Servicios Personalizados
Revista
Articulo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Accesos
Links relacionados
- Citado por Google
- Similares en SciELO
- Similares en Google
Compartir
Diversitas: Perspectivas en Psicología
versión impresa ISSN 1794-9998
Diversitas v.6 n.1 Bogotá ene./jun. 2010
Considerações sobre a formação e transformação da
identidade profissional do atleta de futebol no Brasil*
Consideraciones sobre la formación y transformación de
la identidad de atletas profesionales de fútbol en Brasil
Notes about the identity construction and transformation
of professional soccer layers in Brazil
Antonio da Costa Ciampa**, Clodoaldo Gonçalves Leme***, Renato Ferreira de Souza****
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
* Artículo de Investigación.
Recibido: 27 de enero de 2010 Revisado: 15 de febrero de 2010 Aceptado: 1 de marzo de 2010
Resumo
O artigo pretende contribuir para a compreensão do processo de formação e transformação da identidade profissional do atleta de futebol no Brasil. Os caminhos e descaminhos percorridos por atletas em busca do reconhecimento profissional são nossa via de acesso para as análise e reflexões. Com esse propósito, aludindo à teoria habermasiana, explicitamos no texto uma reflexão sobre o Esporte, em específico o Futebol, como mais um segmento social apropriado pela Ordem Sistêmica, regida pelo dinheiro e pelo poder, pois ao ser colonizado estrategicamente pela razão instrumental, o esporte das multidões, de forte apelo mercadológico, traz consigo para o Mundo da Vida (cultura, sociedade e identidades) os sonhos e expectativas distorcidas de milhares de indivíduos e suas famílias. Nesse sentido, as histórias de vida e os exemplos trazidos neste texto, servem como indicadores sociais das correlações existentes entre o mundo da bola, o sonho de uma carreira de sucesso, a real possibilidade de frustração nessa empreitada e a formação das identidades psicossociais em meio a essa "caixinha de surpresas" que é o futebol.
Palavras-chave: identidade, Psicologia Social, Psicologia do Esporte, Educação Física.
Resumen
El artículo contribuye a la comprensión del proceso de formación y transformación de la identidad profesional del jugador de fútbol en Brasil. La investigación de los caminos de los atletas en la búsqueda de reconocimiento profesional, sean los caminos de buenos como los de malos resultados, son nuestra vía de acceso para este análisis y reflexión. Bajo ese propósito y basados en la teoría de Habermas, planteamos una reflexión sobre el deporte, en particular sobre el fútbol, como un segmento social apropiado por el orden sistémico, gobernado por el dinero y el poder, que por ser colonizado estratégicamente por la razón instrumental, ese deporte de multitudes, de atractivo comercial fuerte, trae al mundo de la vida (cultura, sociedad e identidad), los sueños y expectativas distorsionadas de miles de personas y sus familias. Por ese motivo, las historias de vida y ejemplos del texto, sirven como indicadores de las relaciones sociales entre el "mundo de la pelota", el sueño de una carrera exitosa, la posibilidad real de frustración y la formación y transformación de la identidad psicosocial dentro de la caja de sorpresas que es el fútbol.
Palabras clave: identidad, psicología social, psicología del deporte, educación física.
Abstract
The article is a contribution to the understanding the process of construction and transformation of professional identity of the soccer player in Brazil. Both athletes' good and bad outcomes in the search of professional recognition are our path to the road of that analysis and scrutiny. Grounded in Habermas theory, we scrutinize sports - soccer in particular - as a social sector overrun by the systemic order and ruled by money and power. Since soccer, as the sport of crowds has been colonized by the "instrumental reason", it has been fueled by strong marketing appeal and as such brings about the world of life (culture, society and identity) as well as the twisted dreams and expectations of thousands of individuals and of their families. Accordingly, the life stories and examples brought about by this text hint at the intertwined relationships between the world of soccer, the dreams of a successful career, the actual possibility of failure and the construction of psychosocial identities within that "surprise box" which soccer seems to be.
Key words: Identity, Social Psychology, Psychology of Sport, Physical Education.
Introdução
No livro "Educação e Emancipação", do filósofo social T. W. Adorno (2006) encontra-se uma reflexão sobre a importância do Esporte na sociedade. Chama-nos a atenção o destaque dado pelo autor, à falta de uma análise mais apurada, feita por uma psicologia social crítica, em relação ao Esporte, fenômeno social, que movimenta pessoas e mercados em todo o mundo. Como exemplo deste déficit analítico, o autor aponta para o caráter ambíguo do esporte, pois se, por um lado, pode ter um efeito contrário à barbárie e ao sadismo, por intermédio do fair-play, do cavalheirismo e do respeito pelo mais fraco, por outro lado, em algumas modalidades e procedimentos, pode promover a agressão, a brutalidade e o sadismo, principalmente no caso dos espectadores, que pessoalmente não estão submetidos ao esforço e à disciplina do esporte; são aqueles que costumam gritar nos campos esportivos (Adorno, 2006, p.127).
