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Prolegómenos

versão impressa ISSN 0121-182Xversão On-line ISSN 1909-7727

Prolegómenos vol.26 no.51 Bogotá jan./jun. 2023  Epub 17-Out-2023

https://doi.org/10.18359/prole.6224 

Artículos

Os chefes de Estado: seus poderes e atribuições no constitucionalismo brasileiro e espanhol, com recorte crítico entre os sistemas de governo*

Heads of State: their powers and attributions in Brazilian and Spanish constitutionalism, with a critical review of the systems of government

Los jefes de Estado: sus poderes y atribuciones en el constitucionalismo brasileño y español, con recorte crítico entre los sistemas de gobierno

Maria José Guedes Gondim Almeidaa 

Maíra Gondim Almeidab 

a Doutoranda em Direito pela Universidade Nova de Lisboa. Mestra em Ginecologia e Obstetrícia pela Universidade Estadual Paulista, Botucatu, Brasil. Especialista em Bioética pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil. Professora-adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. Médica. Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. Correo electrónico: zezeggondim@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6452-0046

b Mestra em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Padre ArnaldoJanssen, Brasil. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Candido Mendes, Brasil. Advogada. Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. Correo electrónico: gondimmaira@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1006-238X


Resumo:

o presente trabalho possui por escopo precípuo promover um estudo sobre as competências constitucionais dos chefes de Estado no direito constitucional brasileiro e espanhol. Parte-se da análise da Constituição brasileira, cuja última edição foi promulgada em 1988, e da Constituição espanhola, editada em 1978, ambas contextualizadas no enfoque histórico-político. Dentro desse contexto, promove-se, ao longo deste estudo, uma análise comparada dos poderes, atribuições e responsabilidades dos referidos chefes de Estado para, ao final, estabelecermos um recorte crítico entre os dois sistemas de governo: de um lado, o presidencialismo brasileiro e, de outro, a monarquia constitucional espanhola, em especial naquilo que se refere à consolidação democrática no mundo moderno.

Palavras-chave: chefes de Estado; constitucionalismo brasileiro; constitucionalismo espanhol

Abstract:

The main purpose of this paper is to promote a study on the constitutional powers of the Heads of State in Brazilian and Spanish Constitutional Law. It is based on the analysis of the Brazilian Constitution, whose last edition was promulgated in 1988, and the Spanish Constitution, published in 1978, contextualized in the historical-political approach. In this context, a comparative analysis of the powers, attributions, and responsibilities of the referred heads of state is promoted throughout this study to establish a critical approach between the two systems of government: on the one hand, the Brazilian presidential system and, on the other hand, the Spanish constitutional monarchy, especially concerning democratic consolidation in the modern world.

Keywords: heads of state; Brazilian constitutionalism; Spanish constitutionalism

Resumen:

El presente trabajo tiene el propósito principal promover un estudio acerca de las competencias constitucionales de los jefes de Estado en el Derecho Constitucional brasileño y español. Se parte del análisis de la Constitución brasileña, cuya última edición se promulgó en el 1988, y la Constitución española, editada en el 1978, ambas contextualizadas en el enfoque histórico-político. En este contexto, se promueve, a lo largo de este estudio, un análisis comparado de los poderes, atribuciones y responsabilidades de los referidos jefes de Estado para, al fin, establecer un enfoque crítico entre los dos sistemas de gobierno: de una parte, el presidencialismo brasileño y, de otra, la monarquía constitucional española, en especial en aquello que se refiere a la consolidación democrática en el mundo moderno.

Palabras clave: jefes de Estado; constitucionalismo brasileño; constitucionalismo español

Introdução

O presente trabalho possui como escopo precípuo promover uma microcomparação do sistema constitucional brasileiro e espanhol, principalmente com relação às competências constitucionais dos chefes de Estado, partindo de uma investigação documental e revisão bibliográfica. Construímos nossa análise a partir do constitucionalismo moderno, na medida em que a garantia do Estado democrático de Direito ampara-se na construção de um Estado constitucionalizado, cuja característica principal é a supremacia da Constituição ante qualquer outra norma legal. Cumpre-nos, nesta introdução, conceituarmos o constitucionalismo, bem como contextualizá-lo historicamente. Ademais, é mister pontuarmos sua relevância na construção de um Estado constitucional. Segundo Moraes (2005), o constitucionalismo é o movimento jurídico e político que tem por finalidade limitar o poder do Estado sobre os indivíduos, fixando textos normativos por meio de uma constituição escrita. O autor elenca como marco histórico importante a Magna Carta Libertatum do rei João Sem Terra (King John), que, em 1215, formalizou o pacto entre o rei e os barões ingleses, com o estabelecimento de limitações recíprocas, mormente na cobrança de tributos.

Todavia, o marco formal do constitucionalismo ocorreu em 1787, com a edição da Constituição norte-americana. A partir de então, começa-se a vislumbrar o surgimento da ideia do Estado democrático de Direito (Úbeda-Português, 2011). Assim, por meio da noção de uma norma fundamental escrita, visa-se normatizar a organização e separação de Poderes, o regime de governo e as formas de Estado, bem como as normas relativas à compatibilização das relações entre os indivíduos e o Estado.

Com a edição da Constituição francesa de 1791, fruto da Revolução francesa de 1789, incorporam-se ao constitucionalismo os ideários da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, assimilados na Constituição norte-americana, por Thomas Jefferson, no século 19 e, posteriormente, em todas as constituições escritas que se seguiram.

Para Canotilho (2003), o constitucionalismo moderno subjaz a partir de um conceito de constituição moderna que, segundo o professor, é uma “ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político” (p. 48).

A partir dessas considerações preliminares e com base em uma microcomparação - que pode ser definida como uma comparação entre um instituto ou um problema mais específico -, realizamos uma comparação entre os chefes de Estado dos sistemas constitucionais brasileiro e espanhol, principalmente no que concerne aos seus poderes, atribuições, responsabilidades, bem como à relação deles com os Poderes Legislativo e Judiciário.

