De forma crônica, os povos indígenas têm enfrentado uma série de percalços para que o Estado brasileiro reconheça e garanta seus direitos diferenciados, sobretudo seus territórios tradicionais. E falar sobre territórios indígenas é reiterar a luta desses povos por dignidade e por seu modus vivendi ancestral, fortemente ameaçados por lógicas ocidentais de exploração e desenvolvimento predatório. Podemos bem observar isso a partir da situação dramática que tem atravessado a realidade dos Yanomami, dos Munduruku e dos Kayapó, por exemplo, por conta de garimpos ilegais presentes em seus territórios, ampliando episódios de violência e crises de emergência sanitária (Almeida et al. 2019; Kopenawa e Albert 2015). Somam-se a isso outras arbitrariedades que escancaram um projeto nacional de invisibilidade (ou etnocídio) dos povos indígenas no Brasil, bem como em outros países das Américas, o qual é profundamente criticado e rebatido por esses atores sociais e seus movimentos de luta e resistência.
Diante das tentativas de intervenção de partes da sociedade nacional e do próprio Estado, os indígenas traçam importantes articulações políticas para revidar essas ações arbitrárias e reverter um cenário profundamente anti-indígena. Acionar as instâncias institucionais do Estado e ocupar espaços sociopolíticos têm sido um caminho possível para pautar as agendas coletivas indígenas, reivindicar seus direitos e exercer sua cidadania diferenciada (Baniwa 2019), provocando inclusive uma indigenização da política ocidental e seus sistemas hegemônicos. Outra importante estratégia está ligada ao fortalecimento e/ou retomada de festas, rituais, estéticas, da língua e outras práticas culturais nas aldeias como forma de afirmação da identidade indígena (a indianidade). Um processo que auxilia na manutenção de direitos territoriais, sobretudo daqueles grupos indígenas tidos como “misturados” devido às situações históricas de contato. Logo, afirmar a indianidade por meio da cultura é uma ação etnopolítica que reitera o pertencimento indígena ao seu território, assegurando-o dessa forma perante o outro - sobretudo os brancos.
Na mobilização desses sinais diacríticos está imbricada a compreensão indígena da história (origem e trajetória) territorializada de seu povo e da relação política, cultural e cognitiva entre passado e presente, permitindo retomar tradições que reforçam sua indianidade. Nesse horizonte, “a atualização histórica não anula o sentimento de referência à origem; até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade” (Oliveira 2016, 215). É a partir dessa “viagem da volta”, como definiu João Pacheco de Oliveira, que diversos povos indígenas historicamente invisibilizados pelo Estado têm buscado seu reconhecimento étnico (coletivo) e reivindicado politicamente por direitos, especialmente aos territórios tradicionais de seus grupos.
Isso é exemplar entre os Tenetehar-Tembé do alto rio Guamá, povo com o qual trabalho de forma engajada desde meados de 2016. Por muito tempo, sustentou-se uma narrativa oficial e acadêmica de que os Tembé do Guamá não eram mais “indígenas de verdade”, pois estavam muito miscigenados e praticamente integrados à sociedade envolvente. A mistura era um argumento que deslegitimava suas lutas e reivindicações, principalmente pela integridade do território. Todavia, os Tembé mobilizaram-se para reverter esse quadro e “reafirmar o seu lugar político enquanto grupo etnicamente diferenciado” (Ponte et al. 2020, 115). A partir dos anos 1970, os Tembé do Guamá efetuaram um processo de “resgate” da cultura e da identidade indígenas junto aos parentes do Gurupi, ampliando sua organização sociopolítica e maior controle do território (Alonso 1996).
Dentre os elementos culturais de retomada nas aldeias do Guamá, o mais expressivo (junto da língua) é a Festa da Menina-Moça. Ela é uma cerimônia tradicional Tenetehar que marca a passagem da infância à vida adulta e auxilia na compreensão das formas de organização social desse povo Tupi-Guarani da Amazônia indígena. E, como os Tembé a chamam (festa), ela será tratada dessa maneira no texto, acompanhando as proposições críticas de Beatriz Perrone-Moisés (2015). Ou seja, é preciso enxergar a Festa da Menina-Moça enquanto uma festa-evento que atravessa a vida Tembé e está imbricada em outras categorias, como ritual e política. Como reitera a autora, faz-se necessário “considerar em conjunto - e sem supostas prioridades - a presença de ‘espíritos’ invocados por xamãs, os cantos que retomam trajetos de chefes antigos, as zombarias e brincadeiras, as corridas de tora e jogos de bola” (Perrone-Moisés 2015, 14).
Diante do exposto, o artigo incursiona pelo universo das dinâmicas e das mediações políticas e socioculturais do povo Tenetehar-Tembé a partir da Festa da Menina-Moça, tomando como fio condutor o campo das artes e estéticas indígenas nesse importante momento de celebração, política e ritual. Ao focar nos vários elementos estéticos - pinturas corporais, acessórios, cantos, danças e performatividade ritual (Müller 2008) etc. - agenciados durante a festa, pretendo compreender o processo de fabricação1 e transformação dos corpos indígenas e as relações cosmopolíticas tecidas nesse contexto de festa para os Tembé, o qual está centrado na produção dessas corporeidades nativas e liga-se tanto às dinâmicas territoriais desse povo quanto às suas mobilizações etnopolíticas locais. Aqui, percebe-se a mobilização de uma extensa rede de socialidades, processos relacionais e agências perspectivas que traduzem “meios místicos de reprodução” (Santos-Granero 1986, 658) da vida social do povo Tembé a partir das corporeidades - sobretudo femininas - e das estéticas agenciadas durante a festa.
Vale destacar que, no artigo, também pretendo avaliar como essas metamorfoses perspectivistas do corpo Tembé estão relacionadas com os processos de desconstrução ontológica das diferenças, através do uso estético para captar, permutar e decompor as agentividades extra-humanas e devires outros (Lagrou 2011; Viveiros de Castro 2018). Além disso, como tais transformações observáveis durante a Festa da Menina-Moça explicitam os modos de construção social da pessoa e os sentidos de povo (da gente verdadeira) entre os Tenetehar-Tembé. Afinal, aqui o corpo é ontologicamente traduzido enquanto artefato para ser moldado, sendo construído intencionalmente desde técnicas cerimoniais (xamânicas) que evocam forças sociocósmicas e suas agências (Santos-Granero 2012), fabricando assim “gente” e “território” dentro de uma relação quase metonímica, na qual se observam ainda uma forte produção e exercício da alteridade Tembé a partir da festa e seu processo ritual.
Mas por que compreender a sociedade Tembé a partir da festa e suas estéticas? Em minhas experiências de campo nas aldeias do Guamá, pude perceber como as expressões artístico-estéticas atravessam diferentes momentos da vida desse povo, revelando certos aspectos de sua cosmologia e organização social. Isso torna-se mais expressivo na Festa da Menina-Moça. Porém, as outras etnografias elaboradas sobre os Tembé não deram a devida atenção ao tema, tratando-o de forma tangencial. Assim, gostaria de provocar, com este artigo, novas análises sobre os Tembé que tomem as suas estéticas, seja na festa, seja no cotidiano, enquanto um fio condutor da compreensão etnográfica sobre esse povo, na esteira de outras etnografias e teorizações antropológicas alinhadas a essa temática (Lagrou 2011, 2010; Velthem 2019, 2010; Vidal 2001).
