INTRODUÇÃO
A publicidade possui papel preponderante na sociedade, as imagens e suas mensagens estão por todos os lados, por todos os suportes e espaços midiáticos. É quase impossível sair de casa e não nos depararmos com anúncios e mensagens que invadem nossos corpos, captando nossos olhares e estimulando desejos, sentimentos, sensações e incitando o consumo de produtos e serviços. Dados revelam que, em países desenvolvidos, cada ser humano está exposto a quase um milhão de impactos publicitários ao ano (Dominguez, 2019).
Por outro, não é apenas a publicidade que capta nossa atenção nas ruas e vias dos espaços das cidades, as imagens de intervenções urbanas em grafites, pichações e lambe-lambes (cartazes artísticos ou informativos que são colados em placas, postes e muros das cidades) estão nessas disputas imagéticas e discursivas pela nossa atenção. Interessante que, ao andarmos pelos espaços urbanos, respiramos todos os tipos de imagens, compostas por personagens masculinos, femininos que estão atreladas aos produtos e marcas como chamariz ao consumo.
Nas representações das mulheres nas publicidades, no contexto do Brasil, percebemos que as mensagens acompanham a conjuntura atual buscando trazer diversidade de pessoas e corpos, embora ocorram deslizes que, ao serem percebidos pelos públicos, são expostos nas mídias sociais digitais e boicotados1. No Brasil, marcas de cervejas (como a Itaipava) e de shampoos (como a Dove) estão seguindo timidamente a tendência de romper com as antigas imagens em que as personagens femininas possuem pele branca, olhos claros e cabelos loiros. No entanto, em outras localidades, agora olhando para Barcelona, a publicidade com mulheres na televisão, jornal e revista segue reforçando estereótipos tradicionais (Dominguez, 2019). Os estereótipos são generalizações sobre grupos sociais, características que são atribuídas a todos os membros de um determinado grupo (Mota-Ribeiro, 2005).
Sabemos que estamos inseridos e imersos em um oceano de imagens oriundas dos mais diversos setores da sociedade e a publicidade faz parte desse universo. Além disso, entendemos que as cidades são espaços de linguagem (Orlandi, 2004), em que se cruzam relações de poder e as intervenções urbanas são dispositivos questionadores das estruturas dominantes que dão vozes aos subalternos e oprimidos (Mondardo & Goettert, 2008). Assim como é quase impossível pensar a cidade sem publicidades, igualmente é estranho imaginá-la sem intervenções urbanas e nos discursos que elas possibilitam por meio de materialidades. Nesse sentido, este artigo apresenta reflexões iniciais de uma pesquisa doutoral realizada na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que ganhou enfoque internacional ao ser contemplada com bolsa do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE/CAPES).
Parte deste estudo está sendo desenvolvido na Universidade Autônoma de Barcelona (UAB, Espanha) e, dessa forma, expandimos os campos de observação para outra cidade (Barcelona) tocada pela lógica publicitária. Com essa oportunidade, nosso objetivo aqui é estudar as imagens de mulheres na publicidade exterior e nas intervenções urbanas. Especificamente, perceber os discursos que mais aparecem e fenótipos recorrentes, além de identificar ausências e presenças de marcadores sociais da diferença (interseções de gênero, raça, classe, sexualidade, peso e faixa etária). Analisamos as imagens nas cidades brasileiras de Natal e Recife em comparação com cidade espanhola de Barcelona (Catalunha).
APORTE TEÓRICO-CONCEITUAL: INTERSECCIONALIDADE, IDENTIDADE E FENÓTIPO
A publicidade desempenha uma função socializadora entre os indivíduos, supervalorizando certos padrões estéticos e contribuindo para a difusão massiva de modelos de corpos a serem alcançados. Na conjuntura atual, marcas e empresas têm como desafio lidar diariamente com a representação das diversidades socioculturais e identitárias e precisam se reavaliar constantemente para não aprofundar desigualdades e silenciar outras forças representativas no seio social. Pensando nisso, os estudos sobre a representação da diversidade na publicidade desenvolvidos na Espanha por Lorite García (2018, 2021a) são tomados aqui como referência. Para ele, em um modelo de representação publicitária que tem como objetivo apresentar pessoas, não se admite um tratamento hierárquico e elitista, pois poderá ocasionar efeitos discriminatórios entre as audiências plurais das mensagens e ainda contribuir para fomentar a exclusão social, o racismo e a xenofobia (Lorite García, 2021a).
