Introdução
O Território Rural do Bolsão é uma área definida pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário - em diante MDA, como parte da política de Territórios Rurais implantada a partir de 2003, que visa ao desenvolvimento territorial rural, com especial atenção ao campesinato e às comunidades tradicionais. Ele abrange uma região localizada na porção leste do estado do Mato Grosso do Sul - em diante MS, caracterizada pela estrutura fundiária altamente concentrada, com predomínio de pecuária extensiva e, mais recentemente, monocultivos como soja, cana-de-açúcar e eucalipto. Sua área total é de 45.929,9 km2, equivalente ao estado do Rio de Janeiro. No MS, os estabelecimentos rurais acima de 1.000 hectares dominam 77% da área e representam apenas 10% dos estabelecimentos.
Três Lagoas, a cidade de maior atividade econômica do Território Rural do Bolsão, tem hoje a alcunha de "capital mundial da celulose", em decorrência da territorialização do capital relacionado ao complexo de eucalipto-celulose-papel, em franca expansão nos últimos dez anos (Almeida 2012). O complexo atua tanto no controle da terra (propriedade ou arrendamento) quanto no processo produtivo no campo e na indústria, o que caracteriza a territorialização do monopólio descrita por Oliveira (2016), que se dá quando essas três áreas são dominadas pela mesma empresa. Facilitadas pela grande concentração fundiária, as plantações de eucalipto se espalham à vontade e hoje já somam mais de um milhão de hectares plantados em todo o estado. Há também duas grandes fábricas de celulose instaladas na microrregião de Três Lagoas.
Tal cenário pode ser compreendido pelo avanço das políticas neoliberais, que têm guiado as políticas públicas na América Latina como um todo, a partir da década de 1980, trazendo graves consequências à população trabalhadora e ao meio ambiente. A inversão de capital estrangeiro para a produção de commodities em terras latino-americanas se dá por meio de mudanças macroinstitucionais, com pressões externas acatadas pelas políticas locais. Acompanhando essas transformações, têm surgido novos conceitos teóricos, dos quais destacamos a expressão "nova ruralidade" que, embora cooptada por diversos setores, busca abarcar fenômenos do campesinato contemporâneo latino-americano no cenário globalizado (Kay 2009).
Esse campesinato é composto por famílias que vivem na terra e da terra, interagindo com o capitalismo, mas estabelecendo valores diferentes daqueles pautados pela sociedade capitalista. Todavia, o viver não tipicamente capitalista do campesinato não é hegemônico, pois este se encontra inserido em uma totalidade capitalista, ora em rota de colisão como expressão de resistência, ora subordinado às suas contradições.
Ressalta-se, ainda, a relevância do campesinato como o maior produtor de alimentos do Brasil (Mitidiero Júnior et al. 2017), assim como grande protagonista dos cultivos agroecológicos. O trabalho familiar no campo, além de estabelecer relações não tipicamente capitalistas entre as pessoas, carrega uma visão holística e relacional com a natureza, opondo-se ao conhecimento atomizado que prevalece na ciência neopositivista, adotada pelo agronegócio para servir aos interesses econômicos neoliberais (Porto-Gonçalves 2004).
Há sete assentamentos rurais de reforma agrária instalados no Território Rural do Bolsão, que abrigam 643 famílias e ocupam um total de 184,18 km2, o que representa ínfimos 0,44% da área dessa região, explicitando as injustiças espaciais presentes na área de estudo.
O interesse da presente pesquisa está em desvendar esses espaços e sujeitos, observando a questão agrária a partir de um viés feminista. Objetiva-se, assim, identificar e destacar o protagonismo das mulheres camponesas residentes nos assentamentos de reforma agrária do Território Rural do Bolsão, buscando verificar como se dão as relações de gênero no processo de (re)criação camponesa no Território, compreendendo que a ordenação desse território se dá via relações de produção capitalistas, de maneira desigual e contraditória.
Pautando essa busca, foram determinados os seguintes objetivos específicos: observar como se dão as relações de gênero tanto na esfera pública como na esfera privada dessas mulheres e analisar a sua participação na manutenção da biodiversidade de espécies e na produção de alimentos, atentando para a relação do feminismo com a agroecologia, assim como da agroecologia em contraponto ao modo capitalista de produção. Para tanto, foi feito levantamento de bibliografia, seguido da obtenção de dados estatísticos, tanto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - em diante IBGE, como pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - em diante Incra, com especial atenção para a participação das mulheres na titulação das terras (privadas e nos assentamentos), bem como para a participação política das mulheres nos municípios e assentamentos em questão, observando a representatividade feminina nesses espaços. Em um segundo momento, foram feitos trabalhos de campo e entrevistas.
O trabalho com fontes orais foi de fundamental importância, articulando-se e complementando tanto as fontes escritas como os dados quantitativos levantados, e trazendo as percepções das próprias camponesas acerca de suas condições de vida - no processo de organizar suas histórias, muitas vezes se veem protagonistas. Nesse âmbito, concordamos com Almeida, que defende o uso das fontes orais nas ciências humanas, especialmente quando se trata de estudar as classes oprimidas, como o campesinato.