Diante da teoria e do pensamento desenvolvido pelo filósofo e sociólogo alemão, Jürgen Habermas1, acreditamos ser possível afirmar que este autor compartilharia com Adorno, o juízo sobre a necessidade de uma avaliação sistemática dessa ambiguidade do esporte, e de que, as questões relativas ao esporte no âmbito escolar mereceriam nossa atenção, pois este teria um fim prático e adequado, desde que, aplicado à medida que contribua para a educação de seus participantes e não se limite ao esporte-competição priorizando a ordem técnica de seus iniciantes/participantes.
Deste modo, motivados por essas circunspecções, consideramos a importância de analisar o fenômeno-esporte na sociedade, por isso, discutiremos neste artigo, a situação atual do esporte no Brasil, delimitando nossas reflexões em torno do Futebol, por ser uma modalidade esportiva de grande impacto no setor educacional, amador ou profissional.
Consideramos ser o Esporte, principalmente o inserido no âmbito educacional, um instrumento capaz de possibilitar a emancipação e a autonomia dos sujeitos, pois estes cidadãos/desportistas/aprendizes seriam capazes de se reconhecerem mutuamente e se auto-afirmar enquanto identidades próprias, à medida que interagem intersubjetivamente. O Esporte e suas dinâmicas inerentes (interações, jogos, regras etc.) podem ser destacados como meio propício para figurarmos a idéia de Habermas, que considera serem os processos de individualização e socialização concebidos de forma articulada e simultânea, pois ambos, estruturados pela linguagem, são capazes de individualizar e socializar o sujeito ao mesmo tempo. Nesse sentido é que Habermas passa a defender a construção de um projeto emancipatório; por isso, prioriza em seu trabalho o desenvolvimento de uma teoria da racionalidade, na qual a ação comunicativa se impõe frente a uma racionalidade restrita baseada apenas na ação estratégica e instrumental.
Assim, o esporte é compreendido por nós, enquanto instância da sociedade possibilitadora da integração social na base de uma efetiva racionalidade comunicativa voltada para o entendimento e o consenso. Vale ressaltar que consenso não significa que os atores envolvidos na interação social aceitem de forma acrítica e passiva o discurso dos co-locutores, abandonando suas próprias posições como totalmente errôneas ou inválidas. "O consenso a que se refere Habermas é alcançado pela ilimitada possibilidade do dissenso, que se concretiza através da constante possibilidade de critica às pretensões de validade levantadas." (Lopes, 2008, p. 82).
O Esporte e o Futebol na Contemporaneidade
Segundo Tubino (1992), o esporte de forma geral, pode ser compreendido a partir de três dimensões: esporte-educação, com fim eminentemente social (manifestação educacional e socialização); esporte-participação ou esporte-popular, com princípio do prazer lúdico (bem-estar social de seus praticantes); e esporte-desempenho ou de rendimento, que exige uma organização complexa e investimentos em vários campos das ciências do esporte.
Na dimensão do esporte-desempenho que lida diretamente com os atletas de alto nível técnico, vale ressaltar que o bom preparo nas diferentes áreas da ciência esportiva, tais como, a técnica, tática, nutricional, física e psicológica, é dependente de um vínculo com a iniciativa privada, pois a contratação e manutenção de profissionais gabaritados das diferentes áreas profissionais dependem dessa parceria, ou seja, os grandes clubes de futebol, por exemplo, são cada vez mais economicamente dependentes do mercado e de suas pré-condições. Lembremos que para Habermas (1989), o dinheiro e o poder podem ser transformados em mediuns patológicos de coordenação da ação, pois amparados no agir estratégico agiriam pautados pela racionalidade teleológica dos planos individuais de ação. Os empresários do futebol, que montam equipes com finalidades comerciais, a fim de revelar e vender jogadores, deixando de lado a formação educacional e cultural dos atletas, exemplificam essa questão.
O esporte-rendimento traz consigo os propósitos de novos êxitos e desempenhos esportivos; suas regras são preestabelecidas pelos órgãos internacionais responsáveis por cada modalidade; é praticado por atletas que se sobressaem entre todos os praticantes, fato que o impede de ser considerado democrático; sua dimensão social propicia espetáculos esportivos economicamente rentáveis em que uma série de possibilidades sociais positivas e negativas ocorre.
