Arelação entre a equipe de saúde e o paciente vem sofrendo constante modificação no cenário mundial. Influenciados pelos avanços nas diretrizes dos currículos dos cursos de graduação ocorridos nas últimas décadas, os profissionais de saúde vêm demonstrando um novo entendimento sobre o vínculo formado com aqueles que usufruem do seu trabalho. Desta forma, a participação do paciente nos assuntos conflitantes relacionados à sua saúde já é observada com mais frequência 1.
Reconhecendo a importância de exercitar a autonomia do paciente, o Conselho Federal de Medicina fez dispor a Resolução 1995/2012 que aborda as Diretivas Antecipadas de Vontade dos pacientes como instrumento de redução de intervenções que prolonguem o sofrimento. Dentro das diretivas antecipadas de vontade, destaca-se o Testamento Vital (TV), o documento que objetiva delimitar os tratamentos que o paciente deseja ser submetido caso sofra incapacidade de decisão 1-2.
A expressão Living Will, caracterizada como documento de cuidados antecipados, pelo qual o indivíduo poderia registrar seu desejo de interromper as intervenções médicas de manutenção da vida, foi proposta pela primeira vez pela Sociedade Americana para a Eutanásia, em 1967 nos Estados Unidos da América, dando origem as Diretivas Antecipadas de Vontade. O primeiro registro foi evidenciado em Chicago, 1969, onde foi elaborado um documento que registrava o desejo de um cidadão a recusar um tratamento caso adviesse uma enfermidade terminal ou estado vegetativo persistente, protegendo o direito individual de permitir a morte 3,4.
No Brasil, o testamento vital poderá ser reconhecido em cartório, porém o registro no prontuário já é suficiente para expressar a decisão do paciente. Para se tornar válido, o registro deverá ser elaborado pelo médico assistente não havendo necessidade de testemunhas. Neste, deverá ser descrito de maneira clara e criteriosa o estado atual do solicitante e quais condutas terapêuticas deverão ser realizadas ou não 2.
Ao seguir as determinações da vontade do paciente registrando em prontuário ou ficha médica a equipe apresenta suporte de validade legal e ético. Porém, por ser uma temática ainda em fase de amadurecimento, a falta de aprimoramento dos conhecimentos que envolvem a temática estabelece uma realidade em que os profissionais ainda não se sentem à vontade em seguir as determinações dispostas pelo código de ética médica 2,4.
Desse modo, este estudo tem como objetivo, analisar a interface do testamento vital com os aspectos bioéticos, a atuação profissional e a autonomia do paciente.
MÉTODO
Com base nas atuais necessidades do debate à temática, realizou-se uma reflexão teórica a partir de busca nos bancos de dados Biblioteca Virtual de Saúde, Pubmed e Scielo utilizando o vocábulo "testamento vital" juntamente com o operador booleano "e" em associação com os vocábulos "direito do paciente", "bioética", "autonomia pessoal" e "profissional de saúde". Do mesmo modo, foi utilizado o vocábulo "Living Wills" juntamente com o operador booleano "and" em associação com os vocábulos "right of the patient", "Bioethics", "Personal Autonomy" e "Health Personnel". Nesse sentido, buscou-se delinear como a literatura trata o tema e a sua relação com a atuação do profissional de saúde diante dos dilemas éticos que envolvem a manutenção ou não da vida do paciente, a autonomia do paciente em decidir aquilo que considera melhor para a sua vida e os aspectos bioéticos envolvidos nesta temática. Realizou-se, assim, a leitura dos resumos encontrados para selecionar aqueles que atendiam ao objetivo proposto. Em seguida, buscouse os textos completos dos artigos selecionados, para possibilitar a leitura crítica e, desse modo, subsidiar essa reflexão.
RESULTADOS
Após busca nas bases de dados usando os termos supracitados, foram encontrados 1 171 artigos, dos quais 407 estavam disponíveis e distribuídos da seguinte forma: Pubmed 559 (240 disponíveis), BVS 557 (112 disponíveis) e Scielo 55 disponíveis, após leitura minuciosa dos títulos, foram selecionados 102 artigos para leitura detalhada do resumo, bem como o texto completo daqueles que abordava o tema proposto, para a discussão foram selecionados 21 que correlacionaram com o tema proposto. Desse modo, visando facilitar a discussão e compreensão da reflexão acerca do testamento vital, os estudos foram categorizados nos seguintes eixos temáticos: Bioética Aplicada às questões de Finitude da vida; Profissionais de Saúde e o Testamento Vital; Pacientes e o Testamento Vital.
