O Rio de Janeiro da Primeira República: questões sociais, cidadania restrita e tensões políticas
O Rio de Janeiro, sede da corte imperial desde 1808 e do Distrito Federal com a instauração da República em 1889 experimentou, a partir da virada do século XIX, um crescimento populacional em ritmo acelerado e profundas transformações sociais, económicas e culturais. Em menos de vinte anos o número de moradores cresceu 95,8 % e apenas 54 % da população era constituída por cidadãos nascidos na cidade. De acordo com o primeiro censo republicano, realizado dois anos após a "abolição" da escravidão, cerca de 180 000 habitantes eram negros e mulatos, o maior contingente de todo o sudeste brasileiro, representando 34 % da população da cidade. O outro 22 % se compós de migrantes de várias partes do país e 155 202, ou 30 %, eram estrangeiros e imigrantes pobres, dos quais cerca da metade chegou à cidade ao longo da década de 1880.1 Em 1890, 307 000 moradores da capital federal, ou 58,8 % do total, sabiam ler e escrever, enquanto em 1920 as pessoas consideradas alfabetizadas representavam 61,1 % da população que já totalizava 1 157 873 habitantes.2 Ainda que o número de analfabetos continuasse elevado -e possivelmente os percentuais de alfabetizados expressarem em parte o otimismo do novo regime-, de cada dez moradores do Rio de Janeiro seis podiam ser considerados alfabetizados. Eram, portanto, potenciais leitores capazes de ter acesso e manter diálogo com periódicos e textos diversos, inclusive com aqueles empenhados em uma propaganda republicana mais radical, defensores da regulamentação do trabalho e de maior inclusão dos trabalhadores na esfera política.
Contrastando com o Rio de Janeiro afrancesado criado pelo urbanismo e higienismo agressivos -o "Bota Abaixo" justificado pelo slogan "O Rio civiliza-se"-, existia outra cidade na qual a vida era difícil para os pobres e trabalhadores. Em número superior à oferta de postos de trabalho eles enfrentavam o desemprego alto -que estimulava rivalidades e disputas pelos empregos disponíveis-, o custo elevado dos aluguéis resultante da redução drástica na oferta de moradias baratas nas freguesias centrais em função das demolições de cortiços e estalagens, além da carestia de vida que geraram insatisfações e reivindicações ao longo do período.3 Não causa surpresa, portanto, que a luta diária pela sobrevivência nas ruas da cidade tenha, com certa frequência, resultado em conflitos abertos e explosão social, gerando mobilizações de caráter reivindicatório e greves que evidenciam as insatisfações de uma grande parcela de moradores e trabalhadores cariocas e sua disposição para ampliar suas estratégias de resistência e luta.
Como demonstra Batalha, os primeiros anos do século XX "viram o surgimento de um novo tipo de organização operária, as sociedades de resistência, criadas para exercer funções eminentemente sindicais: lutar por melhores salários, pela diminuição da jornada de trabalho e por condições de trabalho mais dignas".4 Com distintas orientações político-ideológicas e estratégias sindicais, desde a ação direta até o reformismo, o movimento de trabalhadores intensificou-se no início do século XX e conheceu o seu "ápice" "nos últimos anos da década de 1910, principalmente em 1917 e 1919". Apesar de "nos anos posteriores a 1920, continuaram a eclodir greves, [mas] elas não voltaram a ter a dimensão e a repercussão daquelas do período precedente" em decorrência do estado de sítio, de julho de 1922 até dezembro de 1926, que "exerceu influência decisiva na desorganização das associações operárias [...] multiplicando as invasões policiais e o fechamento de sindicatos".5 Apesar das limitações legais ao direito à reunião e à associação existiram ao menos 397 "organizações de trabalhadores ou voltadas aos trabalhadores" de "cunho sindical, mutualista, beneficente, educacional ou político" entre 1830 e 1920, fornecendo testemunhos da intensa mobilização e uma crescente organização política de caráter classista.6
Por outro lado, inúmeras evidências apontam para uma significativa ampliação e renovação do periodismo carioca acompanhando o crescimento e a diversificação social da população da cidade, a massificação do ensino e da escolaridade, a partir das duas últimas décadas do século XIX. Também é preciso destacar os efeitos da expansão da rede telegráfica e da comunicação cifrada -imprimindo maior rapidez na transmissão de informações, possibilitando a criação de agências de notícias e agilizando, ainda mais, a circulação de informações a longa distância- e, particularmente, da associação do telégrafo com a imprensa que revolucionou a compreensão sobre os fatos e as operações envolvidas na produção de notícias.7 A alteração mais significativa e, ainda hoje, pouco estudada e conhecida foi o surgimento de uma pequena imprensa constituída por centenas de jornais e revistas produzidos na maioria dos bairros, por sócios de clubes, grêmios e outras associações com natureza e objetivos diversos, a margem dos ditames comerciais ou empresariais. Chama a atenção a diversificação social e geográfica dos grupos produtores de jornais e revistas, a ampliação dos projetos editoriais, públicos e circuitos de produção e circulação das informações e notícias, expressando novas demandas sociais na cidade. Os títulos e subtítulos dessas folhas e revistas indicam práticas culturais e associativas variadas -literárias, noticiosas, recreativas, comerciais, humorísticas ou carnavalescas- ou, ainda, a busca de independência, de crítica ou de ação doutrinária.8
Em paralelo, a imprensa de trabalhadores -voz e expressão das organizações e lideranças e parte de um processo mais amplo de "construção e difusão de ideias de solidariedade, cooperação e transformação social"-,9 também se expandiu e se transformou, renovando suas linguagens, temas e, também, os modos de narrar e informar. O intenso investimento de trabalhadores brasileiros na produção de jornais é um fenómeno reconhecido por vários pesquisadores, mas a diversidade da imprensa operária é uma realidade pouco explorada e, em geral, analisada apartada -e não no interior e em tensão- do movimento mais amplo de expansão e transformação dos meios de comunicação social.10
