Introdução
A mortalidade infantil (MI) é calculada com base no número total de óbitos de menores de um ano de idade, podendo ser dividida em dois períodos: mortalidade neonatal (de 0 a 27 dias) e pós-neonatal (de 28 a 364 dias) 1. As taxas de mortalidade infantil são alguns dos principais indicadores para se medir a situação de saúde de um determinado local, tendo em vista que essas taxas são muito sensíveis às condições de vida de sua população 2.
A mortalidade neonatal pode ser subdivida em neonatal precoce (de 0 a 7 dias) e neonatal tardia (de 8 a 27 dias), sendo a primeira o período em que se concentra a maior prevalência de óbitos infantis 3. Só em 2015, os óbitos neonatais precoces foram responsáveis por 41 % dos casos de mortalidade infantil no Brasil, seguidos pelos pós-neonatais (de 28 a 364 dias) com 33,4 % 4.
No cenário epidemiológico, as doenças consideradas como favoráveis são as principais causas da MI, destacando-se as condições originárias do período neonatal, as anomalias cardiovasculares congênitas e a presença de pneumonia entre as crianças menores de 1 ano 5,6. A esses fatores, somam-se outras complicações, como a prematuridade, o baixo peso, as infecções e os traumas ao recém-nascido 7. Um dado importante e evidenciado pela literatura é que são nas primeiras 24 horas de vida que ocorrem o maior número de óbitos neonatais precoces, evidenciando, assim, a necessidade de uma maior atenção ao pré-natal, parto e nascimento 8.
Estudos mostram que a melhoria de indicadores sintéticos, aqueles que conseguem expressar uma medida resumo 9 - como o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) -, estão diretamente relacionados à redução de óbitos infantis 10,11. Outro indicador que demonstra essa relação com a MI é o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) 11. Apesar de utilizarem as mesmas dimensões em suas composições, esses índices utilizam bases diferentes em suas construções, uma vez que o IDHM faz uso dos dados advindos do censo demográfico e o IDH utiliza os dados da Organização das Nações Unidas (ONU) 10.
Um ponto que merece destaque é a influência das condições de vida nas taxas de MI. Os países em desenvolvimento concentram o maior número de óbitos nessa faixa etária, sendo as classes mais pobres e médias as que apresentam o maior número de casos, podendo chegar a 99 % 12. Esses dados evidenciam a influência direta das condições de vida com pobreza, analfabetismo e dificuldade de acesso a serviços de saúde, fatores que estão entre os principais complicadores para a assistência à saúde 13.
Ademais, a MI é uma preocupação mundial e consta como um dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) definidos pela ONU na Cúpula do Milênio, realizada em 2000, com o estabelecimento de 14 metas a serem alcançadas até o ano de 2015 por todos os seus 191 Estados, sendo a redução da MI a dois terços do apresentado em 1990 a meta de número 4 14.
As taxas de mortalidade apresentam um grande potencial para verificar o desenvolvimento social de um país ou de uma determinada região que se pretende estudar 15. Além disso, é uma importante estratégia para nortear a tomada de decisão baseada em evidência e definição das políticas públicas voltadas para a saúde da população 1. Diante do exposto, torna-se necessário realizar o levantamento e a caracterização da mortalidade neonatal, a fim de subsidiar a tomada de decisão baseada em evidências. Portanto, este estudo teve por objetivo caracterizar a mortalidade neonatal precoce e tardia no estado do Rio Grande do Norte de 2008 a 2017.
Metodologia
A metodologia de pesquisa foi com base no estudo epidemiológico transversal, de séries temporais, desenvolvido entre novembro de 2019 e janeiro de 2020. Foram utilizados os dados referentes aos óbitos neonatais ocorridos entre o período de janeiro de 2008 e dezembro de 2017 no estado do Rio Grande do Norte por local de residência. Os registros foram coletados por meio do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), originários do Sistema de Informação sobre Mortalidade 16.
O período analisado foi definido pensando na descrição da mortalidade neonatal na última década, sendo o ano de 2017 o último com registro completo no DATASUS. O ano de 2008 completava os dez anos necessários para a descrição desejada. Em razão da natureza pública dos registros, não foi necessária a submissão de projeto ao Comitê de Ética em Pesquisa.
