Considerações iniciais
Nos séculos xiv e xv, diferentes dioceses da Cristandade assistem ao aumento da produção de obras em vernáculo, como as sumas de casos de consciência direcionadas a orientar a prática do sacramento da Penitência, já que até esse momento grande parte da produção pastoral e teológica era escrita em latim e, por isso, de difícil compreensão para muitos clérigos.1 Envolvida nessa missão de reforma dos costumes e das práticas do clero, a Coroa de Castela contribuiu com seu quinhão para o estabelecimento de um plano pastoral, a partir da tradução ou da escrita de livros comprometidos com a emenda das ações de clérigos e religiosos.2 No que toca a esse empenho edificante, a obra El espéculo de los legos - um manual doutrinário compilado em castelhano na primeira metade do século xv, a partir de uma versão em latim que remonta ao século xiii - discorre, entre outros temas, acerca das qualidades exigidas de um pregador. Observa essa obra que o pregador, além de remedador3 da santidade4 e estudioso,5 era o responsável por “derramar a semente da palavra em todo lugar”, tendo de seguir o exemplo de Cristo, que ensinava nas sinagogas.6 O Espéculo e outros livros voltados para o mesmo fim edificante colocam, pois, em destaque as virtudes esperadas de um clérigo que deveria admoestar o povo, ensiná-lo e puni-lo, e catalogam ações esperadas de um pregador mendicante ou de um clérigo diocesano responsáveis pela purificação das almas dos homens daquele tempo. Num contexto em que a Península Ibérica carecia de material em vernáculo para orientar a ação dos pregadores, esse tratado elabora um compêndio de doutrinas e lições que poderiam rechear diferentes modalidades de prédicas e admoestações dirigidas aos fiéis.
As advertências de um pregador mendicante ou de um bispo durante a celebração de um sínodo guardavam, apesar das grandes diferenças entre eles, uma tripla expectativa: imitar os santos (1), produzir e propalar boas doutrinas (2 e 3).7 No primeiro livro de Las siete partidas, de Afonso X, conjunto de leis elaborado no século xiii e uma das âncoras do sistema jurídico peninsular do final da Idade Média, destaca-se que a pregação deveria servir apenas para o louvor das crenças cristãs.8 Por isso, os pregadores não poderiam citar as fábulas greco-romanas, pois traziam referências ao universo dos gentios, e não às doutrinas e aos ensinamentos difundidos por Jesus Cristo.9 Em uma piedade amparada pela palavra externalizada,10 as recolhas de sermões em vernáculo visavam a disciplinar a palavra dos pregadores e, consequentemente, a impedir a produção de prédicas que estivessem em desacordo com os fundamentos da arte de pregar e que abrissem caminhos para interpretações heréticas.11 Nas décadas seguintes à elaboração de Las siete partidas, tendo em vista o aperfeiçoamento da pregação e da celebração dos sacramentos, prelados diocesanos assumiram, de maneira cada vez mais constante, políticas para a reforma da ação de clérigos e religiosos, exigindo-lhes uma vida exemplar e uma conduta penitente.12 Entre as medidas tomadas pelos bispos para promover essa reforma, houve a ampliação das bibliotecas catedráticas a partir da aquisição de sermonários e de livros de direito, teologia, artes liberais, medicina e outros.13 No que diz respeito à conservação de materiais destinados à pregação, apenas a biblioteca da catedral de Siguença possuía, no século xiv, dois exemplares de Artes Praedicandi do pensador francês Alain de Lille (c.1128-1202), utilizados como apoio para a produção sermões.14
Entre os séculos xiv e xv - período que compreende o recorte deste artigo -, diferentes eclesiásticos buscavam ampliar a discussão acerca do próprio valor do discurso, na medida em que revestiam a admoestação do clero de ares sacros, principalmente ao destacar a presença da graça divina na palavra do pregador. Nas últimas décadas, sobretudo num contexto em que constituições sinodais e recolhas de sermões ganharam edições críticas graças aos projetos editorais conduzidos por Antonio García y García15 e Pedro M. Cátedra,16 novos horizontes de pesquisa puderam ser idealizados, especialmente no que concerne à estruturação de uma história das incursões moralizantes em solo ibérico no final da Idade Média. Representativo dos trabalhos interessados em analisar os diferentes esforços eclesiásticos e monárquicos para o estabelecimento de ações pastorais na Península Ibérica é a obra coletiva Poder, piedad y devoción. Castilla y su entorno. Siglos xii-xv, dirigida pela