Como os trabalhos etnográficos nesse campo têm demonstrado, as artes e as estéticas indígenas ampliam o entendimento da realidade social desses povos e possibilitam perceber e considerar as diferentes formas de produção, circulação, apreciação e classificação de corpos-artefatos e saberes (técnicos, estilísticos e cosmológicos) entre os grupos indígenas. Elas agregam múltiplos modos de ser, fazer, ver, conhecer e interpretar o mundo - ou os diversos mundos, como descrevem as cosmologias indígenas -, que dão sentido a redes de relação, entendimentos sobre a alteridade e noções cosmopolíticas expressadas no/a partir do corpo-artefato-território (Velthem 2019; 2010). Aqui, esses saberes estéticos são materializados em diferentes suportes que adquirem e/ou induzem agências extra-humanas.
Para além da materialidade, as estéticas ameríndias alcançam ainda domínios que estão conectados a outras técnicas e propósitos, relacionados com a oralidade, a música vocal, os relatos míticos, os cânticos de cura e também com as danças e evoluções coreografadas, com a música instrumental que buscam intermediar interações de muitas ordens, as quais se efetivam entre indivíduos e grupos sociais e, também, com esferas cosmológicas, pontuadas pela importância das relações com os não humanos, e que revelam diferentes sentidos de humanidade. (Velthem 2019, 16-17)
Ou seja, essa multiplicidade de elementos e esferas socioculturais ligados às artes indígenas proporciona a abertura de novos caminhos conceituais na teorização etnográfica. Ao centralizar esse campo de relações que envolve planos sociocósmicos outros, redes de trocas e mediações cosmopolíticas, expressos por meio das múltiplas estéticas indígenas, é possível apreender os modos (e meios) pelos quais esses povos procedem à comunicação/tradução, transmissão e presentificação de um conjunto de saberes técnicos, estilísticos e cosmológicos em artefatos e outros bens culturais - materiais e imateriais -, inclusive nos corpos indígenas em constante fabricação/transformação. Nesse ponto de vista, as artes e as estéticas indígenas contribuem para a compreensão sociocultural da realidade indígena, de como essas sociedades percebem o mundo, dialogam com a diferença e processam a alteridade para a manutenção de uma ordem sociocósmica multiespecífica.
Assim, ao focar no conjunto de estéticas nativas agenciado durante a Festa da Menina-Moça, é possível estreitar melhor as conexões cosmológicas desse momento com a identidade Tembé, sua territorialidade e expressão cosmopolítica. Se fazer festa é fazer política de diferentes modos entre os indígenas (Perrone-Moisés 2015), na Festa da Menina-Moça, podemos ver como a cosmopolítica Tembé conduz as relações sociais entre humanos e não humanos nesse momento. Afinal, temos aqui “uma comunicação transversal entre incomunicáveis, uma comparação perigosa e delicada entre perspectivas onde a posição de humano está em perpétua disputa” (Viveiros de Castro 2018, 171). Essas interações são potencializadas na festa por cantos, danças, grafismos, defumações etc. e igualmente precisam ser controladas pela ação dos pajés, dos cantores e das mulheres. Destarte, cabe destacar a importância das relações de gênero e do papel das mulheres no tipo de organização e (re)produção da socialidade do povo Tembé, tanto na festa quanto no cotidiano.
A metodologia utilizada para a produção de dados neste artigo baseou-se em uma revisão dos estudos antropológicos já realizados sobre os Tenetehar-Tembé, especialmente os do Guamá, e que tratam da Festa da Menina-Moça em maior ou menor grau. E também na etnografia pautada na observação direta e participante como forma de leitura e compreensão da realidade sociocultural estudada e caminho para uma construção (e contribuição) teórica a partir dos dados levantados em campo e traduzidos, de forma interpretativa, por meio da escrita (Strathern 2017; Peirano 2014). Essa teorização etnográfica perpassa uma relação dialógica entre antropólogo/a e comunidade local (os interlocutores), na qual se expressa aquela realidade vivida a partir do emaranhado de evidências empíricas observadas in loco. Para tanto, o exercício de imersão é fundamental para acessar, captar e entender as vivências cotidianas do outro e suas teias de significado culturais (Geertz 1978) que atravessam essas formulações tecidas a partir de nossas investigações etnográficas.
Importa dizer que o campo que dá subsídios ao artigo foi realizado em meados de 2018, nas aldeias Sede e Ytwuaçu da Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG), por ocasião da realização da Festa da Menina-Moça naquele ano. Esse campo foi aqui revisitado para a elaboração do presente trabalho devido à pandemia da covid-19 (Sars-CoV-2), que me impossibilitou de retornar às aldeias da TIARG. Precisei então reavaliar minhas notas etnográficas, cruzando-as com a memória de minhas vivências nas aldeias e com as entrevistas semiabertas feitas com alguns dos conhecedores da cultura Tembé, importantes interlocutores nas reflexões deste artigo. Assim, desenvolvi o meu momento etnográfico, como ensina Strathern (2017, 314-317), para envolver a observação (campo) e a análise (escrita). Com isso, pude estreitar outra leitura sobre a realidade sociocultural dos Tembé a partir das produções estéticas e seu agenciamento xamânico ao longo da Festa da Menina-Moça.
Cumpre aqui elucidar o percurso ético para a construção desta pesquisa, bem como outras que tenho desenvolvido com outros/as colegas, de forma coletiva, junto ao povo Tenetehar-Tembé. As diferentes aproximações com os Tembé, sobretudo das aldeias Sede e Ytwuaçu da TIARG, ocorreram por meio de ações construídas de forma colaborativa com esse povo, entre projetos de pesquisa e extensão coordenados pela professora e doutora Vanderlúcia Ponte desde meados de 2016, cuja equipe de trabalho era composta de seus orientandos à época (aqui me incluo) e de voluntários, ambos vinculados ao Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão (Geipam, Universidade Federal do Pará-Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [UFPA-CNPq]). Na condução desses projetos diversos, metodologicamente, sempre efetuamos a apresentação das propostas de trabalho para a comunidade das aldeias, respeitando os protocolos éticos definidos pelo Comitê de Ética na Pesquisa da UFPA e pelas disposições da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a fim de que os Tembé dessem a anuência coletiva para a realização das investigações em campo a partir dessa consulta prévia, livre e informada. Foi o caso do projeto de pesquisa “Análise das práticas de saúde e doença Tenetehar-Tembé na gestação, parto e pós-parto”, por meio do qual obtive os dados etnográficos utilizados neste artigo, que teve o consentimento das comunidades envolvidas (aldeias Sede e Ytwuaçu) para seu desenvolvimento entre 2016 e 2020. Nisso, minha relação com os Tembé se constrói de forma engajada, como um pesquisador não indígena (ainda que, entre eles, eu ainda seja conhecido como “o aluno da Vanda”), que é sensível e politicamente alinhado à defesa da causa dos povos indígenas, sobretudo dos Tenetehar-Tembé.