Neste estudo, tomamos o conceito de fenótipo entendido como características morfológicas de uma pessoa, traços particulares e únicos que geralmente são usados para a delimitação e classificação de grupos culturais com base em sua aparência. Entre os efeitos dessa classificação podemos encontrar a leitura de grupos culturais em termos de desigualdade, com base em características fenotípicas (cor de pele, olhos e tipo de cabelo), focando a atenção na frequência da representação de determinados grupos (minorias éticas, imigrantes), buscando refletir sobre a possível incidência nos fenômenos concomitantes de inclusão ou exclusão social (Lorite García, 2018).
Essa proposta de observar os fenótipos recorrentes nos faz estabelecer conexão com a perspectiva interseccional (Collins & Bilge, 2021; Collins, 2019). O conceito refere-se às formas como os diferentes marcadores sociais (gênero, raça, classe, etnia, sexualidade, idade, peso) interagem entre si, influenciando os modos como experienciamos a vida em sociedade. Carla Akotirene (2020) nos apresenta a interseccionalidade não apenas como conceito, mas também como teoria e ferramenta política e analítica. Pensamos a comunicação em articulação interseccional, os acontecimentos e práticas comunicativas são olhados a partir dessa perceptiva para refletir sobre as relações de poder que estão imbricadas nos discursos midiáticos através de dispositivos de visibilidade que dão preferência para grupos sociais em detrimento de outros.
A publicidade, ao trazer representações hegemônicas, acaba por excluir grupos e invisibilizar outras identidades culturais. Entendemos identidades no sentido trazido por Hall (2006), de que residem no imaginário e no simbólico, podem inclusive ser construídas culturalmente. Fazendo essa conexão entre o conceito de interseccionalidade e comunicação, buscamos pensar as representações de mulheres na publicidade exterior, em anúncios veiculados no ambiente urbano em outdoor, painel e fachada (Franch, 2008) e nas intervenções urbanas em grafite, pichação e lambe (Baldissera, 2019; Silva, 2011; García Canclini, 1990), identificando ausências e presenças de identidades, entendendo que a diversidade necessita estar presente nessas mensagens. É preciso refletir não apenas a ausência de diversidade de mulheres, mas que propostas de diversidade são apresentadas nos discursos sobre as mulheres nos espaços das cidades.
METODOLOGIA: MULTIMODAL E PROCEDIMENTOS DE CAMPO
Como primeiro procedimento realizamos a observação etnográfica, que consiste em ir a campo, produzir a descrição e interpretação do material investigado. O recurso é compreendido como um método de pesquisa qualitativa e empírica, cujo objetivo é apresentar características específicas (Travancas, 2010). Observamos as avenidas Senador Salgado Filho, Hermes da Fonseca, Prudente de Morais, João Medeiros Filho e Roberto Freire em Natal; as avenidas Conde da Boa Vista, Agamenon Magalhães e Domingos Ferreira no Recife; as avenidas de Sants, do Riu Sec, Paseo de Gracia e Layetana em Barcelona. Para a escolha dessas vias, buscamos informações em bancos de dados sobre fluxos de pessoas e veículos. O fator mais importante para delimitação das avenidas foi a localização cujo critério de proximidade com os centros comerciais das cidades e shoppings ajudaram na compreensão de que nesses espaços encontraremos anúncios publicitários. O período de coleta dos dados corresponde a abril de 2021 a novembro de 2022.
Realizamos um levantamento em fichas de informações sobre as cidades na sede da Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana de Natal (STTU), nas páginas da Autarquia de Trânsito e Transporte do Recife (CTTU)2, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)3 e das prefeituras de Natal e Recife. Para obter informações sobre Barcelona, buscamos dados sobre os distritos mais populosos e a concentração de comércios nas páginas do Ajuntamento4 da cidade. Escolhemos as vias localizadas nos bairros de Sants (população estimada: 183.770), Ciudad Vella (população estimada: 266.857) e Grácia (população estimada: 149.826), já que estão entre os seis mais populosos da cidade e possuem, em sua maioria, mulheres, que representam cerca de 52,4% total da população. Sobre as avenidas escolhidas, Sants é considerada a área comercial mais extensa e antiga de Barcelona - e uma das primeiras da cidade -, e Paseo de Gracia pela concentração de comércios de marcas de luxo e por ser a área comercial mais conhecida e visitada.
Quanto à cidade do Recife, há quase 120 mil mulheres a mais do que homens, cerca de 52,98% (424.405); a população estimada, em 2020, era de 1.653.461 pessoas. A maioria são mulheres jovens, de 25 a 29 anos, e majoritariamente pessoas negras (57,91%). Os bairros do Derby e Boa Vista, onde estão localizadas parte das vias, são regiões comerciais e residenciais, ambientes que favorecem o trabalho de observação. Em Natal, há cerca de 817.590 pessoas e, desse total, a maioria são mulheres, cerca de 52,98%. As avenidas definidas são de regiões com alta concentração de veículos e fluxo de pessoas, além de serem áreas comerciais, residenciais e estão próximas às principais universidades e shopping centers das regiões.