Tanto a combativa imprensa de trabalhadores -plural e diversificada em seus objetivos e projetos editoriais- quanto os periódicos da "pequena imprensa" carioca se caracterizam pela relativa independência do mercado, produção restrita a pequenos grupos de redatores/proprietários/jornalis-tas não profissionalizados, com colaboradores eventuais, sustentados por estruturas de produção frágeis, resultando em tiragens pequenas, sobrevida curta e periodicidade irregular.11 Esse jornalismo se diferenciava e, quase sempre, se opunha, ao que se convencionou designar como a "grande imprensa", referência aos jornais e revistas que, desde a década de 1880, já se estruturavam como empresas jornalísticas, expressavam as correntes de pensamento hegemónicos e detinham poder para influenciar e conduzir a opinião pública. Na imprensa empresarial carioca destacavam-se cinco diários mais importantes (Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Gazeta de Notícias, O Paiz e Jornal do Commercio) "responsáveis pela impressão de 150 mil exemplares", com sedes em prédios monumentais construídos na recém aberta Avenida Central, e "dotados de um poder real e simbólico [que transformou] seus proprietários em verdadeiros Donos do Rio".12
Essas transformações se intensificaram ao longo das duas décadas iniciais do novo regime -período que alguns contemporâneos registraram como a "consolidação republicana" e outros como a "República Velha"-, e que os historiadores posteriormente designaram como a Primeira República.13 Foram anos pródigos também na elaboração de novas normas legais, por iniciativa do Executivo Federal, visando coibir direitos sociais e políticos -restringindo o exercício do voto e limitando as disputas eleitorais- e a liberdade individual e coletiva, inclusive de expressão e comunicação, e cerceando o direito à associação e organização sindical e partidária. O jornalismo e os jornalistas não escaparam a esse processo, pois, sob a retórica da liberdade de imprensa, os republicanos criaram mecanismos jurídicos para a proteção do Estado, dos poderosos e das instituições, regulando mais os "abusos" do direito de expressão e publicação e menos as garantias constitucionais dos cidadãos e da livre comunicação de ideias e opiniões.
Apesar da primeira Constituição republicana anunciar que era "livre a manifestação do pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar",14 prevaleceram as tentativas de restringir a liberdade e impor censura à imprensa, espaço privilegiado da luta política. Sob o pretexto de conter notícias "falsas" ou informações "sigilosas" que poderiam "alarmar a opinião" e provocar desconfianças sobre o "novo regime" os primeiros governos militares editaram vários decretos15 para ampliar a vigilância sobre o jornalismo, criminalizando a produção e difusão de notícias sobre a República equiparando-as aos crimes de sedição julgadas e punidas com normas militares. Como apontou Carla Siqueira, "um ano após a Proclamação [... ] num momento em que o pacto entre republicanos paulistas, militares e outros segmentos burocráticos e oligárquicos [estava] sujeito a lutas internas pela hegemonia, além de enfrentar a oposição monarquista" e a imprensa -ou parte dela- "ameaçava o sonho da ordem governista", autoridades e proprietários de periódicos "republicanos" empreenderam uma "separação entre a boa e a má imprensa", na medida que "o jornalismo deixava de ser considerado uma atividade "científica" e "cívica".16 O Código Penal de 1890, por sua vez, ofereceu novos elementos para criminalizar o "abuso da liberdade de comunicação" ao aprovar a noção de responsabilidade solidária ou seja, compartilhada, entre o autor do texto, o editor e o dono do jornal (ou tipografia) alterando, portanto, a concepção da responsabilidade sucessiva -quando, na falta de identificação do autor, a responsabilidade pelo delito era atribuída ao editor e depois dele ao impressor- instituída pelo Código Criminal do Império e que ainda prevalecia até então.
Paralelamente, mantiveram-se as antigas práticas de cerceamento ao jornalismo através de processos judiciais, intimidações, assassinatos e prisões de jornalistas além de invasões e depredações contra as redações de jornais -com destaque para a imprensa operária- em todo o país e, em particular, no Rio de Janeiro a capital federal. Assim como no passado imperial, durante trinta anos os republicanos valeram-se do recurso à violência combinada ao uso seletivo dessa jurisprudência para conseguir manter sob controle a "má imprensa", o "submundo" do periodismo, os "virulentos e violentos" jornais estigmatizados com nomes pouco lisonjeiros como "panfletos", libelos" ou "pasquins". A linguagem pesada frequentemente usada para (des)qualificar a imprensa produzida fora dos círculos restritos do poder ou dos letrados, sugere que algumas dessas folhas conseguiram se constituir como vozes dissidentes que desafiavam os consensos naquela sociedade e, usando da palavra impressa, tentaram conferir legitimidade às lutas pela ampliação da cidadania restrita imposta pelos vitoriosos nas lutas sociais pela abolição e pela República.
Uma lei para "regular" a liberdade de imprensa
As poucas referências da historiografia brasileira sobre a primeira lei de imprensa implementada pela República associam sua proposição ao episódio que ficou conhecido como "as cartas falsas", "publicadas em 1921 pelo jornal carioca Correio da Manhã, contendo ofensas aos militares e a Nilo Peçanha, e atribuídas a Artur Bernardes, então presidente do estado de Minas Gerais e candidato à presidência da República". Apesar de não impedir a vitória de Bernardes na eleição em março de 1922, o "escândalo que se seguiu acirrou a oposição dos militares" e o seu governo enfrentou "o movimento tenentista, início de um processo de ruptura política que iria desembocar na Revolução de 1930".17 No entanto, a análise de um conjunto mais amplo de jornais e dos anais parlamentares, entre julho de 1922 e outubro de 1923, revela que os debates em torno do projeto de lei para "regulamentar o exercício da imprensa" nas duas casas legislativas transcorreram num clima de muita tensão e conflitos, acentuados pelo estado de sítio e pela censura à imprensa.