Dito isso, cabe frisar que o artigo se encontra estruturado em duas partes centrais. Na primeira, apresento os três principais momentos (Tocaia, Mingau e Moqueado) que estruturam a Festa da Menina-Moça e os processos específicos (socioculturais e cosmopolíticos) que se ligam, aqui, à fabricação e ao amadurecimento do corpo de moças e rapazes que estão numa condição de transitoriedade entre a infância e a vida adulta. Já na segunda parte, enfatizo minhas análises no potencial estético que é agenciado na festa, sobretudo durante o Moqueado, e na construção de corpos quiméricos entre os Tembé, como defino no artigo, a partir das interações potenciais entre humanos e não humanos e entre homens e mulheres. Como observei, tais processos são mediados pelas estéticas indígenas (pinturas corporais, cantos, danças, performance ritual etc.) na festa e oportunizam a construção de novas relações multiespecíficas que bem traduzem as formas de socialidade Tembé. Por fim, nas conclusões, argumento como essas corporeidades e expressões estéticas associadas à Festa da Menina-Moça e à constituição, aqui, de “gente verdadeira” estão no centro de diversas articulações políticas dos Tenetehar-Tembé, principalmente para a defesa e a manutenção de seu território tradicional.
As etapas da Festa da Menina-Moça: Tocaia, Mingau e Moqueado
Os Tenetehar organizam-se em unidades sociopolíticas, constituídas de famílias extensas, que se distribuem em diversos blocos de aldeias ao longo de seus territórios entre o Pará e o Maranhão, ocupando importantes zonas preservadas de floresta tropical na Amazônia oriental. Os Tenetehar-Guajajara atualmente habitam em 18 terras indígenas no Maranhão, enquanto os Tenetehar-Tembé vivem em 4 terras indígenas homologadas no estado do Pará, a saber: a TIARG, a Terra Indígena Turé-Mariquita, a Terra Indígena Turé-Mariquita II e a Terra Indígena Tembé; além de alguns Tembé que vivem em aldeias na Terra Indígena Alto Turiaçu (Maranhão) e em duas aldeias - Jeju e Areal - no município de Santa Maria do Pará, em processo de identificação pela Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (mais conhecido por Funai).
A literatura antropológica compilada sobre os Tenetehar assinala que esse povo da família linguística Tupi-Guarani possui cerca de 400 anos de contato com a sociedade envolvente, colonial e nacional (Ponte 2014; Wagley e Galvão 1961; Zannoni 1999). Foram identificados por viajantes, cientistas e autoridades regionais ao longo dos séculos 19 e 20 enquanto grupos distintos e já em franco processo de aculturação, tendo seus etnônimos fixados de acordo com a distribuição geográfica nessa parte oriental da Amazônia: Guajajara eram os que viviam no Maranhão; Tembé, aqueles estabelecidos no Pará. Porém, essa classificação arbitrariamente construída não espelhava, e não espelha, a forma como esse povo se entendia e expressava sua identidade e sentido de coletividade étnica. Assim, é importante reiterar que Tembé e Guajajara reconhecem-se como um só povo, partilhando a mesma língua (o Tenetehar) e alguns aspectos socioculturais - dentre eles, a Festa da Menina-Moça.
A Festa da Menina-Moça ou Festa do Moqueado (Wyra’u haw na língua nativa) é um tema recorrente em etnografias produzidas sobre os Tenetehar. A primeira descrição sobre essa festa, e outros rituais e práticas culturais, foi elaborada por Charles Wagley e Eduardo Galvão (1961) após expedições etnográficas aos Guajajara, no Maranhão, na década de 1940. Como comenta Emerson Almeida (2019), o trabalho de Wagley e Galvão foi um marco no estudo dos Tenetehar, mantendo-se como importante obra de referência nas pesquisas sobre esse povo até hoje, apesar das ressalvas necessárias. Após anos, a Festa da Menina-Moça retornaria em outros trabalhos etnográficos junto aos Tenetehar a partir de fins dos anos 1990, tanto entre os Guajajara (Almeida 2019; Zannoni 1999) quanto entre os Tembé (Coelho 2014; Pereira 2019; Ponte 2014; Saraiva 2012).
Nesse horizonte, o Wyra’u haw tem sido amplamente referido nos estudos antropológicos como instrumento catalizador das múltiplas dimensões da vida dos Tenetehar, tanto do ponto de vista sociocultural quanto do cosmopolítico. No caso dos Tembé, a partir dessa festa, têm-se observado com profundidade aspectos centrais da cosmologia, de relações de gênero, identidade, produção de corpos e pessoas, papel político da cultura, dinâmicas do território-territorialidade, entre outros (Coelho 2014; Pereira 2019; Ponte 2022, 2014; Saraiva 2012). Em diálogo com esses trabalhos, assinalo, a partir também de minhas observações diretas nas aldeias Sede e Ytwuaçu da TIARG, que a Festa da Menina-Moça consiste num complexo processo ritual-político que se desenrola em diferentes etapas, envolvendo principalmente rapazes e moças em liminaridade2, bem como as pessoas da comunidade (parentes) e os outros (não indígenas e espíritos) que são convidados para participar da festa. Portanto, podemos considerar a festa como um fato social total (Mauss 2017) que nos permite analisar e compreender essa sociedade indígena.
Além de demarcar a transição entre infância e vida adulta para os Tembé, a festa representa um momento de preparação dessas moças e rapazes para desempenhar suas funções sociais na aldeia, após o amadurecimento e a transformação de seus corpos (Matarezio Filho 2017), tornando-se assim homens e mulheres plenos, sujeitos íntegros, de acordo com o sentido do etnônimo “Tenetehar”: a “gente verdadeira”. Nesse processo, são guiados por seus familiares, pelas anciãs e anciões da comunidade e pelos pajés, num importante momento de trocas intergeracionais, transmissão de conhecimentos e formação da memória/alteridade junto aos jovens (Severi 1996). É um contexto extenso, que se processa em três fases principais, no qual se pode perceber e entender como os corpos Tembé são moldados através de diversas técnicas - restrições alimentares, fortalecimento biofísico, estimulação estética etc. - e da associação potencial com a agência dos parentes e, sobretudo, dos espíritos que habitam os muitos estratos sociocósmicos do território Tembé, como as karuwaras3. Sobre a periodicidade para organizar e executar a Festa da Menina-Moça, Bewãri Tembé (pajé em formação - como diz ele -, professor de língua Tenetehar nas aldeias do Guamá e responsável pela organização dessa festa na aldeia Sede) fala o seguinte:
É assim, num tem tempo. Se formou, toma um banho de jenipapo. Aí sai o jenipapo, faz o mingau. Fez o mingau, aí você vai marcar se você quer próximo, longe, no ano, no mês, entendeu. Vai depender de quando você quer fazer a festa, porque, por exemplo, assim... se eu fazer muito perto, aí não vai dá tempo de eu caçar, de eu conseguir os animais que vai ser necessário pra festa, entendeu, que é preciso pra festa. Então, a gente marca um tempo bom que é pra gente conseguir correr atrás desses alimentos, se preparar. (Bewãri Tembé, entrevista realizada em 2018)
Logo, a festa começa quando as moças “se formam”, ou seja, quando têm a sua primeira menstruação. O sangue menstrual demarca o início dos processos de metamorfose do corpo dessas moças e da sua força cosmopolítica na relação com as karuwaras, sendo necessário maior cuidado (e controle) nesse momento através da reclusão e de práticas que vão fortalecer o corpo dessa jovem e sua subjetividade. Entre os rapazes, o início de seu amadurecimento é demarcado com a mudança da voz, ao tornar-se mais grave. Com isso, passam a integrar o processo ritual da festa, junto das moças; porém os rapazes Tembé não passam por reclusão ritual como as moças. Aqui, vemos a centralidade do sangue na marcação ritual para as mulheres Tembé na Festa da Menina-Moça, enquanto indicador e operador da liminaridade feminina.
