Introdução
Este texto tem por objetivo apresentar elementos da cultura escolar do Seminário Nossa Senhora da Boa Morte no período de 1844 a 1875, correspondente ao episcopado de Dom Antônio Ferreira Viçoso, uns dos difusores do ultramontanismo2 no Brasil. Considerado uma das primeiras instituições de ensino da província de Minas Gerais, no Brasil, essa instituição foi fundada em 20 de dezembro de 1750, pelo primeiro bispo da diocese de Marina, Dom Frei Manuel da Cruz3. Nos séculos XVIII e XIX, mesmo tendo como finalidade primeira a 108 formação do sacerdote católico, tal instituição exerceu papel importante na formação cultura do Brasil Império. Isso porque oferecia o ensino secundário, requisito fundamental para ingresso nos cursos superiores.
Pretende-se entender o funcionamento interno desse estabelecimento para pensar como a cultura escolar foi sendo modificada por Dom Viçoso ao longo de seu episcopado. Nosso olhar volta-se para a ideia de que a escola é produtora de uma cultura própria. Perspectiva essa que vem, desde a década de 1990, subsidiando, através da categoria “cultura escolar”, as pesquisas em história da educação no Brasil. Para isso, analisaremos o contexto situacional em que o Seminário se encontrava quando surge a necessidade de se pensar transformações no modelo educacional dessa instituição. Almejamos perceber quais mudanças foram promovidas no Seminário para implantar um modelo educacional que pudesse, de algum modo, promover uma transformação na consciência religiosa e social dos que ali estudavam. Os Seminários no Brasil, a partir do modelo educacional implementado por Dom Viçoso, serão fundamentais para a moralização do clero. Por fim, analisaremos as normas e finalidades, por meio dos regulamentos que regiam o Seminário. Isso nos permitirá perceber as táticas usadas pelos atores pedagógicos no processo de implementação de uma cultura educacional.
É importante destacar que a pesquisa sobre a cultura escolar pode ser trabalhada de vários modos, com vários fins e sob perspectivas diferentes. Dominique Julia a compreende “como um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”4.
Entendemos que o caso do Seminário de Mariana, no período proposto, é bem sugestivo para este tipo de pesquisa. Julgamos isso por dois motivos: primeiro, por causa do ambiente de crise enfrentado pela própria instituição no recorte temporal proposto; segundo, por causa do ideal reformador de Dom Viçoso que tinha a educação como arma fundamental. Sobretudo, se comparado com os momentos anteriores da história da instituição, essa atmosfera de crise ligada ao ideal reformador do bispo irá promover mudanças significativas na estrutura educacional do Seminário de Mariana.
Sobre a documentação, além de leis e decretos do governo, utilizaremos regulamentos e cartas e textos de Dom Viçoso informando notícias sobre o Seminário. Essa documentação parece não ser a mais apropriada para as pesquisas sobre cultura escolar. Contudo, se pensarmos, por exemplo, na definição de Viñao Frago, que afirma que “a cultura escolar é toda a vida escolar: fatos e ideias, mentes e corpo, objetos e condutas, modos de pensar, dizer e fazer”5, podemos, a partir da documentação apresentada, extrair informações que possibilitam a compreensão de certos elementos referentes ao interior do Seminário de Mariana.
Apontamentos contextuais
Da fundação em 1750 até 1844, ano do início do episcopado de Dom Antônio Ferreira Viçoso, o Seminário de Mariana enfrentou vários problemas que abalaram seu funcionamento. Nesse sentido, trata-se um período de instabilidade, pois às vezes funcionava bem, às vezes funcionava mal e às vezes nem funcionava.
No período mencionado, pelo menos três grandes problemas, no âmbito educacional6, afetaram seu funcionamento, a saber: a carência de professores; questões morais e dificuldades financeiras. A carência de professores, por exemplo, pode ser observada em vários. A vinda dos padres jesuítas para o Seminário, em 1749, durante o episcopado de Dom Frei Manuel da Cruz; a chegada dos padres franciscanos, em 1821, sob o episcopado de Dom Frei José da Santíssima Trindade7, e, finalmente, a chegada dos lazaristas em 1849, com Dom Viçoso, foram, de algum modo, motivadas pela necessidade de se ter professores capazes de atender às nuances políticas, morais e educacionais do Seminário.
