INTRODUÇÃO
Com o avançar da idade a perda do domínio do equilíbrio e instabilidade na marcha associados à interação de vários fatores ambientais e do próprio indivíduo, podem resultar em quedas e consequentemente fraturas ósseas. A fragilidade desses pacientes somado às comorbidades e à complexidade das cirurgias ortopédicas, exigem uma terapia intra-hospitalar e cuidados médicos intensivos além de programas de reabilitação por longos períodos [1].
Nesse contexto, há de se considerar que a polifarmácia é comum entre os idosos com potencial risco de interações. Entende-se por interação medicamentosa uma resposta clínica ou farmacológica que advêm da influência do mecanismo de ação de um medicamento ou qualquer substância química sobre o efeito de outro medicamento [2].
Devido a instalação e coexistência de múltiplas doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) em pacientes idosos, somado as mudanças fisiológicas intrínsecas ao envelhecimento, há um favorecimento à exposição desse grupo à múltiplos medicamentos e ao surgimento de problemas relacionados a tal ação [3], o que cria um ambiente propicio para interações medicamentosas em potencial.
Sabe-se que, quanto maior o número de medicamentos na terapêutica do idoso, maior a probabilidade da ocorrência de iatrogenia, embora, em idosos hospitalizados isso possa ser prevenido em mais da metade dos casos [4]. Dessa forma, as potenciais interações medicamentosas (PIMs) inapropriadas põem em risco a eficácia e segurança da terapia. Condição esta, que torna importante o monitoramento dos problemas relacionados aos medicamentos na terapia intra-hospitalar dado que a polifarmácia e o uso de medicamentos potencialmente inapropriados (MPIs) para idosos acarretam ou intensificam agravos de saúde e condição de fragilidade [5].
Nesse aspecto, os objetivos desse estudo foram analisar o perfil da farmacoterapia no ambiente intra-hospitalar quanto a ocorrência de polifarmácia, potenciais interações medicamentosas e prescrição de medicamentos potencialmente inapropriados em idosos hospitalizados por fraturas ósseas; caracterizar os medicamentos usados quanto a quantidade, classe e posologia e, identificar a região do corpo mais acometida por fraturas.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo quantitativo, analítico, com delineamento transversal. A amostra foi composta por 29 pacientes com idade ≥ 60 anos internados por fraturas ósseas em qualquer segmento corporal, candidatos ao tratamento cirúrgico, que se encontravam em terapia farmacológica no Hospital Municipal de Imperatriz (HMI), Maranhão, entre janeiro de 2019 e janeiro de 2020.
Todos os dados foram obtidos exclusivamente a partir da análise dos prontuários médicos. Devido a pandemia da COVID-19 que restringiu o acesso as enfermarias geriátricas por escassez de equipamentos de proteção individual (EPIs), que impossibilitou a continuação da coleta de dados, utilizou-se amostragem por conveniência para conclusão da amostra.
Inicialmente, foi realizado uma análise descritiva dos dados, de acordo com a natureza da variável quantitativa para verificar as características, tanto do perfil sociodemográfico quanto do perfil medicamentoso intra-hospitalar composto pelo número de medicamentos em uso; o uso de medicações potencialmente inapropriadas (MPIs) e as potenciais interações medicamentosas (PIMs).
Conforme a gravidade, as potenciais interações medicamentosas foram verificadas e classificadas através da base de dados do Lexi-Interact (acessada do sitehttps://www.uptodate.com), por meio da pesquisa dos medicamentos mediante seus respectivos nomes genéricos e em inglês. Essas interações foram classificadas como risco A (sem interação conhecida), risco B (nenhuma ação necessária), risco C (terapia monitorada), risco D (considerar a modificação da terapia) e risco X (evitar combinação).
Para classificação dos medicamentos quanto ao grupo terapêutico, foi utilizado a base de dados da OMS Anatomical Therapeutic Chemical Index (ATC) (disponibilizada no site https://www.whocc.no/atc_ddd_index/) e para identificação das MPI quando necessário, foi utilizado os critérios de Beers atualizados em 2019 pela American Geriatrics Society.
