Introdução
Quando alguém se propõe a investigar as transformações que acompanharam o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) e seu impacto na sociedade brasileira sente-se relativamente perdido. Não pela falta de fontes, análises e informações, mas justamente pelo contrário, o seu excesso. A herança conciliar permanece viva, disputada, gerando eventos e publicações em cada data comemorativa. Isso multiplica os olhares e perspectivas, além da documentação publicada, que aumenta a cada dia.
O processo conciliar foi algo grandioso, com dimensões internacionais, envolvendo os cinco continentes. Naqueles quatro anos, reuniram-se no Vaticano mais de dois mil bispos, com seus assessores e peritos, para debater os rumos do cristianismo e, quiçá, do mundo. Destarte, não foi apenas um evento católico romano no sentido estrito do termo, mas uma assembleia que incluía além dos representantes de outras confissões religiosas, um grande grupo de observadores leigos e líderes (Alberigo, 2006).
O que foi gerado deste longo e custoso trabalho, com tantos debates e controvérsias? Textos, a maioria de pequena dimensão até. Foram quatorze o todo: quatro constituições, sete decretos e três declarações. Isso não é pouco, pois precisamos compreender a instituição eclesiástica dentro da economia escriturística1 da sociedade contemporânea, para depois observar como ela atingiu a região central do Brasil.
Essa perspectiva não é tão comum nos estudos. Infelizmente, a maioria dos pesquisadores trabalha com os escritos eclesiásticos sem se perguntar pelo lugar, a produção ou os efeitos da produção e circulação de um texto. Michel de Certeau apontou como esta prática é fundamental na cultura ocidental, pois remete a seu principal "estatuto de verdade". Por isso, escrever pode ser definido como "a atividade concreta que consiste, sobre um espaço próprio, a página, em construir um texto que tem poder sobre a exterioridade, da qual foi previamente isolado" (Certeau, 1996, p.225). A produção escriturística está, deste modo, além da comunicação e da relação emissor - receptor, pois envolve complexas operações de deciframento (Ex. a língua, formas de leitura); técnicas de registro impresso (Ex. a pontuação, a inserção de subtítulos); principalmente a eficácia social do escrito (Ex. autoridade manifesta, expectativas instituídas).
Somente dentro desta economia escriturária, gerada e difundida pela Igreja católica, podemos compreender os intensos debates registrados acerca de uma única palavra em um documento, a exemplo dos emanados pelo Concílio. Uma vírgula, afinal, pode modificar todo o sentido de uma frase e os textos emitidos pelos representantes eclesiásticos costumam ser eivados delas (sem entrar na questão das traduções, que levaria a outra problemática que não abordaremos). Os textos foram elaborados tendo autoridade por si mesmos. Os bispos buscaram aplicá-los, e não discutir seu aspecto normativo, ainda que os filtros interpretativos locais, estudados nesse artigo, devam ser destacados.
O lugar da adoração
Outro ponto geral que não é enfatizado nos estudos acerca do movimento conciliar, ou na historiografia acerca do catolicismo no Brasil, é o que podemos denominar de maneira geral por espiritualidade. Normalmente nosso referencial teórico é voltado para captar as relações da experiência religiosa com os movimentos sociais e políticos. Então, a nossa problemática trata de elementos que não compõem o núcleo da fé dos sujeitos, ou seja, pergunta-se aos fenômenos religiosos o que eles não são ou não têm muito a dizer.
Isso é válido especialmente para o nosso tema, pois os estudos acerca do impacto do Concílio Vaticano II no Brasil buscam identificar o que seriam os primórdios do Cristianismo da Libertação (v.g. Lowy, 2016), as transformações ocorridas na relação com o Estado (v.g. Silva, 2018), a inserção do catolicismo nos movimentos sociais da época ou na luta pelos direitos humanos (v.g. Wanderley, 2008).
Todas essas questões são muito importantes, obviamente. As análises fornecem uma abordagem rigorosa da instituição católica na rede de tensões que compõem uma configuração social. Ademais, a conjuntura antes e depois do golpe civil-militar de 1964 demarcou tanto as questões pastorais levadas a Roma pelo episcopado brasileiro quanto a implantação das decisões conciliares. Contudo, um dos elementos que mais se destacou para o grupo de pessoas que formavam e frequentavam as igrejas locais foi a mudança promovida nas celebrações litúrgicas. Portanto, as análises sobre o movimento conciliar não deveriam deixar tão de lado essa dimensão.