Com base nesses dados, realizamos as etnografias que ocorreram a pé, e os registros dos materiais imagéticos foram feitos com câmera fotográfica bem como outras percepções do espaço seguidas de diário de campo. Este estudo tem caráter comparativo, pois investigamos cidades localizadas em regiões diferentes, no que tange ao espaço (estados e países diferentes) e às pessoas e culturas distintas. Embora com distinções referentes a essas estruturas físicas e geográficas, as cidades são regidas pela lógica do discurso publicitário ocidental e, nesse sentido, é interessante perceber a emissão dessas mensagens. Adotamos parte da proposta multimodal de Lorite García (2021b), que busca analisar nas representações da publicidade as fases de emissão, produção, recepção e os efeitos dinamizadores da mensagem. Consideramos aqui a fase de emissão, em que analisamos os discursos e representações, apresentamos os discursos das intervenções urbanas e suas peculiaridades nas distintas cidades, o que dizem das mulheres e como dizem.
No total, coletamos: em Natal, 32 publicidades com mulheres e 27 intervenções; no Recife, 48 imagens publicitárias e 17 intervenções urbanas com personagens femininas. Somando as duas cidades brasileiras, foram 80 anúncios com mulheres e 44 discursos sobre mulheres em intervenções. Em Barcelona, identificamos 106 anúncios com figuras femininas e 57 intervenções com mulheres. Ressaltamos que, no tratamento dos dados, retiramos as publicidades e intervenções urbanas repetidas. A estratégia da repetição é um recurso comum utilizado pelos anunciantes e agências para alcançar os públicos, como recorda Carrascoza (2004). Observamos isso também nas intervenções urbanas, ao identificarmos cópias das mesmas imagens em uma mesma avenida, apenas alguns metros de distância da outra. A seguir, apresentamos os resultados encontrados (análise da emissão) atrelados às discussões (intepretações).
IMAGENS DE MULHERES NA PUBLICIDADE DE NATAL E RECIFE: AUSÊNCIA E PRESENÇA DA DIVERSIDADE RACIAL, DE CLASSE SOCIAL, PESO CORPORAL, ORIENTAÇÃO SEXUAL E DEFICIÊNCIA
Observamos anúncios em outdoors, cartazes, letreiros, painéis com personagens femininas, em Natal, Recife e Barcelona, e nosso olhar se direcionou para identificar quais dessas publicidades apresentam diversidade de mulheres. Acionamos a perspectiva interseccional para identificar representatividade de gênero, raça, classe, peso corporal, faixa etária, orientação sexual e deficiência. Identificamos cerca de 60 anúncios que apresentam personagens brancas. Os anúncios que figuram mais representativos, ao trazerem personagens não brancas, são majoritariamente os do Recife, cerca de 16, em Natal, apenas três. Os dados reforçam, mais uma vez, que a capital potiguar permanece invisibilizando mulheres negras, como apresentado em pesquisa realizada nos anos de 2017 a 2019 (Nunes, 2019).
Ao interseccionarmos a análise para o conjunto classe social, a maior parte, cerca de 68, são de classe média e alta. Essa identificação foi realizada através do tipo de anunciante, caracterização (vestimenta) das personagens e profissão. Quando o produto ou serviço correspondem à pandemia (Covid-19), aos problemas ortodônticos (restauração de caries, implantes e aparelhos dentários), à ascensão social, por meio de ingresso na educação superior, e à realização de empréstimos financeiros, os anunciantes apresentam personagens femininas que são negras e pardas (ver figura 1). O fato principal de protagonistas negras aparecerem na publicidade dá-se por aspectos econômicos, pois as marcas querem atingir esse público. Os problemas dessas representações é que acabam impondo aos grupos papéis inferiores e referentes à ascensão econômica e social (Leite, 2016).
Quanto ao peso corporal, as personagens possuem majori-tariamente o "corpo padrão", cerca de 73, ou são magras ou fitness, reiterando a cultura da leveza (Lipovetsky, 2016). Quando são fitness ou musculosas, aparecem em anúncios de academias de ginásticas e produtos fitness (ver figura 3). Nos chama atenção o anúncio da marca Magrass (clínica de emagrecimento - ver figura 2), em que o anunciante traz uma personagem magra para convidar outras mulheres a perder peso corporal. Ao lado dessa imagem tem outras personagens que, embora não sejam super magras como a primeira, ainda assim continuam sendo magras e necessitam, segundo o anunciante, recorrer ao emagrecimento.