O esporte de base no Brasil e principalmente o futebol, habitualmente estão atrelados aos clubes que mantêm escolinhas para a formação esportiva, mas há também outros ambientes que possibilitam o aprendizado das modalidades esportivas, como por exemplo, as escolas de esportes mantidas por instituições educacionais, escolas, colégios e universidades; os espaços poliesportivos mantidos pela Federação, pelos Estados ou por algumas Prefeituras Municipais, além dos remanescentes campos de várzea de nossas periferias. Destacamos a importância desses espaços polies-portivos em nossa sociedade, local de encontro, socialização e integração social, além de propícios para a prática da atividade física, comprovadamente, vital para o bem-estar e a qualidade de vida da população.
Em nosso país, a paixão pelo esporte e o convívio com a bola, valores culturais internalizados desde a infância e que prosseguem com o indivíduo ao longo de sua vida, têm o poder de aproximar as pessoas, estimular o diálogo, a troca de experiências e informações, sendo assim, lócus propício para o desenvolvimento humano e para o ininterrupto processo social de formação das identidades psicossociais. Segundo Berger e Luckmann (2004), o indivíduo não nasce membro da sociedade; nasce com a predisposição para a sociabilidade e torna-se membro da sociedade à medida que consegue internalizar e compreender seus semelhantes, apreendendo o mundo como realidade social dotada de sentido. Podemos inferir que esse fator sócio-cultural2, de certa forma, acaba viabilizando a sobrevivência das equipes de futebol em nosso país, que são fortalecidas pelo desejo de aproximação de neófitos que, costumeiramente, optam por um Clube, seja como atleta (profissional ou amador) ou torcedor. Além disso, destacamos o incentivo financeiro de grandes patrocinadores que estampam suas marcas nas camisas e materiais esportivos, principalmente dos grandes Clubes com apelo midiático.
Esse ciclo que se inicia na socialização primária das crianças, carregado de emoção e simbolismo e que as acompanha pela vida adulta é reforçado pela exposição intensa do esporte na mídia, que comumente destaca as histórias de sucesso e de superação de atletas e/ou equipes.3 Resultante dessa correlação entre esporte, socialização e mídia (televisão, jornais, revistas, rádio, internet, etc.) são a glamorização e o magnetismo exercido pelo esporte, aludindo a idéia de um sucesso profissional consequente à prática esportiva, que viria com certa naturalidade, pois ao "nascermos" no Brasil, todos seremos jogadores de futebol.4
Compreendemos o futebol profissional enquanto esporte-desempenho, de rendimento ou de competição, sendo reconhecido culturalmente em todo o mundo como o esporte das paixões e das multidões. Segundo dados da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), o número de praticantes de futebol no Brasil chega a cerca de trinta milhões de pessoas. Desses, são contabilizados profissionalmente onze mil jogadores federados, oitocentos clubes federados e por volta de dois mil atletas brasileiros atuando em outros países. O número de times amadores que participam de jogos organizados supera os treze mil. Interessante também destacar que essa nação que joga bola, pratica sua "fé" em mais de trezentos estádios habilitados pela CBF, com mais de cinco milhões de lugares para os possíveis expectadores. Isso sem falar nos campos e campinhos de "pelada", que existem no Brasil, estimados em, pelo menos, vinte mil. Em consequência dessa demanda, a CBF revela que são fabricados anualmente no país 3,3 milhões de chuteiras para futebol de campo, além de seis milhões de bolas de couro e 32 milhões de camisetas alusivas a times e ao futebol (Gurgel, s.f.).
Assim sendo, percebemos o incremento técnico, tecnológico, científico, financeiro e publicitário que cresce exponencialmente em torno da ciência do esporte e de suas respectivas aplicações na prática do futebol profissional. Para Tubino (1992), a organização do esporte-desempenho não deixa de ser um fator de fortalecimento da sociedade, pois há o envolvimento de vários tipos de especialistas e profissionais. Assim, ao criar uma "indústria do esporte", produtos de grande sofisticação são desenvolvidos e aperfeiçoados, favorecendo a mão-de-obra especializada, gerando turismo, renda, emprego, avanços tecnológicos que chegam à população em seu cotidiano, além de, pelo fenômeno efeito-imitação, exercer grande influência na prática popular do esporte. Porém, o esporte de rendimento, além de ser um grande negócio, pode ser usado político-ideologicamente, sobrepondo-se ao sistema interativo e à esfera comunicacional, operando-se uma instrumentalização e tecnificação do mundo da vida. Ou seja, ao invés do sistema servir à vida, há uma inversão em que a vida é colonizada para servir o sistema.