Uma das premissas importantes no trabalho com fontes orais é a de que estas têm ainda se constituído no caminho por excelência da história das classes oprimidas, logo que as mesmas permitem às "pessoas comuns" contarem sobre fatos que, na maioria das vezes, são inéditos no tocante à história das classes não-hegemônicas, verdadeiras "áreas inexploradas". Isto significa dizer que as classes dominantes têm uma tradição escrita que permite deixar um abundante registro, ao contrário das demais classes. Entendemos ainda que, embora o trabalho com fontes orais não seja para nós um instrumento de "conscientização política", ele permite a superação da pretensa prática da neutralidade na pesquisa. (Almeida 2003, 39)
No total, foram entrevistadas 23 mulheres, que representam cinco dos sete assentamentos do Território Rural do Bolsão, distribuídas de modo a haver entre quatro e cinco participantes de cada assentamento. A pesquisa foi conduzida a partir das mulheres que compõem o Comitê de Mulheres do Bolsão, órgão de representatividade feminina camponesa fundado em 2016, composto em sua maioria por assentadas. Também foram entrevistadas lideranças que se destacaram na luta pela terra, representantes das associações locais e participantes de grupos produtivos. A fim de preservar a identidade das entrevistadas, foram utilizados nomes fictícios, inspirados em flores e plantas encontradas no Cerrado, bioma da região de estudo.
O Território Rural do Bolsão e o Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial
As políticas territoriais estatais, que consideram o Brasil a partir dos Territórios Rurais e dos Territórios da Cidadania, se iniciaram em 2003 e 2008, respectivamente. O programa dos Territórios Rurais foi desenvolvido pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), integrante do MDA, juntamente com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e tinha por objetivo promover iniciativas que visassem ao desenvolvimento do território rural e buscassem reduzir as desigualdades sociais e de gênero.
Para a efetivação dos Territórios Rurais, foram abertos editais para financiar projetos de pesquisa e extensão que implantassem o Sistema de Gestão Estratégica (SGE) nos territórios, a fim de assessorar a composição dos Colegiados Territoriais, órgãos compostos pela sociedade civil e pelo poder público, responsáveis por essa gestão. Assim, surgiram os Núcleos de Extensão em Desenvolvimento Territorial - em diante NEDET, compostos de pesquisadores/as, colaboradores/as e estudantes, para contribuir na aplicação da política pública apresentada.
O NEDET do Território Rural do Bolsão foi instaurado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas; esse núcleo atuou por dois anos junto a comunidades rurais e assentamentos do Bolsão. Esse território é composto por oito municípios: Água Clara, Aparecida do Taboado, Cassilândia, Chapadão do Sul, Inocência, Selvíria, Três Lagoas e Paranaíba. Os assentamentos e seus respectivos municípios são: Alecrim, São Joaquim e Canoas, no município de Selvíria; Aroeira, no município de Chapadão do Sul; Pontal do Faia e 20 de Março, no município de Três Lagoas, e Serra, no município de Paranaíba, como ilustrado na Figura 1.
O Território Rural do Bolsão abrange uma região localizada na bacia do Rio Paraná, de alta concentração fundiária, ocupada por áreas de pecuária e monocultivos, além de apresentar altos níveis de absenteísmo dos proprietários rurais, como denuncia Nardoque (2016). Sua área total é de 42.101,161 km2, abrigando uma população total de 233.297 habitantes (IBGE 2010). O perfil econômico dos municípios do Bolsão é caracterizado por Nardoque a seguir:
Estes municípios têm economia baseada, principalmente, na atividade pecuária de bovinocultura de corte, com forte concentração fundiária. Nos últimos anos houve diversificação das atividades econômicas, principalmente com marcante presença de atividades industriais, como as agroindústrias. Em Três Lagoas destacam-se as de celulose, metal-mecânica e de alimentos; em Aparecida do Taboado e Paranaíba as do setor de metal-mecânico e sucroalcooleira - especialmente pelas vantagens comparativas de proximidade com o Estado de São Paulo, disponibilidade de terras, fonte hidro energética, rede fluvial, rodoviária e ferroviária, incentivos creditícios (via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social/BNDES) e fiscais (renúncia fiscal por parte do Governo de Mato Grosso do Sul e dos municípios). Devido a influência da indústria de celulose, houve expansão de monocultivos de eucaliptos por vários municípios, sobretudo em Três Lagoas, Selvíria e Água Clara, modificando o perfil agrário (reconcentração de terras) e agropecuário, diminuindo, consequentemente, as áreas tradicionais de pastagens e de produção de alimentos de origem vegetal. (Nardoque 2016, 4)
É possível apreender a alta concentração fundiária do Território Rural do Bolsão na Figura 2, que demonstra que as terras definidas como de agricultura familiar, ou seja, áreas consideradas pequenas, formadas por até quatro módulos fiscais e manejadas com trabalho familiar, representam 3% da área total, embora sejam responsáveis por 37% dos estabelecimentos.
A alta concentração fundiária dificulta o acesso à terra e aos demais recursos por parte das famílias camponesas, o que aumenta as desigualdades sociais e a concentração de renda.