Ao longo de um ano e meio o projeto enfrentou oposição sistemática e críticas fundamentadas, foi objeto de inúmeras emendas e propostas de substitutivos até sua aprovação em outubro de 1923 quando foi enviado para sanção do presidente da República.18 O "monstruoso" e "famigerado" decreto impôs a obrigatoriedade do registro das matrículas e endereços de oficinas e redações de jornais, exigiu que os periódicos estampassem no cabeçalho os nomes de seus diretores e proprietários com a intenção de impedir a "imprensa clandestina", instituiu o direito de resposta e, principalmente, proibiu o anonimato estabelecendo que o "diretor ou redator principal será considerado autor de todos os escritos", assinados ou não. Além de caracterizar os "crimes de imprensa" que incluíam revelar "segredos de Estado" ou "ofensas ao presidente da República", instituir a censura prévia e obrigar a responsabilidade penal solidária -entre autores, editores, proprietários do jornal ou das oficinas responsáveis pela impressão, até os distribuidores e vendedores-, esse decreto criou prisão especial para os jornalistas "infra-tores", definiu as penas "conforme a gravidade da ofensa e as condições de fortuna do réu" -multas em dinheiro ou prisão- e estabeleceu os trâmites dos processos e julgamentos.
Comparada à formulação dos primeiros constituintes republicanos que defenderam "um regime livre e democrático" e propuseram a "livre manifestação do pensamento pela imprensa", a primeira lei republicana de imprensa propõe uma alteração radical.
É preciso, no entanto, relativizar a imagem da República brasileira. Iniciado com um golpe militar em 1889 e mantido através do recurso frequente à dissolução do Congresso e ao estado de sítio, o regime atravessou um longo período de disputas políticas e promoveu retaliações contra indivíduos, partidos e instituições que disputavam a definição de sua natureza e dos seus rumos ou defendiam a restauração da monarquia. De todo modo, cabe indagar sobre as mudanças sociais que explicam uma reviravolta nos modos de conceber o papel da imprensa e de legislar sobre o seu exercício com a justificativa de salvaguardar o regime. Quando e por que a imprensa, deixou de ser o "arauto da liberdade", a "mentora" da propaganda republicana e a "fiadora" da consolidação do novo regime, para representar uma ameaça à "governabilidade e [para a] manutenção da paz social"?
Apesar do completo silêncio da historiografia não faltam testemunhos, de jornais e associações operárias, de que a verdadeira intenção do projeto de lei era coibir o direito de expressão e o jornalismo produzido pelas organizações de trabalhadores. Como vimos, a força social e política representada pelos trabalhadores, e seu crescente poder de mobilização e pressão exercidos por meio da imprensa, em uma conjuntura de acirramento das tensões sociais e das disputas políticas entre grupos oligárquicos dominantes, sem dúvida é um argumento a ser considerado para explicar a emergência histórica da primeira lei de imprensa. Em uma sociedade que se caracterizava pela exclusão política extrema, "a não sujeição ao consenso é considerada subversiva e ilegítima" 19 e justificou, em diferentes conjunturas históricas, medidas de força para o cerceamento às pequenas e combativas folhas editadas por trabalhadores tentando impedir o exercício de sua expressão política. Acompanhar as inúmeras exigências legais para a criação de associações e jornais por entidades de classe, o conjunto de normas jurídicas aprovadas -que protegiam os patrões e a propriedade dos meios de comunicação mas deixavam os jornalistas expostos a vários tipos de arbitrariedades e violências-, observar os argumentos usados por advogados, juízes e a atuação do judiciário nos processos e julgamentos de "crimes de imprensa", sugerem novos caminhos para compreender as resistências à ampliação dos espaços de crítica social naquela conjuntura.
Desde a greve geral de 1917 o artigo 22 do código penal de 1890, que definia "os crimes de abuso da liberdade de comunicação do pensamento", qualificava os responsáveis e estipulava as penas correspondentes, foi utilizado para prender jornalistas operários -como Edgard Leuenroth diretor de A Plebe, Teodoro Monicelli, diretor do jornal Avanti ou Paulo Mazzoldi do 1l Piccolo-, invadir e empastelar oficinas, apreender tipos para impressão e exemplares impressos.20 Aos contemporâneos não escapou a crescente criminalização do movimento operário, seus militantes, entidades e órgãos de comunicação que acompanhou o processo de elaboração de "leis" repressivas ao anarquismo que viabilizaram a prisão e expulsão de centenas de trabalhadores estrangeiros e, também, fomentaram o questionamento, ainda que momentâneo e seletivo, da lógica liberal da atuação da imprensa naquela conjuntura histórica.