O sangue possui fortes atributos agentivos na Amazônia indígena, conforme teoriza Elvira Belaunde (2006) , fazendo das mulheres seres/agentes sociais poderosos e, igualmente, perigosos por poderem manipular e administrar esse fluido vital, ao passo que as tornam susceptíveis às ações de espíritos e outros seres existentes no cosmos. Nessa compreensão, o sangue age generizando corpos e atualizando relações cosmológicas entre humanos e não humanos, especialmente a Lua, demarcando a vingança ritual e a busca xamânica por conhecimento. Pelo caráter potencial do sangue que verte na menstruação e no parto, por exemplo, cujo fedor/pitiú tem efeito atrativo aos não humanos, as mulheres são tomadas como seres reimosos e precisam ter essa agência que atravessa seus corpos contida e amansada, inclusive para que sua alteridade não seja capturada e deformada. No caso Tembé, é a Festa da Menina-Moça que direciona esse primeiro processo de controle ontológico a partir da fabricação e do amadurecimento desse corpo feminino - e do corpo masculino, aqui em uma associação potencial às mulheres e suas muitas agências.
Voltando às etapas da festa, após esse momento da menarca, as moças são pintadas com jenipapo e entram num período de reclusão ritual chamado “Tocaia”, permanecendo recolhidas do convívio da comunidade até o fim do ciclo menstrual - entre três e sete dias. Conforme Bewãri Tembé, as mães e as avós são aquelas responsáveis por preparar e cuidar das moças em liminaridade na Tocaia: banhar com o jenipapo, deixá-la em resguardo no quarto até a pintura sair, administrar banhos com água aquecida e ervas, considerados remédios (puràg), e observar sua alimentação, pois elas ainda não podem consumir alimentos reimosos (Maués e Motta-Maués 1978), como arara, paca-vermelha e peixes de couro ou esporão, entre outros. Durante os dias de Tocaia, as moças fazem artesanatos que serão utilizados em sua festa e aprendem com as “mulheres verdadeiras” (mãe, avó, tia etc.) da casa/núcleo familiar a cuidar de seus corpos e da saúde (Ponte 2022).
Aqui, observamos o primeiro momento de uso da tinta do jenipapo nos corpos dessas moças em mudança. Na Tocaia, a menina-moça é completamente pintada de preto com o jenipapo. Isso se repetirá durante a fase do Moqueado, nos últimos dois dias da festa, quando novamente as moças “banham” seus corpos com jenipapo. Em ambos os momentos - Tocaia e Moqueado -, ele é administrado como remédio nessas moças em liminaridade. Isso é importante no processo de fabricação do corpo da mulher Tembé, “tendo a função de ‘limpar’ o corpo da iniciada e lhe trazendo saúde corporal e sabedoria” (Pereira 2019, 58), além de demarcar relações multiespecíficas com as karuwaras - as “donas” do jenipapo. De acordo com dona Pirimina Guajajara (importante conhecedora da cultura), o jenipapo é elemento forte, com características reimosas: ele é pitiú e não se dá com todo mundo. E, como comenta Pirá Tembé (esposa de Bewãri Tembé e importante conhecedora da cultura): “Jenipapo tem dono. Não é todos, né, que podem coisar com jenipapo. Tem gente que não se pinta por causa que tem medo, né, que vai pintar e desmaia... e aí acontece muito” (Pirá Tembé, entrevista realizada em 2018).
Nesse horizonte cosmológico do povo Tenetehar-Tembé do Guamá e em diálogo com as perspectivas apresentadas por Elvira Belaunde (2006) e Agnaldo Pereira (2019) , podemos indicar que o jenipapo é uma planta que apresenta princípios psicoativos um tanto similares ao próprio sangue, tendo odor forte (pitiú) e sendo um “fluído vital” no universo sociocósmico de fabricação do corpo Tembé, tornando-se um potencial operador xamânico de perspectivas. Por sua qualidade ambivalente de atrair e proteger o indivíduo Tembé, o jenipapo pode proporcionar, ao mesmo tempo, uma “troca de pele” e a permutabilidade de pontos de vista a partir de seu uso nas pinturas corporais. Dessa forma, avalio que relacionar sangue e jenipapo no resguardo ritual (a Tocaia) ajuda a menina-moça a iniciar um processo de domesticação xamânica das agências de seu corpo e de sua cosmopolítica, preparando-a para tornar-se mulher verdadeira, virar “mulher-pajé” (Ponte 2022), que administra suas forças perspectivas entre interioridades e exterioridades, construindo e negociando relações com diversos seres - tanto na festa quanto em outros momentos de sua vida.
Passada a fase da Tocaia, a menina-moça retorna ao convívio comunitário na aldeia, mas ainda permanece sob restrições alimentares e é interditada de frequentar/circular por alguns lugares em horários considerados arriscados, por conta da forte ação (e predação) ontológica de espíritos e/ou animais em seus corpos em liminaridade. As proximidades do rio, da mata, de certos caminhos e igarapés são proibidas às meninas-moças, pois tais locais são “moradas” ou zonas de agência dos entes espirituais (Coelho 2014; Ponte 2014; Saraiva 2012). A etapa seguinte é o Mingau, momento no qual as moças iniciam seu preparo coletivo para a vida adulta na aldeia, passando por outro contexto de fabricação de seu corpo. Aqui, elas têm seus corpos pintados com o grafismo da meia-lua, a fim de fazê-las se habituar ao espírito da Lua (Zahy) e seus efeitos agentivos, enquanto seus rostos são pintados com o grafismo da onça (Zawar), de modo a evocar coragem e “brabeza” (Ponte 2022). Nesse momento da festa, como comentou Lourdes Tapajó (esposa de Piná Tembé, professora indígena e importante liderança feminina da aldeia Ytwuaçu) e outros interlocutores, as moças têm suas habilidades testadas na preparação do mingau de mandiocaba (mandioca doce), de modo a compreender seu papel social na comunidade - enquanto mulher, esposa e (futura) mãe que defende sua cultura e o território.
Segundo contam Bewãri Tembé e Lourdes Tapajó, é no Mingau que as moças aprendem a fazer e administrar os remédios indispensáveis aos cuidados da saúde e têm seus corpos novamente amadurecidos por meio de técnicas, em associação às pinturas, para garantir-lhes força e resistência necessárias, tanto física quanto xamânica. Dessa maneira, por exemplo, o exercício de mexer o mingau no tacho, além de evitar que esse alimento ritual queime, tem efeitos de fortalecer o corpo da moça em liminaridade. O contato com o calor é outro indício desse processo, com as mulheres mais experientes administrando a quentura do mingau (aqui tornada puràg) em partes do corpo das moças, como a vagina, a barriga e os seios (Ponte 2022, 45).