Para esta análise, inicialmente buscamos um enquadramento histórico-político do processo constituinte das atuais Constituições do Brasil (1988) e da Espanha (1978). Em seguida, identificamos similitudes e diferenças entre tais sistemas, a partir da construção de quadro comparativo, em que elas são identificadas. Ao final, propõe-se discutir, tendo como referencial teórico as ideias dos cientistas políticos Linz e Stepan (1999), a consolidação democrática, com base na comparação entre os sistemas presidencialista, parlamentarista e a monarquia constitucional, considerando pontos positivos e negativos relevantes para a democracia.

Referido recorte demonstra-se relevante porque tanto o Brasil quanto a Espanha construíram o seu constitucionalismo pautado no Estado democrático de Direito. Entretanto, diferem-se com relação ao sistema de governo, na medida em que, no Brasil, vigora o sistema republicano presidencialista e, na Espanha, a estrutura da monarquia parlamentar.

Para fins de facilitar a exposição do tema ora proposto, o presente trabalho é dividido em seis eixos temáticos, dentro dos quais são abordadas as seguintes questões: a contextualização da microcomparação no direito comparado; o enquadramento histórico-político do processo constituinte das constituições brasileira e espanhola; a sistematização das duas constituições, suas similitudes e diferenças; os poderes, atribuições e responsabilidades dos chefes de Estado em ambas as constituições; os chefes de Estado e a relação com os demais poderes; o presidencialismo brasileiro e a monarquia parlamentar espanhola na consolidação da democracia no mundo moderno; e, por fim, as considerações finais sobre o tema proposto.

O contexto da microcomparação no direito constitucional comparado

Entende-se por direito comparado o estudo das diferenças e semelhanças entre os estatutos legais de países conjuntamente analisados, comparando os sistemas jurídicos existentes, com o interesse de promover-se um internacionalismo do direito na contemporaneidade (Gouvea, 2013). Além disso, visa-se propiciar, por meio do estudo comparado, a globalização econômica e o processo de democratização. Destarte, por meio do estudo comparado do direito constitucional, promove-se uma comparação entre os diferentes sistemas constitucionais, a fim de perceber suas similitudes e suas divergências.

A esse respeito, Gouvea (2013) estabelece algumas das funções alcançadas a partir das comparações: i) função pedagógica (possibilita o conhecimento de soluções próprias); ii) função hermenêutica (oferece contributos para a interpretação e a integração de lacunas); iii) função prospectiva (dá pistas para uma alteração legislativa no futuro); e iv) função formativa (contribui para a elevação cultural dos juristas). O mesmo autor elenca como metodologia comparatista dois modelos que, por apresentarem dissociações radicais entre si, necessitam de prévia e cautelosa escolha.

Nesse contexto, por um lado, define-se como macrocomparação a análise de blocos ou ordenamentos jurídicos coletivamente considerados. Por outro, considera-se microcomparação a investigação de institutos ou problemas especificadamente particularizados.

Destarte, o presente trabalho volta-se para um estudo focalizado na função formativa, utilizando-se como método comparativo o modelo da microcomparação.

Enquadramento histórico- político do processo constituinte das constituições brasileira e espanhola

Ao contextualizarmos o processo constituinte do Brasil e da Espanha, na edição de suas atuais constituições, observa-se que ambos emergem de um mesmo ideário, pautado, principalmente, na consolidação da democracia. Isso porque ambos os Estados vivenciariam as austeridades dos regimes autoritários, com fortes censuras às liberdades individuais, o que acelerou, sobremaneira, o desenvolvimento do processo de democratização das sociedades (Maddex, 2008).

No que se refere à realidade espanhola, os períodos autoritários se materializaram na Ditadura de Franco e, com relação ao Brasil, na Ditadura Militar. Na Espanha, o processo ditatorial franquista coincidiu com a Guerra Civil Espanhola, sendo palco de uma série de atrocidades, com marcas profundas no povo espanhol até hoje (Villaamil, 1978).

Ambas as constituições foram consequência de processos históricos de transição de regimes ditatoriais, representando uma grande conquista, a partir do avanço dos direitos fundamentais e da consolidação democrática, mesmo possuindo divergências na formulação do tipo de governo.

I. Enquadramento histórico-político da Constituição do Brasil

A primeira Constituição brasileira foi editada em 1824, ainda no período do Império (Segundo Reinado). Fortemente influenciada pela Constituição francesa, como todas as demais editadas nessa época, a Constituição de 1824 promoveu a inclusão da garantia dos direitos e liberdades individuais e a separação dos poderes políticos, defendida pelas ideias iluministas de Montesquieu (1689-1755). Nessa época, o sistema de governo no Brasil era a monarquia constitucional e o rei exercia o poder moderador (Boeira, 2011).

As ideias republicanas emergem no Brasil em 1891, quando editada nova constituição, cujo maior mentor intelectual foi Rui Barbosa (1849-1923). Com o advento da Constituição de 1891, o constitucionalismo norte-americano representou considerável influência no ideário republicano e no sistema jurisdicional constitucional brasileiro. A própria denominação da república brasileira inspirou-se no modelo norte-americano, chamando-se a “República dos Estados Unidos do Brasil”. Essa forte influência perdurou até os idos de 1930 (Camargo, 2009).

A Constituição de 1934 teve como impacto político a apresentação de ideias inovadoras em relação aos direitos sociais, o sufrágio feminino, bem como a criação da Justiça Eleitoral (Camargo, 2009). Com a edição da Constituição de 1937, houve um alargamento do Poder Executivo, autorizando a edição de Decretos-Lei e ainda o controle da constitucionalidade das leis.