O texto é provocativo quando diz "seja o melhor de você", porque apresenta o discurso de individualização, no qual a mulher é unicamente responsável para estar com o corpo "em dia". Além disso, reforça a valorização corporal, em que o corpo carece de ser investido e sempre estar aprimorado, porque na sociedade do consumo e da leveza, não ter um corpo magro é sinal de fracasso. Os anúncios reafirmam a ideia de que, na publicidade, prevalece a individualização, na qual a mulher é a única responsável por seu corpo (Baudrillard, 2010). Os discursos são que elas precisam realizar procedimentos estéticos para se manterem jovens e tudo isso é apresentado como um investimento pessoal.
Além do peso corporal, observamos o marcador geracional (idade) e constatamos a predominância de mulheres na faixa etária jovem, cerca 72 dos anúncios, como as representadas pela marca Moleca (ver figura 4); apenas oito apresentam mulheres idosas. A pouca representação de mulheres idosas nos anúncios nos faz recordar dos estudos de Castro (2015), ao assinalar que a mídia é, em geral, muito "jovencêntrica", a publicidade evita o uso de imagens do envelhecimento nas campanhas, por associá-lo à decadência. A sexualidade é interseccionada na análise e observamos que tipos de relacionamentos entre pares as publicidades representam. Sabemos que, no cenário brasileiro, as relações sexuais são controladas por sistemas religiosos, políticos e sociais. Estamos em um país com heranças coloniais em que imperam os discursos propagados pelas instituições religiosas sobre a sexualidade, em que não se pode fugir de padrões heteronormativos (Foucault, 1988).
As análises indicam que as representações continuam realizando a manutenção e reprodução de padrões heteronormativos, por meio dos quais as relações heterossexuais são idealizadas, normalizadas e institucionalizadas em nossa cultura (Reyes et al., 2017). Como exemplo, observamos, em Natal, um anúncio do Dia dos Namorados da marca La Vedette Deluxe (produtos eróticos - ver figura 5), cuja personagem aparece de maneira sexualizada, seminua, usando apenas uma lingerie, enquadrada desde o glúteo, junto ao personagem masculino que está sem camisa, mas enquadrado do ombro até a cabeça.
As personagens com deficiência são inviabilizadas, nas duas cidades brasileiras (Natal e Recife), pois identificamos apenas um anúncio que as apresentam. Em Natal, o shopping Rio Center apresentou uma boa prática ao não discriminar todos os personagens que aparecem na peça, sendo inclusivo e trazendo, no seu outdoor do Dia dos Namorados, um casal de pessoas com deficiência. Os personagens aparecem ao lado do slogan "amor sempre presente" (ver figura 6). Ao trazer o corpo com deficiência, a publicidade direciona o discurso de inclusão. Sabemos que, na sociedade, pessoas com deficiência sofrem opressões interseccionais do capacitismo, no plano da estigmatização social, o corpo com deficiência também ocupa lugar sob extrema opressão social. Se ao corpo gordo são conectados símbolos de insucesso e derrota, ao corpo com deficiência são somados a estes os sentidos de incapacidade inata, sofrimento, pena e necessidade de superação. (Carrera, 2021, p. 20)
IMAGENS DE MULHERES NA PUBLICIDADE DE BARCELONA E COMPARAÇÃO COM AS CIDADES BRASILEIRAS
Realizamos aqui um comparativo com as imagens de Barcelona e, nesse sentido, podemos dizer que, apesar do quantitativo de anúncios publicitários encontrados ser maior em relação às duas cidades brasileiras (Natal e Recife), a representação da diversidade de mulheres também não é expressiva. As mulheres cis compõem os 106 anúncios, ao interseccionarmos o marcador racial, as mulheres brancas aparecem em 94 dos anúncios, ilustrando a pouca visibilidade de mulheres negras e pardas, por exemplo. Essas mulheres aparecem em apenas 12 anúncios.
Um outdoor que nos chamou atenção foi encontrado em Sants, em que a marca de calçados Deichmann apresenta uma personagem negra, com os pés para cima, olhando para o observador de cima para baixo e, ainda que vestida, o colo e parte de sua barriga são expostos. A personagem está atrelada ao slogan "pisar o céu é levar o melhor por menos" (ver figura 7). A falta de mulheres negras nos estabelece similaridade com as cidades brasileiras, como Natal, a que menos mostrou diversidade racial. Lorite García (2021a), ao analisar a diversidade fenotípica na publicidade de Barcelona, identificou que personagens brancos ocupam a maior parte dos anúncios e são eles os personagens principais das narrativas.