Além dos seus seios, a mandiocaba é passada nas juntas (articulações), a fim de que tenham “forças e não adoeçam facilmente” (Taynara Tembé. Entrevista. Julho de 2013). Esse momento de construção do corpo é simbolicamente representado pela relação entre a mandiocaba e as indígenas, portanto de valor êmico e ético, pois a mulher aí é associada ao alimento, mostrando sua posição social como responsáveis pela preparação dos mesmos. (Coelho 2014, 82)
Tudo isso auxilia na preparação desses corpos em liminaridade para a fase do Moqueado, momento de maior agência das karuwaras no interior da aldeia, fortalecendo-os para aguentar a intensa carga física e de subjetivação ontológica durante esse processo ritual que finaliza o ciclo da Festa da Menina-Moça. Os modos Tembé de fabricação e amadurecimento do corpo perpassam o contexto do Moqueado, o qual dura cerca de sete dias (encerrando geralmente em um domingo), e envolvem toda a comunidade, além das famílias dos/as jovens - com destaque para o pajé, o cacique e algumas lideranças. Aqui, percebem-se os meandros da transmissão e do aprendizado do ethos (Geertz 1978) pelos rapazes e pelas moças Tembé em liminaridade, nas trocas com os mais velhos e na observação das restrições e das demandas rituais direcionadas naquele momento do Moqueado, para assim fazer deles e delas gente verdadeira.
Os sentidos Tenetehar-Tembé quanto ao parentesco, à comensalidade e à reciprocidade são igualmente espelhados, acionados e repassados aos rapazes e moças na festa. Os recursos estéticos utilizados e agenciados são outra dimensão importante aqui, uma vez que eles induzem processos xamânicos de produção da pessoa Tembé nessa relação dialógica entre as dimensões do humano e do não humano. Assim, tal processo traz elementos fundamentais para o entendimento etnográfico da organização sociocultural e das relações cosmopolíticas desse povo, bem como das formas de atualização da cosmologia Tembé durante a festa através das estéticas utilizadas e das demais técnicas de fabricação de corpos e pessoas.
Nesse bojo, outro detalhe importante nessa performance ritual, em que corporeidades são fabricadas, diz respeito aos modos como a territorialidade Tembé é dinamizada dentro dos espaços na aldeia em que se executa a festa - no caso, a Ramada - a partir das interações e movimentações entre pessoas e espíritos, cujas agências se vinculam à terra (território) e atravessam aqueles corpos em transformação/amadurecimento. Aqui, o teto da Ramada Tembé (figura 1) é ornamentado com saias de piaçava, tipitis, peneiras, cuias, maracás e outros artefatos que ajudam a reter agentividades, fazendo assim um “elo” metonímico entre esse espaço sagrado e as dimensões sociocósmicas do próprio território Tembé, as quais serão igualmente projetadas nos corpos em produção durante a festa-ritual.
Outro componente que estreita essas ligações entre festa e territorialidade está nos recursos naturais extraídos do território para a realização do Moqueado, os quais têm grande destaque ao entrelaçar sua materialidade com os sentidos simbólicos (e suas projeções espirituais) durante a festa/ritual. Já comentei sobre o jenipapo e seus aspectos ambivalentes para os Tembé: ao mesmo tempo que protege as pessoas, ele atrai/convida as karuwaras para participar da festa, para vir dançar com os indígenas - ou “brincar” como dizem os Tembé. Aqui, o jenipapo tem a função de ser uma “segunda pele”, recebendo e decompondo a agência das karuwaras através dos desenhos pintados no corpo (Lagrou 2011). Outros dois importantes elementos extraídos de plantas são a casca do tawari e o breu branco, utilizados na produção de cigarros cuja fumaça ajuda a repelir as karuwaras quando sua agência se torna perigosa. Tem ainda a plumária usada nos ornamentos de moças e rapazes, em capacetes e cocares, além da plumagem de gavião aderida nesses corpos em liminaridade - no peito, braços e cabeça - com a resina do cipó de canoinha.
As caças são outro elemento importante no ritual. São as carnes de animais - a saber: guariba, mutum, inambu e porco queixada - caçados pelos guerreiros da comunidade que serão preparadas (moqueadas) e servidas pelas meninas-moças no último dia da festa. Nesse ponto, as mulheres mais experientes, geralmente as anciãs da aldeia, cuidam do preparo desse alimento ritualístico, amolecendo as carnes moqueadas que serão “socadas no pilão e acrescidas de farinha de mandioca até formar uma farofa” (Ponte 2022, 49). O consumo desse alimento demarca, na festa, o fim da restrição alimentar de moças e rapazes e a comensalidade Tembé, que familiariza os parentes nesse processo de partilha, ao mesmo tempo que traduz uma predação ontológica dessas caças que não foram totalmente “desagentivadas” (Fausto 2002). Conforme explica Piná Tembé (cacique da aldeia Ytwuaçu e professor indígena), animais como a guariba e o porcão têm comportamentos que sugerem sentidos de união e coletividade, pois andam em bando e atacam juntos para defender o grupo. Assim, a ingestão desse alimento feito de farinha e carnes moqueadas representa uma absorção predativa e familiarizante (Fausto 2002) daquelas características pelo corpo Tembé, digerindo e subjetivando a agência animal.
Assim, durante o desenrolar do Moqueado, pude perceber a relação dinâmica dos Tembé com aquilo que eles chamam “natureza” (as plantas, os animais, os espíritos, o território etc.), refletindo na própria compreensão ontológica da identidade e alteridade desse povo a partir desse fenômeno: liminaridade de moças e rapazes, transformação dos corpos indígenas e agenciamento estético na preparação e amadurecimento desses sujeitos para uma nova fase da vida social Tembé. Aqui, a cosmopolítica Tembé é exercida de forma expressiva, uma vez que a fabricação desse corpo na festa se processa a partir de interações entre humanos e não humanos, e da predação virtual que produz/familiariza parentes, além de acionar mecanismos ontológicos de identificação - ou seja, é vetor para modular diferenças entre os Tenetehar-Tembé. Uma negociação perspectiva em torno desse corpo “para dotá-lo das qualidades sociais requeridas, assim como para modificar sua natureza e seu aspecto” (Velthem 2010, 26).
Vale ressaltar que a Festa da Menina-Moça é motivo de alegria e entusiasmo para os Tembé. É a celebração da vida e um momento de “suspensão” das rivalidades predatórias, em que se busca reestabelecer a harmonia e a coesão sociocósmica entre humanos e não humanos. Tanto que cigarros de tawari são também oferecidos às karuwaras, havendo ainda o consumo de bebidas fermentadas, como caxiri e gengibirra. Assim, ao convidar as karuwaras para “brincar” durante a festa, os Tembé aceitam que elas entrem nos corpos e os agenciem, efetuando um processo de “mudança de roupa” e transformação de moças e rapazes em gente verdadeira. Isso demarca a própria construção da socialidade Tembé e sua convivialidade cósmica. Para tanto, as cantorias, os sons dos maracás, os odores do jenipapo e da fumaça do tawari, a performatividade dos corpos durante as danças etc. fazem-se necessários no processo ritual. Afinal, além de atrair/convidar as karuwaras que operam transformações perspectivistas nos corpos Tembé, são recursos que possuem uma eficácia estética que estimula e associa vários sentidos dos participantes durante a festa, resultando em uma “forma de agir sobre e, deste modo, criar e transformar o mundo” (Lagrou 2011, 749). Veremos como isso se processa.