A celebração é uma parte muito especial dos movimentos religiosos, mas foram poucos autores clássicos que lhe deram a ênfase merecida. Destaca-se Joachim Wach (1990), quando ele aponta as três modalidades básicas da experiência religiosa expressa pelos sujeitos. A primeira seria a visão teórica ou doutrinária da experiência com o sagrado, moldada pela linguagem mítica, pelas narrativas arquetípicas e pelos dogmas. A segunda é a expressão prática, manifesta exatamente pela adoração, pelos rituais e pelos símbolos. Somente a terceira forma de expressão atingiria a dimensão sócio-política, quando envolve os princípios éticos, comportamentais e a sociedade de forma geral (1990, p.30-49). Tal perspectiva, integrando os três aspectos, sem hierarquizar, ajuda a entender melhor o processo de execução do Concílio bem como os disputados debates acerca de pontos que parecem inócuos à maioria dos historiadores.
De fato, o primeiro documento aprovado pela assembleia conciliar foi a constituição Sacrossantum Concilium, ainda no ano de 1962. Ela funcionou como uma espécie de teste ao modus operandi estabelecido pela Cúria Romana e serviu para avaliar como as sessões ocorreriam, seu ritmo e a profundidade das decisões. Se os bispos e delegados presentes nas aulas conciliares não entrassem em comum acordo neste tema, com os demais seria pior, previa-se. As comissões que organizaram o Concílio esperavam que haveria uma consciência comum de que, como afirma a constituição:
(...) a liturgia é o cume para o qual tente a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força. Pois os trabalhos apostólicos se ordenam a isso: que todos, feitos pela fé e pelo Batismo filhos de Deus, juntos se reúnam, louvem a Deus no meio da Igreja, participem do sacrifício e comam da ceia do Senhor" (Vaticano II, 1968, p.265)
Então, partindo desta força espiritual e divina, o consenso, ou mais que isso, a comunhão, ocorreria nas reuniões plenárias. De fato, esse primeiro teste obteve relativo sucesso. O primeiro ponto de amplo debate foi a questão da utilização da língua vulgar ou do latim nas celebrações. Com a discussão deste tópico também começaram a ficar claras as articulações entre alguns grupos. A língua latina simbolizava a universalidade da igreja e, em certo sentido, sua posição de guardiã das tradições apostólicas. Já a liberdade de utilizar línguas vivas confirmava o caráter essencialmente pastoral do Concílio, como desejava o Papa João XXIII, e a postura de diálogo com a sociedade contemporânea.
Em vinte dias de debates, duzentos e cinquenta e três padres fizeram trezentos e vinte e oito intervenções orais e duzentos e noventa e sete intervenções escritas. O método das decisões teria de mudar e as comissões trabalharem com mais eficiência, como afirma Lamberigts (2000, p.114). Com tal trabalho de maior articulação entre as posições, foi emergindo uma via média, atribuindo-se às conferências episcopais a capacidade plena de legislar sobre o assunto. Com a aprovação de dois mil cento e dezoito padres (Lamberigts, 2000, p.163), o texto final optou por essa via mediana:
... já que, ou na Missa, ou na administração dos Sacramentos ou em outras partes da Liturgia pode, não raro, o emprego da língua vernácula ser muito útil ao povo, permite-se dar-lhe um lugar mais amplo [...]; pertence à competente autoridade eclesiástica territorial [...] estabelecer as leis sobre o uso e o modo da língua vernácula, aprovadas ou confirmadas as decisões pela Santa Sé (Vaticano II, 1968, p.275).
Destaque-se, em primeiro lugar, o poder decisório dos bispos, confirmando um tema importante quanto à colegialidade eclesiástica do catolicismo romano. Outro ponto importante da constituição aprovada está na linha final deste parágrafo, pois a cúria romana não baixou a guarda, assegurando sua competência legítima em confirmar o que for decidido.