Gênero, campesinato e território
Nossa compreensão do campesinato atual dialoga com a teoria de Chayanov (1974) sobre a permanência camponesa no modo capitalista de produção. Para esse autor, a recriação do campesinato está centrada na organização familiar, e sua lógica de reprodução difere da lógica capitalista, embora esteja subordinada a ela. A organização da unidade econômica camponesa visa satisfazer as necessidades da família. Diferentemente, uma organização capitalista está centrada no trabalho assalariado e na exploração da mais-valia, com vistas a gerar lucro para seus/suas proprietários/as.
No mesmo sentido, Marques (2008) afirma que o campesinato possui uma organização social específica, e sua relação com a sociedade capitalista varia conforme a necessidade. Sendo o campesinato dono dos meios de produção e da mão de obra, simultaneamente, ele constitui uma classe social própria, com seu modo de vida distinto. Acerca desse modo de vida distinto, Almeida (2003) o define como o "habitus" camponês, que é orientado pelas relações entre terra, família e trabalho. O sítio/lote4 é tanto uma unidade econômica como um lar, e todos/as os/as membros/ as da família desempenham uma jornada combinada, transformando-se em um trabalhador coletivo (Santos 1984, 33-34 citado por Almeida 2003, 330). O "habitus" inclui diversas estratégias específicas para recriar seu modo de vida e permitir sua permanência na terra, pautadas na organização familiar que, por sua vez, está pautada na divisão sexual de tarefas.
Pode-se perceber essa dinâmica no relato a seguir, que expõe a divisão de tarefas nos sítios visitados:
São meus filhos que tomam conta da horta, levantam de manhã, os dois vão para o curral, enquanto um tá buscando a vaca o outro tá puxando bezerro. De manhã eu estou na lida, a nora está na escola. Chega da escola, vai pra louça, vai pra roupa que tem que catar no varal que eu já coloquei, ela apanha no varal e dobra e passa, tudo tem uma tarefa, todos nós. (Entrevista concedida às autoras pela assentada Amarílis. PA 20 de Março, Três Lagoas, maio 2017)
Segundo Woortmann e Woortmann (1997), os homens, no modelo familiar camponês, cuidam do lado mais externo do sítio: lidam com os animais maiores (como bois e cavalos), com as tarefas de desbravar os perigos do mato para desenvolver espaços de roçado e também atuam no meio político/econômico, nas relações com os mercados e instituições: o mundo de fora. As mulheres, nesse modelo, responsabilizam-se pelo mundo de dentro: os serviços domésticos, o cuidado com animais menores e com o entorno da casa (horta, plantas medicinais), a alimentação da família, o cuidado com as crianças, com o conforto do marido e o das outras pessoas da casa. Essa divisão de fora e dentro aparece no relato a seguir:
A parte da casa é com as mulheres. A parte do quintal pros homens. Mas nem sempre fica assim. Sempre estão chamando pra fazer alguma coisa lá pro lado de fora. Sempre estão chamando pra ajudar a carpir, alguma coisa assim. Mas quando estão as duas, dá pra revezar, pro lado de fora e pro lado de dentro. A maioria é ele [marido], que é o gado, as plantações, a cerca, a maioria é meu esposo e meu menino. Aí eu fico mais com a parte de almoço, lavanderia, e a limpeza geral da casa. (Entrevista concedida à autora pela assentada Petúnia. PA Alecrim, Selvíria, fevereiro 2018)
A casa, em nossa pesquisa, confirmou-se como o lugar da mulher. O espaço doméstico é quase que exclusivamente feminino: 22% das entrevistadas, ou seja, apenas cinco das 23 famílias visitadas, afirmaram haver alguma participação masculina nas tarefas que, a princípio, são consideradas responsabilidade da mulher.
Essa realidade pode ser interpretada sob dois vieses. Por um lado, demonstra que persiste um padrão nas relações de gênero no núcleo familiar camponês; por outro, revela mudanças nessas relações, existindo a permeabilidade entre os espaços e gêneros. Nos depoimentos de Celósia e Zínia, notamos maior participação dos homens nos serviços domésticos:
Tudo o que ele faz dentro do lote, eu faço com ele. E todo o serviço que é pra eu fazer ele me ajuda também. É tudo dividido, porque se ele vai carpir eu vou junto, então quando chega a hora de esquentar janta e lavar o prato, acho que somos iguais, né? Ele é bem companheiro. (Entrevista concedida à autora pela assentada Celósia. PA 20 de Março, Três Lagoas, maio 2017)
Meu [filho] mais velho tira leite, o do meio trata dos porcos, o caçula das galinhas, e a minha filha me ajuda na casa. Ela lava uma loucinha e dobra roupa. E eu fico com o resto! Mas em vista, eu saio de casa, se precisar meu mais velho faz comida, ele cozinha. Então não tenho essa preocupação. Não tenho preocupação nessa parte, eles me ajudam bastante. (Entrevista concedida à autora pela assentada Zínia. PA Serra, Paranaíba, março 2018)
Há uma parcela de homens que começa a participar mais do lado "de dentro", o que não significa uma equidade de gênero na divisão de tarefas. Em 12 famílias, ou 52% dos casos, a divisão era marcadamente sexista - homens cuidam de fora, mulheres cuidam de dentro. Mesmo na fala de Celósia, que aponta para a igualdade, é possível notar a naturalização do trabalho feminino, do "serviço que é pra eu fazer", e do conceito de "ajuda" quando os homens desempenham uma tarefa considerada "feminina". De modo similar, quando as mulheres executam tarefas consideradas masculinas, como o trabalho na lavoura ou na lida com o gado, as tarefas são chamadas de "ajuda", consideradas auxiliares ao trabalho do homem.