Fazer festa, política e gente entre os Tembé: corpos, estéticas e quimeras no Moqueado
Retomando as reflexões anteriores, é indiscutível que existe muita produção estética durante a Festa da Menina-Moça, além da grande mobilização de “gentes” (humanas e não humanas) nesse contexto, fato que torna essa festa muito rica para a compreensão etnográfica dos Tembé. Pinturas corporais, odores (do jenipapo e do tawari misturado com breu), artefatos (como os maracás), cantos, danças e suas performatividades são elementos mobilizados aqui pelos indígenas, ajudando a potencializar uma captura ontológica da ação das karuwaras e a manejar esse princípio agentivo (de produção-predação) em torno dos processos de fabricação dos diferentes corpos em movimento durante a festa, sobretudo dos rapazes e das moças em liminaridade. Nesse momento, o convite às karuwaras para “brincar” no espaço sagrado da Ramada é também uma forma de restituir relações harmoniosas dos Tenetehar-Tembé com os espíritos, os animais, as plantas, o rio etc., restituindo certo equilíbrio sociocósmico entre distintos planos da existência e seus seres que recortam o território Tembé.
A partir dessas reflexões etnográficas, gostaria de assinalar para a possibilidade de entender os processos estéticos de construção do corpo Tembé enquanto um tipo de metamorfose quimérica. Mobilizando o conceito de “quimera” (Severi 2013), proponho observar a projeção-indução de “imagens” (visuais e sonoras) na fabricação contextual dos corpos Tembé, no ritual, através de processos que operam por indícios visíveis/sensíveis e invisíveis. Isso promove uma memorização e a aprendizagem do saber, eclipsando uma “representação quimérica”. Logo, podemos dizer que se produz entre os Tembé, durante a Festa da Menina-Moça, um corpo quimérico e abstrato que encapsula minimamente a agência das karuwaras, capturando-a e decompondo-a para atenuar seus perigos. Tais fragmentos quiméricos e suas deformidades potenciais são reorganizados nesse novo corpo-território Tembé, que se torna multiperspectivo ao ser fabricado nessas ações relacionais entre humanos e não humanos ou de partes desses entes.
Para melhor perceber esses meandros de interpretação, faz-se necessário focar nos recursos estéticos, cujos traços indexam o potencial quimérico, e perceber como são empregados para captar e decompor a agências das karuwaras durante a festa. Começando pelas pinturas corporais, um importante elemento tanto no ritual quanto no próprio cotidiano Tembé nas aldeias. Mas, como comentam Kudã’i Tembé (professora de língua Tenetehar nas aldeias do Guamá e importante conhecedora da cultura, que também organiza as festas na aldeia Sede) e Bewãri Tembé, elas adquirem outra potência durante a festa, tornam-se mais fortes; ou seja, têm maior poder (no sentido de habilidade) para agenciar os corpos e suas alteridades, principalmente no Moqueado. Essas pinturas “são simbolicamente responsáveis por representar seres importantes na cosmovisão Tembé” (Coelho 2014, 98). Um breve comentário de Bewãri sobre as pinturas ajuda a entender melhor seus sentidos relacionais entre os Tembé:
A situação da pintura... a pintura é simbolizando o animal, quanto mais, por exemplo, assim, é... Eu vou contar a pintura da onça: a onça é feroz, né. Mas é pra mostrar a valentia de como a onça é, por exemplo. A pintura da cuia... a pintura da cuia ela é mais em ritual. Ela num, principalmente no cara, ela não pode ser pintada, porque ela é muito inferior. A pintura da lua... a gente fala assim: “ah, porque a lua não é inferior”. A pintura da lua é muito perigosa também, porque ela tem uma ciência. A lua tem uma ciência que a gente não sabe nem explicar, porque tem tempo que ela tá cheia, a gente não pode ficar andando, não pode colher... Tem muita coisa que a lua representa, apesar de que a gente olha pra ela, ela é muito inferior, mas tem uma força muito grande. (Bewãri Tembé, entrevista realizada em 2018)
Assim, além de decorar corpos, as pinturas são feitas para agenciar as características de certos animais, espíritos e objetos que igualmente agenciam esse corpo indígena em constante processo de fabricação. Elas demarcam também contextos culturais de uso e agenciamento entre os Tembé, com pinturas empregadas na guerra, na festa e no cotidiano, expressando assim formas da socialização entre os Tenetehar-Tembé (Saraiva 2012). Nesses meandros, especialmente nas festas, é recomendado que as pinturas tenham um uso restrito, limitando-se a certos tipos de grafismos que podem ser pintados nos/as participantes, como a pintura da cuia, da onça ou do jabuti, por exemplo. Outras pinturas são tidas como perigosas e não recomendadas durante o “ritual”, como a do peixe, a da borboleta e a da jiboia, comentam Bewãri e Kudã’i. Essas pinturas, como as demais, têm donos e não é bom que esses donos venham participar da festa, segundo eles, pois podem atrair indevidamente as pessoas, representando um perigo potencial.
Conforme assinala Els Lagrou, a agência desses entes não humanos é captada e integrada ao corpo indígena e à própria ação humana por meio dos recursos estéticos, especialmente dos desenhos gráficos aplicados sobre a pele, passando por um processo ontológico de decomposição gradativa dessa agência a fim de diminuir seu potencial de deformidade do ser, ou seja, de sua alteridade: “a agência do outro nunca é aniquilada, mas sempre integrada através de uma técnica estética que visa impedir a erupção de sua exterioridade excessiva. A estética, ritual e cotidiana, consiste exatamente nesta integração construtiva e dosada de agências inimigas e predatórias” (Lagrou 2011, 761). Assim, nota-se a importância em seguir certas regras de “manejo” dessas estéticas, que precisam ser usadas com cuidado e atenção pelos Tembé, sob o risco de atrair perigos para si e para a comunidade, uma vez que tais grafismos evocam/presentificam significados e as agências desses seres pintados com jenipapo nos corpos Tembé, influenciando a ação/ataque das karuwaras.
Todavia, existem exceções àquelas regras: por exemplo, o pajé pode usar a pintura da borboleta em seu peito. Sobre isso, Kudã’i explica: “Porque ali no peito é onde a pessoa tá vendo tudo, né. Aí o pajé é aquele que vai tá cantando as cantigas, né... é cantiga de borboleta, de pássaro, de peixe. Aí é ele que tá cantando tudo” (Kudã’i Tembé, entrevista realizada em 2018). Enquanto especialista e mediador cosmopolítico, o pajé consegue lidar com a agência das karuwaras e seus efeitos de predação da alteridade humana. Logo, a estética das pinturas corporais mobiliza atributos ontológicos desses seres e seus “donos”, em especial de espíritos antigos e com grande agentividade, como Zahy. A Mãe d’água é outro exemplo: “esse tipo de espírito já foi gente um tempo. Só que eles eram pajés muito mais forte e eram mulheres, esses um que... esses espíritos que eram pajé de antigamente, todos eles voltou, entendeu? Então cada um deles é mais forte do que o outro” (Bewãri Tembé, entrevista realizada em 2018). Tais aspectos ficam mais nítidos ao focar nas moças e nos rapazes durante o Moqueado.