No outro tópico de intenso debate, a comunhão sob duas espécies - os fiéis leigos poderiam participar do mesmo modo que os sacerdotes, comungando da hóstia e do vinho - o papa teve que intervir e atribuir à presidência da sessão a faculdade de encerrar o debate quando considerasse que estivesse suficientemente refletido (Lamberigts, 2000, p.133). Por fim, a participação do laicato com ambos os elementos foi reforçada, mesmo que sob o "juízo dos Bispos" (Vaticano II, 1968, p.282).
Em termos práticos, essas decisões marcaram bem mais o cotidiano dos católicos em todo o mundo do que os longos debates teológicos acerca do caráter da revelação de Deus, por exemplo. Elas trouxeram aos fiéis uma percepção clara das modificações eclesiásticas que estavam ocorrendo, do que se buscava nas longas reuniões conciliares e do novo espírito de abertura às demandas sociais que sopravam pelas apertadas janelas dos templos.
O processo conciliar: idas e vindas
Não é o intuito deste trabalho historiar cada documento do Concílio ou as formas decisórias das congregações gerais, o que já foi feito de modo exemplar na obra coletiva organizada por Giuseppe Alberigo (1995; 2000). O que se busca apontar são os meandros interpretativos assumidos pela Igreja Católica no Brasil e, de modo especial, na Arquidiocese de Goiânia, um lugar que mantinha as características tradicionais da economia rural.
No caso da língua da celebração eucarística, por exemplo, o arcebispo Dom Fernando Gomes dos Santos iniciou, em 1965, como determinado pela Santa Sé, a implantação da Constituição Sacrossantum Concilium. Apesar do cuidado com as mudanças bruscas e das muitas recomendações aos padres, estabeleceu-se as traduções feitas diretamente do Latim e recomendou-se a oração do Pai Nosso em língua vernácula2. Isso feito de acordo com as recomendações da Congregação dos Ritos, que guiava o processo, e reforçada pelas decisões tomadas colegiadamente na CNBB. Em 1969, em sua assembleia anual, os bispos do Brasil reforçavam os bons frutos que tinham sido obtidos com a liturgia mais participativa e com o povo de Deus como um todo realizando as orações3.
Ao observar as datas acima, pode-se perceber como a execução do Concílio Vaticano II foi um processo. Às vezes mais lento em alguns tópicos, outros com maior rapidez e outras decisões que, apesar de aprovadas, serão simplesmente ignoradas em diversas regiões. Ressaltamos tal perspectiva em contraposição à concepção tão comum de considera-lo enquanto um evento.
A igreja católica romana, desde a convocação do Papa João XXIII, sustenta a tradição de considerá-lo o acontecimento mais importante nos últimos quinhentos anos de história do catolicismo. Tal noção acabou sendo incorporada amplamente pela historiografia acadêmica. Um exemplo é dado pelo trabalho de Giuseppe Alberigo que, ao discutir os critérios hermenêuticos do Concílio, defende que ele deve ser tratado como um evento gerando várias interpretações (1993, p.14). Ele propõe, então, neste texto metodológico, estabelecer alguns critérios interpretativos, mas não questiona a noção eventual.
Preferimos compreender o Vaticano II dentro de um quadro mais processual, de idas e vindas, de construções mútuas e até de desacordos sobre o que se estaria construindo. Esta noção de considerá-lo dentro de uma matriz eventual sustenta, na verdade, outro conceito muito comum, de origem teológica e incorporado pela historiografia: o de recepção.
A ideia de recepção, a princípio, é um ganho. Ela indica, corretamente, que os documentos estabelecidos não foram somente aplicados ou reproduzidos de maneira mecânica. Houve um processo criativo na transformação do texto em prática, ou de ressignificação a partir da realidade das igrejas particulares. Sérgio R. C. dos Santos sofisticou o conceito quando trabalhou, em sua tese de doutorado, a partir da teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas. "O acontecimento-ruptura Concílio Vaticano II" foi recebido por sujeitos orientados pela racionalidade comunicativa dos vários agentes eclesiais, guiados por uma "socialização reflexiva" e por uma tentativa de "intercompreensão" (2015, p.56).
