Introdução
O itinerário terapêutico (IT) compreende as trajetórias percorridas por pessoas, famílias e comunidades em busca da solução de uma aflição/enfermidade, ou manutenção e recuperação da saúde 1. Tais trajetórias em diferentes subsistemas de cuidado em saúde, tanto institucionalizados quanto informais, partem de experiências e modos de significar e produzir cuidados, sendo estes influenciados por contextos subjetivos, sócio culturais e pela oferta de serviços de saúde 2-4.
Contudo, o processo articulado e singular das escolhas, ações e reavaliações dos percursos terapêuticos nem sempre é conscientemente processado e linear, por vezes divergindo do fluxo que os serviços traçaram em suas linhas de cuidado, tendo, portanto, seus enredos, personagens e desfechos próprios.
Sob este prisma, o câncer de colo de útero (CCU), enquanto uma doença crônica que está atrelada a uma longitudinalidade de fatores de risco, sinais, sintomas e necessidades que inspiram cuidados específicos, invoca a utilização de abordagens multidimensionais que sejam capazes de retratar peculiaridades das dimensões simbólicas. Estas são resultantes do conhecimento, significado e da experiência de adoecimento na vida de mulheres que o possuem. Sobretudo, é importante compreender como tais significações e experiências orientam o acionamento de racionalidades terapêuticas e sistemas de cuidados, capazes de dar conta da condição de enfermidade que ora apresentam. O modelo holístico para a compreensão do IT 1 coaduna com o exposto, tendendo a superar a lógica determinista, rígida e utilitarista das escolhas e utilização de arenas de cuidado em saúde.
Do ponto de vista epidemiológico, o CCU é de grande magnitude nacional e internacional, notadamente em países em desenvolvimento decorrente da infecção pelo papiloma vírus humano e da cobertura ainda insatisfatória de exames de rastreamento 5,6 que acontecem, preponderantemente, de forma oportunística nos serviços públicos e sem informação real da sua cobertura, considerando os que são realizados nos serviços suplementares 7,8. Apesar de possuir alto potencial de prevenção e lento desenvolvimento, hoje consiste no tumor mais frequente no público feminino, perdendo apenas para o câncer de mama e o color-retal, sendo a quarta causa de morte de mulheres por câncer no Brasil 9. Neste país, cerca de 70 % dos casos de CCU são diagnosticados em fase avançada, sendo mais incidentes nas mulheres de nível sócio-econômico baixo e em fase reprodutiva de suas vidas 10.
Além dos contundentes aspectos supramencionados, a experiência de mulheres com esta neoplasia gera grandes impactos em suas vidas como rupturas biográficas 11, resultando em sofrimento e interrupções em suas trajetórias de vida, cujas repercussões são de ordem tanto psicobiológica quanto econômica e social 12.
Ante a consideração do potencial avaliativo do IT para uma compreensão ampliada das visões de mundo de mulheres com CCU, do processo saúde-doença-cuidado empreendido pelas mesmas e da potencialidade destes itinerários contribuírem para resignificar processos de trabalho e cuidado, tem-se como objetivo analisar os itinerários terapêuticos de mulheres com câncer do colo do útero a partir do tratamento, na região Sudoeste da Bahia, Brasil.
Método
Estudo de abordagem qualitativa, descritiva e exploratória, realizada com mulheres com CCU provenientes de uma Unidade de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON). Esta Unidade situa-se no município de Vitória da Conquista que é polo da região Sudoeste da Bahia, sendo formado por um complexo entre o Hospital Geral e prestadores privados para realização de quimioterapia e radioterapia.
Foram consideradas elegíveis as mulheres que possuíam vinte e cinco anos ou mais de idade, com diagnóstico confirmado de CCU, e residentes na região Sudoeste da Bahia, que abrange 39 municípios. O recorte etário considerou a população que deve ser rastreada pelo exame Papanicolau para identificação precoce de lesões precursoras para o CCU. Estabeleceu-se como critério de exclusão, mulheres que não desejassem participar da pesquisa ou que não estivessem em tratamento no momento da mesma.
A identificação das mulheres ocorreu a partir da revisão dos registros da Unidade de Referência, sendo as mesmas posteriormente abordadas para marcação de entrevista semi-estruturada. Das 25 identificadas, apenas dez mulheres concordaram em agendar a entrevista. O recrutamento ocorreu entre os meses de junho a agosto de 2017, na UNACON, conforme a agenda da semana da Unidade Oncológica, no período diurno, em sala privativa desta mesma unidade.
