao Ministério Público do Trabalho durante os cinco primeiros meses da pandemia de COVID-19 no Brasil e acessadas pela empresa social Gênero e Número via Lei de Acesso à Informação (LAI):
Empregada doméstica que presta serviço em residência está sendo obrigada a trabalhar, mesmo com ambos os patrões (homem e mulher) terem (sic) sintomas para COVID-19 e o exame clínico para atestar a doença ter atestado positivo, Brasília (DF).
A trabalhadora relatou estar há 100 dias trabalhando diretamente, desde o isolamento social decorrente da pandemia. Ela é empregada doméstica e mora no local de trabalho, foi contratada para ser babá, porém, há meses acumula as funções de cozinheira, sem acréscimo salarial. Ela não tem folga em domingos e feriados, trabalha ininterruptamente e, apesar de ter passagens compradas para visitar a família, em Belém, desde março, a patroa não a libera. Além disso, inexiste recolhimento regular das contribuições sociais e do FGTS. A trabalhadora não tem parentes em São Paulo e necessita ver os pais na cidade de origem, São Paulo (SP). (Martins & Bruno, 2021)
Os absurdos acima relatados demonstram como estas trabalhadoras tiveram sua situação de desigualdade potencializada com a chegada da pandemia e acabam se tornando verdadeiras reféns de seus patrões devido ao elevadíssimo grau de subordinação presente no tipo de trabalho desenvolvido pelas empregadas domésticas. Esse elevado grau de subordinação "(... ) contribui para que as trabalhadoras não tenham qualquer poder de influência ou mesmo informações sobre por onde os corpos de que cuidam circulam, aumentando a insegurança a que ficam expostas em seu ambiente de trabalho" (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 10).
Em relação ao segundo eixo de vulnerabilidade destacado na Nota Técnica de n° 75, que trata desproteção social devido a informalidade e negação de direitos trabalhistas e previdenciários a que estão submetidas essas trabalhadoras, observa-se que, mesmo com os avanços em termos de direitos conquistados pela classe dos domésticos, a longa fase da chamada "exclusão jurídica" tratou de garantir que um passado de ausência de direitos perdurasse na vida dessas pessoas até os dias atuais. De forma a se evidenciar isso, a informalidade no trabalho das domésticas atinge a impressionante cifra de 70 % de trabalhadoras que não estão formalmente vinculadas aos seus empregos, ou seja, estão sem acesso aos direitos, garantias e benefícios mais básicos que deveriam estar disponíveis a todos os trabalhadores. (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 13)
A equiparação das trabalhadoras domésticas com trabalhadores rurais e urbanos promovida pela EC n° 72/2013, apesar de grande avanço, não promoveu uma efetiva melhoria na condição de trabalho da classe:
Os dados do primeiro trimestre da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua) de 2020 mostram que apenas 28% dos(as) trabalhadores(as) domésticos(as) do país possuíam carteira de trabalho assinada. Em 1995, essa proporção era de 18 %. Ou seja, em 25 anos, fomos capazes de aumentar em apenas 10 pontos percentuais (p.p.) a formalização do emprego doméstico, mesmo considerando a implementação de medidas e incentivos fiscais voltados à formalização (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 8).
Tendo como de fundo o cenário narrado, demonstra-se ser insustentável a situação financeira dessas mulheres, em virtude da precarização dos serviços por elas ofertados e da negação massiva de seus direitos trabalhistas e previdenciários. Sendo, então, praticamente impossível querer exigir ou cobrar que elas parem de trabalhar para se manter em isolamento ou deixem de buscar por diárias que completem sua renda, porque se não fizerem isso estão fadadas a encarar a falta de renda para manutenção de suas próprias casas.
Não obstante os esforços empreendidos pela Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em lutar pelo direito a chamada "quarentena remunerada", prevista na Nota Técnica Conjunta n° 4/2020 do MPT, "a declaração do trabalho doméstico, em sua totalidade, como serviço essencial por parte de alguns governos e prefeituras têm, nesse sentido, gerado muita polêmica, ampliando a desproteção social desse grupo" (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 11).