Neste momento, as moças têm seus corpos novamente banhados com o jenipapo, assumindo diferentes aspectos segundo os Tembé: para uns, ela “torna-se” a onça preta; para outros, a guariba-fêmea. Mas, em geral, a pintura das moças na festa relaciona-se a Ywán, o espírito da Água ou Mãe d’água (Pereira 2019). Essa pintura completa do corpo, novamente, visa garantir às mulheres em liminaridade a proteção das doenças e da ação predatória de espíritos errantes (Ponte 2014). Enquanto isso, os rapazes têm seus corpos pintados com o grafismo da meia-lua, a mesma pintura das moças durante a fase do Mingau, e em seus rostos pinta-se o desenho da guariba ou boca de macaco. Através da pintura, os rapazes presentificam o mito da Lua e aprender o ethos Tembé, incorporando “a masculinidade Tembé em Zahy, que perdeu sua humanidade por ter transgredido as regras do tabu sexual, ao ter mantido relações com parentesco próximo” (Pereira 2019, 104).
Nesses processos, pude perceber também que os corpos masculinos são produzidos tanto pela ação das karuwaras quanto nas suas relações potenciais com a própria corporeidade feminina, das moças em liminaridade e das mulheres (mães, avós, tias etc.) que administram as pinturas no corpo desses rapazes durante o ritual. Aqui é interessante notar que o corpo “imaturo” só vira corpo de “gente verdadeira” através da associação com outros corpos e alteridades, como das karuwaras, de acordo com o tipo de construcionismo de corpos indígenas discutido por SantosGranero (2012). Para tanto, tal associação potencial é também estimulada com as cantorias e as danças, cujas performances projetam no corpo Tembé essas técnicas de produção-predação ritual. Como assinala Regina Müller (2008), existe uma relação indissociável entre esses dois elementos estéticos, canto e dança, na performance ritual que precisa ser entendido na extensão de seu contexto sociocultural. Com os Tenetehar-Tembé não é diferente (figuras 2 e 3).
Durante a Festa da Menina-Moça, por exemplo, as performances da dança (o Kaê-Kaê) são sempre cadenciadas pela cantoria entoada na Ramada. Essa percussão da dança é marcada também pela musicalidade dos maracás do pajé e dos outros cantores experientes da aldeia (figuras 4 e 5), bem como pelo compasso forte do pé direito ao ser batido contra o chão durante a performance ritual. Na cantoria, além do pajé e dos demais cantores auxiliares, há ainda a atuação das mulheres que acompanham o canto desses homens, imitando as músicas entoadas num coro harmônico em segundo plano. “Assim, os homens [...] eu comparo como se fosse um bando de guariba, né! Porque o macho canta na frente e as mulheres vão remedando atrás. Só que a mulher remeda é a cumprimentação dos homens” (Bewãri Tembé, entrevista realizada em 2018). Nesse momento de performance musical, através dos cantos, as mulheres também têm um papel importante ao lado dos cantores e do pajé.
Da mesma forma que nas pinturas corporais, as cantorias também têm algumas “interdições” e especificidades durante a festa, para se evitar perigos da ação das karuwaras. Segundo Bewãri, por exemplo, evita-se cantar músicas consideradas pesadas durante o dia, pois elas acabam induzindo os/as participantes da festa a pularem/dançarem e cantarem com maior intensidade, “dão mais vontade”, fazendo as pessoas “se atuarem”, ou seja, ficar sob a influência agentiva das karuwaras. Outras distinções também precisam ser observadas:
A gente não chama, por exemplo, da Mãe d’água, é... música da Mãe d’água numa cantoria de dia. Chama à noite, né. Tem umas diferençazinhas. Já no dia é mais do, assim, da borboleta, da arara, é da... maracanã, e vários outros animais, entendeu. Só que esses uns é mais da parte do... dos donos dos bichos. Por exemplo, do dono da borboleta, do dono de cada animal. (Bewãri Tembé, entrevista realizada em 2018)
A questão dos horários é outro fator relevante para compreender essa organicidade na Festa da Menina-Moça, sobretudo no Moqueado. Se, durante o dia, as cantorias são realizadas dentro do espaço da Ramada, acompanhadas por danças e suas performances, à noite elas ocorrem para o lado de fora, com o pajé e os cantores sentados de frente para o chamado “caminho das karuwaras”, no intuito de afastar os espíritos noturnos e evitar que eles adentrem no interior da Ramada para pernoitar ali dentro. Nesse momento de “combate xamânico”, não há danças, apenas se entoam cantoria para repelir tais espíritos, acompanhadas do chacoalhar rítmico dos maracás. Segundo conta Lourdes, as karuwaras da noite são mais perigosas do que aquelas que aparecem durante o dia, pois estão relacionadas a animais mais fortes na mata, como o porcão e a anta, além do próprio espírito da Mãe d’água. Portanto, é preciso ter mais cuidado com esses seres, para não ser atraído e “encantado” para seus domínios.
Por isso, na parte final da festa, no último dia do Moqueado, é realizada a performance do Rabo de Arraia (figura 6). Nesse momento, homens e mulheres dão os braços e formam uma corrente, dançando com muito vigor no “caminho das karuwaras”, em movimentos conjuntos de vaivém. Além de demonstrar força e unidade, o Rabo de Arraia serve para os Tembé afastarem os espíritos e fazê-los retornar às suas moradas, anunciando assim o encerramento da festa.
Assim, pinturas, artefatos, cantos, danças e suas performances agenciam o espaço e os corpos Tembé enquanto karuwaras “brincam” durante a festa. No desenrolar desse processo, direcionam agência aos corpos pintados e em movimentação, fazendo com que alguns indivíduos (sobretudo as mulheres) realizem ações performáticas durante o Kaê-Kaê, com movimentos representando - ou melhor, presentificando - animais como a arara, a borboleta, o macaco etc., refletindo assim a participação desses espíritos e a sua ação perspectiva sobre os corpos na/em festa. Aqui o corpo quimérico se revela a partir dessa fragmentação e transitividade da percepção estética por uma “condensação” da alteridade. Percebe-se então uma grande preocupação dos Tembé em não deixar as karuwaras exercerem muita agentividade sobre os corpos, principalmente das mulheres, de modo a deformá-los e transformá-los em um ser outro, destituído de sua alteridade humana (Lagrou 2011; Viveiros de Castro 2018), raptando tal indivíduo para sua morada no fundo da mata, dos rios e dos igarapés, no alto do céu e no centro da Terra.