Quanto à classe social, 98 correspondem às camadas médias e altas, especialmente. Quando analisamos por região, em Paseo de Gracia, uma das avenidas que concentra marcas de luxo, como Dior, Prada, Louis Vuitton, Gucci e Chanel, as personagens que aparecem nas vitrines e fachadas são mulheres que aparentam serem bem-su-cedidas profissionalmente e financeiramente. As vestimentas, traço observado, sugerem essa marcação social, em que as roupas são descrições que fazem parte da cultura, são textos culturais, podem indicar origens, grupos, tribos, religiões. Os sapatos, roupas e joias caras fazem parte da caracterização das personagens, como elas estão vestidas e que marcas representam nos levaram à identificação do marcador predominante dessa classe social. O corpo é um texto da cultura que a espelha e projeta. Nossa identidade está inscrita no corpo, que é visível, estampada às claras, através das informações que emanam desse corpo: gestos, danças, vestimentas, músculos trabalhados, expressão corporal entre outras (Campelo, 2003, p. 16).
Ressaltamos que apenas oito anúncios publicitários representam mulheres (pobres), trabalhadoras, aposentadas e estudantes, como no anúncio da clínica Valles Dental (ver figura 8), que traz uma personagem usando roupas que sugerem ser de uma dentista. Ao lado da personagem aparece o slogan "teu sorriso é nossa melhor recompensa". Esses marcadores sociais de classe aparecem em regiões distantes do centro, próximo ao Riu Sec (Cerdanyola del Valles).
A cultura juvenil da mídia é bem exemplificada por Morin (1997), ao descrever as mulheres com características cada vez mais joviais, na qual adolescentes são colocadas como adultas e adultas jovens colocadas como idosas. É bem notória essa preferência pela juventude nos anúncios analisados aqui, visto que apenas cinco das personagens apresentam características de mulheres com mais idade (acima dos 60). As mulheres com características não joviais aparecem em anúncios de bancos e asilos para idosos, como a residência Domus (ver figura 9), em que a personagem idosa aparece sendo cuidada por outra personagem feminina (adulta). Ao lado das personagens aparece a mensagem "nossa tranquilidade é que você se sinta em casa". Com isso, refletimos a tarefa do cuidado, que culturalmente recai sobre as mulheres, ficando a pergunta: porque um personagem (homem) não está nesse papel de responsável pelo cuidado? A figura masculina também não pode estar no papel do cuidador de uma mulher com mais idade e com alguma imobilidade?
Os assuntos da sexualidade, assim como no Brasil, são in-visibilizados, ou seja, não encontramos representações de diversos tipos de casais que fujam dos "padrões". Para Rodrigues e Zanin (2014), os produtos da publicidade são transmitidos e idealizados em cenários com personagens que se enquadram em um padrão heterossexual. Os relacionamentos entre pares quando aparecem são heteronormativos, como no anúncio do musical Pretty Woman (ver figura 10). Recordarmos que, em sua origem (1990), o filme conta a história de um casal que, durante uma viagem de negócios, o personagem Edward (Richard Gere), um executivo, conhece a prostituta Vivian (Julia Roberts). Depois de passar uma primeira noite com ela, ele a contrata para passar uma semana e acompanhá-lo em vários eventos sociais. Já o anúncio do perfume Loewe (ver figura 11) nos intriga pelo erotismo e sexualização, em que a mulher, não branca, com os cabelos cacheados, corpo despido e agarrado ao frasco de perfume (única coisa que a protege da nudez), aparece em todas as avenidas observadas de Barcelona. O anúncio, encontrado dez vezes, reforça os discursos sexistas, nos quais a mulher é usada como recurso de captação da atenção e desejo.
Ocorre ainda pouca representação de mulheres com deficiência, apenas um anúncio foi identificado - semelhante aos de Natal e Recife. O anúncio da marca de loteria Once (ver figura 12) traz uma personagem sentada em uma cadeira de rodas, usando óculos de grau, apontando para o observador de sua imagem e, ao lado do seu corpo, aparece o texto "bem jogado". Esse anúncio foi encontrado 15 vezes em cabines de jogos e tal recurso de repetição faz parte das estratégias comunicativas do texto publicitário, visando a memorização da marca. Fato que chama atenção é que uma das cabines, localizada em Sants, está vandalizada e o anúncio está com o desenho do órgão genital masculino próximo ao rosto da mulher com deficiência.
DISCURSOS INTERSECCIONAIS NAS INTERVENÇÕES URBANAS DE NATAL E RECIFE
Com as intervenções urbanas do Recife, de Natal e de Barcelona, escolhemos ressaltar os discursos porque, em boa parte das imagens, como em pichações e lambes, prevalecem as inscrições. Abordaremos essas inscrições com objetivo de verificar a recorrência dos discursos nos grafismos, pichações e lambes sobre as mulheres, que temáticas são abordadas e se estão relacionadas com as questões interseccionais. Considerando que as intervenções urbanas têm no seu cerne a carga ideológica e cunho crítico sobre questões políticas, econômicas e sociais, como afirma Silva (2011), buscamos mostrar os discursos e as questões que perpassam a vida cotidiana das mulheres.