Somadas a violação à negação de direitos, as empregadas domésticas ainda correm o risco iminente de perderem seus postos de trabalho, considerando que pesquisas do começo de 2021 já indicavam a perda de 1,5 milhão de postos de trabalhos domésticos entre setembro e novembro de 2020, de forma que o "trabalho doméstico foi a segunda com maior perda (-24,2 %) na comparação com o mesmo período de 2019 (...)." (Martins & Bruno, 2021)
Desta forma, as domésticas estão sofrendo "um sério impacto em termos de renda (... ) porque a grande maioria delas não está coberta pelo sistema de seguridade social, não tendo acesso a direitos trabalhistas e previdenciários" (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 14). Levando em consideração que a situação de miséria e vulnerabilidade social das empregadas domésticas, presente desde a gênese do Estado brasileiro, foi agravada durante o período da pandemia, no próximo capítulo será apresentado como é possível viabilizar a luta pela efetividade e garantia de direitos dessa classe a partir da perspectiva da Teoria da Memória desenvolvida por Walter Benjamin.
3. A TEORIA DA MEMÓRIA POLÍTICA COMO INSTRUMENTO PARA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS
3.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DE OUVIR OS OPRIMIDOS
Seguindo na trilha proposta pelo livro de Heloísa Starling e Lilia Schwarcz sobre a Gripe Espanhola, tem-se que:
Quando a gripe espanhola desembarcou no Brasil, a República estava instalada no país havia quase trinta anos. (... ) Mas podemos identificar seu traço mais perverso: a República proclamada em 1889 era uma forma de governo conservadora, excludente e sem nenhuma sensibilidade para a questão social. (Schwarcz & Starling, 2020, p. 18)
O trecho acima destacado cumpre o papel de demonstrar o porquê é importante compreender o passado como um todo, e não apenas seu fragmento que foi escolhido e estabelecido como "história oficial", para melhor existir e resistir num presente que, ainda, carrega tanto do passado que ficou esquecido. A figura escolhida no presente trabalho como símbolo da vulnerabilidade social dentre uma massa de subcidadãos, ou seja, as empregadas domésticas, teve sua situação de vida consideravelmente agravada pela pandemia de COVID-19, como trabalhado no capítulo anterior. Contudo, o que se pretende aqui é afirmar que essa não foi uma situação criada pela pandemia, mas sim piorada. Isto quer dizer que as condições de subalternidade e negação de direitos presentes nas vidas dessas trabalhadoras fazem parte de uma construção histórica baseada na exclusão. Afinal, mais de cem anos se passaram entre a pandemia de gripe espanhola e a pandemia de COVID-19 e, mesmo assim, os mesmos grupos que mais foram afetados no passado são, não coincidentemente, os que mais estão sofrendo agora. Sendo assim, "a relação entre hoje e ontem não é unilateral: em um processo eminentemente dialético, o presente ilumina o passado, e o passado iluminado torna-se uma força no presente" (Löwy, 2005, p. 61).
Numa perspectiva que enxerga a questão das domésticas por um viés interseccional, tem-se que elas suportam opressões de gênero, raça e classe. Porém será acrescentada também outra forma de opressão, pois "o poder de uma classe dominante não resulta simplesmente de sua força econômica e política ou da distribuição da propriedade, ou das transformações do sistema produtivo: pressupõe sempre um triunfo histórico no combate às classes subalternas" (Löwy, 2005, p. 60). Assim dizendo, as empregadas domésticas, como também outros integrantes da "ralé", sofrem uma espécie de catástrofe permanente, na medida em que suas vidas, experiências e relatos são completamente ignorados por àqueles que detém o "poder" de contar a história. Tendo que "o catastrófico é a eternização do que já temos, a irreversibilidade do curso que nos trouxe até aqui. O angustiante não é que a história tenha um fim, mas que não o tenha" (Mate, 2011, p. 214).