O problema moral foi causado, sobretudo, nos momentos em que a diocese estava em sede vacante ou sobre a administração de procurados, pois, depois da morte de dom Frei Manoel da Cruz (1764), primeiro bispo da diocese, até 1772,
a prelaziafica em Sede Vacante, algo que vai afetar profundamente a estrutura do seminário. Nesse período, a diocese foi administrada pelo Cabido - uma espécie de conselho. De 1772 até 1780, procuradores a gerenciaram, porque dom Joaquim Borges de Figueiroa (bispado: 1771 - 1772) e dom Bartolomeu Manuel Mendes dos Reis (bispado: 1772 a 1777) não foram à diocese. Isso também teve grande impacto no seminário. Por falta de uma liderança e referência eclesiástica há, nesse momento, um declínio moral na formação religiosa no seminário. Tal fato só começará a ser resolvido com a chegada de dom Viçoso a Mariana no século XIX8.
É importante destacar o problema moral, porque uma das características ultramontanas de Dom Viçoso foi sua preocupação com a formação do clero, por isso, a educação dos sacerdotes recebeu uma atenção particular em seu projeto reformador9. O ultramontanismo desse prelado se opunha a valorização da autonomia das igrejas nacionais; a autoridade dos reis sobre a igreja e a superioridade dos concílios ecumênicos sobre o poder papal10. Assim, era contrário a tese do galicanismo, que era uma “doutrina católica francesa caracterizada por um predomínio do Estado sobre a Igreja Católica, com marcado sentimento nacional, tendo por isso forte repercussão política”11. Em oposição ao galicanismo, o ultramontanismo defendia uma maior autonomia da igreja perante o poder civil e a submissão das igrejas regionais ao papado.
Além do problema de carência de professores e do problema moral que se arrastou por algum tempo no Seminário, tem-se também o problema financeiro. Depois de 1793, “após a morte de dom Frei Domingos da Encarnação Pontével (bispado: 1778 - 1793), quarto bispo de Mariana, a diocese fica novamente sobre administração do Cabido até 1798, com a chegada dom frei Cipriano de São José (bispado:1797-1817)”12. Nesse período, devido à má administração do Cabido, o Seminário passou dificuldades para quitar os salários dos professores.
Esses três problemas receberão especial atenção de Dom Viçoso na condução do funcionamento do Seminário de Mariana. Na verdade, o bom funcionamento dessa instituição dependerá da solução desses problemas. Ou seja, o Seminário, no período de Dom Viçoso, terá que fornecer respostas a essas questões. Primeiro, em relação aos atores pedagógicos; segundo, em relação ao problema moral, que, na perspectiva ultramontana desse bispo, é central, e terceiro, a questão financeira que impediria o funcionamento da instituição, sendo assim uma condição fundamental para sua existência.
Além desse contexto problemático da própria história do Seminário, é na conjuntura do ensino secundário do Brasil Império que se deve pensar o papel dessas instituições. No que diz respeito ao ensino preparatório para as academias no período imperial, é impossível ignorar o papel desses estabelecimentos. Segundo Haidar, nos tempos das colônias, eles foram considerados “importantes focos de irradiação da cultura”13. Tais instituições, segundo Primitivo Moacyr, “gozava[m] no Império de uma quase completa autonomia. Aos prelados diocesanos cabia a organização didática e administrativa dos Seminários”14. No entanto, por causa da escassez de rendimento das Mitras do Brasil, os auxílios financeiros vindos do governo eram fundamentais para a manutenção dos Seminários. Em troca, eles deveriam oferecer educação gratuita a certos números de meninos pobres e permitir certa ingerência do governo na vida interna da instituição15.
A partir de 1851, foram numerosos os decretos do governo central relativos aos Seminários Episcopais. Isso, segundo Haidar, por causa do “estado de decadência e de abandono em que jaziam” essas instituições16. O próprio Seminário de Mariana, em sua história que antecede ao episcopado de Dom Viçoso, é exemplo desse estado. Já no período de Dom Viçoso, será recorrente a entrada de dinheiro público para reforma e manutenção dessa instituição de ensino.
Durante todo o período imperial brasileiro, o ensino secundário manteve o predomínio do currículo humanista, conforme destacado por Souza, que investigou a renovação do currículo do ensino secundário no Brasil. Esse currículo era “caracterizado pela primazia do ensino das línguas clássicas (Latim e Grego) e das línguas modernas - Português, Francês, Inglês, Alemão, Italiano - e, outras disciplinas de humanidades como Filosofia, História e Geografia”17. Com debates em torno da ampliação dos estudos científicos, motivados pelas necessidades da sociedade moderna, que se intensificaram a partir da década de 1920, foi somente na República que a realidade do ensino secundário foi alterada. Desse modo, o 112 modelo desse segmento de ensino, que vigorou no Brasil Imperial, é caracterizado por um currículo humanista. O mesmo encontrado nas casas de formação do clero no Brasil, os Seminários.
