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Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía

versão impressa ISSN 0121-215Xversão On-line ISSN 2256-5442

Cuad. Geogr. Rev. Colomb. Geogr. vol.26 no.1 Bogotá jan./jun. 2017

https://doi.org/10.15446/rcdg.v26n1.54537 

DOI: dx.doi.org/10.15446/rcdg.v26n1.54537

Espaços públicos e mobilidade urbana: uma análise comparada dos arranjos normativos de Bogotá (Colômbia) e do Rio de Janeiro (Brasil)*

Espacios públicos y movilidad urbana: un análisis comparado de las disposiciones reglamentarias de Bogotá (Colombia) y de Río de Janeiro (Brasil)

Public Spaces and Urban Mobility: a Comparative Analysis of Regulatory Systems in Bogota (Colombia) and Rio de Janeiro (Brazil)

Ana Marcela Ardila Pinto**
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte – Brasil

Leticia Parente Ribeiro***
Universidade Federal de Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil

* El artículo fue elaborado en el marco del proyecto de investigación "Transformación de los espacios públicos y democracia en las ciudades suramericanas: el caso de Bogotá, Quito y Río de Janeiro", con participación del Departamento de Geografía de la Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil), la Universidad de las Américas (Ecuador) y la Maestría en gestión urbana de la Universidad Piloto de Colombia financiado por el Consejo Nacional de Desenvolvimento Científico y Tecnológico (CNPq) de Brasil, entre 2011–2012.

** Socióloga y Maestra en Sociología de la Universidad Nacional de Colombia. Doctora en Geografía de la Universidade Federal de Rio de Janeiro (Brasil). Actualmente es profesora adjunta del Departamento de Sociología de la Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) y es investigadora en el área de sociología urbana. Ha realizado investigación en las áreas de política urbana, espacio público y movilidad urbana.
Dirección postal: Av. Antônio Carlos, 6.627 – FAFICH, Departamento de Sociologia. Pampulha–Belo Horizonte, Brasil. Correo electrónico: marardila@ufmg.br. ORCID: 0000-0003-2066-0738.

*** Geógrafa y Maestra de Geografía de la Universidade Federal de Rio de Janeiro (Brasil). Actualmente es profesora asistente i de la misma universidad. Investigadora en el área de geografía, especialmente de las áreas de fronteras internacionales, desarrollo regional y geografía urbana.
Dirección postal: Rua Athos da Silveira Ramos, n.° 274, G–025, Cidade Universitária, Rio de Janeiro, Brasil. Correo electrónico: leticiapr@ufrj.br. ORCID: 0000-0002-1185-4517.

RECIBIDO: 3 DE DECEMBRE DE 2015. ACEPTADO: 26 DE ABRIL DE 2016.

Artículo de investigación com base em uma análise comparada, o artigo analisa o papel desempenhado pelos espaços públicos, a partir da década de 1990, nas políticas de mobilidade urbana das cidades de Bogotá e do Rio Janeiro, segundo suas dimensões material, política e de sociabilidade.

CÓMO CITAR ESTE ARTíCULO: Ardila Pinto, Ana Marcela, y Leticia Parente Ribeiro. 2016. "Espaços públicos e mobilidade urbana: uma análise comparada dos arranjos normativos de Bogotá (Colômbia) e do Rio de Janeiro (Brasil)." Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía 26 (1): 171–186. doi: dx.doi.org/10.15446/rcdg.v26n1.54537.


Resumo

A dicotomia entre espaços públicos e espaços de circulação foi, durante décadas, largamente difundida no campo dos estudos urbanos. Recentemente, debates acadêmicos e políticos acerca do conceito de mobilidade vêm desafiando essa visão. Observa–se um diálogo crescente entre a gestão dos deslocamentos e o fortalecimento dos espaços públicos, o qual envolve aspectos morfológicos, políticos e relativos à sociabilidade urbana. A análise comparada das políticas de mobilidade das cidades de Bogotá e do Rio de Janeiro, a partir da década de 1990, demonstra um aumento expressivo da importância dos espaços públicos, mas revela também diferenças locais quanto ao papel que eles desempenham no planejamento do transporte e do crescimento urbano, no reconhecimento de novas formas de mobilidade e na regulação do convívio entre os cidadãos.

Palavras–chave: Bogotá, espaços públicos, mobilidade urbana, política urbana, Rio de Janeiro.


Resumen

En el campo de los estudios urbanos, la dicotomía entre espacios públicos y de circulación es bastante hegemónica. Recientemente, los debates académicos y políticos alrededor del concepto de movilidad han desafiado esta visión. Se observa un diálogo creciente entre la gestión de los desplazamientos y el fortalecimiento de los espacios públicos, en relación con aspectos morfológicos, políticos y de convivencia en las ciudades. El análisis comparativo de las políticas de movilidad de Bogotá y de Río de Janeiro, desde 1990, evidencia un aumento significativo de la importancia de los espacios públicos, así como también diferencias locales sobre su papel en la planeación del transporte y del crecimiento urbano, en el reconocimiento de nuevas formas de movilidad y en la regulación de la convivencia entre los ciudadanos.

Palabras clave: Bogotá, espacios públicos, movilidad urbana, política urbana, Río de Janeiro.


Abstract

The dichotomy between public and circulation spaces was for decades widespread in the field of urban studies. Recently, academic and political debates about the concept of mobility have challenged this view. There has been a growing dialogue between the management of journeys and the strengthening of public spaces, based on morphological, political and social aspects. The comparative analysis of mobility policies in the cities of Bogota and Rio de Janeiro since the 1990s shows a significant increase in the importance of public spaces, but also reveals local differences regarding the role they play in transportation planning and urban growth, in the recognition of new forms of mobility and in the regulation of citizen connivance.

Keywords: Bogota, public spaces, urban mobility, urban policy, Rio de Janeiro.


Introdução

A maior parte dos estudos sobre a temática urbana produzidos quer por sociólogos, geógrafos ou planejadores, sobretudo a partir dos anos 1960, assume uma evidente dicotomia entre espaços públicos e espaços de circulação. Os espaços públicos são comumente caracterizados pela densidade, riqueza e complexidade de suas determinações materiais, políticas e sociais e pela promoção do encontro e da sociabilidade. A circulação urbana, por sua vez, produziria espaços abstratos, homogêneos e destinados fundamentalmente ao deslocamento (Módenes 2008).

Entretanto, nas duas últimas décadas, o caráter hegemônico dessa visão dual vem sendo colocado à prova. Tanto nos meios acadêmicos quanto no âmbito das políticas públicas, observa–se uma renovação dos debates a partir da emergência de abordagens teóricas e modelos de ordenamento territorial baseados na ideia de mobilidade.

Em particular, as políticas de mobilidade urbana constituem um lócus privilegiado para analisar as diferentes releituras contemporâneas do tema clássico da oposição entre espaços públicos e espaços de circulação. Os instrumentos normativos que alicerçam essas políticas evidenciam também as diferenças significativas nas visões dos agentes políticos acerca do ideal de ordem urbana, que envolve temas como a cidadania, os projetos de cidade e as formas de sociabilidade e convívio entre os cidadãos.