A abrangência do texto da lei de imprensa, as insinuações veladas em discursos de parlamentares ou nas páginas dos jornais diários, as frequentes notícias sobre processos criminais contra jornais, agressões e prisões de jornalistas durante o trâmite do projeto, evidenciam interesses muito mais amplos do que apenas atemorizar "os profissionais da difamação", inibir "os exploradores do escândalo" e garantir "a dignidade do jornalismo", como afirmou o presidente Arthur Bernardes.21 Se considerarmos que a proposição da regulação do exercício da imprensa se deu pelas mãos do senador Adolpho Gordo autor das leis de expulsão de estrangeiros "indesejáveis" -em 1907 e 1913- e do projeto que deu origem ao decreto para regular a "repressão ao anarquismo",22 aprovado apenas um ano antes, a relação entre ambos ganha relevância e evidenciam sentidos e interesses mais amplos. É preciso considerar, também, as referências explícitas ao decreto de repressão ao anarquismo no embasamento e caracterização dos crimes de imprensa. Já no seu primeiro artigo o decreto que "regulou" a imprensa definiu que "os crimes" de "provocar diretamente, por escrito ou por qualquer outro meio de publicidade [... ] dano, depredação, incêndio, homicídio, com o fim de subverter a atual organização social"; fazer a "a apologia dos crimes praticados contra a atual organização social" ou, ainda, "o elogio dos autores desses crimes, com o intuito manifesto de instigar a pratica de novos crimes da mesma natureza" -previstos nos arts. 1°, 2° e 3° do decreto n. 4.269 de 1921, e punidos com prisão celular-, quando fossem cometidos pela imprensa teriam suas penas acrescidas de multas e, no caso de estrangeiros, com a expulsão. Com esse decreto, composto por 14 artigos, o governo estava autorizado a fechar associações, sindicatos e sociedades civis, além de, pela primeira vez, definir penas de prisão para os "delitos de imprensa".23
Por outro lado, o projeto de lei angariou apoio significativo na imprensa empresarial e mobilizou um número expressivo de defensores. Ao longo da década de 1920 constituíram-se os "conglomerados de imprensa" -o primeiro foi a criação dos Diários Associados, a partir de 1924, com o controle de O Jornal por Assis Chateaubriand-24 evidenciando um processo crescente de concentração da propriedade da imprensa empresarial. Como demonstrou Sodré, os jornais diários deixaram naquela conjuntura de ser "artesanais", pequenos e com "possibilidades de independência" para se consolidar numa "imprensa industrial" organizada como empresa capitalista "com desenvolvida divisão de trabalho" e a pretensão de ser permanente. Essa imprensa "grande", em alguns casos propriedade de sociedades anônimas, representava "interesses mais avultados" e estava comprometida com outro padrão de produção de notícias, que via o jornal não apenas como espaço de divulgação de ideias, mas como produto que deveria gerar lucro, a ser obtido tanto pela venda de exemplares quanto de espaço para "publicações a pedidos", para os anunciantes e a indústria da publicidade.25
Portanto, a proposição da primeira lei de imprensa republicana se deu em um contexto marcado pela ascensão da organização operária e do acirramento das reivindicações, pelas disputas sociais em torno da ampliação de direitos à livre organização e expressão através de sindicatos e da imprensa mas, principalmente, pela renovação social de grupos editores e dos públicos leitores que tensionavam cotidianamente a concepção liberal de "liberdade de imprensa" -um direito reservado apenas aos proprietários de empresas jornalísticas e ao jornalismo profissional- aquele que o testemunho atento e crítico do escritor Lima Barreto qualificou como a "onipotente imprensa, o quarto poder fora da Constituição".26 Acompanhar as disputas travadas entre esses dois tipos de jornalismo em torno da regulamentação da liberdade de imprensa entre 1920 e 1923, possibilita apreender diferentes concepções sobre o exercício profissional, o direito à expressão e os setores da imprensa com direitos a exercê-lo.
Os dissensos no interior da imprensa empresarial
O acirramento das disputas políticas durante a campanha presidencial em 1921-1922 -com a intensificação das perseguições policiais e judiciais, prisões de jornalistas, redatores e empastelamento de jornais- evidenciou ainda mais os dissensos no interior da imprensa empresarial e serviu como justificativa para o apoio de parte dos jornalistas e jornais às medidas "inadiáveis" para regular o jornalismo e dele "expurgar" os "cretinos e irresponsáveis". Empresas jornalísticas que se auto apresentavam como "a imprensa digna" afirmavam "desejar a lei" para fazer um saneamento radical da imprensa brasileira e afastar dela os "malfeitores intelectuais":
A imprensa digna deste nome não teme o advento dessa lei. Não o teme, porque está no seu interesse o ver liberta a profissão da pasquinagem que a avilta. Se ela não objetivar -e é isso que deve ser primordialmente observado- o estrangulamento da opinião, a sua existência importará na eliminação dos tortulhos jornalísticos que infestam a profissão grosseiramente desvirtuada.27
Minimizando os efeitos da censura à imprensa imposta pelo estado de sítio, O País -assim como a Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro), O Estado de S. Paulo e A Gazeta (São Paulo)-, defendiam que tanto o Congresso quanto a imprensa tinham ampla liberdade para discutir o assunto, fazendo coro aos senadores situacionistas que, na tribuna, se esforçavam por demonstrar que a suspensão das garantias constitucionais não impediam a análise e o envio de contribuições ao projeto de lei em debate no Senado. Intervenções anónimas, publicadas nas páginas d'O Paiz -dirigido pelo português João Laje e aglutinador das opiniões favoráveis ao governo- defendiam que a imprensa, que sugeria "medidas legais para tudo e para todos", tinha o dever de não criar embaraços ao debate sobre uma lei que teria por objetivo libertar "a profissão da pasquinagem que a avilta". Afinal, a "imprensa digna deste nome" não temeria o advento da lei porque ela promoveria o saneamento moral da profissão.28 Através de nota, publicada no mês seguinte, o jornal denunciava um "redator de um vespertino nilista" "preso em fragrante de chantagem" contra uma empresa comercial para justificar a "urgência de uma lei reguladora do exercício da profissão de jornalista" que teria duplo benefício: poria fim aos "processos habituais de "certa imprensa malsã" e atuaria "contra a vilania agressiva e difamatória da maior parte dos jornais e jornalecos enrabichados à aventura do Sr. Nilo Peçanha", que se utilizava de processos, repulsivos mas coerentes, como a "chantagem das cartas falsas".29 Dois meses depois o redator da seção "Echos e Fatos" d'O Paiz elevou o tom das críticas ao explicitar que o Correio da Manhã era o destinatário de suas insinuações e advogar a urgência da lei de imprensa para por fim à "impunidade do banditismo jornalístico" que não teria poupado o presidente da República e nem os ministros do Supremo Tribunal.30