Porém, se enfatizarmos mais o caráter processual poderemos perceber melhor o processo de criação do próprio Concílio, de seus decretos, constituições e declarações. Não há somente recepção, até porque ainda na primeira fase conciliar foi feita uma ampla consulta ao episcopado mundial do que deveria ser tratado em Roma. Qual o sentido de estudar as demandas e expectativas dos grupos católicos se o Concílio não fosse esta construção mútua? Tais expectativas moldaram o que ocorreu naquelas sessões de intenso trabalho, até as provocadas pela mídia. Como escreveu Beozzo, "nenhum concílio do passado atingira as massas tendo sido por elas condicionado: será a experiência do Vaticano II" (1996, p.356). O peso disso levou, inclusive, à rejeição de mais de noventa por cento (90%) dos esquemas preparatórios apresentados aos padres conciliares, conforme os cálculos de Alberigo (1996, p.495). De fato, essa tensão continuou posteriormente guiando a hermenêutica dos documentos conciliares ao serem recriados e inscritos contextualmente. Na perspectiva proposta por Michel de Certeau, os leitores praticam os textos que recebem (1996, p.264).
Calculando o impacto
Nesta perspectiva analítica, certo debate historiográfico sobre o impacto ou as consequências do Concílio pode ser revisto. Identificamos duas tendências principais na historiografia brasileira. A primeira, formada por autores que possuem certa relação com a instituição eclesiástica. Eles costumam ressaltar a importância do processo conciliar nas transformações do catolicismo nacional.
O caso exemplar é o da obra de José Oscar Beozzo (2005). Escritor profícuo, inclusive acerca do tema em tela4, ele por muitos anos não teve titulação acadêmica de doutorado reconhecida no Brasil. Dedicou, então, para obter seu doutoramento em História Social pela Universidade de São Paulo, a realizar uma pesquisa sistemática acerca da participação do episcopado brasileiro nas reuniões conciliares. O autor ressalta o período em que os bispos conviveram juntos, acarretando modificações profundas na Igreja católica do Brasil, praticamente recriando a CNBB e dando consistência ao Plano Pastoral de Conjunto.
Os documentos publicados pelo Vaticano II e as interpretações locais recebidas, não estão no foco central das análises, produzindo o autor a construção de uma prosopografia histórica do episcopado brasileiro. Ele ressalta a nova sociabilidade clerical, a renovada concepção de igreja e o grande projeto de catolicização da sociedade nacional que emergira durante a execução do Concílio em Roma. O Vaticano II seria um momento de ruptura:
O Concílio, no Brasil, não se converteu em ajuste de contas com o passado, como em outros lugares, em particular a Europa, a não ser de modo muito marginal e periférico. Foi visto, ao contrário, como uma grande oportunidade para enfrentar os desafios do presente e do futuro, reinventando de certa forma a igreja, como comunidades de base e pastorais populares. Foi essa forma de recepção cheia de sonhos e projetos para o futuro que marcou a Igreja do Brasil... (2005, p.362).
Outros autores que tiveram suas vidas, de algum modo, ligadas à formação eclesiástica podem ser reunidos neste grupo de perspectiva "otimista", desde Cândido P. F. Camargo (1973) até Oscar F. Lustosa (1991), passando por Luis E. Wanderley (2007), já referido. Uma exceção importante aqui foi o estudo de Roberto Romano (1979), que criticou radicalmente o caráter inovador do Concílio, sugerindo que a igreja continuou profundamente elitista e autoritária, apesar das vestes modernizantes e dos discursos assumidos após a década de sessenta.