No entanto, ao contrário do que aponta Woortmann e Woortmann (1997) sobre ser o homem quem controla o processo de trabalho como um todo, nos assentamentos, pudemos encontrar grande participação das mulheres nesse aspecto. Quando perguntadas sobre quem é responsável pela tomada de decisões na unidade familiar, a maioria (70%) afirmou que as decisões são sempre feitas em comum acordo entre o casal ou o núcleo familiar; 26% afirmaram serem elas as responsáveis, das quais 22% são as únicas moradoras do lote, portanto, realmente só cabe a elas a tomada de decisões. Nenhuma das assentadas afirmou ser o marido o único responsável pelas decisões. Situações que apontam para uma possível mudança na família camponesa no tocante às relações de gênero como resultado do processo de reforma agrária. Os dados estão na Figura 3.
Uma coisa que ele [marido] não faz é fazer um negócio sem primeiro chegar e falar comigo, "Você acha que vai dar certo?" Às vezes eu falo "Não vou opinar, faz o que você acha que quer", às vezes ele nem faz. E a mesma coisa, se eu for fazer uma coisa, primeiro eu falo com ele, "Se eu fizer isso, será que vai dar certo?" Aí ele também fala "Ah, se eu fosse você não fazia isso não, acho que não vai dar certo". Então a gente entra em acordo, né. Porque não adianta, se um casal não entrar em acordo, não vira nada. (Entrevista concedida à autora pela assentada Dália. PA Serra, Paranaíba, fevereiro 2018).
O diálogo e o respeito mútuo entre o casal foram evidentes nas decisões tomadas de maneira compartilhada, o que indica mudanças no lugar social da mulher no âmbito privado. Na memória das camponesas, no entanto, há relatos de quando a opinião da mulher da casa não era levada em consideração:
No meu tempo, meu pai, quando ele ia chegando do comércio com o burro, minha mãe já tinha que estar com o milho lá pro burro, desarrear o burro, a janta já tinha que estar ali impecável, no jeito, ou o almoço, o que for, tudo tinha que estar dentro dos conformes! Ele não perguntava assim pra ela "Ah, eu vou vender essa vaca? Eu vou comprar esse porco?" Não, eram eles que decidiam tudo. [...] O marido era o rei, era o chefe. Sozinho. (Entrevista concedida à autora pela assentada Caliandra. PA São Joaquim, Selvíria, fevereiro 2018)
Entre uma geração e outra, já se nota grande diferença quanto à participação das mulheres nas decisões concernentes à família. E isso se reflete também na participação feminina no espaço público, nos lugares de decisão coletivos, como as associações.
Outra questão importante a se observar nas relações de gênero e capital é a invisibilidade do trabalho feminino.
Uma vez que esse trabalho foi delegado ao mundo doméstico, naturalizado como responsabilidade da mulher, e feito sem remuneração, ele não é considerado um trabalho propriamente dito: é invisibilizado. A assentada Dália o caracteriza muito bem: "Eu falo assim: mulher é que nem sal, ninguém percebe que tem, mas quando falta, todo mundo sente falta." (Entrevista concedida à autora. PA Serra, Paranaíba, fev. 2018). A invisibilidade do trabalho feminino no campo também se dá no trabalho assalariado ou contratado, em casos de diferença salarial, ou mesmo de ausência de salário.
[...] Quando nós trabalhávamos por dia, eles nos chamavam boia-fria. Eu, minhas irmãs e minha mãe, nós íamos trabalhar na roça, por dia na fazenda. Meu pai era o campeiro. Meu pai era funcionário por mês. E a gente tinha diferença de preço de salário. O salário dos homens naquele tempo era 15 cruzeiros, o nosso era 11 cruzeiros. E aí uma vez meu pai veio a discutir com o patrão. Falou que minha irmã saía junto com os homens, carpia até mais que os homens. Meu pai falou assim: "Mas ela tem que ganhar igual aos homens". "Não, mas ela não pode ganhar, não pode, porque a mulher é mais fraca." Olha, o tanto que já passei na minha vida. (Depoimento da assentada Margarida gravado pela autora na mesa redonda "Mulher é Verbo de Luta". Três Lagoas, março 2017)
A diferença salarial entre homens e mulheres segue ainda hoje. De acordo com Miguel e Biroli (2014), no Brasil, o rendimento médio dos trabalhadores homens é quase o dobro das trabalhadoras mulheres (considerando os valores totais, entre rural e urbano). Além disso, as mulheres negras ganham 44% menos que as mulheres brancas, além de estudarem menos, o que evidencia que as desigualdades de gênero se somam às desigualdades de classe e raça.