historiadora Isabel Beceiro Pita.17 Nesse conjunto de ensaios, o capítulo de Ana Arranz Guzmán18 discute o caráter reformista de constituições de sínodos, servindo-se do projeto coordenado por Antonio García y García. Na historiografia espanhola, um dos principais nomes que se dedica às constituições dos sínodos, tendo inclusive editado alguns desses documentos e participado do projeto de García y García, é o do pesquisador Francisco Javier Fernández Conde. Além de especialista na trajetória do bispo de Oviedo, Gutierre de Toledo (1377-1389),19 ele tem uma vasta obra sobre as incursões moralizadoras da Igreja na Castela medieval em que analisa diferentes aspectos da política diocesana e da reforma empreendida nas paróquias ibéricas.20 Embora com base em documentos também examinados por esses historiadores, este estudo seguirá, todavia, um outro enfoque: a força edificante atribuída à palavra de pregadores e bispos na hora de admoestar o seu público.21
No governo dos reis da dinastia de Trastâmara, cresce a produção eclesiástica em vernáculo, e Castela ganha recolhas de sermões na mesma língua falada por pessoas comuns, como as reportaciones da missão de Vicente Ferrer (1350-1419), o Evangelios moralizados, de Juan López de Salamanca (c.1389-1479), e o sermonário do manuscrito 1854 da Biblioteca Universitária de Salamanca. Além das recolhas de sermões em vernáculo, ocorre em Castela o aumento do número de constituições e livros sinodais em que os cuidados com a pregação continuavam a ser contemplados pelos prelados diocesanos. No início do século xiv, já havia ocorrido um complexo processo de repovoamento em uma grande parcela da região centro-sul da Coroa de Castela, recuperada de mãos mouras.22 A partir desse período, como desdobramento dessa etapa inicial de reconfiguração geográfica e política de parte da Península Ibérica, intensificou-se o aprimoramento de uma rede eclesiástica que visava à manutenção de uma unidade de práticas pastorais em todo o território administrado pelos monarcas dessa Coroa.
Com ênfase em livros com propósitos semelhantes ao do El espéculo de los legos e em recolhas de sermões elaboradas em vernáculo, o objetivo do presente estudo não consiste em mapear as lições transmitidas aos leigos ou mesmo o perfil idealizado de um pregador virtuoso, o que demandaria um trabalho mais exaustivo e extenso, mas evidenciar a importância conferida à prédica de um clérigo como instrumento de aprendizagem e de ação da graça divina.23 Neste artigo, as lições direcionadas ao clero são abordadas com ênfase em dois aspectos: o papel da palavra como mediadora e a força atribuída à graça divina para sensibilizar o ouvinte da prédica.
A palavra intermediária
No manuscrito 1854 da Biblioteca Universitária de Salamanca, datado do século xv, em que está registrado um sermonário, também consta uma cópia do Libro sinodal do bispo de Salamanca,24 Gonzalo de Alba (1408-1412). Promulgada no sínodo de 1410, a obra teve um papel sobremodo importante na promoção das matérias que os curas de almas tinham de ensinar aos leigos. No capítulo segundo, em que analisa o ensino do Credo, a obra detalha que, entre os fiéis, haveria uma tripla divisão: “uns são ditos altos, outros baixos e outros medianeiros. Os primeiros são o papa e os bispos, os segundos são os leigos, os terceiros são os clérigos sacerdotes e os curas”. Ao desdobrar essa classificação social, o prelado dominicano apregoa que os bispos seriam obrigados não apenas a memorizar os artigos da fé, mas também a “defendê-los contra os hereges” e a ensiná-los aos cristãos. Em sua opinião e de outras autoridades eclesiásticas, da mesma maneira que cabia aos pastores criar o seu gado e protegê-lo dos lobos, seria um dever dos papas e bispos defender os fiéis católicos “dos hereges e de seus enganos”. Em seguida, os medianeiros na Igreja seriam os curas simples e aqueles que exerciam o ofício de orientar os outros, “assim como os pregadores, os mestres e os doutores”.25 Em seu raciocínio, o bispo de Salamanca justifica que o ensino da doutrina era um dever partilhado por prelados diocesanos, curas de almas e pregadores, atribuindo a cada uma dessas figuras a incumbência sagrada de se aproximar de homens e mulheres para admoestá-los. O aumento da celebração de sínodos e a proliferação de sermões resultavam, desse modo, dessa política eclesiástica descrita por Gonzalo de Alba, e cujo alvo era fazer com que cada peça da Igreja, desde a principal à medianeira, estivesse unida em prol da fé católica.