A outra vertente é representada, de modo até curioso, majoritariamente pelos brasilianistas, ou seja, os norte-americanos que estudam a sociedade brasileira. Um pioneiro importante, que teceu sua análise ainda no calor da hora, foi Thomas Bruneau (1974). Este autor ressalta, com a utilização de muitos dados, as transformações do catolicismo brasileiro principalmente após a década de cinquenta do século XX. Segundo seus argumentos, a mudança de postura junto às classes populares ou a modernização da estrutura eclesiástica já vinham ocorrendo antes e o Concílio Vaticano II mais reforçou o que estava sendo desenvolvido nas pastorais da igreja do Brasil. Scott Mainwaring (1989) seguiu neste mesmo diapasão, quando chega a escrever que:
Entre 1964 e 1968, a CNBB preocupou-se mais com sua ordem interna do que com a política e com a ação social. Nem mesmo o Vaticano II, o surgimento de uma teologia mais especificamente latino-americana e uma grande variedade de inovações pastorais nas bases foram suficientes para fazer com que a CNBB se esforçasse para promover a justiça social. (1989, p.104)
A perspectiva "pessimista" com a contribuição do processo conciliar prosseguiu com Kenneth P. Serbin. No extenso estudo acerca da comissão de diálogo entre os bispos brasileiros e os militares, formada no auge da repressão ditatorial, ele afirma que o Concílio mais atrapalhou que ajudou:
O Vaticano II criou grandes expectativas mas também muita incerteza na Igreja. Depois de tanta mudança, o que significava agora ser católico? Os padres simbolizavam a crise de identidade. Exigia-se que a mentalidade deles saltasse de repente do século XVI para o XX, mas o Vaticano não ajudava muito a esclarecer o novo papel. [..] Como consequência, dezenas de milhares de religiosos, em várias partes do mundo, deixaram o ministério. Somente no Brasil quase dois mil padres deixaram a batina entre 1967 e 1976 [...]; a Igreja perdeu algumas de suas melhores cabeças (2001, p.102).
Este pesquisador realizou estudo posterior demonstrando a grande renovação pré-conciliar do catolicismo brasileiro, enfocando nessa obra especialmente a formação seminarística. No livro, reafirma que as regulamentações do Concílio acabaram prejudicando a grande criatividade e o "experimentalismo pastoral" desenvolvido pelo clero. O máximo que consegue chegar está na indicação de que teria ocorrido no Brasil, referindo-se ao início dos anos oitenta, "uma síntese imperfeita dos modelos pré e pós-Vaticano II" (Serbin, 2008, p. 294).
Por que essa tendência analítica predomina entre os estudiosos estrangeiros? Sabe-se que a crescente tendência de oposição, e certa aproximação com o socialismo, assumida pelos movimentos sociais e religiosos durante a década de sessenta preocupava a política internacional norte-americana, substituindo o interesse predominante anterior tratando das relações raciais. Mas a existência de bolsas de estudo ou a criação de Institutos de Pesquisa não determina uma forma de interpretar. O grupo parece ter tido preferência em ressaltar os movimentos internos da sociedade brasileira, buscando compreender o país em sua especificidade ainda que não retomem propriamente a questão clássica da identidade nacional (Pereira e Silveira, 2018).
De qualquer modo, Kenneth Serbin foi um dos poucos que deu maior relevância ao arcebispo de Goiânia em seus estudos. E, ao abordá-lo, sugere que a historia de Dom Fernando demonstra três princípios fundamentais, que adotamos em nosso trabalho: é necessário romper com "a dicotomia entre o público e o privado" ao adentrar na relação dos bispos com o regime ditatorial; há uma grande inadequação na distinção entre ala progressista e ala conservadora, fórmula midiática que prejudica o melhor entendimento da Igreja católica no Brasil; o episcopado tem exercido um "duplo papel, como clérigos e políticos" (2001, p.290).
Geralmente, o objeto de estudo aqui enfocado recai em tais rótulos. As decisões tomadas no Vaticano II não ocorreram sem a formação de grupos, onde havia, sim, uma nova sociabilidade, mas também fortes fronteiras entre o episcopado de um mesmo país. Rodrigo C. Caldeira (2011), por exemplo, estudou um grupo importante, liderado por bispos brasileiros, que foi marcado pela resistência às inovações ressaltadas por Beozzo (2005) e se opunham ao "experimentalismo pastoral" destacado por Serbin (2008). Não se trata somente de afirmar a pluralidade dos catolicismos, como tem sido comum atualmente, mas também de aceitar a relatividade dos conceitos e classificações, reconhecendo que a instituição religiosa católica uma eclesiosfera onde circulam diversos sujeitos e que articula diversos mundos sociais (Poulat, 1986).