Uma característica do "habitus" camponês consiste nas estratégias adotadas pelo grupo familiar para se manter na terra, e que guarda relação direta com a questão de gênero e as múltiplas jornadas de trabalho. Em momentos de crise, quando o trabalho na própria terra não é suficiente para garantir o bem-estar da família, a solução é fragmentar o grupo familiar, e alguns membros saem para trabalhar fora de sua propriedade, como assalariados. Em geral, quem vende sua força de trabalho é o homem, e a mulher permanece no lote, assumindo a direção do trabalho.
Meu marido tá trabalhando agora, fora do lote, porque não tem renda suficiente no lote pra ficar nós dois. Mas já ficamos bem, quase três anos ele aqui comigo, só com o lote. Aí deu umas quebradas e ele foi pra fora de novo. Quando precisa não tem outro jeito. (Entrevista concedida à autora pela assentada Zínia. PA Serra, Paranaíba, março 2018)
Esse movimento é feito "quando precisa", visto que o ideal é que o núcleo familiar trabalhe apenas no lote, onde "estarão bem", porque a superação do trabalho assalariado através da conquista da terra é uma das grandes libertações camponesas; em outras palavras, é a utopia camponesa.
Apesar de muitas coisas serem difíceis aqui no assentamento, a gente tem que agradecer que hoje a gente tem um pedaço da gente. A gente não está trabalhando para os outros. É uma coisa da gente, por mais que tenha dificuldade. (Entrevista concedida à autora pela assentada Petúnia. PA Alecrim, Selvíria, fevereiro 2018)
Assim, o campesinato é uma classe social que se opõe e resiste à desigualdade social e à concentração fundiária no país, e, para tal, desenvolve estratégias que dialogam com a sociedade capitalista, por estar inserida em sua lógica, mas não se deixa organizar por ela. Observam-se as relações complexas e contraditórias existentes entre o modo de produção camponês e o modo de produção capitalista, presentes no debate sobre campesinato e território.
A permanência da questão camponesa no mundo "moderno" carrega consigo a problemática da terra e do território no capitalismo. Por conseguinte, não é possível falar em camponês sem fazer referência a esse debate, pois a terra, em disputa, se transforma em território e continua desempenhando papel suigeneris no capitalismo. (Paulino e Almeida 2010, 16)
Há diversas interpretações do conceito de "território", que variam conforme a intencionalidade de quem interpreta ou das instituições que financiam as pesquisas. Segundo Raffestin (1993), o território é produto de uma ação conduzida por um ator sobre determinado espaço. Logo, implica uma relação de poder desse ator, que territorializa o espaço através de um trabalho projetado. Assim, o território é construído socialmente e se materializa no espaço por meio das relações de poder estabelecidas. O espaço, por sua vez, é anterior ao território; ele é totalidade e abarca tanto a natureza como a sociedade (Fernandes 2008). A relação de poder é central na compreensão do território, como também nos aponta Andrade:
[...] deve-se ligar sempre a ideia de território à ideia de poder, quer se faça referência ao poder público, estatal, quer ao poder das grandes empresas que estendem os seus tentáculos por grandes áreas territoriais, ignorando as fronteiras políticas. (Andrade 1995, 19)
Para Oliveira (2016), o poder estatal e o poder empresarial são partes do mesmo jogo, graças às burguesias nacionais, apoiadas pelo Estado, que transformaram as empresas monopolistas nacionais em empresas mundiais, como efeito da ascensão neoliberal observada a partir do fim do século XX. Assim, conceitos como "globalização" e "mundialização" do capital tornam-se fundamentais para compreender o território e as disputas que o compõem. Para esse autor, o território é uno, é totalidade, hegemonizado pelo modo capitalista de produção e pela luta de classes. Oliveira afirma que:
[...] o território deve ser apreendido como síntese contraditória, como totalidade concreta do modo de produção/ distribuição/circulação/ consumo e suas articulações e mediações supra-estruturais (políticas, ideológicas, simbólicas etc.) em que o Estado desempenha a função de regulação. O território é, assim, efeito material da luta de classes travada pela sociedade na produção de sua existência. (Oliveira 2004, 40)
Para o autor, o desenvolvimento capitalista no campo se dá de maneira desigual e combinada, pois, ao mesmo tempo que reproduz relações especificamente capitalistas, como a proletarização do campesinato, produz contraditoriamente relações não capitalistas, como o trabalho familiar camponês, que, por sua vez, inclui o trabalho feminino não remunerado, sendo ambas as relações necessárias à lógica de desenvolvimento capitalista.
Considera-se relevante para a discussão de gênero a proposta de Fernandes (2008) sobre as diferentes escalas dos territórios, ou a "multiescalaridade", que permite observar o espaço muito reduzido das mulheres quanto ao poder exercido nas diferentes escalas e territórios. O primeiro território, para Fernandes (2008), é o do Estado e suas divisões internas (país, estados, municípios). É dentro desse território que se organizam os demais. Considerando que o poder do Estado é exercido por seus representantes, podemos observar o predomínio de homens brancos, no Brasil, como atores centrais desse nível do território.