Nesse plano, que combinava ordenamento do comportamento cotidiano de clérigos seculares e regulares, não faltavam recomendações também referentes à palavra considerada ideal para os homens da Igreja. Foi nesse período, séculos xiv e xv, que se destacaram iniciativas de reforma mais ordenadas e constantes nas dioceses da Coroa de Castela, com o objetivo não apenas de colocar essa plaga em sintonia com as orientações dadas no iv Concílio de Latrão (1215) de organizar um conjunto de ações pastorais mais efetivas para o cotidiano dos fiéis, mas também de criar ferramentas edificantes para facilitar a absorção da doutrina cristã.26 A partir do século xiii, diferentes reinos católicos já apresentavam sinais de mudança nas propostas para a devoção dos leigos e começavam a experimentar um cenário em que os fiéis deveriam se confessar, repensar as suas atitudes e adequar o seu ritmo de vida às recomendações do confessor. Foi sobretudo na primeira metade do século xiv, época em que o dominicano Gonzalo de Alba promulga esse livro sinodal, que a Península Ibérica acolhe tal movimento reformista e assiste a um investimento maior na produção de obras em vernáculo de caráter devocional.27
Os simples clérigos eram ensinados, sobretudo no âmbito dos sínodos, que seus gestos e palavras deveriam ser a porta aberta aos fiéis para entrarem em um novo campo de descobertas sobre as verdades relativas à morte e à salvação. Num momento anterior ao episcopado de Gonzalo de Alba, quando a reforma do clero começava a ser sustentada por obras em castelhano, o bispo de Segóvia, Pedro de Cuéllar (1324-1350) - num sínodo de 1325 -, promulgou um livro sinodal em que disserta, entre outras matérias, acerca das qualidades esperadas do clérigo ordenado. Em sua consideração, além de ser casto, sóbrio em comer e beber, dominar o latim, o clérigo deveria saber como castigar uma pessoa “por correção e por pregação”.28 Em outra parte, ao discorrer sobre a maneira de dizer as Horas, o mesmo bispo acrescenta que o clérigo tinha de pronunciá-las “muito devotamente e com todo o coração”.29 Na pregação e nas Horas Canônicas, era dever do eclesiástico disciplinar gestos e discursos, ponderar as palavras e mover-se pelo fervor da devoção. A proposta era convencer os eclesiásticos de que os seus corpos e as suas palavras serviam como instrumentos de Cristo na Terra, capazes de fazer resplandecer a graça, intermediar a salvação e disciplinar fiéis pela visão e audição.
No ano de 1384 - quase seis décadas depois da promulgação do referido livro sinodal -, o bispo de Ávila, Diego de los Roeles (1378-1394), celebrou um sínodo cujas constituições se iniciaram com um roteiro, comum nesse gênero, para a aprendizagem dos artigos da fé, dos pecados mortais, dos mandamentos e de outros rudimentos da doutrina católica. Em seguida, ele explica como transmitir suas lições: “Estabelecemos e ordenamos que estas ditas ordenações [...] que foram por nós feitas, em cada domingo do Advento e em cada domingo da Quaresma [...]” sejam lidas em “voz alta”, de maneira que os fiéis as ouçam “quando vierem à missa”.30
Constituições como as de Diego de los Roeles confirmam a função dos clérigos como formadores de fiéis, ou seja, intermediários entre a doutrina e o público das missas. Na mesma esteira desse prelado, o bispo de Salamanca Diego de Anaya y Maldonado (1392-1407) também lançou mão de um roteiro de aprendizagem sintético, no sínodo de 1396, ao afirmar que “aos sacerdotes pertencem o saber e mostrar aos simples homens, maiormente aos clérigos curas o que devem pregar a seus povos”. Na sequência, ele considera obrigatório pregar aos fiéis aos domingos, na Páscoa, na Ressureição, na Quaresma e na Assunção de Santa Maria.31 Esses prelados sustentam, assim como outros de seus congêneres, que o clérigo deveria tomar consciência do poder instrutivo de suas palavras, para avaliar o repertório de lições a serem transmitidas aos fiéis de sua paróquia.32 A partir desses ensinamentos, esperava-se que o clero castelhano reconhecesse a voz como mecanismo de correção, instrução e punição, os três pilares da prática reformadora da Igreja com relação à sociedade laical.