O catolicismo brasileiro vivenciou o processo do Vaticano II com suas experiências e demandas, pois sua historicidade própria gestava os lugares5 que permitiam ou vedavam as modalidades de agir e de pensar. Simultaneamente, os católicos possuíam expectativas demarcando os modos de apropriação do que aconteceu durante aqueles anos na Europa. A instituição eclesiástica vem articulando esses distintos espaços por séculos, através de um enorme aparelho burocrático, dos órgãos da cúria, da troca constante de informações e de pessoas. Nós, os pesquisadores, também adentramos nesse mundo com nossas projeções e desejos, com concepções deontológicas embutidas nas conceituações que criamos para interpretar a multiplicidade de configurações desta ampla eclesiosfera.
Nas trilhas tortuosas do sertão
Dom Fernando Gomes dos Santos nasceu, foi ordenado padre e bispo no nordeste brasileiro. Quando foi transferido para Goiânia, em 1957, estava como bispo de Aracaju. Ressaltamos este aspecto regional para demonstrar que ele se enquadra bem no grupo dos bispos nordestinos, criados sob a inspiração do projeto de neocristandade e dentro da visão militante da Ação Católica, da qual fora assessor.
Esse grupo, capitaneado por Dom Helder Câmera, ocupava os principais cargos da CNBB no final da década de cinquenta e início da década de sessenta. Ao participar de sua comissão central, Dom Fernando esteve na elaboração de documentos com forte orientação social publicados pela entidade neste período. Também esteve atuante nos projetos estabelecidos juntamente com o governo federal, a exemplo do Movimento de Educação de Base (MEB), e no processo de mudança para a nova capital federal, a atual cidade de Brasília, construída em território goiano.
Uma iniciativa que projetou seu nome nacionalmente foi a forma de intervir no tema candente, na época, da alta concentração das terras agrícolas. O arcebispo optou por promover um assentamento nas terras pertencentes à própria Arquidiocese de Goiânia. A fazenda Nossa Senhora da Conceição era um plano-piloto para a desejada reforma agrária realizada dentro dos parâmetros cristãos, solidários e democráticos. Portanto, com a execução deste projeto, o episcopado buscava demonstrar que os caminhos violentos do comunismo ou do egoísmo excludente capitalista eram vias equivocadas, ao mesmo tempo em que a igreja católica, de maneira concreta, atuava no mundo sertanejo6 tentando
...valorizar o homem e seu trabalho; proporcionar meios técnicos para a produção; oferecer educação para os filhos e saúde; ensinar a sã doutrina da solidariedade e do amor ao trabalho, despertando o senso de responsabilidade e a capacidade de tomar conhecimento e procurar solução para seus problemas e para os problemas comuns7
Esse tipo de postura, visando respostas e fundamentos cristãos para as questões sociais e politicas, predomina na forma de agir de Dom Fernando, o que também é encontrado nos pronunciamentos de outros bispos. Algo semelhante ocorre tanto com a rejeição da visão capitalista de sociedade quanto com o combate à via socialista de transformação. Não se trata exatamente da busca de um caminho equidistante ou neutro, mas da busca de demonstrar a superioridade da salvação cristã, indo além das soluções criadas por meros seres humanos. Como é sabido, essa tem sido a posição majoritária da chamada Doutrina Social da Igreja desde, ao menos, o padrão estabelecido pela encíclica Rerum Novarum (Camacho, 1995, p. 12), buscando-se pensar de um lugar além da polarização promovida pela Guerra Fria.
A hierarquia eclesiástica, no fundo, costuma acreditar no potencial humano, por meio do ideal de conversão que levaria os sujeitos a rejeitarem os interesses puramente materiais e a assumirem o ideal de construir relações fraternas e cristãs. Um exemplo desta forma de pensar e agir está na criação da Frente Agrária Goiana, em novembro de 1961, que reunia fazendeiros e camponeses para vivenciar a doutrina social nos meios rurais. Essa frente ampla pretendia formar lideranças, promover a educação no campo, incentivar a formação dos sindicatos, legalizar a propriedade da terra de forma justa e adequada, respeitando as leis nacionais, a partir dos valores do desenvolvimento econômico proclamados por João XXIII na encíclica Mater et Magistra8.