A quarta Constituição brasileira (1946), nos mesmos moldes da anterior, fortalece o Poder Legislativo e o Judiciário, e alarga as possibilidades democráticas, promovendo o pluralismo partidário. Para Bonavides (2000), esse texto constitucional reforçou a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, assim como o livre exercício dos cultos religiosos. Do ponto de vista político, o autor acredita que ela trouxe uma maior dignidade para os Poderes Legislativo e Judiciário, apesar do enfraquecimento do poder Executivo.

Nessa retrospectiva histórica, cumpre-nos reportar o processo constituinte da atual Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 1988). Batizada, pelo presidente da Assembleia Constituinte Ulysses Guimarães, de “Constituição cidadã”, a Constituição federal de 1988 representa a democracia brasileira em seu ápice, construída a partir de ideais emergentes da própria sociedade, à época castigada pelos rigores da Ditadura Militar.

Pontuamos, como característica marcante da Carta Magna de 1988, a exposição dos direitos fundamentais como núcleo essencial (Sobrinho, 2001), equiparando-se às Constituições portuguesa e espanhola.

II. Enquadramento histórico- político da Constituição da Espanha

A primeira Constituição espanhola foi editada em 1812 e recebeu o nome de Cádis ou La pepa. A denominação se deu em razão da data em que houve a edição da constituição, no dia de São José. Essa Constituição é considerada o primeiro documento constitucional aprovado da Península Ibérica, ficando em vigor por dois anos. A década de 1823 a 1833 é marcada pelo absolutismo monárquico do rei Fernando VII (Década Nefasta ou Omiciosa), período em que as ideias liberais foram reprimidas violentamente na cultura espanhola (Segado, 1992).

A primeira República foi instituída em 1873, possuindo duração de 11 meses. A substituição ocorreu rapidamente, a partir restauração da monarquia. O ressurgimento de uma segunda República ocorreu em 1931 e, com ela, fora editada uma nova constituição. Esse período caracterizou-se por uma estabilidade institucional, em que foi implantado um modelo liberal de Estado e houve a incorporação de movimentos sociais e políticos.

Com um golpe de Estado de setores do exército, em 1936, deflagrou-se a Guerra Civil espanhola, cuja duração se perfectibilizou em três anos, sendo, então, instaurada a Ditadura de Franco, em 1939, que perdurou até idos de 1975. Ainda em 1969, apoiado por Franco, restaurou-se a monarquia, a partir do exercício de principado e do poder moderador pelo príncipe Juan Carlos, estabelecendo-se como chefe de governo (Segado, 1992).

A partir do enfraquecimento do poder de Franco e motivada por ideais democráticos, fora editada a atual Constituição espanhola, em 1978. Aprovada mediante referendo, constituiu-se como sendo o sistema de governo escolhido para a consolidação da democracia e da monarquia constitucional parlamentar. A Constituição espanhola de 1978 trouxe estabilidade política, até então não regente na ordem política espanhola.

Sintetizando a análise com relação ao processo constitucional da Espanha e do Brasil, podemos dizer, sob um enfoque crítico, que a constituinte brasileira nasceu com uma base larga e afunilou-se durante o processo, ou seja, houve o envolvimento anterior da sociedade e depois foi montada a Assembleia Constituinte.

Já o processo constituinte da Constituição espanhola, limitou-se à elaboração da constituição e, ao final, realizou-se um referendo de apoio popular. A estruturação da Constituição espanhola ofereceu um texto que conseguiu se sustentar sem a necessidade de várias emendas. Apesar disso, em ambos os casos, verifica-se que a força normativa da constituição se encontra associada à dinâmica democrática. No momento de sua aprovação, a Constituição espanhola parecia deixar de lado muitas incertezas no processo político, o que foi sendo superado pela aceitação de suas balizas pelos partidos políticos espanhóis, situação oposta àquela vivida na Constituição brasileira, que culminou com um sem-número de emendas constitucionais.

Sistematização das duas constituições: semelhanças e diferenças

Ambas as Constituições, brasileira e espanhola, possuem estruturas semelhantes, no que se refere aos ideais democráticos e ao respeito aos direitos fundamentais. Com relação à democracia, nos preâmbulos das referidas Constituições, ela está expressa como a filosofia do processo de construção, conforme podemos observar neste trecho da Constituição brasileira (1988): “instituir o Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”, o que também é expresso no preâmbulo da Constituição espanhola (1978): “garantizar la convivencia democrática dentro de la constitución y de las leyes conforme a un orden económico y social justo”.

As duas Constituições iniciam o texto legal com a exortação aos direitos fundamentais: a brasileira dedica o Título I (dos princípios fundamentais) e Título II (dos direitos e garantias individuais), num total de 17 artigos; e a espanhola dedica o Título I (de los derechos y deberes fundamentales) com 40 artigos (do 10 ao 55). No Brasil, essa foi uma inovação em relação a outros textos constitucionais.

No que tange à estrutura da Constituição brasileira, ela está sistematizada em 9 títulos e 250 artigos. Com relação às competências constitucionais do chefe de Estado, no Brasil exercida pelo presidente da República, estão contempladas no Título IV (Capítulo II, secção I, II, iii, e do artigo 76ao 91).

A Constituição espanhola, por sua vez, apresenta 10 títulos e 160 artigos, sendo que a chefia do Estado é exercida pelo rei, a partir das disposições do Título II (De la Corona, do artigo 56 ao 65) descritivas de suas atribuições e competências.