Nesse percurso do atleta de futebol rumo ao profissionalismo, destacamos que a faixa etária do atleta profissional começa, em média, aos 20 anos, com alguns indivíduos, como os que têm um bom rendimento e se destacam nas categorias de base, chegando ao "topo" com menor idade.5 Os atletas de futebol profissional dos grandes Clubes estão sempre na mídia; o número de informações a respeito, assim como, a quantidade de profissionais envolvidos na estruturação dos departamentos de futebol profissional é admirável,6 despertando falsas expectativas em milhares de jovens, que vislumbram dentro das quatro linhas, a possibilidade do estrelato e a consequente melhora na qualidade de suas vidas.
A profissionalização desencadeou uma transformação na organização do esporte, levando-o a se tornar uma carreira profissional cobiçada e uma opção de vida para jovens habilidosos e talentosos. Atletas consagrados atualmente gozam de um destaque social como os grandes artistas e pessoas públicas. O esporte neste século deixou de ser apenas uma competição para se tornar definitivamente um espetáculo não somente entre os competidores, mas entre as empresas e laboratórios que patrocinam a competição (Valle, 2003, p. 7).
Segundo Leme (2005), o futebol profissional no Brasil apresenta dois níveis qualitativamente diferenciados; realidades que não são exclusivamente típicas da nossa cultura: o primeiro, de alcance muito reduzido, é o dos atletas de sucesso, bem remunerados; o segundo é a dos atletas "comuns", da grande massa que não tem "mercado" e que limita sua carreira a atuar em times "pequenos" ou, então, a completar o elenco das grandes equipes. Por fim, há também uma quantidade significativa de atletas que não figuram nos dois níveis citados acima; por isso, os consideramos como atletas/identidades excluídas, pois sem reconhecimento social de sua profissão; são os desempregados, na linguagem do "mundo da bola", os "sem clubes".
A questão do reconhecimento social é destacada no trabalho do filósofo alemão Axel Honneth (2003), pois para ele, a dinâmica da reprodução social, os conflitos e a transformação da sociedade poderiam ser mais bem explicados com base nos sentimentos de injustiça e desrespeito decorrentes da violação das pretensões de identidade individual e coletiva. A realidade afetiva e emocional é enfatizada, pois se torna não apenas uma dimensão autônoma do reconhecimento, mas também o elemento fundamental em todo o processo intersubjetivo que envolve o reconhecimento social.
Essa correlação existente entre a gênese da identidade humana com a afetividade vivenciada nas relações sociais de reconhecimento ou não reconhecimento, permite-nos ponderar sobre a questão da identidade dos atletas de futebol no Brasil. Percebemos que existe um grande contingente desses desportistas que não se sentem reconhecidos em sua profissão, podendo ressentir-se do fato em sua vida psíquica, já que as experiências afetivas do não-reconhecimento, segundo Honneth (2003) podem levá-los à percepção de experiências difusas de sofrimento e humilhação social, sendo impeditivas de qualquer possibilidade de emancipação social. A idéia básica do autor é que os indivíduos e grupos só podem formar suas identidades quando estas forem reconhecidas intersubjetivamente pelos demais nas relações sociais, nas práticas e instituições de uma comunidade. Assim, a realização da autonomia e a auto-realização dos indivíduos dependem do reconhecimento e da valorização positiva dos demais membros da comunidade em diferentes dimensões da vida social, inclusive no campo profissional.
O pensamento de Honneth, sobre a importância do reconhecimento social para a formação das identidades psicossociais, assemelha-se à idéia habermasiana sobre o mesmo tema, pois ao considerar que os processos de individualização e socialização ocorrem simultaneamente, Haber-mas explicita que o sujeito na totalidade de suas relações compartilhadas intersubjetivamente necessita da confirmação e do reconhecimento dos outros participantes da interação, sendo capaz de experenciar o reconhecimento intra-subjetivo para consigo mesmo. Ou seja, o sujeito deve se entender consigo mesmo acerca da elaboração de um conteúdo interno e, ao mesmo tempo, na medida em que vivencia e exterioriza esse conteúdo, tem de poder esperar o reconhecimento da comunidade ilimitada de comunicação.
O Esporte, o Futebol e a Identidade do Atleta
A pressão é mais forte do que se imagina
[...]. Quanto maior a fama e o salário do
atleta, maior o número de interesseiros
'na sua cola'. A maioria é presa fácil
porque tem baixa escolaridade [... ].