Elementos da Cultura Escolar do Seminário de Nossa Senhora da Boa morte
Durante 31 anos Antônio Ferreira Viçoso foi bispo da diocese de Mariana (1844-1875). Por causa da condição imoral do clero em Minas Gerais e no Brasil, a esperança desse bipo por um futuro melhor estava “na criação dos candidatos ao clero”. Em um ofício de 9 de 0 janeiro de 1850, o prelado afirmava: “E só me nutro da esperança de um melhor futuro na criação dos candidatos ao clero”18. Sete meses após sua chegada a Mariana, o Seminário foi reaberto, e as aulas recomeçaram. Aqui é importante salientar que, no período da chegada de Dom Viçoso a Mariana, o Seminário estava fechado e prédio dessa instituição, bastante danificado.O período em que Dom José da Santíssima Trindade, último bispo de Mariana antes de Dom Viçoso, exerceu seu episcopado, juntamente com o período de Sede Vacante (18351844), resultou em sérios problemas físicos para o Seminário. Esses problemas foram agravados especialmente durante o ano de 1842, quando o Seminário foi utilizado como quartel para as tropas do governo devido à revolução liberal19. Segundo Andrade,
com a Revolução Liberal de 1842, Minas Gerais foi sacudida pela mobilização militar rebelde e, como desdobramento das derrotas, o ensino chegou a ser afetado. Muitos professores e lentes foram demitidos ou sofreram suspensão com prejuízos para a vida e o funcionamento de alguns colégios. O do Caraçafechou as portas em 24 de agosto de 1842; o seminário de Mariana foi transformado em quartel dias depois e o de Nossa Senhora da Assunção, Ouro Preto, fechou-se me dezembro do mesmo ano”20.
Sobre a condição do prédio do Seminário após a saída das tropas do governo, Pimenta, ex-aluno e ex-professor da instituição no período em questão, afirmou: “é provável que [o governo] pagasse a hospedagem com bons estragos na casa”21.
Nos primeiros meses após sua chegada a Mariana, Dom Viçoso começou a restauração do prédio do Seminário. Ele modificou a estrutura física interna, substituindo os cubículos por grandes dormitórios coletivos, “aos quais prestavam melhor a vigilância”22. Essa alteração resultou em um considerável aumento na capacidade de alojamento do edifício. Para ajudar na ilustração dessa instituição, apresentamos na FIG. 1 a pintura de 1853 produzida por Herman Burmeister, que retrata a frente do Seminário e uma das laterais.
Fonte: BBM (2023). Disponível em https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3415>
Figura 1 - Pintura do Seminário, obra de Herman Burmeister, 1853
Tais reformas nos remetem a noção de espaço escolar de Viñao Frago. O espaço escolar, entendido como uma forma silenciosa de ensino que não é neutra, mas simbólica e com vestígio das características dos habitantes locais, fornece-nos uma chave de leitura do espaço físico educativo do Seminário. As reformas e as mudanças promovidas pelo bispo vão, de algum modo, alterar o habitus daquela instituição. Segundo Viñao Frago, “qualquer mudança na sua disposição, como lugar ou território, modifica a sua natureza cultural e educativa”23. Assim, o espaço escolar, por mais que seja silencioso, educa. Deste modo, as mudanças nos espaços internos do prédio, com a finalidade de vigilância, fazem-nos acreditar que vigorava uma noção de educação com Dom Viçoso que utilizava os elementos do ambiente educativo como tática para a implementação de uma cultura escolar pautada no rigor moral.
Além da alteração no prédio, mudanças de ordem acadêmica foram promovidas com a finalidade moral. Como a instituição recebia estudantes que não almejavam a vida religiosa24 (chamados de colegiais), o prelado, “movido ainda pelo aumento considerável de alunos logo nos primeiros anos do bispado, separou os alunos do curso teológico - também conhecido como seminário maior, sendo exclusivo para os candidatos ao sacerdócio - dos estudantes de humanidades - ou seminário menor”25. Para esse fim, fez as repartições necessárias nos prédios26.