O aggiornamento promovido pelo Concílio Vaticano II na Arquidiocese de Goiânia seguiu esse mesmo modus operandi. Algumas decisões foram implantadas de forma mais rápida, a exemplo da constituição acerca da liturgia, já comentada nesse trabalho, entretanto, no geral, as transformações foram promovidas pelo clero de forma lenta, filtradas por princípios hermenêuticos que selecionavam somente algumas partes dos documentos. Não se trata de visão parcial, mas de seleção hermenêutica a partir das demandas locais, do reforço dos princípios da atuação pastoral e da renovação da igreja sob controle do báculo episcopal.
No entanto, não foi pelo movimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEB's) que tais mudanças chegaram, nem provieram da "opção pelos pobres", proclamada em Medelín. As CEB's existiram de fato na Arquidiocese de Goiânia e Dom Fernando foi ativo na assembleia episcopal ocorrida em 1968 na Colômbia. Ambos foram importantes, mas, defende-se aqui, tiveram impacto posterior, somente na década de setenta. A nosso ver, esses elementos nem possuem uma relação direta com o Concilio9. Para nossa surpresa, o que se destacou na pesquisa feita nos arquivos foi um movimento sobre o qual quase não encontramos muitas análises aprofundadas, chamado Movimento para um Mundo Melhor (M.M.M.).
Ele surgiu na Europa durante a década de cinquenta, a partir da espiritualidade jesuítica. Thomas Bruneau trata de seus cursos e encontros promovidos no início dos anos sessenta, tanto para o clero quanto para o laicato no Brasil (1974, p.279). Neste período, a crise com os movimentos especializados da Ação Católica se acentuou e o episcopado estava incomodado com a autonomia requerida pelos grupos, especialmente os movimentos de juventude10. Nesse momento de conflitos internos, aliado às grandes incertezas políticas - renúncia do presidente Jânio Quadros (1961), instabilidade do governo de João Goulart (1962 - 1964) - assomada com a insegurança teológica, fez M.M.M. emergir como uma solução viável para a reorganização do laicato.
Dom Fernando tinha simpatia pelos movimentos de juventude e incentivou-os na Arquidiocese de Goiânia ainda depois da ruptura oficial com a CNBB, depois do movimento que levou ao golpe civil-militar de 1964 (cf. Duarte, 1996). Todavia, de maneira curiosa, no retiro convocado pela Arquidiocese para celebrar os dez anos de criação da Ação Católica especializada, foi o líder internacional do M.M.M. quem veio ministrar o curso. O jesuíta italiano Pe. Lombardi pregou, então, sobre a importância da renovação paroquial e ressaltou que obediência à hierarquia era fundamental. A forma de cultivar a espiritualidade nesse movimento é bem mais individualizada, comparando-se com a ensinada pelos movimentos da Ação Católica, além do objetivo precípuo de combater "o império ateu do comunismo". O M.M.M. visava melhorar o mundo promovendo:
1°) Maior participação divina nos indivíduos, quanto ao número dos filhos de Deus em contínuo aumento e quanto à intensidade de uma vida de Graça; 2°) Relações entre homens sempre mais dignas dos filhos de Deus, isto é, praticamente inspirados na caridade autêntica: cada um veja Jesus no irmão, o ame e o sirva, e o ajude quanto possa, em Jesus; 3°) Estruturas organizadas da convivência humana, sempre em maior correspondência com a nossa sublime dignidade na Glória de Deus e salvação universal: na escola, divertimentos, moda, teatro, comércio, direito penal, Política...11
Em Goiânia, as propostas de renovação que partiram do Vaticano II foram debatidas em retiros organizados pelo M.M.M., que normalmente reunia bispos, padres, religiosos e laicato. A CNBB, inclusive, deu apoio institucional ao movimento, incorporando-o no Plano de Emergência (Farias, 2005). Ainda seguindo as orientações da CNBB, a Liga Eleitoral Católica na Arquidiocese de Goiânia foi substituída pela Aliança Eleitoral pela Família em 1962, que deveria apoiar somente os candidatos a cargos eleitorais defensores da doutrina e da estrutura familiar cristã12.