Contabilizamos 44 intervenções urbanas, cujas palavras mais recorrentes contidas nas inscrições são: aborto, gravidez, feminicídio, feminino, mulher ou mulheres, sexo, prostituição, legitimação, violência, vagina, agronegócio, 8M, mulheres negras, Marielle Franco, Bolsonaro, Temer, Ele não, mídia, Globo, corpo, descolonize, mães e feminismo. Além das palavras, as personagens ou figuras (partes do corpo) que mais aparecem são de vaginas. Observamos, inclusive, um outdoor da Unic car, empresa de automóveis, que trazia um personagem masculino, com uma vagina desenhada no rosto. Ao lado do personagem masculino encontramos a pichação "# aborto legal já, a hipocrisia gera hemorragia, 8M". A intervenção ocorreu próximo ao Dia Internacional das Mulheres, na avenida Senador Salgado Filho, principal via da cidade de Natal.
Outras personagens aparecem nuas, sangrando, faltando parte de um dos seios, com a vagina coberta de pelos, os corpos aparecem com cicatrizes e marcas de estrias, flacidez, carregando uma criança nos braços sugerindo uma representação maternal. Além disso, há personagens negras e indígenas, como o mural exposto em Natal, que traz a imagem de Marielle Franco, socióloga, política, feminista e militante do Rio de Janeiro, assassinada em 2018.
Temáticas | Discursos interseccionais |
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Feminicídio e racismo | Aborto ilegal=Feminicídio de Estado, Violência contra a mulher. Aumento principalmente entre as mulheres negras. Mama África, Vidas negras importam. Não é crime dizer a verdade. Nenhuma a menos. |
Questões de classe, políticas e antissistemas | Terra trabalho, direito de existir, mulheres em luta, não vão sucumbir. Fora Bolsonaro. Fora genocida. Marielle Franco vive. Marielle presente. Ele não. Mais mães no corre. Explode Globo. Pela mídia. Fora Temer. Ditadura nunca mais. |
Direitos sobre o corpo e a sexualidade | Descolonize seu corpo. Sexo. Regular a prostituição é legitimar a violência. Vagina. Aborto legaliza: a hipocrisia gera hemorragia. Gravidez forçada é tortura. Autoconhecimento liberta. |
Feminismo | Feminismo. Feminino. 8M. Mulheres livres. |
Maternidade | Parabéns, mães. Mais mães no corre. |
Fonte: elaboração própria.
As temáticas mais abordadas são feminicídio e racismo, com inscrições como Aborto ilegal=Feminicídio de Estado, Violência contra a mulher. Aumento principalmente entre as mulheres negras. Mama África, Vidas negras importam. Nenhuma a menos. Nos chama atenção a recorrência da pauta do aborto nas cidades de Natal e Recife. Como se sabe, a prática do aborto no Brasil é um tabu social, historicamente associado às questões religiosas e políticas, embora centenas de mulheres morram ao realizar o procedimento de forma ilegal em clínicas clandestinas. No país, o aborto induzido é crime, previsto no Código Penal desde 1984.
As temáticas da violência do racismo e do feminicídio também aparecem, como no lambe encontrado na avenida Hermes da Fonseca, em Natal, em frente ao shopping Midway Mall, com a inscrição "Violência contra a mulher. Aumento principalmente entre mulheres negras". E a pichação "nenhuma a menos" ao lado do símbolo querepresenta o feminismo, na avenida Conde da Boa vista, no Recife. A questão da violência e opressão patriarcal nessas intervenções urbanas acompanha o cenário atual, em que se observa um aumento no número de casos de violência contra as mulheres durante a pandemia de Covid-19 - cerca de 49%, segundo a Confederação Nacional de Municípios5. O Rio Grande do Norte, por exemplo, foi um dos estados com maior crescente e, se interseccionarmos, as mulheres negras são as mais afetadas com aumento de 67%.
As questões de classe, políticas e antissistemas também são apresentadas nas intervenções urbanas, como no caso dos discursos Marielle Franco vive e Fora Bolsonaro. Nos chama atenção esses contrapontos discursivos em que se tem, de um lado, a imagem da mulher negra, oriunda da periferia, vereadora e ativista dos direitos humanos (especialmente das mulheres negras do Brasil), que foi assassinada, em 2018, junto ao seu motorista (Anderson Gomes). Marielle Franco tornou-se símbolo de luta contra as desigualdades sociais no país e diversos murais com frases que remetem ao seu legado e memória foram elaborados em sua homenagem, inclusive no Rio Grande do Norte e em Pernambuco. Por outro lado, temos a imagem do ex-presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, que durante sua campanha de reeleição e mandato presidencial propagou discursos de discriminação das mulheres6 e contra outras minorias sociais.