Outro fator, que reforça a tese do rigor moral, está relacionado aos regulamentos (ou estatuto)27. Em 1845, Dom Viçoso apresentou um novo regulamento para o Seminário, que, ao contrário dos outros documentos da própria instituição, era mais direto e conciso, e dava ênfase a ordem, a disciplina e o silêncio como elementos básicos da educação do Seminário. Essas noções são evidenciadas logo no primeiro artigo, que descreve o Seminário como instituição destinada a instruir os jovens na virtude e na ciência, “dispondo-se assim cristãmente para uma nova vida”28, pautada pela ordem, pela disciplina e pelo silêncio.
Ao final do regulamento escrito em 1845, há uma seção intitulada Ordem nos dias de aula, a qual descreve detalhadamente os horários das atividades diárias, incluindo o horário das aulas, como se lê abaixo:
5 ½ levantar. 5 – Atos da manhã em salões, ajoelhando no meio um atrás dos outros. 6 Estudo com silêncio rigoroso. 7 Missa, e depois almoço. 8 Estudo em silêncio rigoroso. 9 ½ aula por duas horas. 11 – jantar e recreação. 3 ½ aula por duas horas. 5 ½ cantochão para os Eclesiásticos e recreação para os mais. 6 Terço e lição espiritual por meia hora. 6 e ½ estudo em silêncio zigoroso. 7 ceia e recreação até 8 e meia. 8 ½ exame e recolher-se. É permitido até as 10 o estudo, e então se devem apagar as luzes particulares29.
A categoria de tempo escolar de Viñao Frago (1995), entendida como estrutura não neutra nem formal, que refle certos pressupostos psicopedagógicos, valores e formas de gestão, permite-nos pensar a “modalidade temporal micro” da instituição. Esta se refere à organização das unidades estabelecidas pela escola, como o ano letivo, semestre, trimestre, meses, semanas dias, manhã e tarde. Em outras palavras, abrange os horários reservados para as atividades educativas que, no caso do Seminário, não se restringiam somente ao aparato acadêmico que organizava a vida intelectual.
O horário de estudo era distribuído entre atividades acadêmicas, recreação, orações, refeições e descanso. A dimensão acadêmica ocupava a maior parte do tempo, perdendo apenas para o período de descanso. Era destinado um período significativo, de sete a oito horas diárias, para os estudos: quatro horas de aulas, somadas a três horas de estudos pessoais, ou até quatro, considerando uma hora após o exame noturno. Essa alocação revela uma atenção intensa à formação acadêmica dos estudantes. A organização do dia, indo além da dimensão acadêmica - embora central -, permite-nos compreender o Seminário como uma escola que se articula internamente, mesmo que de maneira moralizante, para que todas as atividades fossem educativas.
Essas prescrições permaneceram até 1856, quando uma nova rotina, imposta por uma nova ordem para os dias de aula, entrou em vigor. Tal ordem foi escrita pelos padres Lazaristas. Tanto Dom Viçoso quanto Dom Frei Manoel da Cruz perceberam a necessidade de confiar a direção do Seminário a uma congregação religiosa especialista em educação. Isso foi realizado ao transferir as responsabilidades educacionais para os padres lazaristas, em um processo que ocorreu em três fases distintas.
A primeira fase ocorreu de 1849 a 1852, quando os primeiros padres lazaristas chegaram da França, “após o reatamento das relações entre a província brasileira da Congregação da Missão e a Casa-Mãe de Paris”30. Na segunda fase, de 1854 a 1855, parte do Seminário, correspondente ao curso de teologia, foi transferido para o Colégio do Caraça devido a uma epidemia de varíola que assolou Mariana, ficando sob a inteira responsabilidade dos lazaristas que ali residiam. Nesse período, o curso de humanidades foi realocado para a fazenda do Seminário em Paulo Moreira (atualmente Alvinópolis). A terceira fase correspondeu à entrega definitiva do Seminário aos lazaristas31, que “foi efetuada em 1859, por meio de um contrato solene firmado por Dom Viçoso e a Congregação da Missão”32
No regulamento de 1856 não há grandes mudanças em relação aos horários das atividades diárias, contudo, ele apresenta algumas informações sobre o ano acadêmico, como as férias, o período letivo e os recessos. O artigo 8° do regulamento traz informações sobre o período de férias, conforme se lê: “As férias continuam a ter lugar no tempo da seca, isto é, em julho, agosto e setembro; ninguém, portanto pode ir a elas antes do dia 30 de junho, nem será mais admitido o estudante que delas voltar depois de 1° de outubro”. Temos também algumas informações sobre os exames, como é o caso do artigo 7° que diz: “terão dois exames: um na metade e outro no fim do ano, pelos quais julgar-se-á a capacidade dos estudantes para serem premiados e habilitados para passar as aulas superiores”33.