O silenciamento de toda uma parcela da população, ocasionado pela "vitória" do relato dos "vencedores" a respeito da história, desencadeia, além do esquecimento dos oprimidos, um ciclo de injustiças que vão sendo reproduzidas durante várias gerações. Pouco se preocupando, os que estão no poder, com a dor e as mazelas daqueles que sofrem, porque elas são etapas do processo, compõem o preço a ser pago pelo custo do progresso, do desenvolvimento econômico e do caminho que deve ser trilhado para que seja alcançado certo nível de "civilização".
Resgatando os pontos trabalhados nos capítulos anteriores, tanto a exclusão sistemática dos pretos e da população pobre de um projeto que se pretende moderno, quanto a longa fase de exclusão jurídica das domésticas perante a legislação nacional são frutos do pensamento de que existe um "preço" a ser pago pelo suposto progresso:
(... ) se considera o sofrimento do homem como um preço passageiro e excepcional para um bem maior que algumas vezes é a cultura, a religião ou a nação, e outras, as mais freqüentes, os interesses materiais superiores dos que causaram o dano. (Mate, 2011, p. 217)
Nessa lógica, não seria interessante ou vantajoso deixar "vestígios" do custo humano necessário ao progresso, sendo de interesse da classe dominante oprimir, excluir e fazer esquecer tudo aquilo (logo, todos aqueles) que se encontra nos escombros do caminho que fora trilhado em direção ao progresso. Esse movimento de desprezo a memória ocorre, porque ela "(...) coloca sobre a mesa um fator que é difícil de gerenciar: o reconhecimento de que nosso presente está construído sobre muitas injustiças. Isso nos molesta" (Junges, 2009).
A questão que emerge a partir do "descarte" proposital dos "vencidos" para a sarjeta da história é a de que não é possível ter uma compreensão integral da realidade, uma vez que "a realidade, para merecer esse nome na teoria do conhecimento de Benjamin, deve ter em conta o que não se diz, deve considerar todos os projetos que foram frustrados e que exigem justiça" (Oliveira, 2017, p. 179).
Esses "(...) projetos frustrados dos que foram esmagados pela história estão vivos em seus fracassos como possibilidade ou como exigência de justiça" (Mate, 2011, p. 23), sendo essa necessidade de se exigir justiça "(... ) o modo de trabalhar de Benjamin, sua ética da representação e da memória, seu compromisso com os excluídos da história, tudo isso aponta para o fato de que a sua obra ainda tem muito a contribuir para o século XXI" (Seligmann-Silva, 2010, p. 53).
Bem como mencionado, a realidade deve ser observada e percebida levando em consideração as injustiças cometidas que exigem reparação, porque é a partir da escuta daquilo, os oprimidos não tiveram a oportunidade de dizer no passado que poderá ser modificada a situação no presente. Entendendo-se que:
(... ) a memória é a salvação do passado e do presente. Salvação do passado porque graças à nova luz podemos trazer ao presente aspectos desconhecidos do passado; e do presente, porque graças a essa presença o presente pode pular por cima de sua própria sombra, isto é, pode libertar-se da cadeia casual que o trouxe ao mundo. (Mate, 2011, p. 141)
Dessa forma, enxergar a história levando em consideração a memória ao lançar o olhar para aqueles escombros, restos e rastros abandonados pelo caminho é a chave para a reconstrução de um presente mais justo, afinal "(... ) Benjamin pensa que o antídoto contra a miséria está nos pobres. Só o excluído pode imaginar um sistema sem exclusões" (Mate, 2011, p. 40).
Observada a importância da escuta daqueles que se encontram há tanto tempo oprimidos, possível aplicar essa perspectiva a situação de vulnerabilidade social das empregadas domésticas. Essa classe, que desde o início do projeto "modernizante" brasileiro vem sendo excluída e ignorada, é herdeira de uma condição de miséria que foi agravada pela pandemia de COVID-19 e enfrenta todo dia um banquete de violação de seus direitos constitucionalmente assegurados. Em vista disso, no próximo tópico será desenvolvido um pouco mais sobre o potencial emancipador do uso político da memória a fim de fazer justiça à situação precária vivenciada pelas trabalhadoras domésticas no Brasil.