Assim, a análise da participação política das mulheres no âmbito municipal na área de estudo, apresentada na Figura 2, revela sua validade quanto à observação da representatividade feminina e dos poderes derivados dessa participação. No Brasil, a participação parlamentar feminina é muito pequena: apenas 12,5% das cadeiras são ocupadas por mulheres, o que coloca o país em 154° lugar de um ranking com 193 países, elaborado pelo Inter-Parliamentary Union (2017). Entre os países com mais participação de mulheres no parlamento, encontramos Bolívia em 2° lugar, com 50% dos cargos, além de Cuba (3°), Nicarágua (5°), México (8°), Argentina (16°), e até mesmo Afeganistão (54°). No Território Rural do Bolsão, as mulheres ocupam 12,75% das cadeiras nas Câmaras Municipais e Prefeituras, conforme apresentado na Figura 4, número equivalente à média nacional.
A Figura 4 demonstra que a relação de poder a esse nível territorial se vê bastante desigual quanto à participação das mulheres. Já nas associações dos assentamentos, que compreendemos como espaços de poder político e representatividade camponesa, nota-se a situação contrária: há grande participação feminina, inclusive nos cargos de maior responsabilidade e culturalmente ocupados por homens, como a presidência ou a tesouraria. Elas ocupam 50,6% do total de cargos, fazendo jus à paridade de gênero que, ao Congresso Nacional, parece uma utopia. Dos sete cargos de presidência, quatro são ocupados por mulheres (em contrapartida, não há nenhuma prefeita nos municípios estudados). A Figura 5 ilustra a composição, por gênero, das associações identificadas nos assentamentos do Território Rural do Bolsão5.
Há grande diferença entre as Figuras 4 e 5, o que ressalta a marcante presença feminina nas associações camponesas. Uma das possíveis explicações para essa diferença, apontada em alguns diálogos com assentadas, deve-se à maior autonomia e responsabilidade femininas que advêm de seus nomes figurarem como primeiras titulares do lote pelo Incra, conquista implantada em 2007. Essa mudança destaca o protagonismo das mulheres no campo, pois é fruto de mobilizações de camponesas e têm proporcionado a elas maior poder de ação quanto aos rumos do lote, assim como do assentamento como um todo. No depoimento a seguir, a assentada enfatiza o trabalho nas associações pelo bem comum e pela construção democrática dos espaços.
[Entrei na associação] pra ajudar, porque hoje em dia lá, não é assim todo mundo que tem tempo. Assim, eu não tenho muito tempo também, mas eu acho que cada um tem que dar um pouquinho de si, cada um tem que ajudar um pouquinho, então tá tendo um rodízio. E todos os projetos vêm pela associação, então a gente tem que ter uma associação forte, pra poder deslanchar o resto. Por isso que a gente se juntou todo mundo e falou "vamos fazer". E está acontecendo! (Entrevista concedida à autora pela assentada Mimosa. PA 20 de Março, Três Lagoas, maio 2017).
Outro aspecto que colabora para a grande participação feminina nas associações é a própria lógica de organização da unidade econômica camponesa, visto que a proletarização do campesinato em momentos de crise faz com que os homens saiam de seus lotes e trabalhem como assalariados fora do assentamento. Assim, as mulheres permanecem nos lotes e acabam ocupando os lugares de decisão do assentamento, formalizando associações para permitir o avanço das políticas públicas para o campo.
O segundo território de Fernandes (2008) é formado pelas propriedades privadas, capitalistas ou não. Esse território pode ser "contínuo ou descontínuo, pertencer a uma pessoa ou instituição ou a diversas pessoas ou instituições" (Fernandes 2008, 9). Em todos os casos, ele também é predominantemente masculino, sem dúvidas. Para tanto, foi estudado como se dá a titularidade da terra em termos de gênero nos municípios do Território Rural do Bolsão e foi obtido o dado que 95% dos estabelecimentos, em termos de área total, são titulados a homens, como observado na Figura 6.
Portanto, a participação feminina no segundo território é ainda menor que no primeiro, respondendo por apenas 5% da propriedade da terra. Segundo Senra et al. (2009, 22), apenas 1% das terras no mundo são propriedades de mulheres, apesar de elas serem as maiores responsáveis pelo cultivo dos alimentos básicos, que constituem até 90% da alimentação nos países mais pobres.
Considerando a inclusão das mulheres na titularidade dos lotes, com a Portaria 981/2003 do Incra, os assentamentos de reforma agrária apresentam uma inversão de poder das mulheres quanto a seu domínio, nessa leitura de território. Na Figura 7, observa-se a titularidade da terra por gênero nos sete assentamentos do Território Rural do Bolsão. Onde está indicado Mulher/Homem, significa que o primeiro nome que figura nos documentos do Incra é o da mulher, seguido do homem; onde está indicado Homem/Mulher, a situação é a inversa.