As constituições sinodais foram, desse modo, peças centrais nesse plano de revigoramento da pregação e de efetivação de um poder atribuído ao bispo: de formador de clérigos atuantes e que soubessem cativar fiéis por meio de suas palavras.33 Enquanto as recolhas de sermões proporcionavam modelos a serem adotados por indistintos pregadores, que poderiam imprimir características próprias às prédicas e adaptá-las aos diversos contextos, as constituições sinodais ou os livros sinodais traziam orientações compiladas por um bispo em especial. Quando reliam as constituições em suas paróquias, os clérigos beneficiados retomavam uma lição elaborada por um bispo que, juntamente com o papa, era o responsável por pastorear almas e proteger os católicos dos hereges. Ao estabelecer e outorgar a obrigação de que a lista com os rudimentos da doutrina deveria ser lida em voz alta, Diego de los Roeles visava a perpetuar essa norma e colocá-la em vigência em sua prelazia. Além de asseverar sobre o próprio ofício, avaliando as atividades que cabiam aos bispos, prelados como ele preocupavam-se em convencer os simples clérigos a aprenderem a utilizar as próprias palavras como ferramenta de conversão. Dito de outro modo, muitos foram os prelados diocesanos que defendiam a importância da palavra dos homens da Igreja como intercessora não apenas na celebração dos sacramentos, mas igualmente no ensino da doutrina e dos costumes.34 Ao corroborar com o plano arquitetado por recolhas de sermões e manuais de confessores de oferecer parâmetros para as prédicas de clérigos e religiosos, as constituições sinodais ajudaram a naturalizar como sacra a palavra desses homens e a justificar a ação pastoral da Igreja. A partir da elaboração desse gênero de documento, os prelados diocesanos tinham à sua disposição um mecanismo de vigília e de controle das práticas dos clérigos colocados sob sua responsabilidade, já que traziam tanto orientações sobre comportamentos cotidianos quanto lições concernentes ao ensino da fé cristã.35
Além dos bispos, os pregadores também advogavam a favor dos benefícios dos sermões e ampliaram esse debate promovido nos sínodos. Nessa missão de revigoramento da aprendizagem da fé e do uso da voz como instrumento de conversão e ensino, recolhas de sermões e tratados religiosos cumpriram um papel complementar ao das constituições sinodais ao definir a função da palavra de um pregador na sociedade cristã. No Tratado de la vida espiritual, Vicente Ferrer explica que o pregador rechearia o seu discurso de caridade, evitando um comportamento soberbo, ao se mover por uma piedade paterna e ao conceber os fiéis como filhos pecadores.36 Embora se trate de um curto capítulo inserido numa obra em que são abordados diferentes segmentos da vida de um dominicano, essas orientações resumem certas estratégias de que o próprio Vicente Ferrer se valeu para produzir os seus sermões.37
Em uma das coleções de sermões atribuídas a Vicente Ferrer, a rae 29438 - que reúne prédicas de sua campanha em Castela entre 1411 e 1412 - diz-se que a intenção da pregação era revelar as formas usadas por Jesus Cristo para tirar as pessoas do pecado e as conduzir “à boa vida”.39 Na sequência, ao desdobrar o alvo do sermão, acrescenta: “Agora, acerca desta palavra proposta, eu busquei, na Santa Escritura, por amor a vós e encontrei quatro aguilhões com os quais Nosso Senhor Jesus Cristo punge e aguilhoa as pessoas que estão em má vida e em pecado” para se recuperarem e virem “à boa vida”, a saber: “o primeiro aguilhão é dor corporal; o segundo aguilhão é doutrina espiritual; o terceiro aguilhão é temor judicial; o quarto aguilhão é amor celestial”.40 Nesse sermão pregado entre os dias 7 e 12 de fevereiro de 1412, entre Salamanca e Zamora, Vicente Ferrer discorreu pormenorizadamente sobre esses quatro aguilhões, declarando que o segundo deles seria aplicado por aqueles responsáveis por pregar a doutrina evangélica, como frades, religiosos e outros do mesmo ofício.41 De acordo com o teólogo, o sermão teria de ser simples, direto e jamais recheado de “alegações de poetas”, ou seja, de palavras formosas, pois o conteúdo do texto era considerado um elemento estratégico que possibilitava a ação do Espírito Santo nos corações dos ouvintes. Mesmo que as palavras formosas chegassem aos ouvidos e fossem compreendidas pelo auditório, segundo ele, não seriam capazes de penetrar os corações por não carregarem a verdadeira doutrina.42 Além disso, a reputação do pregador estaria em risco a partir do momento em que não respeitasse esses princípios e preferisse utilizar poesias em suas prédicas, já que poderia perder a confiança do auditório, a ponto de ouvir o público ofendê-lo com palavras vexatórias.43 Se Diego de los Roeles havia oferecido aos clérigos de Ávila uma espécie de tratado sintético sobre a doutrina cristã para que eles o memorizassem e, por conseguinte, transmitissem aos leigos, Vicente Ferrer discorre, nas obras citadas, sobre os efeitos desses conhecimentos na alma do fiel, destacando a ação salutar da palavra retirada da Escritura na vida dos ouvintes dos sermões.