Quadro 1 Títulos das Constituições brasileira e espanhola sistematizados 

SISTEMATIZAÇÃO
Constituição brasileira - 250 arts. Constituição . espanhola - 169 arts.
Título I - Princípios Fundamentais Título Preliminar
Título II - Direitos e Garantias Fundamentais Título I - Dos Direitos e Deveres Fundamentais
Título III - Organização do Estado Título II - Da Coroa
Título IV - Organização dos Poderes Título III - Das Cortes Gerais
Título V - Defesa do Estado e das Instituições Título IV - Do Governo e da Administração
Título VI - Tributação e Orçamento Título V - Das relações entre Governo e as Cortes Gerais
Título VII - Ordem Econômica e Financeira Título VI - Do PoderJudicial
Título VIII - Ordem Social Título VII - Economia e Finanças
Título IX - Disposições Gerais Título VIII - Da Organização Territorial do Estado
Título IX - Do Tribunal Constitucional
Título X - Da Reforma Constitucional
Disposições Constitucionais e Transitórias

Fonte: elaboração própria.

Poderes, atribuições e responsabilidades dos chefes de Estado na realidade brasileira e espanhola

Gouvea (2013), ao comparar as Constituições brasileira e espanhola, define como balizas a organização do Estado e dos Poderes, bem como o sistema de governo. No que se refere à organização do Estado, no Brasil, o modelo é federal (adotado no segundo princípio constitucional republicano), que se estabelece em quatro categorias dotadas de poder político: i) a união (titular do poder constituinte máximo e federal); ii) estados (26); iii) distrito federal (entidade político-administrativa); iv) municípios (regiões com poderes administrativos, políticos e legislativos). A Espanha, com relação à organização estatal, é um Estado unitário, que convive com a criação de comunidades autônomas (Reyes, 2008).

No contexto da organização de Poderes, o Brasil segue o tipo orgânico funcional da tripartição de Poderes, modelo herdado da influência norte-americana, nos quais teremos: i) Poder Legislativo, representado pelo Congresso Nacional (Bicameral); ii) Poder Executivo, representado pelo presidente, vice-presidente e ministros de Estado, bem como pelo Governo Federal; e iv) Poder Judiciário representado por diversos tribunais, cada qual contando com instâncias e hierarquias distintas, tendo o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal funções de instâncias extraordinárias.

Na Espanha, os poderes se organizam em órgãos políticos: i) a Coroa, sendo o rei o seu titular, e o chefe de Estado; ii) as cortes gerais, que representam o Parlamento, com formação Bicameral (Câmara de Deputados, de 300 a 400 deputados eleitos por sufrágio universal direto com mandatos de quatro anos, e o Senado, no qual 208 senadores são eleitos de forma direta e 51 escolhidos por sufrágio indireto); e iii) o governo, no qual o presidente exerce a chefia de governo, auxiliado pelos vice-presidentes e pelos ministros (Antonio e Antonio, 2018).

Com relação ao sistema de governo, no Brasil, o sistema adotado é o presidencialismo. Gouvea (2013) o define como “imperfeito”1, na medida em que se caracteriza pela unipessoalidade na chefia do Estado e de governo. Assim, o presidente é eleito por sufrágio universal e direto, e chefiará o Poder Executivo, na esfera da União e, em nome da independência dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, estabelecidos na Constituição federal (art. 2°2).

Na Espanha, o sistema de governo é o parlamentarismo de gabinete, conforme define Gouvea (2013):

O Sistema de Governo tem se encaminhado para um parlamentarismo de gabinete, mercê, por um lado, da desvitalização da componente monárquica e, por outro lado, da estabilidade governativa dada pelo sistema bipartidário que tem sempre gerado maiorias parlamentares e governativas sólidas. (p. 364)

Tecidas referidas considerações concernentes às características do Brasil e da Espanha, quanto aos seus respectivos sistemas de governo, cumpre-nos, agora, a contextualização dos chefes de Estado, no que se refere aos seus poderes, atribuições e responsabilidades políticas, expressos na Carta Magna dos respectivos países.

I. Chefe de Estado na Constituição brasileira

No Brasil, o presidente da República exerce a função de chefe de governo e chefe de Estado, como já tratado anteriormente. O Poder Executivo é exercido pelo presidente da República, auxiliado pelos ministros de Estado (art. 76, da Constituição federal3). O presidente deve primar pela garantia da interdependência dos Poderes, a partir do sistema de freios e contrapesos. Dessa forma, não há possibilidade de dissolução dos representantes do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, sob pena de afronta grave ao Estado democrático de Direito. Os critérios para a elegibilidade do presidente estão contidos no artigo 77, da Constituição federal4, entre eles ser brasileiro nato, estar em gozo dos direitos políticos e ser maior de 35 anos. A eleição se fará em dois turnos: o primeiro, no primeiro domingo do mês de outubro e o segundo, se necessário, no último domingo do mesmo mês. A eleição do candidato se processará pela maioria absoluta dos votos (sem computar brancos e nulos). Caso esse quantum não seja atingido por nenhum candidato, ocorrerá o segundo turno das eleições presidenciais. Nos casos de impedimentos ou vacância do presidente, quem o substituirá será o vice-presidente, seguido dos presidentes das Câmaras de Deputados e Senadores, e, por último, do presidente do Supremo Tribunal Federal (art. 81, da Constituição federal5). O período de exercício do mandato do presidente e vice-presidente da República, expresso no artigo 82, da Constituição, é de quatro anos, permitida uma reeleição. A hipótese de reeleição veio para o ordenamento jurídico pátrio a partir da Emenda Constitucional 16 de 4 de junho 1997, quando ocorreu a supressão da expressão “vedação da reeleição” do dispositivo legal. Assim, desde 1997, passa-se a vigorar e ser prática usual a figura da reeleição, desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, seguido por Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

As atribuições constitucionais do presidente, relacionadas à chefia do Estado, estão dispostas no artigo 84, da Constituição, incisos IV, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIX, XX, XI, XII [Brasil, 1988]) e assim expressos:

Art. 84 Compete privativamente ao Presidente da República:

[...] IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; [...] VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos; VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; IX [...] decretar o estado de defesa e o estado de sítio; X - decretar e executar a intervenção federal; XI - remeter mensagem e plano de governo ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa, expondo a situação do País e solicitando as providências que julgar necessárias; XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei; XIII - exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus ofi- ciais-generais e nomeá-los para os cargos que lhes são privativos; (Redação dada pela Emenda Constitucional n.° 23, de 02/09/99); XIX - declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional; XX - celebrar a paz, autorizado ou com o referendo do Congresso Nacional; XXI - conferir condecorações e distinções honoríficas; XXII - permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente.