(Emerson Leão, técnico de futebol, em Greco, 2003)
Leme (2005) recorda que é comum encontrarmos nas casas, ruas, parques, ou em qualquer outro lugar, crianças em brincadeira, dando seus primeiros chutes numa bola em busca de diversão. Nesse sentido, para se iniciar no futebol, não há necessidades específicas, tais como, aquisição de materiais esportivos da área ou um treinamento apropriado; um monte de papel amassado, meias enroladas e costuradas, dentre outros tipos de "bolas", servem para alegrar a brincadeira mais praticada pela garotada brasileira.
No decorrer do tempo, o simples divertimento costuma se transformar em algo mais organizado, com a formação de equipes, aquisição de uniformes, bolas, e outros equipamentos necessários para a prática do futebol. A brincadeira vai se tornando cada vez mais importante e complexa.
Souza (2006) recorre ao psicólogo social, George Herbert Mead, para clarear o debate em torno da importância da brincadeira, do jogo, e das relações interpessoais, nesse processo de constituição das identidades humanas.
Mead destaca a importância dos jogos infantis, como um primeiro momento em que, a criança irá se constituir a partir da relação com o outro, seu outro (dublê). É nos jogos e brincadeiras infantis que a criança cria seus personagens imaginários e se permite colocar em diferentes papéis sociais (torna-se médico, professora, motorista, jogador, etc.). Sendo assim, os jogos infantis têm um caráter funcional, pois cumprem o cargo de serem mediadores para a criança em relação à sua sociedade, pois permitem que elas se coloquem no lugar do outro. "Este é o primeiro ardil do homem sobre a natureza, e, portanto, o primeiro passo para ele se fazer um animal social" (Sass, 2004, p. 239).
Os jogos que antecedem aos de regras, são aqueles em que a criança brinca de alguma coisa sem se preocupar com os fins e os meios de sua atividade (play), podendo alterar rapidamente de papéis; por exemplo, a bola que era chutada, agora pode se transformar em cavalo pela criança, que sentada, sente-se cavalgando [...]. Posteriormente, a criança continuaria seu processo de desenvolvimento ao participar do jogo com regras (game), regras estas, que determinariam os padrões de comportamento dos integrantes da interação. A regra, ao ser internalizada, faz com que o indivíduo funcione por si só e que os participantes consigam atingir seus objetivos em conjunto e não mais individualmente.
A partir especialmente da aquisição da fala, é que a criança irá gradualmente dominando o processo de apropriação da atitude do outro. E o jogo com regras implica essa apropriação da atitude de todos os participantes de forma organizada, até chegar ao ponto em que todos assimilem as regras, organizando para si o outro, como um outro generalizado, tendo por referência o ponto de vista do todo integrado de sua comunidade social.
Fundamental, o conceito do "outro generalizado" aparece com destaque na obra de George Mead, como elemento essencial de sua teoria do self; descrevendo-o da seguinte forma:
A comunidade ou grupo social organizado, que proporciona ao indivíduo sua unidade do 'self', pode ser chamada 'o outro generalizado'. A atitude do outro generalizado é a atitude de toda a comunidade. Assim, por exemplo, no caso de um grupo social como o de uma equipe de futebol, a equipe é o outro generalizado, na medida em que intervém -como processo organizado ou atividade social na experiência de qualquer um de seus membros (Mead, 1934. p. 154).
Somente na medida em que o indivíduo puder adotar as atitudes gerais de todos os outros envolvidos nos processos sociais de sua comunidade, concordando com a totalidade das relações experienciais, das instituições e grupos de seu ambiente comunitário, é que esse indivíduo poderá desenvolver um self completo. Podemos dizer que o outro generalizado é uma espécie de influência da socialização na constituição do self, ou seja, na individuação.
Identificado em crianças maiores, o jogo, como realizado no esporte, exige uma maior complexidade do self. "Este é o segundo ardil que o homem aplica à natureza, porque não mais se relaciona com seu outro 'fantasiado', um doublé, mas com um seu outro organizado e generalizado" (Sass, 2004, p. 205).
Compondo o quadro explicativo, aludimos ao(s) garoto(s), que se iniciaram brincando com a bola "desinteressadamente", até terem o contato com o futebol estruturado, para, a partir daí, começarem a sonhar com a carreira de atleta de futebol profissional.
Lembremos de considerar o prazer e o benefício físico, psíquico e social que a prática esportiva pode desencadear, mas devemos considerar também, principalmente no caso específico do futebol, que muitos atletas iniciantes e amadores, vislumbram pela carreira esportiva a possibilidade real de ascensão social, pois o esporte de preferência nacional é tido como meio propício, principalmente para as crianças mais pobres, para buscarem minimizar problemas econômicos e suas consequências de toda ordem, pois parte da população são privados de educação de qualidade, estudos, cursos profissionalizantes, entre outros direitos, que lhes são suprimidos por falta de vontade política7.