Além disso, o artigo 3° desse regulamento fala da duração do curso de humanidades, que deveria ser cursado em cinco anos, e da estrutura do curso, como se lê:
Todos esses estudos se acham divididos em cinco anos, isto é, três de latim, um de matemática, outro de filosofia, porém, nos primeiros anos de latim estudar-se-á juntamente gramatica portuguesa, ao último poder-se acrescentar o Francês; com as matemáticas se estudarão geografia e com a filosofia, retórica. A lição de catecismo, e de história sagrada terá lugar uma nos domingos e outra nas quintas feiras.
Ainda sobre a dimensão acadêmica, outro ponto possível de ser tratado diz respeito às disciplinas existentes nos cursos do Seminário. Elas, conforme a perspectiva de Chervel (1990), colocam em evidência o caráter eminentemente criativo do sistema escolar, por isso, seu estudo contribuirá para entendermos um contexto específico da cultura escolar.
Devido ao sistema de Padroado, algumas cadeiras dos cursos do Seminário eram públicas e tinham seu estipêndio estipulados por lei. As cadeiras de latinidade, Francês, Inglês, História, Geografia, Aritmética, Geometria, Trigonométrica e Álgebra são inseridas no Seminário pela lei mineira n° 445, de 20 de outubro de 1849. Pela lei n° 500, de 4 julho de 1850, foram anexadas as cadeiras de Direito Eclesiástico e Teologia.
O decreto imperial Decreto n. 3.073, de 22 de abril de 1863 que uniformiza os estudos das cadeiras dos Seminários Episcopais, que são subsidiadas pelo Estado, apresenta algumas disciplinas que recebiam verbas do governo. O Artigo 1° diz o seguinte: “Nos Seminários m Episcopais haverá as seguintes cadeiras subsidiadas pelo governo. Latim, Francês. Retorica e Eloquência sagrada, Filosofia racional e moral, História Sagrada e eclesiástica, Teologia dogmática. Teologia moral, Instituições canônicas, Liturgia e Canto Gregoriano”.
Esse mesmo decreto imperial cria um grande problema para o Seminário, porque o artigo 2° impõe que os professores das disciplinas que recebiam estipêndio do governo deveriam ser nomeados pelo bispo mediante concurso. Porém, neste período, os padres lazaristas já estavam dando aulas no Seminário. Se as disciplinas fossem colocas para concurso, eles teriam que deixar as cadeiras com estipendio do governo para os aprovados. Por isso, em 3 de abril de 1864, Dom Viçoso escreve para o Ministro do Império, José Bonifácio de Andrade e Silva, pedindo para que essa lei não fosse aplicada ao Seminário. Conforme suas palavras:
O Seminário deste Bispado de Mariana está entregue à direção dos Pes. Lazaristas, por uma recomendação que Sua Majestade se dignoufazer ao seu Encarregado de Negócios em Paris, pedindo ao Superior Geral destes Congregados que mandasse Diretores para o Seminário de Mariana. Isto digo para obter do mesmo Senhor a graça de não sujeitar estes Mestres e Diretores às disposições do Decreto n. 3.073, de 22 de abril de 1863. A não ser assimficarei privado do maior bem deste Bispado, que é a reforma do meu Clero, entregue por vontade de Sua Majestade a Mestres e Diretores da França e da Itália, pela sua experiência e conhecimentos. Fiado em que obterei esta graça, continuo a propor os Mestres como até agora o tenho feito e em lugar do Pe. Carlos Vitorino que seu Prelado mandará para outro estabelecimento, proponho para Mestre de retórica e Geografia ao pe. Francisco Xavier de Oliveira, pedindo a Sua Majestade a graça de sua Aprovação. Deus guarde a V Exa, Sr José Bonifácio de Andrade e Silva34.