DISCUSSÃO
Bioética Aplicada às questões de Finitude da vida
A Bioética é o ramo do conhecimento que se preocupa com as consequências dos avanços da ciência sobre vida humana, fazendo com o que profissionais desenvolvam um pensamento bioético e uma atuação de maneira correta, profissional e humana, sem violar os limites éticos do ser humano e sem que alcance outras finalidades. A constituição Brasileira de 1988 destaca os direitos fundamentais para a manutenção da vida das pessoas, principalmente, quando elas optam pela morte, diante da impossibilidade técnico-terapêutica de manutenção da vida. Reconhecer o término da vida é garantir a morte como parte integrante da vida e da existência humana 5.
A morte é conceituada como o estágio final de vida no corpo. O morrer perpassa por um ciclo composto de momentos característicos, que abarca desde o momento em que a doença se torna irreversível, até o momento, no qual o indivíduo não mais consegue responder às medidas terapêuticas, devendo o mesmo evoluir para o fim de sua existência, ou seja, à morte. Nessa perspectiva, a área da saúde tem cada vez mais se aprofundado na vida e na morte do corpo humano, chegando a inferir que morte não é um instante específico propriamente dito, mas um processo, composto por fases que inclui as mortes, cerebral, biológica e clínica 6.
O avanço da tecnologia médica tem envolvido pacientes, familiares e profissionais da saúde, especialmente, quando o assunto é a interdição da morte, o prolongamento da vida e da doença. Constantemente, pacientes com um grau avançado de enfermidade são estigmatizados e classificados como terminais, o que inclui, também, mais sofrimento e dor na hora da morte. Outros sentimentos, também, são evidenciados, como por exemplo, ressentimento do distanciamento da família e do trabalho, bem como, o medo da dependência, degeneração e incerteza de isolamento. Por outro lado, os pacientes passam a conviver com perdas financeiras, da autonomia e do corpo saudável 7.
O aumento da expectativa de vida e da doença fez com que profissionais da saúde passassem a se questionar sobre até que ponto é lícito o prolongamento da vida diante de tanto sofrimento, muitas vezes, inútil. Nesse processo, nos deparamos com o despreparo de muitos para refletir sobre o assunto e, mais ainda, com o despreparo para entender o pedido de morte do paciente, durante um momento de sofrimento extremo e infrutífero, para trazer o alívio da dor 8.
De acordo a Resolução CFM 1.995/2012, o médico aparece nesse cenário como parceiro na tomada de decisão da vida e da morte do paciente. Sendo possível observar a redução do poder decisório dos médicos e familiares quando se deparam com casos de pacientes em estado terminal sem condições de autodeterminação. Essas condições geram os conflitos éticos, que por sua vez causam insegurança aos profissionais, principalmente, quando essas situações nas quais a vontade do paciente, garantidas pelas diretrizes antecipadas de vontade, estão em desencontro com a dos familiares. Nesse ínterim, é muito comum, o médico, por receio de vir a sofrer ações judiciais desistir do seguimento das diretrizes antecipadas de vontade do paciente, dando preferência à decisão da família 9.
A discussão entre a vida e a morte depara-se com vários dilemas e envolve a participação de pacientes, familiares, equipe de saúde e instituições hospitalares, que ao mesmo tempo convergem e divergem sobre as questões do fim da vida. Os profissionais de saúde, nesse contexto, assumem um papel importante quando o assunto é a dignidade humana, em seu ciclo de vida e permanecem até o momento do desfecho da situação. Partindo da premissa de preservar sempre a vida, o advento das tecnologias de saúde favorece aos pacientes na manutenção e prolongamento da vida, fato que tem dificultado a tomada de decisão pelos profissionais de saúde, diante de um pedido de morte feito pelo próprio paciente 8.
Profissionais de saúde e o testamento vital
O ensino da bioética nos currículos dos cursos de saúde vem passando por um período de constante transformação. Os avanços científicos nesta área, vivenciados nos últimos anos, demonstram-se como instrumentos consideráveis para a construção de um pensamento transformador, em que as condutas profissionais sejam planejadas através da prática reflexiva voltada para o cuidar do outro, o qual se constitui como eixo norteador na formação do profissional de saúde 10.
Acompanhando as reformas educacionais realizadas no Brasil, as novas propostas de currículos das áreas de saúde levantaram os debates referentes às diretrizes por parte de alunos, professores e funcionários das Instituições de Ensino Superior, no qual se impôs o desafio de formar profissionais preparados para vivenciar a prática integral da atenção à saúde, baseada nas necessidades da população. Com a criação das Diretrizes Curriculares Nacionais houve a mudança do modelo rígido dos currículos para uma perspectiva mais flexível, aumentando a liberdade de ensino dessas Instituições, estimulando a superação de concepções pedagógicas conservadoras para uma formação profissional capaz de atender os princípios do sistema público de saúde 11-12).