A partir de um exercício de análise comparada, esta pesquisa investiga o papel atribuído aos espaços públicos nos arranjos normativos que compõem as políticas de mobilidade em Bogotá (Colômbia) e no Rio de Janeiro (Brasil), a partir da década de noventa. Embora apresentem características muito diferentes com relação à morfologia, às condições ambientais, às práticas culturais, às tradições urbanísticas e à composição étnica, as duas cidades possuem, em comum, seu tamanho populacional —cerca de 6,3 milhões de habitantes no Rio de Janeiro (IBGE 2010) e 7,4 milhões em Bogotá (DANE 2010)—, além de níveis elevados de pobreza, segregação, violência e favelização (Quesada 2006). é relevante, sobretudo, o fato de que os governos locais de ambas as cidades tenham destinado, nas duas últimas décadas, uma parcela importante dos recursos públicos discricionários para o desenvolvimento de projetos de mobilidade urbana baseados no fomento do transporte público e no desestímulo ao automóvel privado.

O artigo está organizado em quatro partes. As duas primeiras compreendem uma discussão teórica sobre a relação entre os conceitos de espaço público e circulação urbana, na qual se analisa a construção de uma visão hegemônica na literatura acadêmica e os contrapontos e alternativas emergentes nos debates atuais a partir do conceito de mobilidade. A terceira trata dos aspectos metodológicos que orientaram a pesquisa. A quarta parte apresenta os resultados da comparação dos arranjos normativos locais e nacionais que compõem as políticas de mobilidade das duas cidades, enfatizando o papel atribuído aos espaços públicos em diferentes instrumentos de planejamento urbano. Os resultados estão organizados segundo as três dimensões —material, política e da sociabilidade— que, segundo Gomes (2002), constituem o conceito de espaço público. A dimensão material é analisada a partir do papel atribuído aos espaços públicos na construção de modelos de cidade e de formas de mobilidade urbana. Com relação à dimensão política, são discutidos os direitos à mobilidade reconhecidos aos cidadãos. A dimensão da sociabilidade é analisada a partir da regulação das formas de convívio entre diferentes agentes urbanos.

Espaço público e mobilidade urbana: uma dicotomia hegemônica

A dicotomia entre espaços públicos e circulação urbana foi construída na bibliografia especializada a partir de três dimensões. Em termos físicos, ela se traduziria na oposição entre lugares e redes, entre fixos e fluxos, entre praças e vias. Com relação à dimensão política, tal dicotomia estaria associada à expansão dos espaços das massas e ao desaparecimento da esfera pública, traço político essencial dos espaços públicos. No que tange à construção de uma esfera de sociabilidade, haveria uma oposição entre espaços de permanência e de deslocamento, entre espaços de apropriação e identidade comunitária e espaços de circulação rápida e anonimato.

O papel conferido aos espaços públicos está intimamente vinculado à sua função como cenário material ativo no processo de configuração das práticas sociais, em razão de aspectos tais como sua forma, uso e acessibilidade. De fato, na maior parte dos trabalhos, o espaço público é definido a partir de seus tipos morfológicos mais comuns, tais como praças, parques, ruas; mas também a partir de seu caráter multifuncional, sua riqueza estética e, sobretudo, a partir do livre acesso garantido pelas leis do Estado Moderno (Light e Smith 1997).

Há também um forte acordo na bibliografia com relação ao fenômeno do recuo do espaço público, à chamada "morte do espaço público". A crítica recai, especialmente, sobre o urbanismo moderno e sobre o planejamento regional, identificados como responsáveis pela criação de ambientes urbanos homogêneos, áreas vazias e ruas degradadas, pelo esvaziamento do centro urbano, pela diminuição da competitividade urbana e pela perda da dimensão da vida pública da cidade. Esses fenômenos resultariam da institucionalização das propostas das citadas escolas de pensamento no governo da cidade, baseadas na ideia de controle da vida urbana, mediante a promoção da suburbanização, a especialização funcional e a ênfase no transporte privado e na construção de vias expressas. Entre os principais autores que representam essa perspectiva estão Jane Jacobs ([1961] 1992), Richard Sennett ([1977] 2001), Jordi Borja (1998) e Marc Augé ([1992] 2001).

A exponente mais destacada dessa escola, Jane Jacobs, em seu trabalho icônico publicado nos anos sessenta, The death and life of great American cities, propõe que para reverter o quadro de degradação urbana é preciso mudar as políticas públicas de planejamento e o valor atribuídos às ruas. Jacobs outorga um valor significativo às políticas vinculadas à revitalização das ruas, à promoção da diversidade de usos urbanos, à integração das áreas de favelas, à competitividade urbana e ao fortalecimento da identificação dos cidadãos com os valores de diversidade social e cultural (Jacobs 1992).

À semelhança de Jacobs, Richard Sennett (2001) considera que o urbanismo moderno, fundamentado em uma concepção mecanicista, funcionalista e totalizante da cidade, pretende coordenar de forma massiva, homogeneizante, monofuncional e centralizada as estruturas públicas e privadas da cidade e as formas de convívio dos cidadãos. Para ele, as grandes vias e os subúrbios, principais produtos dessa perspectiva de planejamento, expressam e promovem a perda da publicidade da cidade e o enfraquecimento do cosmopolitismo necessário à convivência no contexto de uma sociedade diversificada. Reverter esta tendência, segundo Sennett, exige uma mudança na disposição física das cidades, baseada no fortalecimento dos espaços públicos, na diversidade de usos, no transporte coletivo e na flexibilização normativa.

Seguindo a linha de análise adotada por Sennett e Jacobs, Jordi Borja (1998) critica o urbanismo moderno por sua natureza funcionalista, mas considera que a política pública urbana, por meio da realização de projetos, é capaz de reverter as tendências que desestruturam os tecidos urbanos. Fenômenos como a suburbanização, a baixa densidade, a desregulação, o zoneamento monofuncional, a especialização do centro e a construção de grandes rodovias são consideradas pelo autor como responsáveis pela perda do direito à cidade de muitos cidadãos.

No mesmo sentido, Marc Augé (2001) propõe seu famoso conceito de não–lugar para descrever os espaços destinados à circulação. Para o antropólogo, a sobremodernidade, caracterizada pelo aprofundamento do capitalismo, do individualismo e da globalização, deixa em segundo plano a criação de espaços para a promoção de interações, memórias e identidades, e privilegia a produção de pontos de trânsito, provisórios e dedicados ao consumo. As redes de transporte e os pontos que as conectam são definidos como espaços, em oposição aos lugares.