As variáveis sociodemográficas neonatais analisadas foram sexo, tempo de gestação, tipo de parto, peso ao nascer (em gramas), escolaridade da mãe (em anos de estudo), idade do neonato (de 0 a 27 dias) e causa do óbito segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-1O) 17. Apesar do lançamento da CID-11, não foi possível sua utilização em razão da parametrização do banco de dados do DATASUS com essa nova classificação. Também foram coletadas informações sobre os nascidos vivos e o tipo de parto no período estudado. Após a coleta, esses dados foram analisados à luz da literatura a fim de comparar suas características com os parâmetros já elucidados. O teste de qui-quadrado de independência foi realizado para verificar associação entre a mortalidade neonatal e o tipo de parto.
Resultados
A amostra foi composta de um total de 4.531 óbitos, sendo suas principais características sexo masculino (54,71 %), gestação menor de 27 semanas (34,05 %), parto vaginal (49,93 %), peso menor de 2.500 g (68,57 %) e escolaridade da mãe entre 8 e 11 anos de estudo (29,11 %) (Tabela 1).
2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | Total | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | |||||||||||
Masculino | 295 | 269 | 268 | 255 | 254 | 237 | 238 | 252 | 212 | 199 | 2.479 |
Feminino | 216 | 205 | 175 | 180 | 216 | 215 | 188 | 223 | 175 | 187 | 1980 |
Ignorado | 5 | 8 | 8 | 6 | 7 | 10 | 7 | 7 | 7 | 7 | 721 |
Tempo da gestação | |||||||||||
< 27 semanas | 152 | 148 | 123 | 139 | 161 | 161 | 169 | 187 | 145 | 158 | 1.543 |
De 28 a 36 semanas | 199 | 183 | 177 | 141 | 135 | 140 | 128 | 132 | 111 | 128 | 1.474 |
De 37 a 41 semanas | 118 | 102 | 101 | 66 | 67 | 59 | 60 | 87 | 76 | 71 | 807 |
De 42 ou + semanas | 6 | 8 | 1 | 3 | 3 | 1 | 3 | 3 | 3 | 2 | 33 |
Ignorado | 41 | 41 | 49 | 92 | 111 | 101 | 73 | 73 | 59 | 34 | 674 |
Tipo de parto | |||||||||||
Vaginal | 298 | 278 | 224 | 226 | 227 | 217 | 196 | 217 | 181 | 185 | 2.249 |
Cesário | 176 | 167 | 184 | 174 | 190 | 209 | 200 | 222 | 190 | 192 | 1.904 |
Ignorado | 42 | 37 | 43 | 41 | 60 | 36 | 37 | 43 | 23 | 16 | 378 |
Peso ao nascer | |||||||||||
< 2.500 | 351 | 322 | 287 | 305 | 315 | 325 | 319 | 324 | 268 | 291 | 3.107 |
De 2.500 a 4.000 | 104 | 93 | 89 | 79 | 87 | 76 | 57 | 87 | 77 | 72 | 821 |
> 4.000 | 8 | 10 | 6 | 8 | 6 | 3 | 63 | ||||
Ignorado | 53 | 57 | 68 | 51 | 71 | 53 | 51 | 64 | 46 | 26 | 540 |
*Escolaridade | |||||||||||
De 0 a 3 | 54 | 47 | 52 | 49 | 63 | 16 | 37 | 50 | 27 | 43 | 468 |
De 4 a 7 | 121 | 113 | 110 | 111 | 83 | 111 | 101 | 98 | 82 | 74 | 1004 |
De 8 a 11 | 143 | 152 | 111 | 118 | 146 | 144 | 127 | 130 | 125 | 123 | 1319 |
De 12 ou+ | 58 | 45 | 52 | 36 | 34 | 49 | 44 | 59 | 45 | 44 | 466 |
Ignorado | 140 | 12 | 126 | 127 | 151 | 112 | 124 | 145 | 115 | 109 | 1274 |
*Em anos de estudo da mãe
Fonte: DATASUS, 2020.
Os dados referentes ao item ignorado foram mantidos em todas as variáveis, tendo em vista sua importância para a contagem correta e elucidação de um problema existente: o não preenchimento ou preenchimento incorreto dos campos existentes nas declarações de nascidos vivos (DNV) e declarações de óbitos (DO) 18. Na variável escolaridade da mãe, o percentual referente ao item ignorado foi de 28,11 %.