Essas mudanças nos currículos dos cursos de saúde influenciaram nas condutas e tomada de decisões durante o agir profissional, permitindo uma maior interação com diversas disciplinas, um diálogo amplo com a sociedade e, consequentemente, modificando a relação entre profissional-paciente 10,13.
A bioética apresenta um papel fundamental para a elaboração de tomadas de decisões que fundamentam a importância do paciente em opinar e discutir o seu estado de saúde e seus possíveis delineamentos terapêuticos. O amadurecimento ético em relação a participação do paciente e seu familiar nas decisões sobre os tratamentos fornecidos pelos profissionais de saúde desestimula, cada vez mais, o modelo assistencial paternalista, em que o profissional apresentava atitude unidirecional e o paciente era tratado como um sujeito desprovido de opinião decisória.
Faz-se necessário que o atendimento ao indivíduo seja realizado de tal maneira que garanta a assistência de forma integral, observando-o como um ser integrante de uma realidade individual complexa, composta por desejos, sentimentos, receios.
O atual código de Ética Médica insere o profissional médico em um panorama que ultrapassa a visão curativista, caracterizando-o como um orientador e parceiro do paciente, observando-o não só de uma maneira biológica, mas fundamentalmente humanista. Para estabelecer um canal de comunicação consistente entre o médico e o paciente, este deve estar capacitado para desempenhar sua atividade, atuando junto ao paciente, garantindo a dignidade durante a vida e no processo de morrer 14-16.
Dentro da perspectiva do direito garantido ao processo de morrer de forma digna, o testamento vital exerce um papel fundamental para representação das vontades do paciente, possibilitando a escolha dos procedimentos que podem ou não ser realizados, durante uma fase de incapacidade decisional. Ao colocar em prática as determinações contidas no testamento, o profissional estaria respeitando o princípio bioético da autonomia 17.
Além de reconhecer a validade das diretivas antecipadas de vontade, a Resolução 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina, ampara a ação médica ao cumprir tais decisões, porém, esta atitude não está regulamentada no Código Civil. Este fato poderá promover uma insegurança no profissional ao decidir seguir as determinações da vontade do paciente 13.
Por ser uma temática recente, com poucas discussões formais e que ainda não é de domínio público no Brasil, os estudos existentes que envolvem o testamento vital são poucos e expressam-se de forma insuficiente e escassa, demonstrando, por consequência, que os profissionais da saúde têm pouco conhecimento acerca do tema. Em um estudo 4 que objetivou evidenciar o entendimento dos sujeitos da área médica em relação ao tema, foi observado que menos de 40% dos participantes afirmaram conhecer o documento.
Destacando os avanços das diretrizes dos currículos dos cursos de graduação, observa-se que os estudantes apresentam maior familiaridade com o testamento vital em relação aos profissionais já atuantes. Mesmo com o reconhecimento da importância da participação do paciente e familiares nas tomadas de decisões, os profissionais não se sentem a vontade em seguir as determinações das diretivas antecipadas 4. Este distanciamento dos profissionais com o tema colabora para o surgimento de barreiras entre a ação profissional e o direito do usuário.
As discussões bioéticas promovidas durante a formação profissional estimulam o contato com as temáticas que envolvem o agir profissional durante o amadurecimento acadêmico. É destacada, também, a necessidade de ampliação das discussões e debates sobre a resolução e suas implicações bioéticas, a fim de conduzir ações que promovam uma maior autonomia ao paciente.
Pacientes e o testamento vital
O conhecimento dos pacientes acerca do Testamento Vital ainda é muito deficiente. Campos e colaboradores 18 avaliaram a percepção de pacientes oncológicos e seus acompanhantes quanto ao TV, constatando que 94,5% dos pacientes e 88,7% dos acompanhantes não tinham conhecimento dos termos "testamento vital", "testamento biológico" ou "diretivas antecipadas de vontade", porém eles foram favoráveis à sua implementação no Brasil e, também, declararam que o fariam. O conhecimento dos profissionais médicos acerca do TV obteve um valor médio de 5,88 na escala Likert, (intervalo de 0 - 10), no estudo de Stolz e colaboradores 19, o que confere um conhecimento médio em relação ao TV. Pode-se considerar, entretanto, que este conhecimento não vem sendo incidido para os pacientes.
O princípio da autonomia preceitua o profissional de saúde a dar ao paciente a mais completa informação possível, com o intuito de fomentar uma compreensão adequada do problema, condição esta imprescindível para que o paciente possa tomar suas decisões, conscientemente. Respeitar a autonomia significa, ainda, ajudar o paciente a superar seus sentimentos de dependência, equipando-o para hierarquizar seus valores e preferências legítimas para que possa discutir as opções diagnósticas e terapêuticas 20.