Para boa parte da literatura especializada, a expansão de não lugares, de espaços de circulação, teria como efeito a redução do debate entre cidadãos. Os espaços públicos foram associados, em termos políticos, ao desenvolvimento de uma esfera pública de deliberação e debate, especialmente para autores como Jürgen Habermas ([1962] 2003) e Hannah Arendt ([1958] 2007). Essa esfera constitui um espaço de publicidade, de interação e de comunicação face a face entre cidadãos livres para o debate público de ideias políticas, éticas e morais. Sua dissolução estaria vinculada ao crescimento das organizações burocráticas e dos meios de comunicação de massa e à emergência do que Habermas denomina de "novos meios de transmissão e influência" (1986, 123). Os jornais, a rádio e a televisão, entre outros meios de circulação de informação, teriam substituído os antigos lugares públicos destinados ao debate coletivo por sofisticadas técnicas de publicidade destinadas à formação de massas, convertendo os cidadãos em consumidores do espetáculo político.

A partir de outra orientação teórica, mais próxima ao marxismo, um terceiro grupo de autores aprofunda essa dicotomia ente lugares públicos e espaços de circulação. Um dos principais representantes dessa linha argumentativa é Henri Lefebvre ([1974] 2006), que propõe uma distinção, em seu trabalho La production de l'espace, entre espaço abstrato e espaço diferencial. Lefebvre distingue a cidade entendida como arte, como transformação estética, da cidade produto, criada pelo capitalismo. O espaço abstrato supõe a destruição das relações locais, o desconhecimento das necessidades e das experiências dos usuários, bem como a homogeneidade e a funcionalidade que contribuem para a reprodução do capital. Esse espaço opõe–se ao espaço diferencial, que é resultado da apropriação e da contestação dos cidadãos, o espaço vivido e transformado para fortalecer os vínculos e as identidades.

O geógrafo crítico David Harvey também atribui o recuo dos espaços públicos à transformação da cidade associada à emergência do modo de produção capitalista e ao imperativo da fluidez no espaço urbano. Harvey (2006) apresenta o processo de transformação urbana de Paris a partir dos projetos de renovação urbana durante a era Haussmann como exemplo paradigmático dessa relação. Intervenções urbanísticas como a construção de bulevares, parques e jardins e a abertura de cafés, teriam resultado no aumento do controle militar sobre a cidade, no aumento da velocidade da circulação de mercadorias e na apropriação dos lugares de contestação e de manifestação política que caracterizaram os processos revolucionários que ocorreram na França durante as décadas de 1830 e 1840. Nas palavras de Harvey, "[...] o efeito, contudo, foi a transformação do cidadão em mero espectador e consumidor. Deste ponto de vista, a passividade da política foi, ao menos provisoriamente, assegurada" (2006, 25–26).

A postura teórica de Harvey e Lefebvre também é compartilhada por autores como Don Mitchell (2003), Sharon Zukin (2008), Jonathan Light e Andrew Smith (1998), entre outros. Preocupados com problemas mais contemporâneos como os processos de globalização e o crescimento das grandes metrópoles mundiais, para esses autores, os novos espaços construídos pelo grande capital, como as estações dos diferentes modais de transporte, as vias expressas e as praças administradas por multinacionais, promovem a circulação e a integração rápida dos indivíduos nos mercados globais em detrimento das experiências de lugar, da construção de identidades locais e do debate coletivo.

Pode–se dizer, portanto, que essa postura dicotômica ocupa, há algumas décadas, uma posição hegemônica no âmbito das ciências sociais. A circulação tem sido concebida como o avesso do espaço público, polo a partir do qual seria possível definir um estado ideal e desejável de ordem urbana e de vida democrática, de convívio e de identidade. Porém, essa hegemonia vem sendo colocada à prova por perspectivas divergentes que ganham cada vez mais relevância, sendo possível vislumbrar seus desdobramentos tanto na produção acadêmica, quanto na construção das políticas urbanas.

A mobilidade: uma perspectiva alternativa para pensar a cidade

A construção desse pensamento dicotômico nas ciências sociais não é o resultado de um debate exclusivamente concernente aos espaços públicos. Resulta também de um diálogo com a temática da circulação e, mais especificamente, do transporte. Até os anos setenta, grande parte das pesquisas sobre o tema privilegiaram os problemas econômicos, técnicos e funcionais do movimento. Nas décadas seguintes emergiram novos estudos que incorporaram a visão dos usuários, o problema da acessibilidade e, mais recentemente, aspectos relativos às dimensões sociais, culturais e políticas, com o desenvolvimento do que se denominou a virada da mobilidade.

No âmbito da geografia e do planejamento regional, até meados da década de setenta, a maior parte das pesquisas relacionadas ao transporte privilegiava o estudo das interações entre os lugares e dos padrões de distribuição espacial das atividades econômicas, especialmente na escala regional. Fatores como a distância, o tamanho populacional, as funções das cidades, a estrutura do mercado de bens e serviços e a organização do governo, eram considerados indicadores de atração dos lugares e incorporados aos modelos de análise gravitacionais. As redes de transporte, por sua vez, eram concebidas tanto como suporte dos fluxos quanto como elementos estruturantes das regiões econômicas (Seguí e Petrus 1991).

Diversas críticas foram feitas a esse modelo de análise, especialmente à sua visão abstrata do espaço, que desconsidera as configurações específicas das áreas urbanas e regionais, bem como ao caráter mecânico atribuído às redes de transporte, reduzidas à função de circulação. Uma das principais críticas ao modelo tradicional enfatiza o escasso papel concedido aos indivíduos, tanto na identificação das suas demandas de deslocamento, quanto na própria configuração das redes, desconsiderando sua participação ativa na construção, interpretação e valorização das mesmas. Esse debate ganhou força, sobretudo, a partir da década de setenta, quando se introduz a perspectiva dos usuários nos problemas de transporte (Seguí e Petrus 1991).

Outra importante contribuição a esse debate foi introduzida, já no final da década de 1960, por Torsten Hägerstrand, a partir da abordagem conhecida como Time Geography. O conceito de trajetórias espaço–temporais, proposto pelo autor, contrapõe–se à redução da circulação ao mero deslocamento espacial entre dois pontos, ampliando–a de modo a considerar o conjunto de atividades que são realizadas pelos indivíduos em um recorte temporal determinado (dia, mês ou ano). Segundo essa abordagem, os indivíduos tomam decisões acerca de seus deslocamentos a partir da construção de programas de atividades, levando em consideração as diferentes restrições que a cidade e o sistema de transporte lhes impõem (Thrift 1977).