3.2. A TEORIA DA MEMÓRIA POLÍTICA COMO INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO DAS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS
No primeiro capítulo da pesquisa, foi salientada a importância da realização dos direitos fundamentais para assegurar que os pilares constitucionais da cidadania e da dignidade da pessoa humana sejam respeitados, pois sem a efetivação de tais direitos não é possível promover uma vida digna àqueles entendidos como "cidadãos". Nessa visão, a Constituição tratou de estabelecer em seus artigos 6° e 7° uma gama extensa de direitos sociais que devem ser promovidos para a existência digna dos indivíduos como, por exemplo, o direito à moradia, à saúde, à alimentação, ao trabalho digno etc.
Não obstante esses direitos encontrarem-se devidamente positivados, devido a um projeto de "modernidade" que tratou de excluir aqueles que não se "encaixavam" na nova forma de organização social, até os dias hoje direitos básicos, como os mencionados, continuam sendo negligenciados à todos aqueles que, não surpreendentemente, mais precisam. Estando as empregadas domésticas inseridas nesse traumático cenário e sofrendo por serem, em sua maioria, mulheres, negras e pobres e pela desvalorização de seu trabalho considerado como de menor importância por reproduzir os atos necessários à manutenção da casa e da família.
Já estando sujeitas à uma alta vulnerabilidade social, as empregadas domésticas não contavam que com a pandemia de Covid-19 as suas condições ficariam ainda piores. Essas trabalhadoras estão em delicada situação onde precisam escolher entre continuar trabalhando, em condições muitas vezes inadequadas e sem acesso à direitos trabalhistas básicos, e correrem o risco de se infectar e infectarem suas famílias com o coronavírus ou praticarem o isolamento social e acabarem ficando sem renda, sem forma alguma de sustento para suas famílias.
Essa conjuntura não é razoável e muito menos ideal em um país que a Carta Constitucional assegura aos cidadãos que os mesmos gozem das condições básicas e necessárias à sua sobrevivência. O desafio enfrentado nessa pesquisa consiste em propor um novo olhar para a história, de forma a permitir que a teoria da memória e da história política de Walter Benjamin possa atuar como fundamento para uma operação do direito emancipatória, ao exigir o reconhecimento do "direito à dignidade daqueles que, historicamente, sofrem, mas jamais foram ouvidos." (Oliveira, 2017, p. 294)
Logo, é de interesse o uso da memória e de seu potencial de se fazer justiça à parcela da população que desde os primórdios do Estado brasileiro teve seus direitos violados, posto que "(... ) a proposta política da memória é interromper essa lógica da história, a lógica do progresso, que, se causou vítimas no passado, hoje exige com toda naturalidade que se aceite o custo do progresso atual" (Mate, 2011, p. 163). A fim de "(... ) construir uma forma de se operar o direito orientada pelo eco dos gritos sufocados, especialmente, daqueles gritos que nem sequer a morte foi capaz de acabar com a expectativa por justiça (...)" (Oliveira, 2017, p. 243), é necessário garantir que os oprimidos e os silenciados tenham as condições necessárias presentes para suas vozes serem, verdadeiramente, escutadas.
Diante de todo o exposto, compreende-se que são passíveis de utilização os elementos trazidos pela Teoria da Memória de Walter Benjamin na delicada situação que envolve as empregadas domésticas brasileiras e suas adversidades cotidianas aprofundadas pela pandemia de Covid-19. Essa classe, como muito bem trabalhado nos capítulos anteriores, é alvo de um silenciamento e uma opressão que são históricos, sociais e jurídicos. Até o momento, foi e ainda é conveniente para a classe dominante, branca, rica, elitizada, manter as "dóceis" empregadas em condições injustas de trabalho:
É direito da trabalhadora doméstica manter-se também em isolamento, garantindo sua proteção e de sua família. No entanto, muitas trabalhadoras continuam exercendo suas atividades normalmente no curso da pandemia - sem acesso a equipamentos de proteção individual -, em função das necessidades das famílias nas quais trabalham ou mesmo diante da incompreensão e do elitismo e racismo de parcela da sociedade brasileira, que não abre mão, mesmo quando poderia, de ter uma outra pessoa em sua casa para cuidar do seu próprio trabalho doméstico. (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 12)
Devido ao tipo de trabalho desempenhado por essas mulheres, qual seja, o de cuidado e manutenção de casas e famílias "(... ) os afetos podem ser usados como amarras para a dignidade das trabalhadoras domésticas ou ainda como moeda de troca na negociação de direitos" (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 12). Podendo esse fator ser mais um empecilho na luta das domésticas para romper com o ciclo de injustiças que lhes acomete desde o século XIX.