Não sabemos como se deu a resposta do Ministro, contudo, tudo indica que Dom Viçoso nunca teve problemas com essa questão do concurso de professores. Trindade (1940) informa-nos que Dom Antônio Maria Correia Sá e Benevides, bispo que sucedeu Dom Viçoso, recebeu uma circular do Ministro do Império, datada de 23 de novembro de 1877, exigindo que as cadeiras do Seminário de Mariana que recebiam financiamento do Governo fossem apresentadas para concurso em um prazo de seis meses. Em 9 de dezembro de 1877, Dom Benevides escreveu ao Ministro e Secretário dos Negócios do Império, Antônio da Costa Pinto e Silva, questionando essa circular. No início dessa carta, o prelado mencionou, como uma espécie de estratégia argumentativa, que o Governo imperial permitiu que as cadeiras do Seminário não fossem oferecidas para concurso no período de Dom Viçoso35.
Com o estudo das disciplinas, é possível perceber que as grades curriculares do Seminário se tornaram mais complexas à medida que essa instituição se estabilizou financeira, acadêmica e moralmente.Parte superior do formulário Segundo Camello (1986), o livro Lotação das freguesias do Bispado de Mariana, de 1864, no qual aparece a seguinte anotação de dom Viçoso: “Mandei ao Presidente”, apresenta um quadro mais completo da grade curricular do Seminário. Esta era composta das seguintes disciplinas: Língua Nacional, Língua Latina, Língua Inglesa, Língua Francesa, Geografia, Retorica, Aritmética, Álgebra, Geometria, Filosofia Racional e Moral, Teologia Moral, Teologia Dogmática, Instituições Canônicas, História Sagrada e Eclesiástica, Escritura Sagrada, Liturgia, Música e Canto Gregoriano36.
Uma última observação sobre o Seminário se refere a dificuldade financeira da instituição. Tal problema faz com que Dom Viçoso procure outros recursos além daqueles adquiridos com as matrículas dos alunos para manter o Seminário, como é o caso das verbas recebidas do governo. Pimenta, em A vida de D. Antônio Ferreira Viçoso: Bispo de Mariana e Conde da Conceição, apresenta um trecho de uma carta que o Bispo enviou ao Ministro da Justiça dando informações sobre o Seminário e pedindo ajuda financeira. Na correspondência é possível saber também informações sobre a rigidez moral implantada na instituição, como se pode ler:
Este seminário bem provido, como está, de mestres e de edifício, sofre uma falta, preenchida a qual, não terá inveja a algum outro. Cada um dos 6 dormitórios tem um inspetor, que dia e noite vigia sobre sua porção. Ora, da boa escolha deste empregado depende o bom regimen de todo o seminário. Atualmente emprega-se nesta inspeção moços dos que parecem do melhor procedimento, por não haver com que se pague a outros, que nisto se empreguem. Muitasvezes estes são coniventes com seus companheiros, disfarçam suas infrações, por se não malquistar; e insensivelmente perde-se aquele salão, sem que o Reitor venho no conhecimento dos hipócritas, senão quando está tudo podre e infeccionado. Se o Governo quer ter um Seminário normal, mande dar 3 contos anuais ao nosso para pagar aos Professores, e aos inspetores de que falo; então florescerá material e formalmente37.
As fontes de renda da instituição eram diversas. Além das mensalidades dos estudantes e das verbas do governo destinadas ao pagamento de alguns professores e alunos carentes, o Seminário também recebia recursos provenientes da produção de uma fazenda. Adicionalmente, recebia renda do aluguel de algumas propriedades na cidade de Mariana que pertenciam ao Seminário, além dos juros de apólices públicas e das vendas de objetos da instituição.
Considerações finais
As mudanças nos espaços e no tempo escolar promovidas por Dom Viçoso apontam para a noção de educação como algo que extrapola o âmbito puramente conteudista. Aqui está em jogo a valoração da moral como pressuposto da formação humana religiosa. Isso nos permite concluir que tais mudanças contribuíram para a implementação de uma cultura educacional diferente no Seminário de Mariana, se comparada à que vigorava nos anos anteriores ao episcopado de Dom Viçoso. Assim, a cultura escolar, entendida como um conjunto de normas e práticas, deve considerar a finalidade dessas normas e das práticas, as quais variam conforme a época. No caso específico do Seminário de Mariana, o contexto é extremamente instigante, pois as mudanças implementadas nos permitem perceber de forma clara as finalidades das normas e práticas estabelecidas. A rigidez, a vigilância e a disciplina impostas por um ideal reformador de um bispo ultramontano nos fazem perceber que uma cultura escolar foi implementada com o intuito de alterar o habitus dessa instituição.