Com relação às responsabilidades políticas do presidente, estas estão elencadas no artigo 85, da Constituição6 e delineadas em todos os procedimentos da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950 (Brasil, 1950), que dispõe acerca dos crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.

II. Chefe de Estado na Constituição espanhola

A Constituição espanhola de 1978 dedica o Título II - De la Corona, do artigo 56 ao 65, para dispor acerca da normatividade da chefia do Estado, desempenhada pelo rei, no contexto espanhol. Assim, reconhece-se o rei como símbolo da unidade e da permanência do Estado, assumindo a mais alta representação do Estado espanhol nas relações internacionais, conforme expresso no artigo 56, da Constituição espanhola (Espanha, 1978):

1. El Rey es el Jefe del Estado, símbolo de su unidad y permanencia, arbitra y modera el funcionamiento regular de las instituciones, asume la más alta representación del Estado español en las relaciones internacionales, especialmente con las naciones de su comunidad histórica, y ejerce las funciones que le atribuyen expresamente la Constitución y las leyes. 2. Su título es el de Rey de España y podrá utilizar los demás que correspondan a la Corona. 3. La persona del Rey es inviolable y no está sujeta a responsabilidad. Sus actos estarán siempre refrendados en la forma establecida en el artículo 64, careciendo de validez sin dicho refrendo, salvo lo dispuesto en el artículo 65, 2.

Com relação à sucessão ao trono, como nas demais monarquias, essa é feita hereditariamente, seguindo a ordem de primogenitura e de representação, norteada pelo artigo 57, inciso 17.

No que se refere às atribuições constitucionais do rei, enquanto chefe de Estado, os artigos 62 e 63, da Constituição espanhola assim prescrevem:

Artículo 62. Corresponde al Rey: a) Sancionar y promulgar las leyes. b) Convocar y disolver las Cortes Generales y convocar elecciones en los términos previstos en la Constitución. c) Convocar a referéndum en los casos previstos en la Constitución. d) Proponer el candidato a Presidente del Gobierno y, en su caso, nombrarlo, así como poner fin a sus funciones en los términos previstos en la Constitución. e) Nombrar y separar a los miembros de Gobierno, a propuesta de su Presidente. f) Expedir los decretos acordados en el Consejo de Ministros, conferir los empleos civiles y militares y conceder honores y distinciones con arreglo a las leyes. g) Ser informado de los asuntos de Estado y presidir, a estos efectos, las sesiones del Consejo de Ministros, cuando lo estime oportuno, a petición del Presidente del Gobierno. h) El mando supremo de las Fuerzas Armadas. i) Ejercer el derecho de gracia con arreglo a la ley, que no podrá autorizar indultos generales. j) El Alto Patronazgo de las Reales Academias.

Artículo 63. 1. El Rey acredita a los embajadores y otros representantes diplomáticos. Los representantes extranjeros en España están acreditados ante él. 2. Al Rey corresponde manifestar el consentimiento del Estado para obligarse internacionalmente por medio de tratados, de conformidad con la Constitución y las leyes. 3. Al Rey corresponde, previa autorización de las Cortes Generales declarar guerra y hacer la paz.

Com relação às responsabilidades, o rei não responde politicamente por suas decisões. A responsabilização incide sobre quem as referendam, como está expresso no inciso 2, do artigo 64, da Constituição espanhola8.

III. Microcomparação com relação às competências constitucionais e às responsabilidades referentes aos chefes de Estado no Brasil e na Espanha, similitudes e diferenças

Visando estabelecer uma comparação entre as competências constitucionais dos chefes de Estado nas já referidas Constituições, utilizamos como balizas a forma de governo e o sistema de governo, visto que o Brasil é uma República presidencialista e a Espanha, uma monarquia parlamentar, também chamada “monarquia constitucional”. Com relação à forma de governo, elegemos três critérios que se referem à chefia de Estado: i) legitimidade de poder; ii) temporariedade (tempo de mandado); e iii) responsabilidade política. Nessa comparação, encontramos somente diferenças que são equivalentes à forma de governo dos dois países, sendo que a monarquia se caracteriza pela vitaliciedade, a sucessão é hereditária e o rei não tem nenhuma responsabilização política. Além disso, na República, há a temporariedade no poder, o governante é eleito democraticamente e é politicamente responsável, o que podemos observar no quadro abaixo.

Quadro 1 Semelhanças e diferenças das competências constitucionais brasileira e espanhola 

Competências constitucionais Brasil Espanha
Legitimidade de poder Sufrágio universal Critérios de elegibilidade (art. 14, Constituição federal brasileira) Sucessão hereditária (art. 56, Constituição espanhola)
Temporariedade no poder Mandato estabelecido pela Constituição (4 anos com reeleição) Vitalício-renúncia prevista (art. 57, inciso 5, Constituição espanhola)
Responsabilidade política Sim (art. 85, Constituição federal brasileira) Lei 10.028/2000 Os atos do monarca são de responsabilidade daqueles que os referendam (art. 64, inciso 1, 2, Constituição espanhola)

Fonte: elaboração própria.