A questão da acessibilidade foi também um elemento central dessas discussões. Com base na análise das demandas de transporte, foram identificadas diferenças significativas nas oportunidades e capacidades que os indivíduos têm de usufruir dos benefícios urbanos, espaciais e sociais não apenas em função de sua localização, como também de suas características sociodemográficas, tais como a raça, a idade ou o gênero (Kaufmann, Bergman e Joye 2004). Diversas pesquisas evidenciaram que idosos, crianças, negros, mulheres e pessoas mais pobres apresentam menores condições de acessibilidade (Cardoso 2007). Entretanto, como argumenta John Urry (2007), o acesso aos bens e serviços considerados necessários para a inclusão social não é algo fixo, pois depende dos próprios sistemas de mobilidade e de sua evolução. Além disso, em muitos casos, o caráter daquilo que os indivíduos e grupos considerados "excluídos" buscam acessar só é revelado por intermédio de novas infraestruturas que realizam esta demanda latente. Logo, para determinar o grau de desigualdade social engendrado pelas barreiras à circulação é necessário saber o que as pessoas querem ou podem querer, onde desejam ir e quais são as dificuldades encontradas para a realização de seus projetos.

Os problemas associados à percepção dos usuários também foram incorporados às pesquisas, a partir de abordagens comportamentais e, posteriormente, da utilização de métodos qualitativos como a etnografia, mapas mentais e entrevistas, os quais procuram determinar as diferenças nas práticas de deslocamento e na percepção dos indivíduos sobre mudanças ou inovações técnicas e sua relação com variáveis socioeconômicas, sociais ou demográficas. Esses estudos também consideram a dimensão espacial urbana como referência para a construção das interpretações e das práticas dos agentes, procurando estabelecer como os indivíduos se deslocam na cidade e como valorizam os diferentes lugares.

Mais recentemente, observa–se uma renovação dos debates acerca das temáticas da circulação, dos deslocamentos e dos transportes a partir da difusão de conceitos e métodos que fazem parte de um novo paradigma, associado à chamada virada da mobilidade. Autores como John Urry (2007), Tim Cresswell (2011) e Vincent Kaufmann (2002), entre outros, vão além dos campos de estudos tradicionais para reposicionar o conceito de mobilidade no centro da teoria social, evidenciando suas implicações para a compreensão da vida urbana em particular. Seus trabalhos têm contribuído para a redefinição de conceitos como lugar, identidade, sociabilidade, nos quais o movimento deixa de ser apenas um evento transitório, vazio e abstrato, desvinculado da construção de identidades e de diferentes formas de convívio.

Para os autores da virada, a mobilidade não é considerada como uma anomalia ou como uma atividade funcional realizada em um espaço–tempo homogêneo, pouco autêntico, mecânico e desenraizado. O deslocamento passa a ser entendido como um evento que envolve narrativas, capacidades, moralidades e estéticas (Cresswell 2011). A mobilidade física e virtual é concebida como uma forma de aprendizagem, de desconstrução das identidades rígidas, essencialistas (Massey 2008), que suscita a criação de novas formas de associação e novas formas de viver (Módenes 2008). é também considerada como uma experiência complexa, que articula e discute as formas de distribuição do poder e de organização social vinculadas ao movimento.

As novas identidades associadas aos fluxos implicam o reconhecimento das diversas práticas de deslocamento. Caminhar, dirigir, andar de bicicleta ou de ônibus são formas constitutivas da vida urbana. Ruas e calçadas não são apenas espaços de circulação, mas também participam da vida coletiva e ensejam formas complexas de interação (Jensen 2006; Whyte 2009). A mobilidade questiona, assim, as identidades e as instituições clássicas para compreender a vida urbana, tais como lar, vizinhança e trabalho. Mais que deslocamentos pendulares, as práticas de mobilidade articulam diversos espaços urbanos a partir de práticas, experiências, recursos e agentes, em uma complexa rede física e de sociabilidade. As identidades são produzidas por meio das redes de pessoas, ideias e coisas em movimento e não pelo pertencimento a um espaço único, compartilhado de habitação, seja uma região, seja um Estado (Cresswell 2011). Constituem–se, assim, subjetividades móveis, que implicam diferentes formas de apropriação dos lugares.

Essas identidades estão associadas também às políticas de mobilidade, que contribuem para o aumento ou para a diminuição das capacidades de deslocamento por meio da criação de formas de acesso ao poder. A mobilidade não é um recurso distribuído de forma homogênea e cria formas desiguais de integração na vida urbana, dependendo da inserção dos agentes nas redes de poder. Para alguns autores, a mobilidade constitui um direito que deve ser reconhecido e incluído nas políticas urbanas (Féré 2011), ou ainda um direito fundamental para o desenvolvimento da cidadania, que se expressa nos arranjos normativos (Blomley 2010).

A partir das diferentes contribuições destes estudos, é possível pensar que as práticas de mobilidade e de uso do espaço público não correspondem, necessariamente, aos polos de uma relação dicotômica. Mais do que opostos, constituem formas diversas e interdependentes de publicidade e de construção de identidades, que dependem das experiências dos agentes em cada contexto espaço– temporal. Os agentes urbanos combinam e usam, segundo suas necessidades e preferências, lugares para ficar e para se deslocar, configurando, deste modo, uma complexa rede de espaços urbanos, construída a partir de ritmos e velocidades diversas. Esses agentes também estão inseridos em redes que permitem ter maior ou menor acesso e, portanto, maior ou menor motilidade, segundo sua posição e relação com outros em diversos balanços de poder.

A construção de uma análise comparada das políticas de mobilidade

Tendo em vista a perspectiva mais flexível e complexa acima delineada é possível estabelecer alguns critérios teóricos e metodológicos para orientar uma pesquisa sobre o papel dos espaços públicos nas políticas de mobilidade urbana. Em primeiro lugar, parte–se do princípio de que não existe uma forma única de organização do espaço–tempo ou da publicidade independente das condições locais. As práticas cotidianas e a morfologia dos lugares têm particularidades que devem ser reconhecidas. As relações de poder em cada âmbito local, por sua vez, definem regras e formas de acesso aos recursos e, consequentemente, a distribuição desses recursos nas cidades evidencia a forma como a cidadania é, de fato, exercida. Entretanto, os espaços locais não são independentes e sim integrados em redes mais amplas, de tal forma que a circulação de ideias, pessoas e coisas permite criar universos compartilhados de significação.

Os desdobramentos dessa visão apontam para a relevância de se realizar estudos comparativos como alternativa para desconstruir os essencialismos locais ou o universalismo normativo. A comparação implica deslocamentos nas formas de compreensão e representação, permitindo desnaturalizar o que aparece como evidente para os habitantes de cada espaço local. Nesse sentido, é fundamental entender como essas diferentes lógicas, resumidas nas duas primeiras partes deste artigo, operam na formulação das políticas de mobilidade que constituem o objeto da comparação desta pesquisa, destacando seus eventuais conflitos ou acomodações mútuas.

Para efeito desta pesquisa, consideramos pertinente empregar o conceito de política pública proposto por Dye (1992), definido como o conjunto de escolhas que o governo decide realizar ou não. Estas escolhas são determinadas tanto pelos instrumentos legais que definem as regras e direitos dos cidadãos, quanto pelos processos de negociação e concorrência entre os diferentes agentes que buscam sua institucionalização no âmbito dos arranjos normativos. Os agentes sociais tentam introduzir seus projetos, interesses e razões práticas nos quadros normativos e construir novos arranjos sociais, baseados em uma leitura do espaço e dos contextos sociais nos quais devem agir (Ethington 1994). Dessa forma, mediante a formalização no âmbito das políticas públicas, as demandas dos agentes ganham legitimidade, universalidade e capacidade de coerção (Dye 1992).