Esses textos atribuídos a Vicente Ferrer complementam o raciocínio dos bispos, pois afirma que a voz do pregador era uma ferramenta de divulgação da palavra de Cristo. Ensina aos ouvintes e aos leitores que as prédicas deveriam se basear nos textos bíblicos e, desse modo, remeter à doutrina sagrada. Trata-se de uma produção que salienta um elemento-chave de todo discurso eclesiástico voltado para a admoestação de um fiel católico: o papel atribuído ao Espírito Santo como motor da palavra salutar do clérigo ou religioso.
Tais justificativas dadas pelas recolhas de sermões castelhanas a respeito da intervenção da graça na pregação são o alvo da sequência deste estudo. Focando nas recolhas de sermões e tratados doutrinários, vejamos como essa produção procurou constranger o pregador com o objetivo de torná-lo peça de um plano pastoral.
A graça manifestada
Na Idade Média, vigorava a concepção de que a providência divina ordenava os rumos do universo,44 incluindo os passos dos fiéis que procuravam alcançar a salvação e, da mesma forma, os dos clérigos imbuídos da tarefa de orientá-los.45 Numa época em que o discurso de um representante da Igreja deveria passar por certos filtros e seguir um esquema-padrão a fim de impedir o crescimento de prédicas heréticas,46 bispos e pregadores não poderiam deixar de obedecer às recomendações dos Concílios Ecumênicos e preparar planos argumentativos baseados em textos bíblicos.47 Por isso, o pregador precisaria aprender a conduzir-se pelos conhecimentos contidos na Sagrada Escritura, e não exclusivamente por suas impressões sobre o mundo. É baseado nesse argumento de que o membro do clero deveria tomar a palavra sagrada como fonte de inspiração que o franciscano Álvaro Pais - na obra Colírio da fé contra as heresias,48 escrita no final da primeira metade do século xiv - afirma: “todo o leigo e todo o simples clérigo, tentado a pregar ou expor a Sagrada Escritura, é levado pela cobiça, pela soberba, e pela vanglória, e, por isso, cai em heresia”.49 Na visão desse autor, os simples clérigos, por não focarem “nas letras apostólicas” ou se importarem com os fiéis, seriam “mestres do erro”, semelhantes ao leigo que se propusesse a pregar.
O discurso apresentado por um bispo ou pregador não era reconhecido como uma construção criativa e unicamente produzido em razão do esforço pessoal, fruto de seus estudos, pois os méritos atingidos pela pregação eram atribuídos a Deus.50 Esse tema da ação da graça por meio da palavra apregoada em um sermão foi explorado por Juan López, dominicano do convento de Santo Estevão de Salamanca. Na obra Evangelios moralizados51 - escrita entre 1460 e 1468, inicialmente para a formação da condessa de Plasencia, Leonor Pimentel, e servindo, em um segundo momento, como fonte de consulta para confessores e pregadores -,52 o mendicante assevera:
Todas as pregações que se faziam aos infiéis eram tão virtuosas e tão eficazes que convertiam as gentes à fé de Nosso Senhor. E essa virtude dava Deus, como dizia Davi: “Dominus dabit evanvelizantibus, virtute multa” (O Senhor dará palavras aos evangelizantes com muita virtude). E, em outra parte, diz: “Ipse dabit voci sue vocem virtutis” (Ele dará ao pregador - que é voz de Deus - voz de virtude). E isso era que a voz da pregação dava outra voz de virtude, que era fazer milagres.53
Esse sermão recorre a um dos topoi da reflexão sermonística medieval acerca da atuação do pregador, o da incumbência dada por Cristo aos apóstolos de disseminarem a Sua palavra. Tal passagem esclarece que a graça divina age nas palavras do pregador dotando-as de uma virtude especial, entregue como dádiva aos homens, e que poderia operar milagres e converter infiéis. Além disso, a força da prédica estava sustentada pela palavra retirada da Bíblia e explorada diante de um auditório. No período de pouco mais de um século que separa a elaboração do livro Evangelios moralizados e a obra Colírio da fé contra as heresias, os reinos da Península Ibérica assistem ao revigoramento dessa incursão voltada à emenda dos simples clérigos e pregadores encarregados de disseminar a doutrina católica e combater a heresia.