Há ainda outro movimento importante na implantação das reformas conciliares no contexto goianiense: o Movimento Familiar Cristão (M.F.C.). Ele foi organizado na Arquidiocese no inicio de 1959, empolgando muitos grupos leigos paroquiais. Esse movimento também teve o apoio oficial da CNBB, sendo assessorado nacionalmente por Dom Lucas Moreira Neves13. Esse bispo ficou conhecido na igreja brasileira por não testemunhar sobre a tortura de seus confrades dominicanos, mesmo tendo-os visto machucados no leito de um hospital (Serbin, 2001, p.43).
Por fim, encontramos a presença do Movimento dos Cursilhos de Cristandade, que teve origem na Guerra Civil Espanhola (1933-1939) e fora implantado no Brasil em 1962. Seu ideário permaneceu próximo à nostalgia da Cristandade, buscando afastar especialmente a juventude das tentações laicistas. Por meio de encontros com duração rápida, transmitia uma formação voltada para as "verdades essenciais da fé cristã" e para o "compromisso eclesiástico" (Gomes, 2009, p. 40).
Não foi apenas nas dioceses sertanejas que a estrutura dos encontros cursilhistas foi utilizada para a difusão das inovações trazidas pelo Concílio Vaticano II. Mas é importante ressaltar que a tendência clerical reforçou uma interpretação conservadora dos documentos conciliares, coadunada com um contexto mais tradicional.
Os cursilhos se colocam em oposição aos movimentos ligados à Ação Católica, como esclarece seu fundador, Dom Hervás, em 1967:
No Cursilho de Cristandade não se trata direta e expressamente da questão social, familiar, econômica ou política e de suas soluções cristãs, mas do fundamental cristão, base imprescindível e princípio radical de toda solução humana e cristã (apud Gomes, 2009, p.100).
Esse apoio aos movimentos mais ligados à hierarquia e menos politizados resultou, possivelmente, dos conflitos ocorridos com os movimentos de juventude, como afirmamos acima. Isso levou o clero goianiense, bem como o episcopado de modo mais geral, a apoiá-los na difícil formação do laicato, ênfase fundamental do Vaticano II.
Predominava entre os bispos brasileiros no início da década de sessenta, como afirmou Mainwaring (1989), uma posição nem esquerdista, nem direitista. Eles estavam tentando adotar a noção de igreja como povo de Deus, incentivar a participação dos leigos, mas, ao mesmo tempo, estavam muito preocupados com a disciplina e a obediência. Concluiu este autor dizendo que "a despeito de mudanças substanciais, ao final dessa década, a Igreja permanecia relativamente conservadora" (Mainwaring, 1989, p.65).
O arcebispo de Goiânia demonstrou em várias ocasiões sua preocupação com aquele "momento de transição". Considerava importante manter "o equilíbrio, o bom senso, a decisão corajosa dos responsáveis pelos destinos da comunidade"14. Importante ressaltar que as ênfases apontadas nesse artigo contrapõem-se à narrativa, comumente encontrada, que coloca o foco exatamente nas contribuições dadas pela Ação Católica no processo das transformações decorrentes do Concílio (v.g. Richard, 1982).
Considerações finais
Dom Fernando Gomes dos Santos tornou-se um defensor dos Direitos Humanos, combateu as perseguições injustas do regime ditatorial brasileiro, promoveu as CEB's e auxiliou na criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que foi fundada em Goiânia no ano de 1975. Se isso ocorreu de fato, contudo não podemos fazer uma leitura anacrônica e projetar essa outra conjuntura na análise da década anterior.
Os trajetos interpretativos das decisões do Concílio Vaticano II foram tortuosos e sua dinâmica foi conturbada no complexo movimento histórico da eclesiosfera brasileira. O contexto de mobilização social, destacando-se os conflitos com o regime civil-militar, nunca foi linear, mas eivado de negociações que demarcaram, obviamente, as apropriações dos textos conciliares.
Esse trabalho buscou demonstrar o medo e a incerteza nas opções pastorais assumidas em uma região central do Brasil, na qual as novidades foram anunciadas sem romper com as tradições religiosas hegemônicas. Nosso intento principal foi sair das interpretações gerais e observar um pouco melhor os filtros hermenêuticos locais, utilizando como fonte documental principal as páginas da Revista da Arquidiocese. Essa história mais particular ainda precisa ser investigada. A história das interpretações da fé cristã, afinal, nunca é simples.