As políticas públicas de mobilidade, em particular, constituem arranjos normativos que orientam a produção de diferentes objetos, infraestruturas, regras e padrões físicos, os processos de formulação, gestão e manutenção das intervenções, a definição das instituições envolvidas, das formas de governo e de coerção, assim como o suporte cognitivo dado à decisão (Pflieger, Kaufmann e Pattar 2009). Essas políticas são mediadas tanto por condições anteriores, quanto pelas visões de futuro da cidade. A criação de políticas públicas é, portanto, resultado de um processo fluido de articulação e diálogo entre as propostas dos agentes políticos em diferentes períodos e os acordos resultantes de arranjos institucionais anteriores, cujos efeitos são mais estruturantes.

Para comparar as semelhanças e diferenças na construção das políticas públicas de mobilidade e sua relação com o espaço público de Bogotá e do Rio de Janeiro, empregamos como estratégia metodológica a proposta de análise de informação qualitativa de Matthew Miles, Huberman e Saldana (1994). Em primeiro lugar, coletamos os instrumentos de política pública elaborados pelos governos nacionais do Brasil e da Colômbia e pelos governos locais do Rio de Janeiro e Bogotá, a partir dos anos 1990. Foram incluídos planos de desenvolvimento territorial, planos diretores e os planos setoriais da política de mobilidade e transporte urbano (tabela 1).

Em segundo lugar, sistematizamos e organizamos esses instrumentos segundo fonte, lugar e data de publicação e registramos, em uma matriz descritiva, as diretrizes e os objetivos da política, os conceitos empregados, e as estratégias e ações propostas. Posteriormente, realizamos um processo de redução de dados, em uma matriz analítica, que consiste na simplificação ou abstração dos principais conteúdos vinculando–os com outros conjuntos temáticos, mediante categorização. Retomando a definição de espaço público discutida na primeira seção, as categorias que empregamos correspondem às dimensões física ou material, política e social. Por último, realizamos uma comparação das dimensões analisadas e identificamos os principais eixos incorporados para cada dimensão, os quais permitem identificar as semelhanças e diferenças nas políticas das duas cidades. Para cada tema apresenta–se uma tabela na qual são identificadas as fontes documentais, segundo instrumento, por cidade.

Espaço público e mobilidade urbana: as ideias nos lugares

A leitura das fontes normativas das duas cidades permite observar elementos gerais que norteiam a formulação das políticas de mobilidade. O próprio conceito de mobilidade só aparece a partir da década de 2000, tanto nos instrumentos cariocas quanto bogotanos. Até então, as categorias relevantes eram transporte e sistema viário, e a ênfase recaía sobre seu planejamento físico. Esse fato tem implicações importantes no reconhecimento de formas de mobilidade alternativa e no papel atribuído aos espaços públicos.

Quanto ao último aspecto, foram identificadas diferenças significativas entre as duas metrópoles. Em Bogotá, o espaço público assume um papel estruturante, reconhecido como um direito constitucional, com um alto grau de regulamentação nos instrumentos locais. Aparece também como parte substantiva dos objetivos, dos instrumentos de gestão, como objeto de regulação específica e de desenvolvimento de um corpo administrativo. Atravessa o desenvolvimento de instrumentos normativos associados ao sistema de mobilidade, tanto nas suas dimensões físicas, políticas e sociais.

Essa posição é bem diferente no caso do Rio de Janeiro. O espaço público aparece de forma muito menos frequente e relevante como critério geral de ordenamento. Esse fenômeno é bem expressivo no caso, por exemplo, dos instrumentos de planejamento que orientam as políticas de ordenamento do solo urbano, em três dos principais arranjos normativos: a Lei Orgânica do Município (1990), e os Planos Diretores (1992 e 2010). Nos instrumentos esse conceito não é apresentado de forma direta nem como objeto da lei, dos objetivos ou dos princípios gerais. Não se define um conceito particular, nem o conjunto de bens considerados públicos. Ele é incorporado de forma mais específica em relação aos problemas de zoneamento e regulamentação dos usos do solo. Especificamente com relação à mobilidade, é atribuído um caráter mais funcional, associado aos problemas de acessibilidade e de segurança dos pedestres.

A dimensão material dos espaços públicos: construindo modelos de cidade
Nos arranjos normativos das duas cidades a interdependência entre o papel dos espaços públicos e o planejamento da mobilidade urbana é visível, sobretudo, a partir de dois temas: o primeiro consiste no modelo de crescimento da cidade e sua relação com os sistemas de transporte coletivo, o segundo diz respeito às formas de mobilidade alternativa.

Os instrumentos recentes de planejamento urbano de Bogotá e do Rio de Janeiro aderem à visão de uma cidade densa, compacta, contínua e integrada por meio de um sistema de transporte sustentável e coletivo e do fortalecimento dos espaços públicos. O sistema de transporte coletivo é considerado um eixo estruturante do ordenamento, da competitividade e do crescimento urbano, em contraposição às visões que promovem uma cidade moderna, baseada na lógica da suburbanização e da mobilidade vinculada ao uso do automóvel.

O principal objetivo expresso nos instrumentos legais consiste em diminuir a conurbação e o crescimento extensivo a partir do fortalecimento do transporte público coletivo, o qual deve permitir a reorganização dos polos geradores de viagens, bem como reduzir os deslocamentos para as áreas centrais e mais consolidadas da cidade. Procura–se, desse modo, diminuir os custos associados à congestão nas viagens entre as áreas centrais e as áreas residenciais. Nesse modelo de ordenamento, o sistema de mobilidade é concebido como o articulador entre os usos do solo, as centralidades urbanas e os diferentes serviços públicos. No entanto, a primazia do transporte coletivo foi incorporada em momentos diferentes nos instrumentos normativos das duas cidades. Na década de noventa, em Bogotá, o Acuerdo 6 privilegiou a construção de autopistas e de vias para os automóveis, embora o transporte público constasse como componente do sistema de transporte. Não foi o caso do Rio de Janeiro, onde já no Plano Diretor de 1992 as redes de transporte público eram privilegiadas sobre o transporte individual.

Existem, contudo, diferenças significativas nos modelos territoriais das duas cidades. No Rio de Janeiro, ainda que os diferentes instrumentos estimulem o aumento da densidade urbana, no último Plano Diretor (2011) existe uma preocupação em adequar o crescimento urbano à capacidade da infraestrutura de vias, serviços e equipamentos, aproveitando áreas degradadas e estimulando a expansão para a Zona Oeste da cidade. Na capital colombiana, os projetos de mobilidade são concebidos como componentes estruturantes das operações urbanas de renovação e requalificação das áreas centrais e das periferias mais pobres, e de articulação dos eixos de crescimento, com base no princípio de equidade territorial na distribuição de equipamentos e serviços urbanos.