Santana 21, aborda em seu estudo, percepções de pacientes em estado terminal, apontando cinco desejos que são decididos pelo paciente. Desejos do alívio da dor e sofrimento humano; desejos dos cincos sentidos: comer, ouvir, ver, sentir, cheirar; desejos de conforto espiritual e esperança pela cura; desejos de reconciliação e resolver as pendências familiares e profissionais; desejos da presença humana dos profissionais e familiares para auxiliarem na travessia.
Pacientes que se encontram em estado terminal apresentam grande diferenciação com outros pacientes devido a maior solicitação de apoio, familiar e médico, e por um maior desejo de obter controle do processo pelo qual está passando. O pedido de apoio e ajuda no final da vida é motivado, principalmente, por dor intensa e incontrolável, deterioração progressiva, deficiência física, estado de inconsciência prolongada e devido à violação dos direitos do paciente 22.
Considerando esses desejos juntamente com a concepção da bioética na terminalidade da vida, os profissionais precisam atender as necessidades dos pacientes prezando todos os princípios da bioética.
Desse modo, nessa abordagem descritiva, vale destacar a eutanásia, a distanásia e a ortotanásia, que são as denominações das formas de prorrogar ou adiar o processo da morte. A eutanásia equivale à ação destinada a abreviar a vida de pacientes em estado de grave sofrimento, consequente de doença incurável e sem perspectivas de melhora, estando o paciente sentenciado à morte progressiva. A eutanásia ativa é caracterizada pelo ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento do paciente, com fins misericordiosos. Na eutanásia passiva ou indireta, a morte acontece por omissão proposital de não iniciar a terapia médica de suporte vital ao paciente ou pela interrupção da terapêutica existente, com o objetivo de minorar o sofrimento. Porém, a prática da eutanásia, de qualquer tipo, é proibida no Brasil 23.
A distanásia prolonga a vida do paciente, inclusive o seu sofrimento, sem que ele tenha expectativa de cura ou melhora em sua qualidade de vida. Consequentemente, é vista como tratamento fútil e sem benefícios para o paciente em terminalidade da vida. Já a ortotanásia, não acelera nem posterga a morte do indivíduo, mas lhe oferece momento natural de partida. Sendo, portanto, considerada como boa morte ou morte desejável 23-24.
Neste cenário, os profissionais de saúde devem prestar o atendimento de maneira holística, respaldado na beneficência, não maleficência e na autonomia do paciente, considerando também a família como coadjuvante no processo de qualidade de vida do paciente em terminalidade de vida.
Faz-se necessário buscar reflexões sobre o cotidiano acerca da terminalidade da vida, de modo a reconstruir novas formas do cuidado ao paciente fora de possibilidades terapêuticas e seus familiares e possibilitar a ampliação sobre os cuidados paliativos em um âmbito que envolve esse paciente, familiares e profissionais na área da saúde 21,24.
Em conclusão, a utilização do "testamento vital", "testamento biológico" ou "diretivas antecipadas de vontade" nos ambientes de saúde pode ser útil para o paciente, principalmente, no momento de decisão de escolha entre viver ou morrer, e para isso é necessário que sua legitimação seja feita o quanto antes. Caso contrário, a vontade do paciente pode ser colocada em avaliação, quando o surgimento de conflitos gerados entre profissionais da saúde e seus familiares, ao perceberem mudanças significativas na condução da evolução do processo de saúde e doença do paciente, tentam impor as suas próprias vontades, em detrimento daquilo que o paciente poderia ter expressado, ou seja, em posição contrária aos princípios bioéticos que envolvem a vida.
A validade do testamento vital começa quando o paciente ainda em vida e consciente elabora um documento em tempo hábil, mesmo quando não seja de conhecimento de seus familiares, no qual expressa suas vontades que legitima a recusa de certos tratamentos médicos que possam vir a prolongar a vida.
Assim, a aplicabilidade desse documento poderá facilitar as decisões da prática médica, pois funciona como documento que respalda o profissional a cumprir as vontades expressas pelo paciente, uma vez que é notória, nessas situações, a existência de conflitos e dilemas éticos, que vão de encontro às vontades expressas pelo paciente.
Neste sentido, o documento pode subsidiar uma assistência segura e de qualidade para essa clientela em situação de terminalidade ou não da vida, na qual o paciente não pode se expressar verbalmente, por estar inconsciente ou impossibilitado de tomar decisões.
Bem como, pode alavancar discussões sobre o tema, contribuindo com a comunidade científica na busca da valorização dos princípios éticos aplicados a boa conduta profissional para com o paciente, diante de questões que envolvem o fim da vida