Os direitos sobre o corpo e a sexualidade feminina são vistos em intervenções urbanas com a figura de uma vagina ou a inscrição do próprio nome em placas, fachadas, postes e outdoors, conforme já descrito. Um desses discursos aborda o autoconhecimento feminino como algo libertador e personagens nuas e despidas são apresentadas em murais fora dos padrões corporais costumeiramente encontrados nas imagens publicitárias. Por fim, temas sobre o feminismo e a maternidade também são observados, como a inscrição 8M, feminismo, parabéns, mães e mais mães no corre7, que aciona a memória do Dia Internacional das Mulheres, data constituída, em 1970, pelas Nações Unidas como marco de protesto contra as desigualdades entre homens e mulheres. Assim, os discursos dos grafites e pichações que abordam esse dia seguem outros protestos, como os que apresentam questões sobre maternidade (em celebração ao Dia das mães) ou reivindicam mais oportunidades de intervenções artísticas realizadas por mulheres.
OS DISCURSOS INTERSECCIONAIS NAS INTERVENÇÕES URBANAS EM BARCELONA
Comparando os discursos sobre as mulheres nas intervenções urbanas de Barcelona, o que observamos são recorrências de temáticas semelhantes às das cidades brasileiras, como feminicídio e racismo. Estas opressões interseccionais aparecem em inscrições que reforçam o combate à violência de gênero como Plataforma unitária contra a violência de gênero e Cerdanyola rejeita toda violência sexista, encontradas em cartazes e grafites, em Cerdanyola del Valles. Em uma praça ao lado do edifício Casal Joves (espaço onde se realizam workshops, atividades, aconselhamentos e orientações profissional para jovens), encontramos intervenções em grafites com as temáticas do femini-cídio e da violência de gênero realizadas por jovens participantes. Ressaltamos que todo o material coletado em Cerdanyola del Valles direciona-se para os assuntos de combate às opressões de gênero e discriminação de pessoas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, transexuais e travestis, queer, intersexuais, assexuais).
Quanto às temáticas sobre o corpo e a sexualidade -semelhante ao Brasil-, a diversidade corporal de mulheres foi identificada nas intervenções que contêm personagens as femininas, como no mural com grafismos de mulheres das mais diversas nacionalidades, raças, faixas etárias e religiões. O mural está localizado em frente à Parroquia de San Esteban, de Ripollet. Além disso, outro mural com personagens diversas foi identificado em Ciudad Vella, com mulheres consideradas importantes na história, como Virginia Woolf, Angela Davis, Maria Aurélia Capmany, Frida Kahlo entre outras. As sexualidades são apresentadas reivindicando direitos como "Pare de LGBTfobia, ser você mesm@, viva e deixa viver" ou rememorando fatos históricos como a primeira manifestação de pessoas LGBTQIA+ em Barcelona.
Temáticas | Discursos interseccionais |
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Feminicídio, racismo e LGBTfobia | Cerdanyola rejeita toda violência sexista. 25N. Sexismo, Racismo, LGBTIfobia. Violência machista. Feminicídio Respeite as Mulheres. Plataforma unitária contra a violência de gênero. 2014: Andaluzia aprovação da Lei Trans Integral. 1969 marca o início da luta pelos direitos LGBTI. Você sabia que com as leis trans, os homens podem competir em esportes femininos? Informação é importante8. |
Direito sobre o corpo e a sexualidade | 1969 marca o início da luta pelos direitos LGBTI. Liberdade sexual: Anistia total -1977 Barcelona primeira manifestação do Orgulho LGBTI. 2014 Catalunha. Aprovação da Lei LGBTI. 2005 aprovação do casamento igualitário em todo o estado. Pare de LGBTfobia ser tu mismo@ vive e deixa viver. Força mamária e ovariana. Vagina9. |
Feminismo | Na escola, a masculinidade não tem papel: unidas contra toda violência - mesa feminista. feminazis Viva, Livres e rebeldes!. Feminismo. Queremos que você viva. 25N. 8M. O feminismo deve ser anticapitalista e antirracista. 8 de março: se pararmos o mundo para. Eu não quero sair para correr e ficar esperando até a noite cair. Homenagem a Frida Kahlo. Eu serei a mulher que eu quero ser. Viva as prostitutas.10 |
Maternidade | Olha mãe, eu não sei pintar.11 |
Questões de classes, políticas e antissistemas |
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Fonte: elaboração própria.