Apesar de apresentar a gestação inferior a 27 semanas como principal faixa dos óbitos no período completo, entre 2008 e 2011 a faixa entre 28 e 36 semanas apresentava a maior prevalência de falecimentos. Essas duas faixas apresentam um fator comum: a prematuridade. O teste qui-quadrado de independência apresentou valor significativo p < 0,001, mostrando que há associação entre o tempo de gestação < 36 semanas, peso ao nascer ≤ 2.500 g e escolaridade da mãe entre 0 e 3 anos de estudo com a mortalidade neonatal.
Os óbitos neonatais apresentaram uma maior concentração em partos do tipo vaginal, mesmo não sendo a principal prática entre os nascidos vivos (Tabela 2). O teste de qui-quadrado de independência mostrou que existe associação entre o tipo de parto e a mortalidade neonatal p < 0,001. No decorrer dos últimos anos, o Rio Grande do Norte tem apresentado uma tendência no aumento gradativo da realização de cesáreas, conforme descrito na Tabela 2.
Conforme apresentado, a mortalidade masculina foi superior à feminina em todos os anos analisados. A taxa de mortalidade neonatal masculina se mostrou acima da feminina e da geral em praticamente todos os anos, sendo ultrapassada pela geral apenas nos anos de 2016 e 2017, ano em que essas taxas mostraram sua maior aproximação com valores de 8,41, 8,29 e 8,50 respectivamente. Os coeficientes de variação das taxas foram de 0,09 % para a masculina, 0,08 % feminina e 0,06 % geral (Figura 1).
Tendo em vista o registro dos óbitos neonatais e suas causas bases, a predominância dos óbitos por problemas relacionados ao capítulo XVI (algumas afecções originadas no período perinatal) foram amplamente superiores às demais (Tabela 3).
Conforme registro no DATASUS, o ano de 2017 apresentou o menor quantitativo de óbitos neonatais; já 2008 apresentou o maior número. Apesar de apresentar redução em quase todos os anos e uma queda entre o ano inicial de coleta e o final de 23,83 % no número de mortes registradas, em 2012 e 2015 houve um leve aumento em comparação com seus antecessores.
Entre as principais causas base do capítulo XVI, destacam-se as categorias P35-P39, infecções específicas do período perinatal (12,94 %); P05-P08, transtornos relacionados com a duração da gestação e com o crescimento fetal (15,07 %); P20-P29, transtornos respiratórios e cardiovasculares específicos do período perinatal (33,25 %).
Analisando a mortalidade neonatal em suas subdivisões precoce (de 0 a 7 dias) e tardia (de 8 a 27 dias), nota-se a predominância dos óbitos na primeira, sendo responsável por 79,65 % dos óbitos na década estudada (Figura 2).
*CAP-I: algumas doenças infecciosas e parasitárias. **CAP-X: doenças do aparelho respiratório. ***CAP-XVI: algumas afecções originadas no período perinatal. ****CAP-XVII: malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas. *****CAP-XVIII: sintomas, sinais e achados anormais de exames clínicos e de laboratório, não classificados em outra parte.
Fonte: DATASUS, 2020.
Discussão
A prevalência dos óbitos em gestações ≤ 36 semanas observadas neste estudo apresenta o fator da prematuridade. Essa condição é a principal causa de MI no Brasil 19, uma vez que ela traz consigo outros fatores de risco, como baixo peso ao nascer e problemas no aparelho respiratório 20. Diversos fatores estão associados à prematuridade, como a escolaridade da mãe, o tabagismo durante a gravidez, os sangramentos e as infecções do trato urinário 21.
Igualmente, a superioridade do baixo peso ao nascer (BPN) nas mortalidades neonatais já é comprovada pela literatura 8, que evidencia a relação entre BPN e complicações como desnutrição no primeiro ano de vida, suscetibilidade à morbimortalidade, infecções, traumas durante o trabalho de parto e problemas respiratórios 22.