Quando comparamos, no que se refere aos sistemas de governo, teremos o presidencialismo brasileiro e o parlamentarismo espanhol, que trazem consigo diferenciações com relação à representação constitucional do chefe de Estado, mormente no que diz respeito a: i) unipessoalidade; ii) elegibilidade; iii) poder de veto; e iv) dissolução do Congresso (Cortes Generales). É possível notar que o poder do presidente, no presidencialismo, é mais forte, por outro lado, no parlamentarismo, como no caso da Espanha, enquanto o rei assume um poder moderador e simbólico, o presidente responde politicamente pelos atos de governo. Na Espanha, a figura do primeiro-ministro, como em outros sistemas parlamentares, recebe o nome de “Presidente del Gobierno”

Quadro 2 Semelhanças e diferenças dos sistemas de governo 

Chefe de Estado Presidencialismo brasileiro Parlamentarismo espanhol
Unipessoalidade Presidente-chefe de Estado e governo Rei-chefe de Estado Presidente do governo-chefe de governo
Elegibilidade Escolhido pelo povo Rei-sucessão hereditária
Poder de veto Sim Não
Dissolução do congresso Não Sin-cortes generales (art. 62, b)

Fonte: elaboração própria.

Quanto às atribuições constitucionais dos referidos chefes de Estado, apresentamos dois quadros que analisam as similitudes e as diferenças, iniciamos pelas semelhanças.

Quadro 3 Semelhanças das atribuições dos chefes de Estado e suas respectivas previsões legais 

Atribuições Brasil Espanha
Sancionar e promulgar leis Art. 84 Art. 62
Expedir decretos Art. 84, IV, Art. 62, f
Comando das Forças Armadas Art. 84, XIII, Art. 62, h, j,
Concessão de indultos e comutar penas Art. 84, XII, Art. 62, i,
Estabelecer relações internacionais Art. 84, VII, VIII, Art. 63, 1 e 2,
Declarar guerra e paz Art. 84, IX, X, XIX e XX, Art. 63, 3,

Fonte: elaboração própria.

As diferenças estão dispostas no quadro a seguir.

Quadro 4 Diferenças das atribuições dos chefes de Estado no Brasil e na Espanha 

Atribuições Brasil Espanha
Dissolução do congresso ou das Cortes Generales Não previsto Art. 62, b, Constituição espanhola
Proposições de candidatura de presidente de governo Não previsto Art. 62, d, Constituição espanhola

Fonte: elaboração própria.

Pelo exposto, podemos concluir que as diferenças elencadas, com relação às competências constitucionais dos chefes de Estado, do Brasil e da Espanha, estão materializadas pela adoção de diferentes formas de governo e de sistemas de governo pelos referidos países.

Os chefes de Estado e a relação com os demais Poderes

Os chefes de Estado devem estabelecer relações harmônicas com os Poderes Legislativo e Judiciário. Na República, o presidente tem o dever constitucional de manter a independência dos Poderes, embora, em uma perspectiva prática, se estabeleça um conflito político entre os Poderes. Isso porque, na maioria das vezes, o presidente eleito não governa com maioria no Congresso Nacional. Por sua vez, no sistema parlamentarista de governo, a força do Poder Executivo é respaldada, democraticamente, pelo Poder Legislativo. Nesse formato, os Poderes Executivo e Legislativo são politicamente interligados. Dividiremos nossa abordagem com um enfoque comparado entre os Poderes, Legislativo e Judiciário, em ambos os países.

I. Microcomparação com relação ao Poder Legislativo

Na realidade brasileira, o presidente da República possui competência constitucional para editar medidas provisórias (Kadri, 2004), com força de lei, nos casos de relevância e urgência, devendo submetê-las, de imediato, ao Congresso Nacional (art. 62, da Constituição federal brasileira)9, o que se denomina “legislação de emergência”. Com a Emenda Constitucional 32/2001, o prazo de vigência passa a ser de 60 dias, prorrogável uma vez por igual período, sem que haja apreciação do Congresso Nacional.

A aplicação desse instituto tem sido objeto de muitas críticas, segundo Mendes et al. (2009), a edição de medidas provisórias é responsável pela “paralisia” das casas do Congresso nacional, tendo como paradoxo o fato de que tenham sido criadas com fulcro de suportar considerável “inércia do legislativo”.

Outro ponto de interseção do Poder Executivo brasileiro com o Legislativo é a possibilidade de veto. Assim, todos os projetos de lei aprovados pelo Congresso nacional devem ser sancionados pelo presidente da República, que possui um prazo de até 15 dias para apresentar veto, total ou parcial, do projeto de lei, conforme expressa o artigo 66 da Constituição federal brasileira10. O presidente pode ainda convocar o Congresso em caráter de urgência (art. 57, § 6, II). Com relação ao exercício funcional do rei, no contexto espanhol, não há que se falar em disposição constitucional que assegura a edição de medidas provisórias ou do exercício do direito de veto. Ademais, a relação com as Cortes Generales está referendada no artigo 62, b, da Constituição espanhola, podendo o monarca convocar ou dissolver as Cortes Generales, a partir da solicitação de uma nova eleição, bem como sancionar e promulgar leis (art. 62, a Constituição espanhola).

II. Microcomparação com relação ao Poder Judiciário

No que concerne à relação dos chefes de Estado com o Judiciário, em ambas as realidades, há pouca interferência, baseando-se, apenas, na nomeação de alguns de seus membros. No Brasil, é de responsabilidade do presidente da República, a escolha de um dos nomes apresentados na lista tríplice, previamente aprovada pelo Senado Federal, bem como pela respectiva nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores (art. 84, incisos XIV, XV, XVI e art. 101 da Constituição federal brasileira), para o exercício de cargos vitalícios; nas demais instâncias, o provimento se dá por concurso público de provas e títulos.

No contexto espanhol, o rei exerce sua relação com o Poder Judiciário a partir da nomeação do presidente do Tribunal Constitucional, bem como por meio da indicação dos demais membros, posteriormente a uma escolha prévia por parte dos próprios membros desse Tribunal, para o exercício de um mandato de três anos (art. 160, da Constituição espanhola)11.