Ao longo do processo, mesmo após a marcação das dez entrevistas, cinco mulheres corresponderam ao total de participantes. Dentre as dez, as perdas relacionaram-se com a não apresentação de condições físicas para participar da entrevista decorrente dos efeitos do tratamento (n = 2) e o não comparecimento à unidade para realização do tratamento nos dias propostos (n = 3). Contudo, devido ao caráter de não generalização e de maior validade interna da abordagem qualitativa, a partir do aprofundamento dos dados, observou-se que os significados relativos ao objeto investigado foram compreendidos satisfatoriamente.
Os recursos utilizados para a recolha dos dados foram o diário de pesquisa e a entrevista semi-estruturada. A entrevista se baseou em um roteiro que continha informações relacionadas a dados sócio-demográficos e questões abertas para explorar o núcleo de significados acerca do objeto investigado. Elas aconteceram individualmente na unidade, com duração média de 35 minutos. Foram gravadas em meio digital e posteriormente transcritas. As mulheres foram identificadas no estudo com a letra "m" representando o termo Mulher, seguida do número de ordem da realização da entrevista.
Para análise dos dados, recorreu-se à análise do conteúdo temático, a qual é composta pelas etapas de pré-análise, exploração do material e tratamento/interpretação dos resultados 13. Deste modo, a leitura flutuante, a codificação e a categorização sumarizam as etapas que buscaram reunir os temas centrais expressos em idéias e estruturas de relevância. Posteriormente foram agrupados analogicamente em categorias, tendo em vista o embasamento no marco referencial do it e da saúde coletiva.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética Universidade Federal da Bahia, campus Anísio Teixeira, com CAAE: 54535916.5.0000.5556, conforme a resolução n°. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, de modo que todos os princípios éticos foram assegurados.
Resultados
As características das entrevistas encontram-se no Quadro 1. Observa-se que a faixa etária das cinco usuárias que participaram da pesquisa variou entre 25 e 73 anos. A maior parte era de outros municípios, autodeclararam-se pardas, cursaram o ensino fundamental incompleto, eram divorciadas, separadas ou viúvas, da religião católica, sem ocupação no momento, sendo a renda familiar de um salário mínimo. Quanto aos fatores de risco, a maioria iniciou a vida sexual antes dos vinte anos de idade, tiveram um único parceiro no último ano e antecedentes familiares para o câncer. Nenhuma era etilista ou tabagista.
A partir dos procedimentos analíticos instituídos, seguem as duas categorias que emergiram.
Aspectos simbólicos e experiências de mulheres em tratamento para o CCU
Símbolos da cultura popular e biomédica foram associados ao ccu por mulheres em tratamento para esta doença. Observa-se na linguagem metafórica utilizada por uma das entrevistadas, o retrato de como ela percebe a presença do CCU, como o mesmo recai e se aloja sobre seu corpo, o remodela e como ela será resolvida.
Mas aí eu não sei o que foi, se foi o de comer ou de beber que eles não me deram, não me explicaram o que tinha que seguir pra esse trem não aparecer, o que era certo, ou que era errado, ninguém nunca me explicou nada! Porque coisa de errado eu não fiz nada! Beber, graças a Deus e cigarro eu não fiz isso mais, nunca mais, muito antes de eu descobrir eu já tinha parado e depois disso pior ainda e aí esse câncer veio assim do nada, queria saber por quê? [...] "Em nome de Jesus vai tornar ir embora! Mandar pra longe, sair voando assim e não pegar em ninguém!" [M4].
Em contrapartida, para outras mulheres, os signos atribuídos ao conhecimento do CCU estiveram relacionados às alterações orgânicas, insculpidas à luz de um saber formalmente instituído pelos profissionais de saúde, inicialmente percebidos como de menor gravidade.
Adoeceu começou a sangrar né? Uma sangria! Aí depois foi aumentando, aumentando e aí começou a dor no pé da barriga. Começou a dor, começou a dor e até hoje [M1].
Depois de um corrimento que eu vi que estava fora do normal e eu comecei a sentir umas cólicas que eu nunca senti, aí depois dessas cólicas eu marquei um preventivo pra fazer [M3].
Foi assim eu não sabia o que era isso mesmo, né? Eu comecei a sentir dor nas costas fiquei assim uns seis meses achando que era coluna, só que aí depois surgiu o sangramento, sentindo dores quando ia ter relação e sangrava muito, só isso [...] [M5].
Quanto às experiências diante da doença, os relatos das mulheres também foram marcados por uma miríade de sentimentos, ora positivos ora negativos, os quais deslizaram entre os quadros de ruptura biográfica e tentativas de normalização da vida.