Há uma relação de muito maior compartilhamento do poder entre homens e mulheres nessa configuração. O nome delas consta em 85% do total de lotes, seja como primeira, segunda ou única titular. Dos sete assentamentos, quatro foram criados após 2003 - data da portaria do Incra que inclui as mulheres no título.
Porém, apesar dessas conquistas, se extrapolamos Fernandes (2008) e pensamos em uma escala ainda menor de território - o indivíduo, conclui-se que as mulheres não possuem pleno domínio nem mesmo sobre seus próprios corpos, uma vez que agem sobre eles diferentes poderes externos, em diferentes escalas. Considerando as limitações sobre os direitos reprodutivos das mulheres, como a criminalização do aborto e a violência obstétrica, assim como as altas taxas de violência contra a mulher e os trágicos números de feminicídios registrados diariamente6, é possível constatar que o corpo das mulheres é um território em disputa.
Da mesma maneira, a terra que dá suporte e alimentação à humanidade e às outras formas de vida está em disputa, dominada pelo modo capitalista de produção, que tem se expandido pelo globo, aumentando a fome e a insegurança alimentar mundiais, assim como trazendo a destruição de biomas. A agricultura camponesa é seu contraponto, prezando por construir sistemas de maior equilíbrio.
Mulheres e agroecologia
Em vista da atual situação mundial de agravamento de problemas ambientais e do aumento da fome e da pauperização (Porto-Gonçalves 2004), faz-se urgente uma mudança no modelo econômico e de produção de alimentos, de modo a resgatar a soberania alimentar dos povos. Assim, surgem os debates da agroecologia, da permacultura e do ecofeminismo, que possuem pontos em comum, por buscarem maneiras de equilibrar os saberes ancestrais aos saberes da ciência moderna, construindo um caminho que contemple o conhecimento humano na relação com a natureza de modo a permitir a sobrevivência da humanidade.
A agroecologia, como ciência multidisciplinar, firmase, no Brasil, nos anos 1970, em resposta aos problemas causados pela Revolução Verde. A agroecologia apresenta propostas para transformar sistemas agrícolas insustentáveis em sustentáveis. Essa sustentabilidade é considerada não apenas nas mudanças de técnicas agrícolas, mas também nas formas de organização social, política e econômica, trazendo mais justiça espacial aos povos que vivem na/da terra. Assim, ela é construída de baixo para cima, baseada no protagonismo do campesinato e, a partir dele, recuperando conhecimentos agrícolas que haviam sido destruídos com a agricultura moderna, aliados a descobertas das ciências agrícolas, do ambientalismo e de estudos trazidos pela antropologia e pela geografia (Siliprandi 2009). No que diz respeito à relação das mulheres com a agroecologia, Siliprandi observa que:
Quando as famílias mudam para modelos de produção mais ecológicos, são frequentemente as mulheres que induzem a essas mudanças, por conta de suas preocupações com a saúde da família, e com o esgotamento dos recursos naturais com os quais elas lidam diretamente (água potável, lenha, etc.). (Siliprandi 2007, 847)
Como as mulheres são as responsáveis pela elaboração do alimento diário da família, essa preocupação as afeta muito mais diretamente. Durante a pesquisa, foramidentificadas muitas mulheres com grande consciência da importância de uma alimentação saudável para si, para a família e para a própria terra.
Eu sou contra o veneno até não parar mais. Eu acho que as doenças da maioria do povo brasileiro hoje vêm da alimentação envenenada e alimentação enlatada, conservada. A comida saudável tem que sair sem veneno pra mesa, né. [...] Pra ficar igual eu, cortando mato dessa grossura de enxada, é ruim, né. No veneno eu trabalharia aquilo ali em uma hora. Só que eu estaria fazendo o que? Acabando com a minha terra, trazendo o que não pode pra terra, prejudicando o futuro. (Entrevista concedida à autora pela assentada Caliandra, PA São Joaquim. Selvíria, janeiro 2018)
O cultivo agroecológico se mostrou mais evidente nos assentamentos de Três Lagoas e Selvíria, que participam dos mercados institucionais - Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), políticas públicas que têm fortalecido a agricultura familiar e fomentado os sistemas agroecológicos nos assentamentos. Além disso, há o apoio técnico de empresas terceirizadas do setor de eucalipto-celulose-papel, as quais contraditoriamente têm desenvolvido programas voltados à produção agroecológica com as famílias assentadas. Faz-se importante destacar que esses programas sociais são feitos por serem essenciais à comercialização da celulose no mercado internacional, seu principal comprador, assim como para preservar a imagem das empresas, criando a ilusão de haver um "desenvolvimento sustentável" (Kudavicz e Almeida 2014).