Os dados coletados foram tabulados e analisados com auxílio do software SPSS (versão 20) a partir de medidas descritivas por meio de frequências relativa e absoluta das variáveis, foi utilizado os testes Qui-Quadrado e exato de Fisher para verificar as associações. O nível de confiança adotado foi de 95% e a valores considerados estatisticamente significativos quando o p<0,05.
Esta pesquisa não recebeu nenhum subsídio específico de agências de fomento nos setores público, comercial ou sem fins lucrativos e teve projeto aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal do Maranhão, sob parecer n° 3.675.237/2019.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram avaliados os prontuários de 29 pacientes entre 60 e 105 anos hospitalizados por fraturas ósseas cuja idade média foi de 71,9 (DP de 10,1 anos); 11 (37,9%) eram do sexo feminino e 18 (62,1%) do sexo masculino, com um tempo médio de internação de 10,5 dias. Durante o período de hospitalização desse idosos, a polifarmácia foi observada em 22 (75,8%) pacientes, o que corrobora com a possibilidade de que durante o período de internação, devido à complexa farmacoterapia, houvesse favorecimento da instalação ou agravo da polifarmácia. Inclusive, a idade média encontrada entre os idosos do estudo é compatível com a faixa etária mais acometida pela polifarmácia no Brasil, conforme destacado por Ramos et al. [6].
Esse cenário é fomentado principalmente pelo tratamento simultâneo de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como hipertensão arterial sistêmica (HAS) e diabetes mellitus (DM), tornando os idosos mais expostos aos riscos de PIM e iatrogenias como documentada por Costa [7], Novaes et al. [8], Oliveira y Manso [9]. Em relação à presença de HAS e DM, 22 (75,8%) tinham pelo menos uma dessas comorbidades, todavia predominantemente as mulheres; 8 (72,7%) portadoras de HAS e 6 (54,5%) de DM, com significância estatística (p<0,05).
A respeito da terapêutica intra-hospitalar estabelecida aos pacientes portadores das DCNTs analisadas, destaca-se que todos estavam sob tratamento farmacológico. Observou-se uma escolha assertiva dos anti-hipertensivos (nifedipino, hidroclorotiazida, captopril e losartana), uma vez que todos são opções de primeira linha para tratamento da HAS de acordo com Malachias et al. [10]. Todavia, apesar de necessários, os anti-hipertensivos estavam presentes em 33% das PIMs observadas e algumas associações se deram de forma inadequada, o exemplo do uso simultâneo de captopril com losartana (inibidor da enzima de conversão da angiotensina e bloqueador dos receptores da angiotensina II), que não acrescenta benefício nos desfechos cardiovasculares e ainda eleva o risco de efeitos adversos [10].
As demais variáveis testadas (idade, status cirúrgico, necessidade de internação na UTI e tempo de internação) não apresentaram associações estatísticas significativas, como mostrado na tabela 1.
Referente a localização anatômica, as fraturas mais diagnosticadas foram no fêmur, 11 (31,4%) do total de fraturas, com destaque para fraturas proximal de fêmur que representaram 7 (63,6%), seguidas das fraturas de rádio proximal que forma o total de 4 (11,4%), quadril, tornozelo e tíbia, igualmente com 3 (8,5%) cada uma.
Como já descrito por Macedo et al. [11], as fraturas de fêmur entre idosos apresentam crescimento constante e alta incidência no Brasil, resultando em uma elevada taxa de hospitalizações. Mesmo diante desse contexto, ainda há escassez de estudos nacionais avaliando a presença de PIMs em pacientes idosos hospitalizados por fraturas. O valor percentual de PIMs encontrado neste estudo foi mais expressivo do que em outros estudos brasileiros que avaliaram as PIMs em idosos de modo geral, ou seja, sem fraturas, como o de Pereira et al. [12] em Florianópolis (32%) e Carvalho et al. [13] em São Paulo (36%).
Entretanto, os achados nessa pesquisa foram inferiores aos apresentados em um estudo observacional realizado com idosos no âmbito intra-hospitalar, em condição cardíaca e não ortopédica, tendo sido encontrado 82%, como o descrito por Martínez-Arroyo et al. [14].