O que eu sinto é tristeza por ela tá dentro de mim e não vejo a hora dela sair pra eu retomar minha vida [...] [M4].
Na hora o chão caiu sabe? [...] Antes eu saía, mesmo sentindo dor, né? Antes de descobrir eu tava frequentando a escola e saía normal. Mesmo que eu não sou de ter uma boa alimentação, mas eu comia, aí depois que eu vim descobrir que começou o sangramento aí foi ficando mais difícil, né? Eu sei que eu tenho câncer mas, pra mim assim eu não tenho no coração que eu tenho câncer, porque graças a Deus, mesmo com essa situação eu tenho vida, eu tenho saúde, mesmo com as dificuldades, né? E é isso aí seguir a vida, né? Cuidar direitinho [M3].
Mudou muita coisa, né? Antes eu cozinhava no fogão a lenha, mas depois por causa da quentura eu não cozinho mais, né? Não faço mais esforço como fazia antes. Mudou a rotina mesmo, por conta dos efeitos da quimio e rádio [M5].
A busca por tratamentos para o CCU: racionalidades e práticas acionadas no curso dos itinerários
A partir da percepção da gravidade dos sintomas, as entrevistadas narraram a saga na busca de tratamento para o CCU. Deste modo, a falta de cuidados preventivos, a pouca utilização da atenção primária, assim como o retardo no diagnóstico médico e a peregrinação até o serviço especializado de oncologia, foram apontados por algumas mulheres como justificativa, inclusive para estarem em estágio mais avançado da doença.
Então esse foi um dos meus erros, eu não fazia exame de rotina, em 2007 eu tava com uma lesão né, no colo do útero, ai fiz uma cauterização, né? Aí também foi uma falta de importância minha [...], todo ano eu deveria tá fazendo o preventivo, né? Foi isso que o médico me falou que pode ter sido um rastro que ficou dessa cauterização [M5].
[... ] cheguei lá o médico disse que era mioma, ele falou que dava pra tomar remédio pra sumir. Tomei o remédio e fui no outro médico, ele disse que era cisto, aí foi avançando mais ainda. Eu fui e falei assim: oh doutor é um cisto ou um câncer? Aí ele falou assim: oh M4 porque você está falando que é um câncer? Aí ele foi e falou pra mim que eu adiantasse então, pra frente e deixasse o exame dele pra trás [...], e assim eu descobri, porque se fosse por alguns médicos eu tava até hoje sem saber! [M4].
Você não consegue fazer um exame rapidamente, fica um tempão na espera [...]. Então fica difícil, né? [M1].
Falhas de informação acerca do tratamento especializado também despontaram nas falas.
O médico não explicou como era, eu fiz o que era pra fazer, né? [...] Ninguém me falou nada não. Sei lá [M1].
Eu acho assim, que pelo meu entendimento de nunca ter feito era melhor ter uma explicação né? [... ] Não sabia se era enfiado na cabeça, se era enfiado nos pés, se era enfiado aonde? [M4].
Quando eu comecei fazer a rádio, eu tinha que fazer as duas juntas: a rádio e a quimio, nem que uma acabasse primeiro pra o meu tratamento dar certo. O que aconteceu? O pessoal [... ] não "marcaram". Eu fiz 28 sessões de radio sem quimio. Aí comprometeu meu tratamento [M5].
Percebeu-se também que, embora notável a busca pela rede formal de serviços de saúde situados na esfera pública, a religiosidade, as rezas, os chás, as garrafadas, bem como a constituição de redes de suporte social, notadamente da família nuclear, também orbitavam em torno dos itinerários terapêuticos de todas as mulheres com CCU. Esta pluralidade de sistemas de cuidados não eram antagonicamente utilizados, senão considerados de forma concomitante e complementar.
Comecei tomar chá, né? Chá caseiro, aí depois eu parei com o chá caseiro e hoje apego mais em Deus, né? Eu sei que tudo vai dá certo. Depois, eu fui pra o posto e lá me passaram muitos exames. Ah! Me mandaram pra o ambulatório pra fazer uma biópsia, só que lá tava sem material e me mandaram para o posto de saúde, foi quando tive a certeza mesmo. E de lá fui para o Hospital, fiquei na clínica médica [...]. Fiz todos os exames de rotina pra detalhar, para poder começar a fazer a quimioterapia [...] comecei fazer o tratamento na UNACON. Hoje apego mais em Deus né? Eu sei que tudo vai dá certo. Tenho minha mãe e minha filha comigo, tenho que pensar nelas e lutar contra isso [M3].