Com a pretensão de falar em nome de todos os jornalistas que não viviam do "escândalo difamatório" O Paiz manifestou apoio à bancada paulista no Congresso Nacional por "tomar a iniciativa de uma lei de imprensa" proposta em "moldes liberais" e organizada em torno de "apenas três medidas: a repressão ao anonimato, o direito de resposta [...] e o direito à investigação da autoria dos artigos injuriosos e caluniosos".31 No mês seguinte o jornal desloca o assunto para a primeira página em artigo de fundo saudando a disposição do senador Adolpho Gordo para iniciar o que qualificou como o "movimento de higienização da imprensa brasileira", justificando a medida legal como uma reparação jurídica contra os abusos da imprensa. Apesar da Constituição avaliou que "as colunas da imprensa continuam abertas ao anonimato", permitindo as "mais revoltantes e bárbaras incursões da injúria e da calúnia". Mais uma vez, O Paiz associou a "urgência de um anteparo legal" aos excessos no exercício do direito de liberdade de imprensa durante a recente campanha presidencial que teria gerado também uma situação de "inquietude e apreensões, porquanto as agitações presentes, as paixões virulentas, as ameaças revolucionárias sem um motivo lógico e digno, são simples resultantes do delírio jornalístico a que se entregam os profissionais da politicagem facciosa".32
O advogado, jornalista e político José Maria Belo clamou em artigo assinado pelas "responsabilidades da imprensa" na formação do clima favorável aos levantes militares, em julho de 1922. Avaliou que após a suspensão do estado de sítio essa imprensa, que vivia "de escândalos, de injúrias e de calúnias", retomaria suas práticas com a certeza da impunidade. Portanto, para os jornalistas que haviam perdido sua ética profissional e agiram como "insufladores impenitentes de todos os ódios" era preciso uma lei que aparasse suas "armas envenenadas" e impedisse a "proliferação dos jornais sem idoneidade, pela exigência de certos bens patrimoniais" ao mesmo tempo que contivesse as folhas mais ricas com "elevadas multas pecuniárias para as suas vítimas".33 O jornalista Abner Mourão, também em artigo n'O Paiz, defendeu que a lei convinha aos jornalistas profissionais e "verdadeiramente dignos desse nome" porque faria a separação entre os "escribas" daqueles capazes apenas de "enfileirar infâmias e desaforos". A lei daria à liberdade de imprensa "uma expressão real e tangível" porque "a palavra liberdade só tem um sinónimo justo: respeito. Sem ele, cai-se no abuso, na licença, dão-se meios de ação exatamente aos piores inimigos da liberdade". Se o costume e o tempo haviam consagrado o anonimato e a "injúria irresponsável, nem por isso deixa de ser atroz e vergonhoso" fazendo com que as "críticas sinceras e justas, as acusações fundamentadas" já não se distinguissem das "torpezas laboriosamente preparadas".34
Fazendo eco aos colegas cariocas, alguns dias depois o Correio Paulistano reproduziu integralmente esse artigo d'O Paiz indicando o alinhamento editorial e político entre ambos e a formação de uma rede de jornalistas e periódicos favoráveis a uma "urgente e imprescindível" lei de imprensa. Elogiando a iniciativa, os editores paulistas acreditavam que nada indicava intenção de amordaçar a imprensa mas, apenas, prevenir os excessos ou abusos da liberdade. Os jornais "de responsabilidade" ou a "boa imprensa" estariam a favor da lei e do saneamento da profissão, pois "quem não deve não teme".35
O Jornal do Comércio (Rio de Janeiro), um "servidor de todos os governos",36 noticiou com discrição o andamento do projeto de lei de imprensa mas expressou seu apoio de formas diversas: reproduzindo argumentos de parlamentares favoráveis; publicando informes sobre reuniões e debates promovidos por diferentes associações, ou defendendo a lei através da reprodução de notas e artigos publicados por outros jornais.37 Mais contido, e às vezes fazendo coro às reivindicações do saneamento da imprensa O Estado de São Paulo, em outros momentos, reproduziu discursos de senadores com críticas à lei de imprensa e divulgou "protestos dos intelectuais paulistas".38 Dirigido por Júlio de Mesquita, desde 1897, O Estado se auto apregoava um jornal liberal mas atuava como "uma facção partidária [e, dessa forma] pôde assumir a liderança das sucessivas frentes de oposição ao comando perrepista".39
A Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro), por outro lado, elogiou e defendeu com empenho a iniciativa, afirmando que uma lei de imprensa "era um reclamo imperioso e urgente" e "não significava uma mordaça à imprensa, porque só prevenia os excessos". Estava de acordo que "jornais de responsabilidade", aqueles que "seguiam uma rota limpa" e "bem serviam" à sociedade, não temiam a lei, porque ela viria para "corrigir as licenciosidades inomináveis de órgãos sem escrúpulos". A Gazeta de Notícias se empenhou em dar visibilidade a esse assunto reservando espaço nas primeiras páginas sempre sob o título "A lei de imprensa". Em vários artigos assumiu inteiramente a opinião e as palavras iradas do presidente Epitácio Pessoa, que "de relho em punho" havia vergastado sem piedade perante a opinião pública os dois "abjetos expoentes da imprensa nilista" identificados em termos chulos: "Edmundo Bittencourt, o conhecido rei da Cachaça, e o moleque do Irineu Marinho", considerados os "profissionais da calúnia, os jornalistas sem dignidade" que envergonhavam a imprensa brasileira. Os jornais dirigidos por Bittencourt e Marinho foram descritos como "tocaias escusas" onde eles se ocultavam para atacar a reputação de autoridades que, supostamente, não satisfaziam "seu apetite voraz por dinheiro". Para finalizar, desqualifica a oposição de ambos a uma lei de imprensa porque "ela lhes quebraria nas mãos o instrumento ignóbil de que tiram a fortuna e o gozo".40
Portanto, quando o acirramento do dissenso ameaçou alguns projetos de poder e o equilíbrio da ordem republicana, a imprensa empresarial assumiu um lado na disputa e procurou empreender uma separação entre a "boa" e a "má" imprensa, entre jornais "com direção séria e de responsabilidade" e aqueles qualificados como "amarelos" ou "niilista", assim como alinhou em polos opostos "os jornalistas sem dignidade", e os profissionais "dignos" desse nome. Tratavam de definir o que era o jornalismo e quem podia exercê-lo -limitando a disputa pelo mercado da notícia e controle da opinião pública- e, também, de estabelecer os limites aceitáveis à liberdade de imprensa, regulando os seus supostos "excessos" ou "abusos".