Aqui é defendido que não será possível romper com essa cadeia de injustiças sem que antes sejam escutadas, ouvidas e tiradas das sombras as pessoas que sentem na pele o que é não ter condições de trabalho adequadas, uma moradia digna ou um prato de comida em cima da mesa. Toda e qualquer forma de rompimento com a realidade que está posta deve e precisa partir dá escuta ao relato do oprimido que, no caso, são as empregadas domésticas.
O que está sendo dito é que a criação de políticas públicas, elaboração de leis ou quaisquer outras medidas a serem tomadas precisam levar em consideração o testemunho e a vivência dessas mulheres que mesmo tendo seus direitos constitucionalmente garantidos, convivem com diárias violações. Romper com o "curso" da história não é tarefa fácil, mas não se pode deixar o conformismo tomar conta do que é tido como "real". É preciso dar fim ao ciclo de injustiças enraizados na sociedade através do ato revolucionário do uso da memória, dos relatos e dos testemunhos daqueles que sofrem/sofreram, "(... ) o ato revolucionário é, como sempre, pôr fim à injustiça existente (...) injustiça que supõe abandonar às vítimas à sua sorte, (...)" (Mate, 2011, p. 219).
Para promover uma "(... ) reparação política que quer estabelecer meios concretos e positivos para se eliminar, de forma definitiva, os traços da injustiça histórica ainda presentes na população (...)" (Oliveira, 2017, p. 24) será necessário promover a escuta dos anseios das empregadas domésticas. Um exemplo disso, seria o acolhimento, por parte do poder público, da "Carta-manifesto pela vida de nossas mães", uma campanha feita por filhos e filhas de empregadas domésticas, direcionada ao poder público, aos empregadores e empregadoras de domésticas e diaristas e à toda sociedade civil, que conta, atualmente, com mais de 130 mil assinaturas em que "(... ) os signatários pedem pela quarentena remunerada para trabalhadoras mensalistas e diaristas" (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 11).
A mobilização que está sendo feita para que o poder público aprecie a mencionada carta é um bom exemplo de como essas vozes sufocadas estão clamando para que sejam efetivados os seus direitos que até já foram conquistados, mas nunca efetivados de uma forma adequada. Outra maneira de viabilizar a melhoria substancial da condição de vida das trabalhadoras domésticas é por meio da realização de consultas públicas a respeito da implementação de medidas como, por exemplo, o auxílio emergencial.
No início de abril, o governo federal sancionou a Lei n° 13.982/2020, que criou a renda básica emergencial, com duração inicial de três meses. O chamado auxílio emergencial "(... ) permitiu que a parte mais frágil da população se protegesse da COVID-19, respeitando medidas de isolamento. De abril a setembro, o pagamento foi de R$ 600 ou R$ 1.200 no caso das mães que criam filhos sozinhas. A partir de outubro, caiu pela metade" (G1, 2021). Considerando os critérios legais exigidos, tem-se que
(... ) estimamos que quase 3 milhões de trabalhadores e trabalhadoras domésticas poderiam solicitar acesso ao auxílio emergencial, sendo 2,8 milhões mulheres e pouco menos de 200 mil homens. Esse total corresponde a 68% dos trabalhadores(as) domésticos(as) que se encontram na informalidade, ou a quase 50 % da categoria como um todo (tabela 2). É, portanto, uma política de extrema relevância e que possibilita às trabalhadoras manterem níveis mínimos de renda e consumo durante o período da pandemia, ao mesmo tempo que mantém o isolamento social e a proteção para si e para suas famílias, bem como contribuem para o achatamento da curva de transmissão do vírus, diante do crescimento do número de casos de Covid-19 em todo o país. (Pinheiro, Tokarski, & Vasconcelos, 2020, p. 15)
O auxílio emergencial foi uma política pública criada para os cidadãos em condição de hipossuficiência em geral, contudo em muito auxiliou as empregadas domésticas neste período pandêmico, segundo a empresa social Gênero e Número (Martins & Bruno, 2021) "as domésticas foram nada menos do que a segunda classe trabalhadora mais beneficiada pela medida no país - elas tiveram ganho de renda de 61 % no primeiro mês de implementação do benefício, atrás apenas de auxiliares de agropecuária, com 71 %".