Primeiro fui ao posto [...]. Depois foi no posto, que fui diagnosticada pelo ginecologista. Fui pra o Hospital, depois fiquei 2 meses no Hospital [...] e depois UNACON [...]. E hoje, eu estou em tratamento aqui, eles marcam e eu venho. Ah! Também tomei muita garrafada. Eu fui até na casa de um rezador que eles falam, lá bem longe, que eu não sei nem o nome da cidade, aí eu não queria fazer o tratamento aqui, eu queria primeiro tomar as garrafadas deles [M4].
Discussão
Desde as primeiras abordagens acerca dos IT atreladas à ideia mais utilitarista de um cardápio de cuidados biomédicos a serem orientados pela lógica do consumo, até as contribuições que a sociologia e a antropologia vêm ofertando na delimitação de que o meio social e cultural interferem nas ações, escolhas e trajetórias de cuidado, observase um crescimento nas produções nesta última vertente, sendo que as doenças crônicas tem recebido foco privilegiado 1-4. É na segunda perspectiva de abordagem dos estudos do it que este trabalho procura se sustentar.
Nesta direção, compreender aspectos simbólicos acerca da doença, como noções de gravidade, incertezas, expectativa de cura e a sua interligação com as experiências dos sujeitos acometidos, possibilita estabelecer um nexo causal com as trajetórias de cuidado engendradas. Observa-se que os conceitos e interpretações acerca dos problemas de saúde e de vida influenciam na escolha dos percursos e processos terapêuticos que atendam às suas necessidades 14,15.
Por isso mesmo, a interpretação dos símbolos e experiências de mulheres com CCU trazem consigo um feixe de elementos que forjam uma multi-determinação dos discursos e práticas. Desta forma, observou-se no discurso de uma das entrevistadas que a causa do CCU foi permeada por uma miscelânea de elementos que se ancoram em um contexto e história de vida que refletem o repertório linguístico, crenças e representações sobre o corpo, a doença e suas experiências em relação ao câncer 16. O poder sobrenatural para extirpar a doença, quase que de forma mágica, também mereceu destaque nesta fala, anunciando significados que escapam às racionalidades tradicionais 17.
Em contrapartida, outras mulheres utilizaram termos biomédicos e de sua experiência prática para classificar a doença, a sua gravidade e a necessidade de busca do tratamento. Para elas, o CCU se materializa quando irrompe sinais de alerta não contornáveis, culminando com a transformação de uma pequena 'perturbação ordinária' como o corrimento, as cólicas, o sangramento e a dor nas costas, em um fato extraordinário que carece mais atenção.
Deve-se destacar, também, que alguns estudos desenvolvidos acerca do CCU no âmbito da saúde coletiva têm demonstrado que o conhecimento escasso por parte das mulheres acerca da doença tem retardado a busca por medidas preventivas e curativas 18,19. O fato de muitas mulheres não reconhecerem medidas de prevenção, como a realização do exame papanicolau, sua finalidade, periodicidade e público-alvo tem gerado consequências práticas importantes como a falta de percepção de risco e detecção precoce de doenças 20.
No entanto, para além de aspectos subjetivos, tal situação também parece guardar relação com uma baixa resolutividade dos serviços, quando da realização do rastreamento oportunístico, incluindo apenas as mulheres que os procuram que lidam melhor com os pudores relativos à avaliação de suas genitálias e que conseguem ter acesso aos serviços.
Quanto às experiências das entrevistadas com o CCU, vê-se o quanto estas interferem nos it. Isso porque, ter uma doença crônica figura um tipo particular de evento que promove uma ruptura na vida cotidiana da pessoa tanto em termos de relações sociais quanto da habilidade de mobilizar e acionar recursos de cuidado 11.
Tomando por base esta definição, observa-se as trajetórias das mulheres M3 e M5 interrompidas pelo advento do câncer e a necessidade de reorganização das mesmas, dos projetos e dos papéis sociais em vista de uma relativa normalização, para que encontrem, novamente, sentido frente aos eventos disruptivos experimentados. Tais mulheres foram impelidas a reconstruir interpretações acerca das suas histórias de vida, redimensionar ações e atividades quotidianas, especialmente aquelas vinculadas à realização do trabalho doméstico, da rotina, dos hábitos alimentares e da frequência ao ambiente escolar. Outro estudo apontou resultados que caminham na mesma direção, inclusive apontando a rede de suporte social como uma arena de cuidado que consegue apoiar e contribuir para a superação da doença 21.