No outro espectro de opinião estava o Correio da Manhã -"folha de oposição, vibrante, escandalosa às vezes, veemente sempre" 41 sob a direção de Edmundo Bittencourt-, um dos primeiros a publicar pequenas notas e avaliações contrárias à proposição de uma lei de imprensa que, em sua opinião seria "restritiva da liberdade de crítica". Alinhava-se entre os jornais que, naquela conjuntura, atuavam na oposição ao governo e que alegavam não contar com a "amizade de senadores" ou as "subvenções" do tesouro nacional. O Correio atribuiu a iniciativa da lei de imprensa aos "amigos" de Arthur Bernardes, dentre eles o empresário e senador Azeredo "vice-presidente do senado [que] sendo senador, ainda teima em considerar-se também um jornalista". Defendia que "a imprensa é [...] apenas um efeito e os efeitos não se combatem sem as causas" e sugeria que seria melhor se os senadores decretassem uma lei "para os que obrigam a imprensa a exceder-se". Se havia a necessidade de uma lei de imprensa, era para obrigar
certos jornais, muito amigos dos senadores, a viver às claras e a provar a fonte donde tiram o dinheiro para as suas despesas. Dessa forma, o público, que é sempre a vítima da opinião bebida em certa imprensa poderia avaliar com segurança o grau da sinceridade do entusiasmo que em várias folhas as causas políticas despertam. 42
Desde outubro de 1921 o Correio da Manhã denunciou que Arthur Bernardes, caso eleito, tinha intenção de "pedir ao Congresso uma lei de imprensa" para que pudesse, como presidente, governar como fazia no estado de Minas Gerais onde perseguia, desterrava e matava adversários.43 Protagonista nos acontecimentos que serviram de justificativa para alguns empresários de comunicação e lideranças políticas reivindicarem uma lei de imprensa, o Correio da Manhã acompanhou de perto a movimentação no congresso em torno dessa questão - a partir da posse de Arthur Bernardes e, em particular, após maio de 1922. Em alguns artigos, favoráveis à lei, ela era apresentada com o objetivo de "regular o ofício de escrever e publicar, impondo restrições que sejam uma garantia da ordem e do princípio de autoridade".44
A partir de julho de 1922 -quando as discussões esquentaram no Senado- o Correio da Manhã passou a debater o assunto diariamente, publicando textos com formas e objetivos diversos. Às vezes trazia apenas a transcrição dos debates no Senado, outras vezes publicava artigos opinativos sem assinatura e, mais raramente, artigos assinados analisando pontualmente cada aspecto do projeto de lei. O Correio da Manhã subiu o tom ao afirmar que era frequentemente citado "como um jornal onde as críticas aparecem com certo caráter de paixão e vivacidade" e que muitos acreditam que a lei de imprensa viesse modificar sua linha editorial. Refuta essa ideia com o argumento de que não existia lei capaz de eliminar os sentimentos de ninguém e que o jornal estava pronto para responder perante a justiça por tudo que fazia da mesma forma que sempre procedeu "em face da ameaça e da brutalidade". Afirma desejar a lei de imprensa "mas uma lei inteligente, prática, aplicável, e não um simples retalho de disposições [...] e quase todas fáceis de burlar". Os autores do projeto de lei sugerem que a imprensa vivia "num regime de franca irresponsabilidade"45 como se os textos publicados fossem anônimos porque não eram todos assinados quando, na verdade, os leitores conheciam os diretores, editores e proprietários de jornais. O modo como a lei estava sendo formulada sugeria, também, que haveria um regime de impunidade, o que não era verdadeiro porque os processos judiciais e as prisões de redatores e jornalistas eram de conhecimento público.
O discurso do senador Irineu Machado proferido em tom mais emocional alguns meses depois, pintou um quadro sombrio da imprensa brasileira e ganhou a primeira página do Correio:
Ainda gemem na prisão jornalistas, ainda existem na Detenção di-retores de jornais, ainda se estão prendendo diariamente jornalistas e o escândalo chegou a tal ponto que eu vejo no Brasil um estado de sítio [...] político, sem o estado de guerra ou nenhum perigo evidente. Pratica-se contra a imprensa os maiores atentados, que nenhuma mentalidade européia, nenhum dos jornalistas que nos visitaram [por ocasião do centenário de independência] poderia compreender.46
Em vão vozes críticas alertavam dentro e fora do Congresso para o absurdo do legislativo discutir uma lei de imprensa durante o estado de sítio e com os principais interessados no debate impedidos de fazê-lo livremente em função da censura, arriscando-se a aprovar "uma mordaça" para o jornalismo. Alegavam que se a República, em vigor há 33 anos, pode esperar até sentir necessidade de uma lei contra os abusos da imprensa, poderia aguardar a suspensão do estado de sítio para debatê-la com liberdade. Os apoiadores do projeto de lei, por outro lado, defendiam -nas tribunas e páginas dos jornais- que a imprensa, apesar do estado de sítio, tinha plena liberdade para debater o projeto e só não o faziam aqueles que não queriam a regulamentação do jornalismo. Como "prova" o relator A. Gordo costumava ler na tribuna trechos de jornais cariocas e paulistas com posições a favor e contra o projeto, além de críticas e sugestões enviadas, por telegramas, por diversas associações e entidades.
Uma lei "rolha" para algemar a consciência proletária?