A associação negativa entre a mortalidade neonatal e o parto vaginal verificada na descrição e na análise deste estudo corrobora com os apresentados em outros estudos 23,24, que encontraram uma prevalência de mortalidade maior nos partos vaginais e complicações, como lesão plexo braquiais, hemorragia intracraniana e convulsões 24. Um estudo realizado nos 194 países que integram a Organização Mundial da Saúde (OMS) indicou que a taxa de partos cesáreos foi inversamente proporcional à mortalidade neonatal e materna, indicando ainda que a taxa indicada pela OMS de 10 % a 15 % de cesárias pode ser elevada para aproximadamente 19 % (19 partos por 100 nascidos vivos) 25.
Por outro lado, estudos apontam para as complicações da realização do parto cesáreo, como infec-ções pós-parto, infecção da ferida operatória e necessidade de internação em unidade de terapia intensiva, evidenciando a necessidade de se avaliar os casos e ponderar as vantagens em relação ao risco da realização da cirurgia 25,26.
O aumento do número de partos do tipo cesáreo registrado no estado está em acordo com o ocorrido no restante do país, que apresentou um aumento significativo dessa prática nos últimos anos. Contudo, apesar das indicações de avaliação da necessidade do procedimento 25,26, nos últimos anos as principais causas da realização da cirurgia são as solicitações da parturiente e as indicações médicas sem especificações 27.
Os dados evidenciam ainda uma mortalidade maior para o sexo masculino (Figura 1). Esse dado corrobora com o registrado pela literatura, a qual aponta que a maturação pulmonar dos bebês do sexo masculino é mais tardia, favorecendo o surgimento de problemas respiratórios, uma das principais causas de mortalidade nessa faixa etária 28,29. Outro ponto a ser considerado é que, dos 477.106 nascidos vivos registrados, o número de bebês do sexo masculino foi superior ao feminino em todos os anos coletados (Tabela 2).
Entre os fatores que influenciaram diretamente a redução da MI no Brasil, pode-se citar a melhoria das condições de vida, como acesso ao saneamento básico, à vacinação e à segurança alimentar e nutricional 29. As políticas de saúde e os programas sociais também têm influência direta na melhoria dos indicadores. A ampliação da Estratégia Saúde da Família (ESF), por exemplo, possibilitou a melhoria na atenção à saúde da criança no território, bem como a expansão do Programa Bolsa Família em 2010, ano em que o benefício alcançou a marca de mais de 13 milhões de famílias, deu acesso a uma renda mínima, melhorando o poder aquisitivo e contribuindo com a melhoria nas condições de vida dessa população 30.
Essas mudanças ajudaram o país a alcançar, em 2011, a meta estabelecida pelo objetivo 4 dos ODM 31 de reduzir a mortalidade infantil a dois terços do apresentado em 1990, passando de 53,7 para 17,1 óbitos por mil nascidos vivos. No entanto, as desigualdades sociais ainda repercutem negativamente nos indicadores. As regiões Norte e Nordeste ainda registravam óbitos infantis acima dos 20 por mil nascidos vivos, ao passo que as demais apresentavam o indicador de acordo com o esperado.
Ademais, vale salientar que a utilização de dados secundários deve ser observada com cautela, tendo em conta que seu registro está suscetível a erros de registro; dessa forma, a utilização do CID-1O e seus capítulos foi utilizada para minimizar seus efeitos sobre o resultado. Por se tratar de um estudo de transversal retrospectivo, a relação causa-efeito não pôde ser analisada.
Conclusões
Os dados apresentados neste estudo evidenciam a redução da mortalidade neonatal no estado, porém apresenta outro dado relevante e preocupante - o não preenchimento de informações nas DNV e DO, resultando num quantitativo considerável de itens "ignorado". Outro ponto evidenciado diz respeito à necessidade de uma maior vigilância nos primeiros dias de vida dos recém-nascidos, tendo em vista sua maior suscetibilidade ao óbito.
O fortalecimento das ações que visam à melhoria do período de gestação também merece destaque, principalmente o pré-natal, já que questões ligadas ao óbito infantil, como desnutrição, sangramento vaginal ou infecção urinária, podem ser detectados durante as consultas, reforçando a importância da efetivação da ESF como principal modelo de organização do SUS.
Além disso, é imprescindível que outros estudos sejam realizados em busca de um maior esclarecimento sobre as condições de vida das gestantes e as circunstâncias de nascimentos de bebês que vêm a óbitos, haja vista a intercessão entre os determinantes sociais e os óbitos infantis.