Possivelmente, a principal explicação para este condicionamento resida na necessidade da empresa, perante aos órgãos financiadores, de rebater leituras críticas de que a expansão dos plantios de eucalipto produz, concomitantemente, redução na produção de alimentos articulado com a busca de minimizar futuras conflitualidades que venham ocorrer na região próxima de expansão dos cultivos - aqui nos referimos aos impactos anunciados por uma ampla bibliografia que, em resumo, se referem à contaminação de comunidades pelo uso de agroquímicos nas monoculturas, bem como a diminuição das águas subterrâneas. (Kudavicz e Almeida 2014, 3-4)
Em 2017, o MS alcançou a marca de um milhão de hectares de eucalipto plantado. Na Figura 8, é possível observar a área plantada entre os municípios do Território Rural do Bolsão em 2016. No total, constam 516.400 hectares plantados entre os oito municípios. Esse valor equivale a 28 vezes a área ocupada pelos assentamentos.
Vários assentamentos estão cercados pelos monocultivos, principalmente os de Três Lagoas e de Selvíria. A proximidade dos plantios traz consequências às famílias que ali vivem, pois as afetam diretamente com o uso de agrotóxicos por pulverização aérea, assim como pela ocorrência de invasão de insetos em desequilíbrio nas hortas e lavouras nas épocas em que são aplicados os venenos nos plantios, e invasão de aves e outros animais nativos em busca de morada e alimento. A assentada Margarida relata suas dificuldades com os monocultivos:
Nosso produto é agroecológico. Nós não podemos falar que é orgânico. Por quê? Nós estamos cercados desses eucaliptos. Nesses eucaliptos eles passam veneno de avião. Então como nós vamos falar que é orgânico? Não podemos. Ali dentro nós somos corredor. Daqui um tempo vamos perder nosso espaço ali também, porque os bichos, eu vejo ali no meu sítio, que papagaio, tucano, eles não têm mais o que comer. Eles vêm comer ali no nosso sítio. Eu mesma estou plantando bastante abóbora para dar de alimento para eles. Por quê? O eucalipto, eu fiquei sabendo que quando fizeram o florestamento, eles deixaram 100 pés de pequi. Quando eles voltaram lá depois de um ano, 67 já tinham morrido. Então tá acabando, nós não temos mais, os animais estão com fome, nós temos que lutar. (Depoimento da assentada Margarida gravado pela autora na mesa redonda "Mulher é Verbo de Luta". Três Lagoas, março 2017)
A expansão da agricultura capitalista acirra os conflitos com o campesinato e, consequentemente, com a produção de alimentos para abastecer os mercados locais. A assentada Margarida destaca a importância de seu trabalho no campo para a soberania alimentar: "Se não fosse a reforma agrária, hoje, no município de Três Lagoas, nós não teria mais quase alimento na mesa daqui de dentro da região. Porque esses eucaliptos estão tomando conta, né?" (Depoimento da assentada Margarida gravado pela autora na mesa redonda "Mulher é Verbo de Luta". Três Lagoas, março 2017).
Considerações finais
Esta pesquisa buscou dar destaque às mulheres que protagonizam grandes transformações cotidianas, por meio de seu trabalho na e com a terra, e para além dela, atuando nas esferas pública e privada. Os sujeitos estudados têm conquistado muitos espaços, tanto dentro como fora do núcleo simbólico da casa, estabelecendo novas percepções sobre os limites dos espaços de mulheres e homens, transpondo as barreiras patriarcais.
O capitalismo, enquanto sistema econômico baseado na exploração da sociedade e da natureza para gerar lucro e privilégios a uma minoria, vai chegando a seus limites. Limites físicos, geográficos, sociais. Sua insustentabilidade se revela cada vez com mais clareza: crimes ambientais em proporções desastrosas, fome, envenenamento de populações, esgotamento de minérios e combustíveis fósseis, guerras. Portanto, faz-se, cada vez mais urgente, a construção de novas formas de organização social e de economia, baseadas na solidariedade, no desenvolvimento local, no combate às desigualdades sociais e de gênero; formas de organização que priorizem a vida acima de tudo, e não o lucro.
As mulheres que vivem no campo têm sido as grandes protagonistas dessas mudanças, pautando-se na agro-ecologia, que se revela um movimento político de muita resistência. Como responsáveis pela reprodução da vida (devido à divisão sexual do trabalho, e não a uma natureza materna cuidadora), as mulheres estão diretamente conectadas com as necessidades reais do núcleo familiar, mantendo-o saudável e coeso. As mulheres camponesas que compuseram esta pesquisa fazem de suas vidas um ato de resistência ante as inúmeras precarizações das condições de vida e trabalho impostas pela agenda neoliberal.
Por outro lado, os movimentos feministas têm conquistado mais lugares de participação política para as mulheres, o que se revela igualmente fundamental para a realização de mudanças estruturais. A ocupação dos espaços se dá em vários âmbitos, e a rede de apoio se amplia.
As perguntas seguem: como criar espaços mais justos para todas as pessoas? Como a propriedade privada de fato priva as pessoas de terem suas necessidades mais básicas atendidas? Quais são essas necessidades? Como estabelecer novas relações entre mulheres e homens, e entre a sociedade e o ambiente, que sejam respeitosas com tudo e todas/os?
Certamente, a construção de uma nova realidade social exige a participação coletiva de quem tenha interesse em um projeto comum que abarque algumas dessas respostas. No entanto, os paradigmas de gênero e da questão agrária se mostram fundamentais para esse movimento: a revolução é feminista e agroecológica.