Esses modelos de ordenamento do crescimento influenciam diretamente na formulação das políticas setoriais de mobilidade. Em ambos os casos, vislumbra–se a promoção do transporte coletivo como uma estratégia orientada para a diminuição dos custos do crescimento urbano, e para a redução dos efeitos negativos associados ao uso do transporte privado individual. Os agentes políticos cariocas e bogotanos estão de acordo, especialmente a partir da década de 2000, que o aumento no número de passageiros transportados e a diminuição no consumo de espaço urbano resultam em maior eficiência, competitividade, sustentabilidade e qualidade de vida para os habitantes da cidade.

No entanto, observamos diferenças relevantes na forma como este tipo de transporte é incorporado nos instrumentos, com desdobramentos no desenvolvimento de projetos de mobilidade e sua relação com os espaços públicos. Essas diferenças estão associadas, de um lado, aos modais de transporte público coletivo que são privilegiados em cada cidade. No caso carioca, os instrumentos reconhecem uma grande diversidade de modais e promovem sua integração, especialmente por meio de estratégias de tipo tarifário. Particularmente, o Plano Diretor do Rio de Janeiro prevê uma variedade ainda maior de modos de transporte coletivo, como o metrô, as barcas, os ônibus, os trens e as vans. Em Bogotá, a política local promove fundamentalmente o sistema de Bus Rapid Transit — doravante BRT como o modo coletivo estruturante, ainda que tenha sido mencionado brevemente o transporte ferroviário, particularmente no Plan Maestro de Movilidad.

Essas diferenças também estão relacionadas à incorporação de novas modalidades de transporte de massa nas duas cidades, baseadas no modelo do BRT. Sua inclusão nos arranjos normativos das duas cidades tem gerado um amplo debate associado à necessidade de superar o caráter meramente funcional do transporte e de desenvolver uma visão mais próxima do conceito de mobilidade.

A difusão do modelo supera o âmbito das cidades aqui comparadas. Agências de cooperação internacional e órgãos multilaterais têm promovido a implantação do BRT desde a década de 2000 como uma solução mais eficiente, sustentável e econômica, em comparação com outros modelos de transporte, para os graves problemas de mobilidade que afetam as grandes cidades. Até o presente, o sistema foi implantado em mais de 190 cidades, contemplando uma grande variedade de contextos físicos, sociais e políticos (GLOBAL BRT DATA 2015).

A participação de organismos internacionais como o Banco Mundial (Deng e Nelson 2011) e de agências internacionais de cooperação como o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento — doravante ITDP tem sido fundamental para a difusão do sistema. o ITDP, por exemplo, uma organização internacional sem fins lucrativos que assessora a implementação técnica, de infraestrutura e de gestão do sistema, contribuiu para a elaboração de um manual de planejamento do BRT, em parceria com o Ministério das Cidades, que contém um conjunto de diretrizes para a implantação do sistema em cidades brasileiras (ITDP 2008).

Boa parte do manual baseia–se nas propostas dos ex–prefeitos Enrique Peñalosa, de Bogotá e de Jaime Lerner, de Curitiba, principais agenciadores e difusores do modelo. O documento em questão apresenta o BRT como um sistema articulado de ônibus de alta capacidade de transporte de passageiros, com gestão empresarial, linhas estruturadas, vias segregadas e exclusivas na maior parte das rotas, tecnologias veiculares de baixa emissão, redes troncais ou corredores centrais, localização das vias no canteiro central, estações estruturadas ao nível da plataforma e do veículo, sistemas de cobrança eletrônica fora do ônibus, incorporação de sistemas de tráfego inteligentes, integração física e tarifária com sistemas de alimentação e integração com outros modos de transporte (ITDP 2008).

Ainda de acordo com seus promotores, o modelo é uma alternativa menos dispendiosa, mais eficiente e de mais rápida implantação quando comparada com outros sistemas de transporte, em particular aqueles baseados no metrô. é também apresentado como uma resposta à crise dos sistemas de ônibus, marcados pela fragmentação, pela baixa qualidade do serviço e por altos níveis de informalidade, e como um aperfeiçoamento de soluções anteriores baseadas na criação de vias exclusivas, já implantadas em várias cidades australianas, europeias e americanas (Lerner 2009).

O documento propõe ainda a criação de redes de espaços públicos como parte estruturante do sistema e como eixo de um novo projeto de cidade, que privilegia os usos públicos e restringe a utilização do automóvel. A construção de ciclovias, praças, calçadas, passarelas, rampas, sinalizações, mobiliário urbano e iluminação é concebida como estratégia que visa melhorar o paisagismo da cidade, contribuir para a operação do sistema de transporte, garantir a segurança, diminuir os efeitos ambientais decorrentes do uso de combustíveis fósseis, atender as demandas de serviços dos passageiros, favorecer formas alternativas de mobilidade, entre outros benefícios (ITDP 2008).

Nas duas cidades a implantação do BRT ocorreu ao longo das últimas duas décadas. Ainda que Curitiba tenha sido a primeira cidade onde o BRT foi implantado, há 31 anos, a experiência de Bogotá é reconhecida como modelo na operação desse sistema de mobilidade para grandes metrópoles.

Na cidade andina, o sistema, conhecido como Transmilenio, iniciou sua operação em 2000 e conta atualmente com mais de 120 km em 11 corredores, para o transporte de 2.213.236 passageiros (GLOBAL BRT DATA 2015). O caso do Rio de Janeiro é muito mais recente. Sua implantação resultou de uma parceria com o ITDP e conta com a assessoria do prefeito bogotano Enrique Peñalosa (BRT RIO 2014). A implantação do sistema de BRT começou a ser divulgada em 2009, no contexto da escolha da cidade para sediar alguns dos jogos da Copa do Mundo de futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. O sistema inaugurou sua primeira linha em 2012, denominada Transoeste, e iniciou em 2015 a operação da Transcarioca. Hoje, o sistema transporta 450 mil passageiros por dia nos dois corredores exclusivos já entregues, com uma extensão de 95 km (BRT RIO 2014).

A definição do BRT colombiano contempla o desenvolvimento de operações urbanas em seus critérios de implantação, incluindo a construção de uma ampla rede de espaços públicos para integrar os serviços de mobilidade com as áreas residenciais e os serviços urbanos. Essas operações implicam transformações de renovação e requalificação nas áreas próximas das vias destinadas ao transporte massivo. Em uma definição bastante abrangente e sistêmica, são considerados espaços públicos as próprias vias exclusivas de circulação dos ônibus do sistema, as vias para carros, assim como as estruturas para acesso aos ônibus, as calçadas ao longo das vias exclusivas, as passarelas, as ciclovias, as praças e os parques construídos e o mobiliário urbano (Alcaldía Mayor de Bogotá 2004).