Do lado oposicionista mas com argumentos e razões diferentes estavam jornais como O Dia (São Paulo), O Combate (São Paulo), A Folha da Noite (São Paulo), que sustentaram que o projeto era um "desastre", "monstruoso", "infeliz", "famigerado", porque propunha uma "rolha de fogo" e uma "fragorosa aberração dos preceitos mais liberais" para fazer "leis esmagando direitos".47 Jornais que se apresentavam como independentes e críticos, assim como as organizações operárias, apresentaram argumentos muito diversos para sua oposição ao projeto de lei de imprensa.
O Imparcial (Rio de Janeiro), por exemplo, considerou a iniciativa de uma lei de imprensa como uma reação às "críticas e arguições" feitas pelos jornais ao governo de Epitácio Pessoa e fruto do "rancor à imprensa que lhe põe a calva à mostra".48 Em artigo assinado, o advogado e ex-deputado Maurício de Lacerda relembrou no mesmo jornal suas iniciativas na Câmara Federal em prol de uma lei de imprensa, em 1912 e 1917, e explicou seus recuos por receio das "inclinações despóticas dos nossos poderosos e seus sequazes costumeiros". Nas duas ocasiões os projetos que apresentou propunham apenas a proibição do anonimato "absoluto" na imprensa, particularmente "daquela industriazinha de página traseira dos célebres 'a pedidos'" e, também, criavam "imunidades" para os diretores de jornais visando protege-los da prisão durante os estados de sítio e também da "censura policial dos artigos e ecos da imprensa independente, onde já se viu cancelar a palavra 'operário' como subversiva". O projeto Gordo em discussão, ao contrário, nasceu "entre os conservadores" e sempre que entre "os homens do poder, semelhante iniciativa desponta, é ela uma lei reacionária, e nunca, [... ] uma medida de organização legal de um [...] quase parlamento da linguagem escrita [...] que são os jornais". Portanto, Lacerda era contra uma lei de imprensa até que o parlamento aprovasse "leis de responsabilidade dos governantes" capazes de conter os "desmandos nos atos dos poderosos", porque, na verdade ela seria manejada pela polícia apenas "contra as vozes independentes, irredutíveis ao dinheiro ou à ameaça".49 Tudo indicava, portanto, que esta lei seria uma "lei rolha" que viria "pelas mesmas mãos que algemaram há doze meses a consciência proletária".50
A partir do início de agosto de 1922 O Imparcial recorreu com frequência a títulos como "Lei contra a imprensa" ou "O projeto contra a imprensa" para organizar a transcrição de debates no parlamento, incluindo subtítulos que destacavam argumentos de senadores contrários ao projeto de lei.51 Um ano depois, publicou reportagem de primeira página sobre a aprovação do decreto na qual questionou se Adolpho Gordo seria o "pai ou padrinho da ideia" da lei ou um simples "pau-mandado" que teria aproveitado a ocasião para se vingar da imprensa. Para O Imparcial o senador Gordo vinha sendo julgado pela imprensa em função de ser o mentor do decreto de repressão ao anarquismo que, "serviu para o fechamento do Clube Militar, da resistência [...] e do Partido Comunista" e para "se reabilitar perante a opinião liberal do país [...] aceitou a dura e dolorosa prebenda de aceitar a paternidade de uma lei contra a imprensa". Graças a sua surdez o senador "passa insensível pelos mais berrantes problemas nacionais" e às suas vastas relações pessoais com os poderosos nacionais e estrangeiros, um a um enunciados pelo jornal desde sua atuação no interior de São Paulo, evidenciando seus interesses particulares ao propor leis repressivas contra trabalhadores -era um "patrão explorador" sócio e gerente de "capitalistas estrangeiros" na Fábrica de Bordados e Tecidos da Lapa-,52 além de "sua influência" na "reforma do contrato da São Paulo Railway Company por mais 90 anos", durante "o governo honesto de Prudente de Moraes". Mas a verdadeira "causa do ódio que o senador vota à imprensa" seria a "campanha movida pela imprensa [...] contra o juiz de direito, Dr. Nicolau Gordo, seu digno filho" em função de várias causas defendidads por ele e que "se enquadram perfeitamente em vários artigos do Código Penal", causa de sua expulsão da magistratura. Portanto, concluiu, "um dos maiores interessados e beneficiados pelo silêncio" que o decreto imporia à imprensa seria "o pau--mandado" do senador Gordo.53
Fiel ao lema "Independência - Verdade - Justiça" O Combate também se opôs com veemência contra "os cretinos e venais" que "se assanham contra pretendida licença de nossa imprensa, num país onde a opinião pública não vale nada" e que a partir do Congresso agiam desejosos de "proibir a crítica livre da imprensa sob o pretexto de que é ela que arrasa as instituições".54 Segundo este jornal paulistano, dirigido por Acylino Rangel Pestana, "os jornais conscientes de seus deveres com a opinião pública [... ] criticaram acerbamente o 'golpe de força' com que se pretendeu esmagar o elevado princípio de liberdade de opinião". Destacando a manchete "CONTRA A MORDAÇA" O Combate ampliou a visibilidade das iniciativas de diversas associações das "classes trabalhadoras" (A Internacional, União dos Artífices em Calçados, União dos Empregados em Cafés, União dos Operários Metalúrgicos, União dos Alfaiates, União dos Canteiros e Classes Anexas, União dos Oficiais Barbeiros e Cabelereiros e União dos Trabalhadores Gráphicos), dentre elas a convocação de reunião para debater e se posicionar contra "o projeto monstro, "chamado lei da imprensa", que pretendia "aniquilar a única liberdade que resta ao homem livre - a faculdade de dizer o que pensa". Dirigindo-se ao "Povo de S. Paulo" as sociedades convidaram "operários e intelectuais a reunirem-se [...] no salão Celso Garcia, [...] afim de "formular um veemente protesto contra esta infâmia que ameaça fazer ruir a dignidade nacional! Intelectuais: a força está no direito! Povo, abaixo a mordaça! Proletários: trabalho e liberdade!".55