Nesta trajetória rumo ao profissionalismo, muitos atletas contam com incentivadores, entre eles, os pais e familiares, os amigos, os professores, suas próprias habilidades, e a informação, por vezes, distorcida, passada pela mídia, onde é mostrado o lado vitorioso do futebol, evidenciando a reduzida parcela dos vencedores, quando, de fato, o futebol profissional é o sonho de muitos, mas a realidade para poucos, tendo o indivíduo que passar por diversos obstáculos para chegar a brilhar dentro das "quatro linhas" e aparecer no noticiário e nas manchetes esportivas. Numa sociedade dominada pela produção e consumo de imagens, nenhuma parte da vida pode continuar imune à invasão do espetáculo nem mesmo o esporte com seus ideais de Olimpismo. O surgimento do lazer como mais uma possibilidade de mercadoria faz do esporte mais um objeto da indústria (Bracht, 1997; Lasch, 1983).
Por ora, sustentamos que, partindo da brincadeira de criança, perpassando pelo momento em que a atividade é arraigada em sua vida com mais entusiasmo, até a busca pelo profissionalismo, o processo de formação da identidade do "boleiro" é contínuo, pois acredita encontrar no futebol a oportunidade de ser reconhecido socialmente. A ilusão de que sempre é possível.
Trazemos algumas situações que evidenciam que a identidade do atleta de futebol não tem glamour para a grande maioria. Porém, antes, acrescentamos que, segundo Ulrich Beck (1998), o trabalho produtivo e a profissão, na época industrial, se converteram nos pontos de contato do eixo da existência. Hoje em dia, quando um desconhecido pergunta a alguém quem ele é, a resposta não parte da religião a que pertence ou da idade, mas sim à sua profissão. Quando conhecemos a profissão de alguém, cremos conhecê-lo. A profissão é um meio de identificação e, "graças" a isto, valorizamos o homem e atribuímos uma posição na sociedade. A propósito dessa questão, Antonio da Costa Ciampa (2008) relata que todos sabemos da importância que o trabalho tem na sociedade. Nossa inserção no mercado de trabalho quase sempre cela um destino, é um componente forte na configuração de uma identidade. Segundo o autor, cada indivíduo encarna características próprias advindas de suas relações sociais, configurando assim, uma identidade pessoal, uma história de vida, um projeto de vida. A mesma opinião tem Sigmar Malvezzi (comunicação pessoal, 2009), a carreira profissional está diretamente ligada à identidade, pois um plano de carreira é uma estratégia identitária8.
Neste sentido, como exemplo emblemático, para ilustrar como se dá a transformação da identidade do jogador de futebol que não alcança o sucesso almejado - os desempregados, os "sem clubes" - , resumiremos a história de vida de Luis Augusto, relatada mediante entrevista no jornal O Estado de São Paulo (Glenia, 2004).
Luis Augusto encarna um personagem, o "monstro", que representa a avareza exigindo maquiagem e fantasia: ele passou, também, por aulas de expressão corporal, impostação de voz, postura e relaxamento. O que isso tem a ver com futebol? É um atleta de futebol desempregado que agora assusta o público de parque para garantir renda. Com três anos de experiência no futebol profissional, ele cansou de insistir na área esportiva e resolveu ir à busca de outras oportunidades. Foi assim que encontrou um emprego inusitado; saindo do palco do futebol para figurar no palco de um parque. O jogador, agora "monstro", é só mais um personagem que traduz os números alarmantes do desemprego e que mostra que é preciso versatilidade para sobreviver. Luís afirma ter enviado mais de cem currículos para empresas, além de fitas de vídeo para empresários e clubes de futebol; relata que o ramo é muito concorrido e mesmo tendo curso técnico em turismo, a situação está difícil.
Pensemos a quantidade de atletas, cidadãos que não têm nenhum estudo. O que fazer? Como muitos brasileiros, Luis Augusto encontrou na adversidade uma nova chance, embora seus sonhos continuem os mesmos. Diz que em seu coração ainda é jogador de futebol, mas precisa de dinheiro. Conclui dizendo que quando se está desempregado tem de se agarrar a todas as oportunidades.