No caso do Rio de janeiro, embora o Plano Diretor já contemplasse a criação de faixas exclusivas em 1992, somente em 2011 o BRT é efetivamente mencionado, como uma rede de vias especializadas para a circulação de ônibus articulados. Entretanto, as vias, estações e calçadas não são consideradas como espaços públicos. Também não é prevista a construção integrada de ciclovias como parte integrante do BRT, ainda que constituam componentes centrais no âmbito do sistema de mobilidade urbana.

A dimensão política dos espaços públicos: a cidadania em movimento
Os instrumentos de política pública analisados apresentam semelhanças importantes na definição da ideia de cidadania em termos da mobilidade e do espaço público, particularmente nos instrumentos mais recentes. Nas duas cidades, a mobilidade é considerada como um serviço essencial que permite o acesso a outros serviços urbanos. No entanto, em Bogotá, ela é expressamente definida como um direito que garante o cumprimento de outros, como a qualidade de vida, o ambiente saudável e a dignidade humana. No Rio de Janeiro, a mobilidade apresenta–se como diretriz para a universalização do acesso aos serviços da cidade, particularmente no Plano Diretor de 2011. No caso brasileiro, observa–se uma diferença importante entre as políticas federal e local, visto que a Política Nacional de Mobilidade, de 2012, define explicitamente a mobilidade como um direito (tabela 2).

Apesar das diferenças, as políticas locais das duas cidades reconhecem no deslocamento uma forma de exercício da cidadania e de apropriação da cidade. Nos instrumentos mais recentes ambas concebem os usuários como agentes ativos da mobilidade, diminuindo a ênfase nos modos de transporte, tão comum nos instrumentos anteriores de planejamento dos deslocamentos urbanos. Porém, há diferenças relevantes no que diz respeito à própria natureza de quem é considerado usuário dos serviços. Em Bogotá, essa condição é atribuída aos diferentes agentes da mobilidade, tais como o pedestre, o ciclista, o motociclista, entre outros, enquanto no Rio de Janeiro a categoria é restrita aos usuários do transporte público coletivo. Essa diferenciação, que confere maior ou menor visibilidade pública a certos atores, reflete–se nos critérios para a construção dos espaços públicos do sistema, na implantação ou não de dispositivos espaciais para garantir a mobilidade.

Em Bogotá, os pedestres são considerados como agentes prioritários do sistema de mobilidade, enquanto no Rio de Janeiro seu papel é limitado ao momento da circulação. Tendo em vista que o Estado tem como função regular e incorporar as redes de pedestres aos sistemas de mobilidade, a definição colombiana é mais abrangente em comparação com a visão dos planejadores cariocas, mais funcional e restrita. Os ciclistas também constituem agentes relevantes nos sistemas de mobilidade. Em ambas as cidades, os marcos normativos preveem a ampliação da rede de vias dedicadas ao uso de bicicletas e a articulação das ligações desse modal ao sistema de transportes públicos, com dotação de equipamentos específicos para este fim. Tanto em Bogotá quanto no Rio de Janeiro, enfatizase o aspecto comportamental, por meio do estímulo à cultura da bicicleta e à sensibilização dos demais usuários do sistema de transportes para as peculiaridades dessa forma de mobilidade, fortemente associada à promoção da sustentabilidade ambiental. No Rio de Janeiro, o uso da bicicleta esteve tradicionalmente vinculado às atividades de lazer, especialmente na orla da cidade. Contudo, a ampliação da malha cicloviária na zona oeste, área de expansão urbana da cidade, atesta o reconhecimento pelos agentes públicos de que o uso desse modo de transporte constitui uma alternativa de mobilidade intensamente praticada, sobretudo pela população de baixa renda. Em Bogotá, a rede cicloviária aparece como um elemento articulado à rede de BRT e é prevista na norma a obrigatoriedade de construção de equipamentos e mobiliários que permitam esta integração.

Outro tema importante da definição de cidadania diz respeito ao reconhecimento do direito à mobilidade de agentes tradicionalmente excluídos do sistema. Por meio da incorporação do conceito de mobilidade reduzida, os instrumentos da política reconhecem a heterogeneidade que caracteriza as condições individuais de deslocamento na cidade. Preveem também a capacitação dos agentes públicos e da comunidade em geral para a compreensão das características particulares desse tipo de mobilidade. Os instrumentos legais que regem a política de transporte das duas cidades incorporam o princípio da acessibilidade universal, o qual supõe o provimento de um ambiente seguro e acessível para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida e para usuários vulneráveis. Supõem a adequação das vias, das calçadas, dos equipamentos urbanos e dos meios de transporte às necessidades desses agentes. As diferenças encontradas nas duas cidades dizem respeito ao tempo no qual se incorpora uma definição mais universalista dessa forma de exclusão. Em Bogotá, a partir do Plan Maestro de Movilidad de 2006 a mobilidade reduzida é assimilada a uma limitação do indivíduo para realizar suas atividades diárias e, de forma mais geral, para se relacionar com o entorno urbano. No Rio de Janeiro, a mobilidade foi definida inicialmente no Plano diretor de 1992 a partir de descrição de grupos específicos de deficientes psicomotores, idosos, gestantes e pessoas obesas. Esta definição muda no Plano Diretor de 2011, em que se incorpora uma visão mais abrangente, que inclui qualquer tipo de deficiência.

Embora as duas cidades incorporem a diversidade dos agentes da mobilidade na construção da cidadania e na garantia dos direitos, há diferenças relevantes em sua concepção, diferenças que se expressam nos critérios de ordenamento socioespacial previstos nos instrumentos normativos. Em Bogotá, esses agentes são definidos de forma mais abrangente em um sistema que estabelece as articulações entre tipos de deslocamento e infraestruturas, enquanto no Rio de Janeiro, o sistema de mobilidade é concebido a partir de uma perspectiva mais funcional, restrita ao âmbito da circulação em geral e do transporte em particular. A despeito de sua visão funcional, os instrumentos normativos cariocas consideram os percursos na cidade de forma unificada, donde a importância da integração tarifária entre os diferentes modais de transporte. Já em Bogotá, os deslocamentos dos usuários são concebidos de forma fragmentada, segundo viagens e, portanto, não há previsão de integração tarifária.

Espaços públicos e sociabilidade: a regulação dos encontros entre agentes da mobilidade
Nos instrumentos normativos analisados, a dimensão da sociabilidade dos espaços públicos está relacionada, sobretudo, à regulação da interação entre os diferentes agentes da mobilidade que usam os espaços urbanos. Iniciativas de produção e/ou requalificação de equipamentos de uso comum e de espaços públicos enfatizam o papel que estes devem desempenhar no cumprimento de normas de trânsito, na organização das atividades urbanas, e como cenários de convívio social (tabela 3).