Presidencialismo brasileiro e monarquia parlamentar espanhola, na consolidação da democracia no mundo moderno

Conforme discutimos anteriormente, sob o enfoque histórico-político do processo constituinte da constituição brasileira e espanhola, apesar de ambas estarem motivadas pelos mesmos ideais de democracia, os processos foram construídos de formas distintas. No Brasil, a aprovação do texto constitucional partiu de uma consulta popular ampla, seguida de uma Assembleia Constituinte, que ficou responsável pela edição dos dispositivos constitucionais (Neto, 2005). Na Espanha, de forma inversa, primeiro houve a construção do texto, com a participação dos partidos políticos, para, ao final, ser realizado o referendo populacional, com fulcro de se buscar a aprovação da sociedade. Acredita-se que esse processo interferiu na consolidação democrática dos referidos países, visto que, no que se refere à Constituição espanhola, houve duas emendas até hoje, enquanto, em sede da Constituição brasileira, ocorreram 117 emendas até o ano de 2022 (Brasil, 1988; Espanha, 1978).

Analisando essa consolidação sob outro enfoque, desenvolvido a partir do referencial teórico dos cientistas políticos Linz e Stepan (1999), que definiram três capacidades políticas importantes para a consolidação da democracia, a saber: i) a eficácia (capacidade do sistema político de produzir maiorias no Poder Legislativo e no Poder Executivo para implantar as mudanças necessárias); ii) a legitimidade (capacidade de manter uma vinculação com opiniões majoritárias no país e de praticar uma forma de governar que seja fiel ao espírito e à letra da Carta Magna); e iii) a flexibilidade (a capacidade do sistema político de prevenir e resolver crises antes de converter uma crise de governo em crise de regime).

Com relação aos sistemas de governo, para os autores, o sistema parlamentar é um sistema de dependência mútua, na qual está previsto um voto de “não confiança” ao governo e ainda a possibilidade do chefe de Estado em dissolver o parlamento e convocar novas eleições; enquanto no sistema presidencialista, há uma independência mútua entre os Poderes Legislativo e Executivo, tendo ambos um mandato fixo e próprio.

Comparando os dois sistemas, naquilo que tange à “eficácia” proposta por Linz e Stepan (1999), teremos que, no parlamentarismo, por haver incentivos para o governo negociar com o parlamento - pois, dessa negociação, depende a própria existência do governo -, a eficácia é maior. Ao contrário, no presidencialismo, a existência do exercício presidencial não depende do apoio do Congresso nacional, o que gera coalizões e conflitos de interesses reais no exercício do mandato, tal como ocorreu no governo Bolsonaro. Favoravelmente ao sistema parlamentarista, os autores entendem que a interdependência entre Poderes pode propiciar maiores trocas e auxílio mútuo, já que o representante do Poder Executivo, para buscar o apoio da maioria do Congresso, criará várias propostas de incentivos. Para os autores supracitados, o parlamentarismo é um sistema de governo que contribui para a construção de partidos e governos, enquanto o presidencialismo desestabiliza a harmonização entre os Poderes.

Tendo como baliza a legitimidade, o sistema parlamentar governa sempre com a maioria, sendo a expedição de medidas extraordinárias e decretos muito mais raros quando comparada ao modelo presidencialista, em que o Poder Executivo se utiliza de medidas provisórias e decretos para evitar bloqueios ou impasses políticos, constituindo um fator negativo para a legitimação.

No que diz respeito à flexibilidade institucional, os autores defendem que, no parlamentarismo, havendo uma crise do governo, esta pode ser resolvida mais facilmente, pois bastam 51% de apoio do parlamento para o voto de não confiança ao governo. Dessa forma, tal estrutura contribui para que uma crise de governo não se transforme em uma crise de regime, colocando assim a democracia em risco. Ao contrário, no presidencialismo, que, como vimos, possui uma baixa eficácia e legitimidade, tem-se maiores possibilidades de crises de governo, como nos casos de realização de impeachment. Assim, conclui-se que, em sistemas parlamentaristas, é mais difícil a ocorrência de crises de governo, que podem reverberar facilmente em crises de regimes democráticos, culminando na ascensão de ações políticas militares e de regimes autoritários.

Como base nesses pressupostos teóricos, ao compararmos o Brasil e a Espanha, seus respectivos chefes de Estado e suas competências constitucionais, podemos aferir que hoje, na Espanha, há uma maior eficácia e legitimidade do exercício dos Poderes, o que possibilita maior controle de eventuais crises democráticas e de governo. Esse modelo, que pressupõe a chefia de Estado exercida pelo rei, estabelece um poder moderador, auxiliado pelo presidente de governo, que assume toda a responsabilidade política e é respaldado pelas cortes generales, contribuindo, assim, para uma democracia mais consolidada.

Diversa é a realidade brasileira, cuja função de chefe de Estado e de governo é exercida pelo presidente da República. O fato é que a ausência de apoio da maioria do Poder Legislativo, no exercício do mandato de presidência da República, compromete a eficácia e a legitimidade para o enfrentamento político de uma eventual crise de governo, correndo riscos maiores de uma crise de regime a qual coloca a democracia em risco.

No contexto deste estudo, o Brasil vivencia uma crise de desgoverno, com rupturas consideráveis ao regime democrático. Contextualizando ao enfoque do presente trabalho, essa crise se deve a uma baixa eficácia e legitimidade de poder; assim, é imprescindível uma reconstrução política, para que crises não possam, de forma alguma, comprometer a democracia, como ideal construído a partir de todo o processo constituinte e essencial ao Estado democrático de Direito.

É possível sustentar que o governo de Jair Bolsonaro colocou o sistema presidencialista brasileiro em um cenário crítico. Isso porque, no exercício de seu mandato, refutou a importância do presidencialismo de coalizão (Abranches, 2018), na tentativa de negar acordos, concessões e alianças políticas em prol da harmonização entre os Poderes. Ao revés, estimulou crises políticas e ameaças de rupturas, com vistas a romper o equilíbrio e governabilidade do sistema presidencialista.