Nesses meandros, o pajé é figura de destaque por ser o mediador entre humanos e karuwaras. Ele atua junto aos outros cantores, puxando a cantoria, marcando o ritmo com seu maracá, fumando o cigarro de tawari e consumindo caxiri e gengibirra, que se somam a performatividade das danças e dos corpos em movimento na Ramada. E age quando a karuwara ataca perigosamente o corpo dos indivíduos, sobretudo das mulheres. Nesse momento, o pajé, acompanhado dos cantores mais experientes (mais velhos), intensifica a cantoria, o movimento do maracá e o fumo do cigarro de tawari, a fim de acalmar o espírito no processo de agenciamento do corpo e tentar diminuir os perigos de sua agentividade. Contudo, mesmo com toda a importância do pajé e dos cantores no ritual, a mulher ainda é o ser mais poderoso naquele espaço durante a festa, devido à sua grande força para atrair os espíritos e “botar karuwara”. Como explica Bewãri, existem certas distinções e relações entre homens e mulheres na cantoria, que traduzem partes desse contexto relacional feminino-masculino durante a festa:
Assim, o papel dela, né, na cantoria é muito importante, porque quanto mais a mulher canta, a mulher também tem a força de botar karuwara na pessoa. Se as mulheres tão cantando aqui e se tiver só eu de homem, eu tô muito mais fácil de pegar uma karuwara do que elas que tão cantando pra mim. Então, eu tenho que me sair delas, entendeu. Na hora que elas querer me cercar aqui, eu tenho que escapulir. (Bewãri Tembé, entrevista realizada em 2018)
Em vista disso e de outras experiências com os Tenetehar-Tembé do Guamá, ressalto que as mulheres apresentam grande susceptibilidade à ação das karuwaras devido ao entrelaçamento entre sangue, corpo e xamanismo (Belaunde 2006), fator que assume atribuições dinamizadoras na socialidade Tembé e ajuda a regular suas coexistências sociocósmicas (Ponte 2022). Das experiências etnográficas na TIARG, destaco certos relatos indígenas que enfatizam as matrizes femininas no cotidiano social Tembé: ao falar da mãe do corpo, da Mãe d’agua e de outros seres generizados enquanto “mulheres”, ou que se associam ao potencial feminino (na geração e na predação). Dessa forma, a centralidade das mulheres é percebida na sociedade Tembé desde o reconhecimento do caráter relacional entre elas, a cosmologia e o território-territorialidade.
Por exemplo, como observei na festa em 2018, algumas mulheres de outras aldeias “pegaram karuwara” só por sentir o que acontecia na Ramada, durante a festa, tendo que ser levadas para lá para “brincar” e receber tratamento do pajé. Logo, o espaço não representa um impedimento para a ação das karuwaras, percebendo como tais espíritos e suas perspectivas singram e transportam, em sua agentividade, “espaços-tempos” outros (Otero dos Santos 2019) cosmologicamente justapostos ao território Tembé, atravessando sua territorialidade. Por isso, é importante observar, na festa, certas regras e restrições a fim de garantir a segurança dos/as participantes e balancear as relações com os não humanos. Transgredir isso afeta tanto o indivíduo quanto toda a coletividade, provocando um virtual desequilíbrio entre os planos sociocósmicos que estão em uma negociação relacional durante a festa.
Dessa maneira, as diferentes corporeidades agenciadas na Festa da Menina-Moça tornam-se intermediadoras dessa busca por coesão entre forças multiespecíficas (humanas e não humanas) do cosmos Tembé, inserindo-se num processo mais amplo de produção (e predação) perspectiva de coletividades na Amazônia indígena, uma vez que o corpo é fabricado e refabricado “como lugar de incidência da negociação cosmopolítica” (Lagrou 2011, 763). As técnicas e os processos estéticos aqui assinalados, que fabricam pessoas e produzem socialidades enquanto estetizam as alteridades, traduzem saberes e práticas culturais do povo Tembé. E são transmitidos às moças e aos rapazes na festa, empregados para “criar memória” ao estimular os vários sentidos através desse conjunto estético multissensorial (Severi 1996). Afinal, o corpo quimérico Tembé é também um “corpo mnemônico”, atravessado por conhecimentos potenciais utilizados em seus processos coletivos de afirmação e luta política.
Considerações finais
Pensar o conjunto de estéticas Tembé, as corporeidades sobre as quais tais expressões atuam e as relações múltiplas que atravessam esses corpos é igualmente refletir e cruzar aspectos importantes para a produção da territorialidade e alteridade indígenas. E mais, fornece novos subsídios para entender a construção e exercício da cosmopolítica pelos povos indígenas e seu espelhamento nas dinâmicas socioculturais do território, cujas redes de experimentação e percepção simbólica ajudam a demarcar os processos de fabricação das pessoas e de um senso de coletividade. No caso dos Tembé, as práticas e saberes observados durante a Festa da Menina-Moça potencializam suas estratégias que garantem a manutenção do território, mobilizam a cultura e demarcam a identidade, que perpassa essa produção de corpos e pessoas - e do próprio sentido de povo, em comparação ao que observam Clarice Cohn (2019), entre os Xikrin, e Júlia Otero dos Santos (2022) , entre os Karo-Arara.
Como pude perceber em campo nas aldeias da TIARG e tentei expressar neste artigo, o processo de formação dos indivíduos Tembé agrega importantes dimensões políticas, sociais e cosmológicas no âmbito da comunidade, por meio dos quais esses corpos indígenas são agenciados pelas karuwaras e metamorfoseados quimericamente através da estimulação estética durante a Festa da Menina-Moça. Por meio disso, apreendem-se capturas e decomposições de um conjunto relacional de perspectivas outras nessa corporeidade nativa em construção e amadurecimento, lugar de interação/negociação cosmopolítica entre alteridades (humanas e não humanas) e suas agências territorializadas. Nesse processo, que opera formas de subjetivação de semelhanças e diferenças capturadas no corpo pelas estimulações estéticas, as moças e os rapazes Tembé são transformados em seres “íntegros”, pessoas “inteiras”, ao mesmo tempo que são novamente familiarizados com a comunidade, os parentes e os grupos sociais na aldeia. Em outras palavras, é assim que os Tembé fabricam gente verdadeira - sucessivas gerações de guerreiros e guerreiras que defendem o seu território de existência.
Logo, os modos Tembé de agenciar a eficácia estética de seus saberes e práticas culturais (pinturas, cantorias, danças etc.) na fabricação de corpos e pessoas durante a Festa da Menina-Moça revelam a complexidade de organização da vida social e política desse povo indígena da Amazônia. Além de reintroduzir as moças e os rapazes em liminaridade ao corpo social, na condição de adultos devidamente constituídos, a festa auxilia nos processos de fortalecimento da cultura e da identidade do povo Tenetehar-Tembé. Ela e suas produções estéticas catalisam e traduzem os muitos sentidos da r-existência Tembé, os quais se atualizam em função das lutas pelo direito ao território e pela manutenção de seu modus vivendi tradicional. Aqui, percebe-se como o repasse das tradições culturais e saberes cosmológicos aos jovens, por meio das experiências estético-emocionais de socialidade que atravessam a festa, ficam marcadas na memória - e nos corpos - das moças e dos rapazes Tembé (Santos-Granero 1986; Severi 1996) e guiam as estratégias coletivas de r-existência desse povo em diferentes contextos. São elementos múltiplos de ordem sociocultural que incidem sobre a ação política Tembé e indianizam suas lutas e mobilizações pela terra-vida.