No perfil das prescrições médicas analisadas, verificou-se a presença de 16 grupos terapêuticos distintos conforme a classificação da ATC e 36 medicamentos, com uma média de 5,20 (DP de 2,11) medicamentos prescritos por pacientes. Belfrage et al. [15] avaliou 200 idosos com fratura de quadril observou uma média de medicamentos nas prescrições de 7,2, valor próximo do encontrado na pesquisa atual.
Já a média de PIMs por idoso envolvido na pesquisa foi de 3,9 (DP de 4,20); 28 (96,5%) pacientes possuíam pelos menos uma interação. No total, foram encontradas 115 de PIMs, sendo 9 (7,5%) risco B, 56 (46,6%) risco C, 30 (25,8%) risco D e 20 (17,1%) risco X.
Dessa forma, os resultados encontrados traduzem preocupação perante os pacientes geriátricos, haja vista, a chance de PIMs de risco C, D e X aumentar de forma significativa, pois, quanto maior a quantidade de medicações em uso, maior é o risco de interações com repercussões clínicas. Não foi possível observar relação como as PIMs interferiram no pós-operatório dos pacientes, o que se pode atribuir ao número de pacientes em pós-operatório e a escassez de informações claras que possibilitassem tal análise.
Os achados referentes a quantidade e qualidade das medicações refletiram parte do problema de interações entre medicamentos em pacientes idosos. Desta forma, destaca-se que sendo as prescrições feitas por médicos de diversas especialidades além do ortopedista, acredita-se que possa ter havido informações divergentes da realidade, com subestimação do número de medicamentos em uso, da posologia, além da possibilidade do uso pelos pacientes de fitoterápicos independente da prescrição médica.
Quanto ao grupo terapêutico, os anti-inflamatórios não-esteroides foram os mais frequentes nas prescrições, 36 (24,15%), estando a frequência de todos os medicamentos prescritos encontram-se listados na tabela 2.
Acredita-se que o fato de 73,9% dos pacientes estarem em pré-operatório, com fraturas ósseas e limitações de locomoção, justifique a grande quantidade de medicações para analgesia e prevenção de eventos trombóticos. Resultados estes, que corroboraram com Moura et al. [16], onde prevaleceu o uso da enoxaparina e dipirona, ao analisarem 452 prontuários de pacientes internados em uma unidade de clínica médica do Hospital Universitário de Minas Gerais. Na figura 1 destacou-se os medicamentos de uso mais frequentes com suas respectivas doses total diárias.
Além de amplamente prescritas, dipirona com enoxaparina e dipirona com tenoxicam resultaram nas PIMs mais frequentes, ambas interações com potencial de risco significativo na condição clínica dos pacientes. De acordo com Oliveira et al. [17], o tenoxicam, por se tratar de um inibidor da enzima COX-2 não seletivo, aumenta o risco de hemorragia gastrointestinal e úlcera péptica em grupos de alto risco, incluindo aqueles com idade > 75 anos ou que utilizam corticosteroides orais ou parenterais, antiplaquetários ou anticoagulantes, como a enoxaparina. O uso de protetores gástricos, que esteve presente em 16 prescrições, reduz sem eliminar, a chance de sangramento intestinal no grupo de alto risco para tal evento [17].
Assim, com a chance significativa de sangramento, o uso dos AINEs deve ser evitado em idosos, independente de condição clínica e descontinuação de agentes com propriedades antiplaquetárias deve ser feita antes de iniciar a enoxaparina, sempre que possível. Todas as PIMs que deveriam ser consideradas a modificação ou que deveriam evitar combinação encontram-se listadas na tabela 3.
Dentre as medicações encontradas nas prescrições com o objetivo de proteção gástrica, destacou-se omeprazol e ranitidina. Contudo, em 2019, a N-nitrosodimetilamina (NDMA), composto com potencial carcinogênico em animais, foi identificada em amostras da ranitidina, o que levou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por meio da Resolução-re N.° 3.259/2020 (DOU N.° 165, de 26/08/2020, Seção1, p. 164) [18], determinar a proibição da comercialização, distribuição, fabricação, importação, manipulação e propaganda do cloridrato de ranitidina, de forma definitiva. Ressalta-se que entre a prescrição de omeprazol e ranitidina, a ranitidina foi a mais prescrita, onde 31% dos idosos do estudo estavam em uso, o que representou 56,2% dos protetores gástricos receitados.