Sob o argumento de que os cofres públicos não aguentariam, a quantia oferecida a título de auxílio emergencial foi reduzida de R$ 600,00 ou R$1.200, 00, para as mães chefes de família (classificação onde se encaixam grande parte das domésticas), para valores que variam entre R$ 150,00 e R$ 375,00 (R7, 2021). A redução drástica do benefício que tanto tem auxiliado na manutenção das vidas das empregadas domésticas e suas famílias é uma medida que, com certeza, deveria ter sido realizada em última circunstância, o que não parece ter ocorrido.
A escuta do testemunho das domésticas em relação ao auxílio emergencial, por exemplo, poderia ter não só aberto os olhos daqueles encarregados por tomarem decisões e executarem, de fato, as políticas públicas, como também ajudado o poder público e à sociedade a compreenderem melhor as dimensões das dificuldades enfrentadas por essas pessoas na prática. Dessa maneira, seria possível melhor atender as demandas da classe e construir, junto com as domésticas e baseado em suas vivências, as vias e os meios adequados de realizações de políticas públicas para seu auxílio.
As situações acima citadas são alguns dos exemplos possíveis de gerar oportunidades para os oprimidos, no caso as empregadas domésticas, buscarem pela justiça que, em algum momento, não lhes foi concedida. É só a partir desse movimento de lançar olhar para o passado, ao ouvir os testemunhos, e reconhecer que existem histórias frustradas pelo caminho exigindo justiça que será possível mudar o rumo do que se entende, hoje, como realidade.
CONCLUSÕES
Com base em tudo que foi exposto, resta manifestar a necessidade de romper com essa triste realidade de sofrimento e vulnerabilidade de uma parcela significativa da população brasileira, representada neste trabalho pelas empregadas domésticas. Essa necessidade surge a partir da tomada de reconhecimento que há vida nos "restos", pois, uma vez lançada luz ao "lado oculto" da história, não é mais possível ignorar a cadeia de injustiças reproduzidas a partir da exclusão e opressão que recaem sobre determinado grupo de cidadãos.
Há que se pensar nessa condição vulnerável e perene como parte de um projeto, de uma estrutura. De forma que se deve ter em conta que não se pode falar em uma inevitabilidade circunstancial ou natural, ou até mesmo em uma responsabilidade difusa de toda humanidade, visto que, como se buscou demonstrar ao longo desse trabalho, se está aqui a falar em um modelo de "progresso" que provoca morte, sofrimento e invisibilidade.
Assim, o presente trabalho pretende contribuir para demonstrar que existem outros olhares e formas de como lidar não só para garantir direitos, como também para aplicá-los. Todos os direitos, sejam sociais, ou sociais trabalhistas, que foram discutidos na presente pesquisa já são formalmente reconhecidos a todos, mas por que existe essa enorme dificuldade em efetivá-los e garanti-los? Quais forças atuam para sua inefetividade e quase irrelevância na vida real das pessoas, fora dos livros e códigos?
Essa luta para se alcançar condições de sobrevivência e de trabalho dignas para as empregadas domésticas, a partir da escuta de suas vivências, não pode ser uma luta só dessas mulheres. A criação de oportunidades e locais de fala para essas trabalhadoras devem ser estimuladas, também, como um esforço conjunto do Estado e da sociedade a fim de proporcionar uma vida digna a essa parcela da população que "desde que o Brasil é o Brasil" sofrem pela violação constante de seus direitos fundamentais mais básicos e vitais.