Não foram poucas, portanto, as obras que denunciavam falhas na ação do clero e investiam na capacidade dos pregadores para serem representantes de Cristo, como os apóstolos, e colocarem as suas palavras ao Seu serviço.54 Uma dessas obras foi o livro de teor místico Enseñamiento del corazón, tradução da obra em latim De Doctrina Cordis e impresso na cidade de Salamanca em 1498. Seguindo o caminho das recolhas de sermões, a obra define o discurso do pregoeiro da seguinte forma: “as palavras de Deus, assim são como umas uvas que estão cheias de grande abastança de vinho. E assim como é mister que sejam bem pisadas e espremidas, as uvas para que o vinho delas saia, assim é” preciso anunciar “com diligência a palavra divina para que o vinho do entendimento espiritual possa” penetrar no coração.55 Esse tratado ascético-místico ainda afirma que o pregador deveria ser doce e manso não para repreender duramente o seu ouvinte, mas, sim, consolá-lo. No prólogo, uma espécie de roteiro de comportamentos reservados aos pregadores, a ação de “pregar” é vista como sinônima de “consolar”, reforçando-a como mecanismo de abrandamento e sensibilização. Por isso, o êxito da pregação estaria no potencial do pregador de atingir o coração dos ouvintes com as palavras extraídas da Sagrada Escritura, traçando caminhos a partir das orientações reveladas em tal livro. Conselhos não muito diferentes eram encontrados em outra obra também traduzida para o castelhano, o referido El espéculo de los legos, em que o pregador é ensinado a pregar com humildade, “chamando para a sua ajuda a graça divinal e conhecendo a própria míngua e enfermidade”. Essa é uma das qualidades esperadas do pregador catalogadas na obra que evidencia a crença de que a força da palavra pregada reside na bênção da graça.56
Para que pudessem ter essa qualidade e conhecer melhor o seu ofício, os pregadores tinham à sua disposição certos guias, como a recolha de sermões do manuscrito 1854 da Biblioteca Universitária de Salamanca, compilado no século xv.57 No sermão 16 dessa coleção, intitulado Sermón del lunes de las ochavas de Çinqüesma, e sendo o seu thema o versículo João 14: 26, lê-se: “Rogaremos ao Nosso Senhor Jesus Cristo que nos ordene os corações e as vontades, e nos ilumine o entendimento, e me dê e administre palavra e sermão”. Ao complementar esse rogo, o texto revela-se mais categórico: “e, outrossim, que nos envie a graça e virtude do Espírito Santo”, envie-a “a mim para dizer e a vós para ouvir e pôr por obra” o que será dito “a serviço e ao louvor da Trindade”.58 A voz que viesse dar vida a esse texto poderia não ser sempre a mesma e, provavelmente, mais de um clérigo ou religioso poderia tomá-lo com base para admoestar um grupo de fiéis.