Na tentativa de materializar formas de lidar com a dor e o sofrimento provenientes da experiência com a doença e da significação tecida em torno da mesma, as pessoas recorrem a práticas e comportamentos pautados em racionalidades, ora fundamentadas no saber biomédico, outrora no saber sobrenatural e/ou popular 22. Estes vão compondo e recompondo percursos, não necessariamente unidirecionais e teleológicos, nem racionalizados e premeditados, mas sim viabilizadas pelo contexto sócio-cultural.
Nesta busca por arenas de cuidado em saúde, pode-se captar como o campo biomédico detém uma resposta social importante e culturalmente organizada frente às desordens orgânicas e ao tratamento dispensado pelos serviços 23,24, sobretudo quando se trata de câncer, o qual é temido e apresenta associação com a morte para muitas pessoas 12. Todas as mulheres entrevistadas, a despeito de terem transitado por múltiplos sistemas de cuidado em saúde, aderiram e apostaram no cuidado formal instituído pelos serviços de saúde, notadamente pelos atendimentos nos serviços de alta complexidade, onde a maior parte do tratamento ocorre.
Outro fato que merece destaque é que, com exceção de uma entrevistada, todas as demais procuram o serviço mediante a apresentação de sintomas como sangramentos e cólicas, denotando que os mesmos podem estar associados a estágios mais avançados da doença, cujos tratamentos se tornam mais difíceis e, por vezes, menos efetivos. Possíveis justificativas para esta realidade podem se relacionar tanto com o acesso tardio ao sistema de saúde e a culpa auto-infligida das mulheres por não tê-lo acionado quanto pela baixa resolutividade dos serviços na realização de atividades preventivas organizadas, controle da doença e tratamento oportuno 25.
A demora no diagnóstico, a fragmentação do cuidado e a falta de informação acerca do tratamento biomédico, também foram identificados nos itinerários das mulheres entrevistadas. Em outros estudos, situação semelhante foi retratada, comprometendo assim, a integralidade do cuidado de mulheres já fragilizadas pelo diagnóstico da doença 25,26.
Em vista disso, ao se movimentarem pelos sistemas de cuidado em saúde, as mulheres estruturaram fluxos que as fizeram transitar por arenas informais de cuidado antes e depois da busca pelas arenas formais. Vê-se, portanto, que coexiste um sistema plural de cuidados à saúde implementados pelas mulheres com CCU, situação que condiz com os achados de outros trabalhos quando outros eventos são investigados 27,28.
O acionamento integrado de diferentes arenas de cuidado e práticas terapêuticas se dão quando ocorre a percepção do quão capazes são de dar conta de solucionar o problema, adiar complicações ou amenizar o sofrimento, aludindo à limitação da abordagem biomédica baseada exclusiva mente na nosologia clínica homogeneizante e nos tratamentos estritamente prescritos, protocolizados e cientificamente comprovados 29.
Contudo, vale ressaltar que o sincretismo das escolhas pelas arenas de cuidado informais e formais, também pode resultar de deficiências desta última, impelindo famílias, sobretudo de classes populares, a deterem maior flexibilidade de interação com as redes assistenciais 1, fato que é ilustrativo das mulheres que foram entrevistadas neste estudo.
Considerações finais
O adoecimento pelo CCU compreende um processo complexo, o qual envolve múltipla determinação. Deste modo, a reconstituição de itinerários terapêuticos de mulheres com CCU despontou como uma necessidade, haja vista que a sua incidência e mortalidade mantém-se em crescimento no país a despeito das medidas governamentais empreendidas.
Pôr o discurso das mulheres adoecidas no centro concorreu para desvelar significados e experiências não registrados nas estatísticas vitais e que, por isso mesmo, podem permitir uma maior aproximação dos sentidos, modos de lidar com a doença e estratégias terapêuticas valorizadas e acionadas por estas mulheres.
A análise dos itinerários terapêuticos de mulheres com CCU revelaram distintas lógicas interatuando: externalização de signos e significados da doença a partir de elementos biomédicos e sobrenaturais, experiências de adoecimento caracterizadas por sentimentos de dor e sofrimento, superação e enfrentamento, quanto o acionamento de estratégias terapêuticas de caráter empírico, popular e biomédico. Esta última modalidade de estratégias se revelou limitadora dos itinerários face às fragilidades caracterizadas pelo diagnóstico tardio, acesso a múltiplos serviços e falta de informação entre eles.
Estes itinerários tecidos a partir de conexões com familiares, profissionais de saúde, membros da comunidade e com a religiosidade, denotam que não existem padrões únicos e definidos nas trajetórias empreendidas em busca do cuidado em saúde, e o quanto a abordagem profissional pode encontrar limites ante a não consideração dos aspectos sócio-culturais e subjetivos.