Conforme avançamos, acrescentamos que, independentemente da idade, os valores do futebol estão "impregnados" em parte da população brasileira. Vejamos mais esse caso: depois de passar 15 anos procurando bilhetes premiados no lixo, o aposentado Valdenir de Carvalho, de 49 anos, achou uma raspadinha de R$ 10 mil, deixada ou esquecida por alguém no balcão de uma lotérica em Presidente Bernardes, cidade do estado de São Paulo. Por várias vezes ele encontrou raspadinhas de valores inferiores, mas desta vez ele teve muita sorte. Sorte? "Se eu tivesse sorte, teria dado sorte na carreira de jogador de futebol", diz Carvalho, que depois de ser obrigado a abandonar o sonho de ser jogador de futebol, foi aposentado por invalidez ao se machucar quando trabalhava de estivador. Solteiro, mora em dois cômodos em um cortiço, com sua cadela vira-lata, que o acompanha em suas andanças (Siqueira, 2007). Este é apenas mais um relato de alguém que buscou, mas que não alcançou seu objetivo principal: ser atleta de futebol profissional. Mesmo assim, em sua identidade há traços marcantes do "esporte das multidões".
Diante desses fatos, podemos constatar que o trabalhador empregado no país deve se agarrar às poucas oportunidades que se apresentam. Pensemos nos atletas, pois se não aproveitam o tempo certo e as oportunidades, por vezes raras, para engatilharem suas carreiras, correm o risco de serem descartados ou trocados por outros atletas que despontam no mercado. Os que conseguem êxito, por mais que estejam "acima do bem e do mal", têm que manter uma postura adequada aos padrões exigidos por técnicos, torcidas e patrocinadores. A título de exemplo, alguns atletas estão sendo transformados em brinquedos, em heróis para as crianças, ao lado de bonecos consagrados como Homem-Aranha, Scooby-Doo, entre outros (Glenia, 2004). Com uma diferença fundamental, os atletas existem na vida real e são de carne e osso. Fato que deixa uma porta aberta para pular de herói a vilão em qualquer momento. Na vida do herói "vivo" e atuante, o céu é bem próximo do inferno!
Considerações Finais
Propusemos abordar, no artigo, princípios que nos levam a refletir sobre o futebol e a construção da identidade do atleta profissional deste esporte no Brasil. Percebe-se, que a busca por essa carreira é grande, mas a conquista do espaço almejado é pequena. Há o êxito, mas há também, muita frustração. Diante deste aspecto, podemos dizer que tanto os atletas que conseguem a consagração quanto os atletas que caminham à margem da carreira profissional, terão em sua identidade "carimbada" a palavra Futebol.
A perspectiva de se tornarem grandes atletas e a busca da ascensão social via futebol, são valores internalizados desde a infância, quando a nomeação do mundo é retransmitida por seus outros significativos, como os familiares, prosseguindo com o reforço feito pela ordem sistêmica, através da mídia, por exemplo, em sua socialização, até o momento de definição ou crise identitária, quando se deparam com a (im)possibilidade real da profissionalização no futebol.
A necessidade de conquistar espaço, de ser um atleta, de ganhar dinheiro e principalmente de ser alguém reconhecido socialmente, mostra que a identidade do atleta de futebol é caracterizada pelas constantes metamorfoses. Na longa trajetória rumo ao profissionalismo ou não, as transformações são contingentes às dificuldades encontradas nos caminhos e descaminhos do mundo da bola. Na identidade do indivíduo ficam "traços" do futebol, entretanto, a maioria não poderá "ganhar" a vida neste esporte.
Então, seria o futebol mais um canto da sereia? A ilusão de conquista da plena individualidade e ascensão social, promessa de um sistema meritocrático como o capitalista? Quais seriam as alternativas para aqueles indivíduos que buscariam um recomeço na sociedade, com outras ferramentas, que não sejam suas chuteiras? Fica a pergunta para nossa reflexão.
1 Embora integrante da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, que incisivamente problematizava a racionalidade da sociedade ocidental moderna, Habermas distanciou-se, em sua maturidade acadêmica, de seus companheiros de cátedra, como de seu professor, Adorno, por exemplo, passando a defender certos aspectos do Iluminismo como positivos para a construção de um projeto emancipatório, desvencilhando o problema da modernidade do desenvolvimento tecnológico.
2 Para Habermas (1989), cultura é o depósito de saber, em que os participantes da comunicação extraem ou se abastecem de interpretações, para entender sobre algo no mundo.
3 Os produtos da mídia emergem a partir de um elaborado processo que envolve cultura e economia. Nos eventos esportivos os atletas costumam serem transformados em personagens, estrelas, heróis e vilões (Rúbio, 2003).
4 Reminiscências da infância dos autores desse artigo.
5 Há casos extremos, como um atleta, ou melhor, uma criança, que fez sua estréia no mês de julho de 2009 aos 12 anos em uma competição oficial na Bolívia. O técnico era pai do garoto e, além de receber muitas críticas, não só em seu país, mas ao redor mundo, perdeu o cargo.