A campanha de Vicente Ferrer em Castela legou reportationes que inspiraram outros pregadores. Em um dos sermões pregados em Castela entre 1411 e 1412, o célebre dominicano - conhecido por suas pregações itinerantes e defesa da fé católica ante as crenças judaicas - afirmou:
Sabei, boa gente, que ofício de pregar é propriamente assim como ofício de pregoeiro, porque assim como o pregoeiro, quando quer pregoar às gentes as ordenações reais do rei, com uma trombeta vai tocando de rua em rua e de praça em praça, assim é o ofício de pregar, pois o que prega é pregoeiro de Deus. E quando predica, denuncia às gentes as ordenações divinais com a trombeta da pregação, dando vozes, e assim as manifesta.59
Nesse sermão, intitulado Sermón que fabla cómo se deven vencer los siete pecados mortales, Vicente Ferrer aborda, entre outros assuntos, a missão dos pregadores e a estreita relação entre a função de “pregar” e de “denunciar”. Por meio do raciocínio metafórico em que a figura do pregoeiro, isto é, o porta-voz do rei, é comparada à do pregador, o verbo “pregar” torna-se sinônimo de “denunciar”60 porque revela a um determinado público certas verdades. É por isso que esse dominicano argumenta que “a pregação é comparada à trombeta denunciante, pois o pregador é pregoeiro de Deus”. Com base no texto bíblico de Isaías (Is 58:1), Vicente Ferrer ainda assevera que o pregador não pode ser preguiçoso para pregar, “assim como o pregoeiro, que não é preguiçoso, pois este diligentemente vai pregoando pelas ruas e praças”; da mesma forma, Deus quer “que as pregações andem por todo o mundo, de terra em terra, e de vila em vila e de lugar em lugar”.61 Em um sermão destinado - como o seu conteúdo permite deduzir - a religiosos, esse trecho tem como finalidade justificar o papel dos pregadores como emissores da palavra divina aos simples fiéis e como anunciadores dos caminhos que estes tinham de tomar.62 Como o tema do referido sermão é o texto bíblico de Lucas (Lc 8:8), Qui habet aures audiendi, audiat (Quem tem ouvidos para ouvir, ouça),63 possuindo como ênfase uma exclamação de Cristo, o dominicano abre uma fresta para dissertar a respeito do exercício da pregação aos fiéis.
Considerações finais
Juan López - um dos seguidores das orientações legadas por Vicente Ferrer, como antecipado acima - considera que os frutos de uma pregação não seriam colhidos apenas pelas mãos do pregador, mas também pela força do Espírito Santo.64 Desse modo, as palavras humanas se configurariam como um suporte em que Deus, por Sua misericórdia para com os pecadores, depositaria a Sua compaixão e forneceria respostas necessárias para o fiel reencontrar o caminho da salvação.65 Se o bispo celebrava um sínodo na expectativa de que a graça corrigiria os pecados e os excessos por meio das constituições, os pregadores tinham, então, a tarefa de abrir caminhos para a presença de Deus na vida dos homens, colocando as suas palavras ao serviço Dele. Esse pressuposto de que a palavra do pregador abrigaria a graça era um argumento comum a várias obras e havia sido alimentado pelo oitavo sermão em vernáculo conservado no códice 40 da Real Colegiata de San Isidoro. Na prédica, menciona-se que assim como os homens precisavam da ajuda do sol para enxergar qualquer objeto material, necessitariam do Espírito Santo para ver tudo o que é de natureza espiritual.66 Conforme clérigos e religiosos letrados admitiam que um bispo ou um pregador era porta-voz do Espírito Santo, reconhecia-se, como indicado no sermão de Vicente Ferrer, a obrigação de um representante da Igreja de saber colocar a própria boca a serviço de Deus.
As ponderações de tratados e recolhas de Castela serializadas neste estudo lançaram mão de diferentes instrumentos para justificar o pressuposto de que não se poderia “entender nenhuma coisa que de bem seja sem a graça do Espírito Santo”.67 O conhecimento era visto, desse modo, como dádiva divina, e a palavra do pregador tratava-se de uma das pontes criadas para o fiel alcançar tal dom. Entre os séculos xiv e xv, numa época em que o poder pastoral das dioceses da Coroa de Castela se consolidava, bispos e outros eclesiásticos foram os responsáveis pela criação de ferramentas que orientassem simples clérigos e religiosos de formação considerada deficitária a preparar sermões de acordo com as diretrizes de tratados do período sobre o assunto. Trata-se de uma missão, aos olhos desses letrados, que visava a ensinar não apenas um conjunto de condutas aos pregadores, mas igualmente lições a respeito da constituição sagrada de suas admoestações públicas, pelo fato de terem de estar ancoradas na Sagrada Escritura e se moverem pela força da graça ofertada aos homens por Deus. A prédica em vernáculo forneceu, desse modo, não apenas referências textuais mais acessíveis aos simples clérigos, mas, sobretudo, elementos para a construção de uma unidade da ação catequética na Coroa de Castela.