Intervenções sobre feminismo e ações voltadas para uma educação feminista são identificadas, inclusive, referente ao dia 25 de novembro, em que toda região de Barcelona realiza ações de combate à violência machista. A Espanha possui uma legislação avançada (Lei de Violência de Gênero na Espanha -1/2004) e políticas públicas reconhecidas de combate à violência contra as mulheres. Além disso, o governo da cidade catalã coloca à disposição das vítimas apoio psicológico, policial e judicial, no instante em que recebe as denúncias.
Na Espanha, existe a Secretaria de Estado de Igualdade e combate à violência de Gênero, responsável por propagar um guiados direitos das mulheres vítimas de violência de gênero, além de outras políticas públicas de acolhimento. O assunto da maternidade aparece em uma pichação uma única vez e questões de classe, política e antissistema aparecem atreladas a corpos femininos, assim como nas cidades brasileiras. Esses corpos, porém, são vestidos, em ação e posição ativa de batalha, como no mural de grafismo com a inscrição "Ao acaso agradeço três dádivas: ter nascido mulher, classe baixa e nação oprimida. E o azul turvo de ser três vezes rebelde", frase da poetisa catalã Maria Mercè Marçal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A diversidade de gênero, raça, classe, nacionalidade, geracional e orientação sexual é importante em todos os âmbitos sociais. Empresas e marcas precisam estar atentas para a inclusão de pessoas, no que tange à diversidade de mulheres e necessitam quebrar estereótipos nocivos que propagam ideais sociais ultrapassados e invisibilizam a pluralidade das mulheres. A Organização das Nações Unidas (ONU), no Brasil, afirma que somos um país estagnado quanto à representatividade de gênero, raça e orientação sexual. A diversidade limitada é uma preocupação da ONU Mulheres, que critica as representações de mulheres na publicidade brasileira, afirmando que tais imagens as inferiorizam em relação aos homens, o que pode tornar as mulheres mais vulneráveis a todos os tipos de violência de gênero e racial, por exemplo.
Partindo dessa preocupação, neste artigo mostramos que os anúncios publicitários em Natal e Recife são compostos majoritariamente por personagens femininas brancas, magras e heterossexuais. Em Barcelona, as mulheres com essas características também são maioria nos anúncios. Em ambos os países se impõem papéis inferiorizados às mulheres negras. Embora, na Espanha, elas apareçam em campanhas de marcas de luxo, como Chanel, as personagens são colocadas em segundo plano nas imagens, não são elas as personagens principais (protagonista). Os corpos jovens e magros dessas mulheres são evidentes, pois a maioria delas possui a estética de top models de passarela (magras), quando não possuem corpos malhados (fitness).
Embora a questão racial apareça sutilmente nas três cidades, a estética permanece a mesma: jovem, magra, bem maquiada e produzida. O seminu aparece em anúncios de produtos e serviços semelhantes, como de estética e procedimentos cirúrgicos (plásticas). Os anúncios de perfumes são os que mais objetificam os corpos femininos, como o da marca Loewe (Figura 11). Em termos quantitativos, a igualdade de personagens com deficiência praticamente inexiste, já que encontramos apenas duas mulheres com esse marcador social em todos os anúncios analisados. Além disso, uma dessas imagens foi vandalizada com o desenho de um genital masculino próximo ao rosto.
Com relação aos corpos das personagens femininas nas intervenções, quando aparecem são, em geral, personalidades de movimento ativistas, como Marielle Franco, no caso do Brasil. Já em Barcelona, observamos também murais com figuras reconhecidas, como Frida Kahlo. Embora, em Natal, as mulheres aparentem ser mais "reais", elas possuem marcas, pelos e estrias, as personagens femininas nos grafites dessa cidade aparecem com características indígenas, sem um dos seios (o que nos induz a entender que perdeu em decorrência de um câncer de mama). Tanto em Natal como em Recife, observamos a recorrência do termo "vagina"; em Barcelona, identificamos uma inscrição semelhante, com mesmo nome. Por fim, no Brasil, as personagens femininas quando aparecem nas intervenções são menos caricatas e se aproximam mais das características físicas das mulheres em sua diversidade.
Considerando o exposto, com esta primeira análise comparativa entendemos que as imagens hegemônicas predominam na publicidade exterior nas três cidades (Natal, Recife e Barcelona), visibilizando principalmente o fenótipo branco (cabelos lisos e olhos claros); que as mulheres são muito magras, jovens, lisas, sem expressões do tempo e do envelhecimento; e que possuem pouca diversidade racial e nenhuma representação de orientações sexuais diversas. Quanto às intervenções urbanas, aparecem temáticas interseccionais que decorrem do cotidiano das mulheres e contrapõem os discursos publicitários de opressão e discriminação. Pois, ao invisibilizar determinados grupos de mulheres, a publicidade também as oprime. E a ausência de mulheres com deficiência ou outros tipos de intersecções é entendia aqui também como uma forma de discriminação e preconceito.