De acordo com a American Geriatrics Society [19], medicamento potencialmente inadequado (MPI) para os idosos são aqueles que ao analisar o benefício em detrimento dos riscos a que o paciente está exposto, obtém-se um resultado desfavorável ao se comparar com outras terapêuticas mais eficazes, seguras e disponíveis. Tais medicamentos estão associados à diversos prejuízos, desde a redução da capacidade funcional ao aumento da taxa de mortalidade, como já descrito por Dedhiya et al. [20], Nascimento et al. [21] e Koyma et al. [22].
O uso de MPIs foi aplicado para 25 (86,2%) idosos, 12 (48%) utilizavam apenas um, 10 (40%) usavam dois, enquanto 3 (12%) usavam de 3 ou mais. Na tabela 4 observa-se a frequência proporcional de cada MPI prescrito.
†: regimes de insulina contendo apenas insulina de ação curta ou rápida, indicados de acordo com os níveis atuais de glicose no sangue, sem uso concomitante de insulina basal ou de ação longa.
Apesar de não se tratar de idosos com fraturas, a frequência do uso de MPIs em outras pesquisas nacionais realizadas em diversas cidades brasileiras, sejam no âmbito comunitário apresentado por Almeida et al. [23] ou no intra-hospitalar como exposto por Magalhães et al. [24], estos foram maiores do que o observado nesse estudo, estando de acordo somente com a prevalência de prescrição de inibidor de bomba de prótons (IBP) e benzodiazepínicos (BZD).
Os benzodiazepínicos são amplamente usados para desordens neuropsiquiátricas. Todavia, sabe-se que seu uso aumenta o risco de desenvolvimento de tontura, zumbidos, delirium, quedas e lesões relacionadas a elas em idosos, como mostrado por Rossat et al. [25].
Um estudo de coorte prospectivo foi conduzido por Ballokova et al. [26] em 11 hospitais australianos, mostrou que apesar do uso de BZD antes ou durante a admissão hospitalar não aumentarem a taxa de quedas, o diazepam (um BZD com meia-vida longa) conseguiu uma associação significativa com história de quedas (OR = 3,00), não foi observado com outros benzodiazepínicos. Fato extremamente relevante quando o diazepam se trata do benzodiazepínico mais prescrito para os pacientes envolvidos nesse estudo e com doses de até 40 mg/dia. Entretanto, ressalta-se ainda que a dose de BZD em pacientes geriátricos deve ser a mínima possível, o que divergiu da dosagem encontrada.
No tangente às limitações, destaca-se a incompletude de informações da evolução médica observada em muitos prontuários, o que fomentaria necessidade de melhor adequar as prescrições médicas, que são de extrema relevância, visto que a condição clínica dos idosos está intrinsecamente ligada à classificação da medicação como apropriada ou não para tal população.
Portanto, diante da análise do impacto da terapia medicamentosa intra-hospitalar quanto as potenciais interações medicamentosas em pacientes geriátricos hospitalizados por fraturas, foi possível concluir a prevalência das classes farmacológicas prescritas foram, os AINEs, analgésico e antibiótico, representados respectivamente pelos fármacos e posologias como seguem, o tramadol (100-400 mg/dia), dipirona (4000 mg/dia), ceftriaxone (2000 mg/dia); a maioria dos pacientes foram admitidos por fraturas de fêmur proximal; a categoria de risco predominante das potencias interações medicamentosas foi risco C (com necessidade de monitorização da terapia) e 45,8% dos idosos foram expostos a potenciais interações medicamentosas com ação deletéria sob a condição clínica do paciente. A polifarmácia, por sua vez, se mostrou elevada com 75,8% e as prescrições de MPI com 86,2% dos pacientes pesquisados.
Esses resultados obtidos nessa pesquisa reforçam a necessidade de alinhar medidas em consenso para a prescrição mais efetiva em geriatria, considerando a individualização compatível com as comorbidades, titulação gradual da posologia e monitoramento ativo dos pacientes quanto ao desenvolvimento de efeitos adversos, além da adequação dos registros no prontuário. Recomenda-se mais estudos nesta abordagem que possam corroborar com esses resultados e endossar medidas mais eficazes nas prescrições de idosos.