Em síntese, a primeira lei de imprensa brasileira agravou ainda mais algumas penas, manteve a prisão para jornalistas, recriou o regime de responsabilidade sucessiva -restaurando uma norma do código criminal de 1830- e limitou o exercício do "jornalismo político" para estrangeiros além de criar um novo delito, o de ofensa, que não existia no Código Penal de 1890. Alguns contemporâneos identificaram com precisão o objetivo da "lei infame" 56 e "celerada" 57 e avaliaram que ela representou um retrocesso de dois séculos ao reintroduzir na legislação o "delito de opinião", suprimir liberdades constitucionais ao tornar "muito fácil o arbítrio dos que, dispondo de uma parcela qualquer de autoridade, queiram evitar a crítica livre de um jornalista".58 Através do parlamento e com apoio expressivo das empresas jornalísticas, decretou-se "a morte da liberdade de opinião no Brasil".59
Na verdade, decretou-se a morte da opinião liberal, ou o que restava dela, na imprensa empresarial porque na imprensa de trabalhadores já vinha sendo asfixiada a partir da repressão intensificada ao final da década de 1910 para conter as lutas operárias com base em "velhas leis, que já haviam servido para a eliminação de dirigentes operários" a par de "novas leis [que] começaram a ser elaboradas, para o mesmo fim".60 Dois meses após a aprovação do decreto para regular o exercício da imprensa, Otávio Brandão, um conhecido dirigente anarquista e comunista, avaliou seu impacto sobre a "imprensa revolucionária" em função das "cláusulas sobre a responsabilidade sucessiva [que] desfecham um golpe bastante rude contra a imprensa pobre (... ) obrigada a recorrer aos serviços de impressora particulares, quase sempre burgueses, que para evitar a responsabilidade legal, naturalmente se recusam a nos imprimir". Além disso, informou aos camaradas na Europa as "dificuldades de propaganda comunista [...] grandemente aumentadas pela nova lei":
Dois impressores já nos recusaram seus serviços. Nosso próprio material tipográfico foi apreendido ou destruído durante a campanha policial de maio-junho. Nossa ação pela luta de classes revolucionária não diminuirá. Mas que os operários europeus saibam o que valem no Brasil as liberdades democráticas.61
Considerações finais
Como vimos, não foram poucas as vozes críticas e dissonantes dentro da imprensa empresarial carioca, assim como de jornalistas e jornais "independentes" ou vinculados a trabalhadores, que exprimiram divergências e receios sobre os efeitos da lei na criminalização do pensamento, na restrição ao direito à livre opinião e expressão. Diferentes testemunhos denunciaram o caráter repressivo e antidemocrático da lei -qualificada, por diversos contemporâneos, como "celerada", "infame" e "contra a imprensa"-62 e procuraram evidenciar os interesses políticos em torno de sua elaboração e aprovação. Mas eles não foram considerados no debate público do projeto e, em geral, continuam a ser ignorados também pela historiografia. Procurei ouvir as muitas vozes que se opuseram ao projeto de lei para reinserir seus argumentos no terreno das disputas políticas onde eles foram produzidos para contornar o risco de reproduzir um imaginário social com maior poder de circulação e convencimento naquela conjuntura e silenciar outros sujeitos, projetos e possibilidades que disputavam os rumos da normatização do exercício do jornalismo.
Parece improvável que a imprensa crítica, especialmente a combativa imprensa operária, pudesse continuar a existir plenamente depois das significativas restrições legais à livre expressão. Ainda que a progressiva redução no número de periódicos publicados por trabalhadores na então capital federal63 não possa ser atribuída exclusivamente a lei de imprensa -ao contrário, precisa ser explicada no interior do processo de concentração da propriedade dos jornais e de elevação dos custos de equipamentos e técnicas de impressão-, testemunhos contemporâneos fornecem indícios razoavelmente fortes para dimensionar seus impactos sobre o cerceamento ao exercício do jornalismo, tanto para as associações de classe quanto à imprensa empresarial menos alinhada ao poder e aos poderosos. É preciso considerar que a mudança no modo de regular o exercício do jornalismo foi, também, uma reação às lutas e conquistas populares pela liberdade e ampliação, ainda que limitada, da cidadania sob a República. Tanto a iniciativa desse projeto quanto as condições sociais e políticas que condicionaram seu debate e trâmite no legislativo são reveladores das intenções e interesses sociais mobilizados a favor de sua aprovação. A "lei da mordaça" pretendeu calar a imprensa que expressava pautas e reivindicações como a exigência de direitos à expressão e impressão, direito de livre organização e associação, direito à representação política sistematicamente negada com a exigência de nacionalidade, alfabetização, a negação da naturalização e do acesso à educação. Em outras palavras, o alargamento da esfera pública a partir dos anos finais do século XIX -expresso tanto pelo crescimento numérico dos periódicos quanto pela pluralidade do seu perfil editorial- não ocorreu sem tensões e conflitos na sociedade brasileira recém saída da escravidão na qual o controle do acesso à educação e ao conhecimento, ao direito de escrever, debater ideias e conduzir a opinião pública sempre estiveram reservados aos bacharéis filhos das boas famílias.
Procurei demonstrar que a primeira lei republicana de imprensa é parte da constituição de mecanismos jurídicos mais amplos para coibir e limitar a crítica e as liberdades em geral e a liberdade de expressão, em particular.
A lei de imprensa de 1923, e os limites da "liberdade" ou dos "abusos" que ela definiu, só pode ser compreendida no interior do processo mais amplo de transformações na experiência concreta do exercício do jornalismo empresarial e, também, do contraponto representado pela pequena imprensa, pela imprensa sindical ou militante, e pelas lutas sociais para que a cidadania no Brasil deixasse de ser um "privilégio dos senhores".64