Por sua vez, na Espanha, mesmo com algumas dificuldades com relação às comunidades autônomas, é possível sustentar que se apresenta como uma democracia mais consolidada, por mecanismos constitucionais. Por fim, podemos concluir nossa análise dizendo que tanto a Constituição brasileira quanto a Constituição espanhola atuais emergiram de ideais democráticos, embora seguissem caminhos e nuances diferentes para a consolidação efetiva da democracia. A partir dessa nossa reflexão perfunctória, aferimos que, na Espanha, a democracia é mais eficazmente sedimentada e consolidada quando se analisa o sistema parlamentarista de governo.

Considerações finais

Ao concluirmos este breve estudo sobre as competências constitucionais dos chefes de Estado, do Brasil e da Espanha, fica-nos a mensagem de que são indissociáveis ao estudo destas uma contextualização histórico-política do processo constituinte, bem como dos instrumentos constitucionais que viabilizam sua aplicabilidade, em busca da consolidação dos ideais anteriormente propostos. Como vimos ao longo deste estudo, embora de forma e em contextos diferentes, o Brasil e a Espanha possuem como ideal convergente a democracia, regime de governo que mais respeita as liberdades individuais e os direitos fundamentais dos cidadãos, na medida em que a constituição funciona como garantidora de tais ideais democráticos.

As competências constitucionais atribuídas aos referidos chefes de Estado estão sedimentadas, principalmente, no sistema de governo, que, segundo Linz e Stepan (1999), é responsável pela maior ou menor consolidação democrática, auferida a partir da eficácia, legitimidade e flexibilidade próprias dos sistemas de governo. Ao contrário do que se imagina, mesmo diante de uma constituição escrita, não é somente a forma positivada que dá o tom para a execução magistral. Nesse sentido, é a própria sociedade e o quanto ela é forte com relação às exigências de uma cidadania plena e eficaz que funciona como garantidora dos ideais a ela subjacentes.

Disso decorre que, para que as competências constitucionais dos chefes de Estado sejam garantidoras dos ideais democráticos, que um dia as construíram, é necessário que os indivíduos aos quais a sociedade outorgou esse poder deem uma resposta ética em prol de uma cidadania, que se sobrepõe ao “poder”, para, dessa forma, construir uma sociedade plural e global.

A soberania popular garante aos cidadãos o poder e a autoridade na gestão da coisa pública e nos poderes políticos. Conforme já delineado, a forma de Estado e o sistema de governo representam apenas meios aptos a organizar e gerir a estrutura administrativa dos países.

Dessa forma, o objetivo sempre deve ser assegurar a observância da soberania do povo e garantir a maximização e tutela da democracia, só assim é possível coibir regimes autoritários que pressupõem a supressão dos direitos e garantias fundamentais, tão caros ao convívio pacífico entre sociedades plurais.

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1 O caráter imperfeito do presidencialismo brasileiro cifra-se na figura constitucionalmente autônoma, do governo federal, composto dos ministros de Estado, a quem o presidente da República pode deferir competências executivas. (p. 320)

2Art. 2°. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário (Brasil, 1988).

3Art. 76. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado (Brasil, 1988).

Art. 77. A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República realizar-se-á, simultaneamente, no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato presidencial vigente. (Redação dada pela Emenda Constitucional n.° 16, de 1997)

  1. § 1° A eleição do Presidente da República importará a do Vice-Presidente com ele registrado.

  2. § 2° Será considerado eleito Presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos.

  3. § 3° Se nenhum candidato alcançar maioria absoluta na primeira votação, far-se-á nova eleição em até vinte dias após a proclamação do resultado, concorrendo os dois candidatos mais votados e considerando-se eleito aquele que obtiver a maioria dos votos válidos.

  4. § 4° Se, antes de realizado o segundo turno, ocorrer morte, desistência ou impedimento legal de candidato, convocar-se-á, dentre os remanescentes, o de maior votação.

§ 5° Se, na hipótese dos parágrafos anteriores, remanescer, em segundo lugar, mais de um candidato com a mesma votação, qualificar-se-á o mais idoso (Brasil, 1988).

5Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e VicePresidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga. § 1° Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei. § 2° Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores. (Brasil, 1988)

6Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I — a existência da União; II — o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III — o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV — a segurança interna do País; V — a probidade na administração; VI — a lei orçamentária; VII — o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

71. La Corona de España es hereditaria en los sucesores de S. M. Don Juan Carlos I de Borbón, legítimo heredero de la dinastía histórica. La sucesión en el trono seguirá el orden regular de primogenitura y representación, siendo preferida siempre la línea anterior a las posteriores; en la misma línea, el grado más próximo al más remoto; en el mismo grado, el varón a la mujer, y en el mismo sexo, la persona de más edad a la de menos (Espanha, 1978)

8Artículo 64. 1. Los actos del Rey serán refrendados por el Presidente del Gobierno y, en su caso, por los Ministros competentes. La propuesta y el nombramiento del Presidente del Gobierno, y la disolución prevista en el artículo 99, serán refrendados por el Presidente del Congreso. 2. De los actos del Rey serán responsables las personas que los refrenden. (Espanha, 1978)

9Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.

10Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará. § 1° Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto.

11Artículo 160. El Presidente del Tribunal Constitucional será nombrado entre sus miembros por el Rey a propuesta del mismo Tribunal en pleno y por un período de tres años.

* Artigo de revisão bibliográfica.

Cómo citar: Guedes Gondim Almeida, M. J., & Gondim Almeida, M. (2023). Os Os chefes de Estado: seus poderes e atribuições no constitucionalismo brasileiro e espanhol, com recorte crítico entre os sistemas de governo. Prolegómenos, 26(51), 103-118. https://doi.org/10.18359/prole.6224

Recebido: 20 de Abril de 2022; Aceito: 30 de Dezembro de 2022; Publicado: 17 de Outubro de 2023

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