6 Por exemplo, observamos que o departamento é composto de técnicos, assistentes técnicos, preparadores físicos, auxiliares de preparação física, treinadores de goleiros, médicos, massagistas e mordomos. Os clubes mais privilegiados contam ainda, em seus departamentos de futebol, com fisioterapeutas, fisiologistas, dentistas, assistentes sociais, professores e psicólogos.
7 Não é o foco principal de nossa discussão, mas consideramos faltar em nosso país, uma Política Pública adequada e efetiva também em relação ao Esporte, que pudesse trazer benefícios de ordem prática para nossa população, sejam eles, de ordem social ou econômica, mas que possibilitasse, em seu cerne, a formação de verdadeiros atletas e cidadãos autoconscientes eticamente.
8 Citação do autor em uma palestra ministrada no Programa de estudos Pós-Graduados em Psicologia social da PUC-SP no ano de 2009.
Referências
Adorno, T. W. (2006). Educação e Emancipação. (4a ed.) Rio de Janeiro: Paz e Terra. [ Links ]
Bracht, V. (1997). Sociologia Critica do Esporte: uma introdução. Vitória: CEFD/UFES. [ Links ]
Beck, U. (1998). La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. (ia ed.) Barcelona: Paidós. [ Links ]
Berger, P. L. & Luckmann, T. (2004). A construção social da realidade. (23a ed.) Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Ciampa, A. C. (2008). A Estória do Severino e A História de Severina: um ensaio de psicologia social. (1a ed. 1987). São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Glenia. F. (2004, março 27). O jogador de futebol que virou monstro. O Estado de São Paulo, (p. C4). [ Links ]
Glenia. F. (2004, abril 6). Sucesso do cinema inspira novos brinquedos. O Estado de São Paulo, (p. B14). [ Links ]
Greco, A. (2003, julho 13). De repente, a fama (e um monte de aproveitadores). O Estado de São Paulo, (p. E6). [ Links ]
Gurgel, A. Riquezas e misérias de uma paixão nacional. Disponível em: < http://desafios2.ipea. gov.br/desafios/edicoes/24/artigo22656-2.php> Acesso em 10 de agosto de 2009. [ Links ]
Habermas, J. (1990). Pensamento pós-metafísico; estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. [ Links ]
Habermas, J. (1989). Teoría de la acción comunicativa; complementos y estudios previos. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Cátedra. [ Links ]
Honneth, A. (2003). Unsichtbarkeit. Stationen einer Theorie der Intersubjektivitat. Fráncfort d. M.: Suhrkamp. [ Links ]
Lasch, C. (1983). A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Leme, C.G. (2005). É Gol! Deus é 10: A Religiosidade no Futebol Profissional Paulista e a Sociedade de Risco. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. [ Links ]
Lopes, S.R.P. (2008). Vida Humana e esfera Pública: contribuições de Hannah Arendt e Jürgen Habermas para a questão da anencefalia fetal no Brasil. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm Editora. [ Links ]
Mead, G. H. (1934). Mind, Self and Society: from de standpoint of a social behaviorist. Chicago: Chicago University. [ Links ]
Rúbio, K. (org.). (2003). Psicologia do Esporte Aplicada. Coleção Psicologia do Esporte. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Sass, O. (2004). Crítica da Razão Solitária: A Psicologia Social Segundo George Herbert Mead. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco. [ Links ]
Siqueira, C. (2007, junho 23). Aposentado acha raspadinha no lixo e ganha R$ 10 mil. O Estado de São Paulo, (p. C11). [ Links ]
Souza, R. F. (2006). George Herbert Mead: Contribuições para a Psicologia Social. Dissertação de Mestrado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. [ Links ]
Tubino, M.J.G. (1992). As dimensões sociais do esporte. (1a ed.) São Paulo: Cortez. [ Links ]
Valle, M. P. (2003, junho). O Esporte de Alto Rendimento: Produção de Atletas no Contemporâneo, Trabalho apresentado na reunião científica do CEAPIA. [ Links ]
** Professor Associado do Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasisl). Endereço para correspondência: Rua Jocelyn Bennaton, 29 - São Paulo - SP (Brasil) CEP. 04648-100. Email: acciampa@pucsp.br
*** Professor de Educação Física, Especialista em Treinamento Esportivo e Fitness. Mestre em Ciências da Religião e Doutorando em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil). Bolsista CNPq. Endereço para correspondência: Rua Guadalajara, n° 660; Centro; Caieiras - SP; Brasil; CEP: 07700-000 Email: clodoleme@ig.com.br
**** Psicólogo. Mestre e Doutorando em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil). Bolsista CNPq. Endereço para correspondência: Rua Francisco Sales, n° 748/1301; Centro; Lavras - MG; Brasil; CEP: 37.200-000. Email: rfspsi@ig.com.br