Entre as estratégias propostas destaca–se a ampliação dos espaços destinados àqueles agentes que, segundo a visão veiculada pelas novas políticas de mobilidade, são considerados legítimos, como os pedestres, ciclistas, usuários de transporte coletivo e pessoas com mobilidade reduzida. O fortalecimento desses agentes é acompanhado, de um lado, por um forte processo de deslegitimação dos usuários do transporte motorizado privado e, de outro, pela invisibilidade de agentes como os motociclistas e usuários do transporte informal, considerados como geradores de caos, insegurança, poluição, acidentalidade e risco. Nota–se, particularmente, o declínio do valor atribuído aos motoristas de automóvel privado, os quais, até a década de 1990, figuravam como os principais beneficiários das políticas de transporte e da produção de infraestruturas de circulação nas duas cidades.

Outra estratégia consiste na requalificação dos espaços de mobilidade por meio da criação de áreas segregadas para os diferentes agentes. A carência de vias especializadas é encarada como fonte de conflitos, em virtude do contato entre diferentes tipos de usuário. A justificativa para a segregação baseia–se na constatação da existência de diferentes ritmos e velocidades de deslocamento na cidade. Definem–se, por exemplo, medidas como a implantação de faixas, pistas e corredores exclusivos com gerenciamento e controle da operação, proibição de estacionamento nas calçadas, restrições maiores à circulação de veículos privados, em períodos de maior congestão e em áreas de valor patrimonial, ambiental ou de uso coletivo.

A estratégia de segregação é acompanhada da intenção de regular os comportamentos dos diferentes agentes, visando aumentar o cumprimento de normas de trânsito e a organização das atividades urbanas. Tal normatividade é vista como parte de um sistema legal coercitivo, externo aos indivíduos e que preza por sua segurança e conforto.

Entretanto, os ideais de ordem urbana vinculados à segregação de usos estão sendo atualmente questionados por perspectivas alternativas, que privilegiam medidas orientadas para a geração de áreas de trânsito calmo e para a promoção de slow cities. De acordo com essas perspectivas, o planejamento urbano e da mobilidade devem propiciar a construção intersubjetiva de experiências a partir de diferentes práticas e formas de vida urbana (Knox 2005). A segregação contribuiria para a criação de altos diferenciais de velocidade, degradação dos espaços urbanos, e para o aumento da insegurança. Nesse sentido, a diminuição da segregação constituiria uma estratégia que favorece a negociação de usos e a criação de regras coletivas de civilidade.

Por outro lado, é possível observar diferenças significativas entre as políticas das duas cidades com relação à dimensão da sociabilidade. Em Bogotá, a implantação do sistema de BRT é concebido como um elemento essencial para fortalecer a cultura cívica e para a ampliação do sentimento de pertencimento dos habitantes. O sistema de transporte possui um caráter não apenas funcional, mas também simbólico para a construção de um ideal de vida coletiva que favoreça o cumprimento de regras de civilidade e a criação de formas de identidade com a cidade. Busca–se a identificação dos cidadãos com o projeto de modernização, criando uma forte oposição entre uma ordem formal e institucionalizada e uma ordem informal, caótica e imprevisível. No Rio de Janeiro, o BRT é compreendido de maneira mais funcional. São valorizados nos instrumentos aspectos como a melhoria das condições ambientais, de segurança e de sua eficiência na diminuição dos tempos de viagem.

Em Bogotá, o espaço público é entendido como espaço de exercício da cidadania, como cenário de debate e de construção de regras para melhorar o convívio, como referente na construção da identidade e na apropriação do território pelos cidadãos. Já no Rio de Janeiro, o espaço público é considerado como instrumento para realizar e dar visibilidade à estratégia de ordenar a cidade, especialmente no que tange à promoção do cumprimento de normas, à organização do comércio irregular e ao ordenamento do transporte coletivo irregular. Assim, as intervenções nos espaços públicos visam integrar à legalidade os usos urbanos informais, além de favorecer a circulação e o uso dos pedestres.

Apesar das diferenças entre as cidades e as controvérsias entre visões políticas e acadêmicas, é significativa a incorporação da dimensão da sociabilidade dos espaços públicos como um elemento relevante no planejamento da mobilidade. No entanto, a sobrevalorização do planejamento físico e a parca menção aos agentes urbanos como sujeitos produtores das regras são desafios raramente enfrentados na elaboração das políticas públicas bogotanas e cariocas (tabela 4).

Considerações finais

A análise das políticas nacionais e locais que ordenam o setor da mobilidade em Bogotá e no Rio de Janeiro evidenciou, em primeiro lugar, o valor central da dimensão material dos espaços públicos e do planejamento da mobilidade. Este peso se manifesta claramente no número de eixos temáticos encontrados em cada uma das dimensões e no número de artigos que regulam cada um deles. Também é significativo o escasso papel atribuído aos problemas associados à educação e à regulação do comportamento dos cidadãos como um elemento relevante para a organização do sistema.

Em segundo lugar, para além de uma oposição entre espaços públicos e redes de mobilidade, há uma forte convergência entre os dois conceitos, que depende do valor que cada um desses elementos assume nas políticas locais. Em Bogotá predomina uma visão sistêmica dessa relação, na qual os espaços de mobilidade são considerados espaços públicos e, ao mesmo tempo, os tradicionais espaços públicos são considerados como elementos que devem ser integrados nas redes de mobilidade. No Rio de Janeiro, essa relação é mais distante e os espaços de mobilidade assumem uma função mais especializada, orientada para a circulação. A relação com os tradicionais espaços públicos depende mais das articulações realizadas pelos próprios usuários por meio das suas formas de uso.

Esse caráter sistêmico também se traduz na função da mobilidade como elemento estruturante da vida coletiva da cidade. Especialmente o modelo de BRT faz parte de uma visão inovadora de planejamento urbano que incorpora o conceito de mobilidade e permite superar a visão restrita do planejamento setorial do transporte. Essa visão integra a perspectiva dos usuários, os impactos e determinantes ambientais a uma perspectiva de longo prazo e à criação de espaços para o fortalecimento da cidadania e do bem público.

Em Bogotá, foi atribuída aos espaços do BRT funções de ordem urbanística, de integração socioeconômica e de eficiência urbana. Assumem também a função de representar uma nova ordem urbana e um novo arranjo na definição de cidadania, a partir do reconhecimento das práticas de mobilidade. No Rio de Janeiro, essas funções estão mais centradas na circulação e na integração de áreas urbanas carentes aos serviços de transporte a partir da intervenção do Estado.

Essa revisão deixa na verdade mais dúvidas que certezas. Vários desafios deverão ser encarados, entre os quais podemos mencionar a análise desses arranjos à luz das intervenções físicas e das formas de apropriação dos cidadãos dos sistemas de mobilidade em suas práticas cotidianas. é importante também analisar o papel que essas discussões têm na construção da esfera pública local e suas transformações nos diferentes projetos dos prefeitos locais. Por último, é preciso avançar na análise das diferenças nas políticas agenciadas pelos diferentes níveis de governo em cada país, dado que os pactos de organização do Estado influenciam na definição dos investimentos e na implementação dos projetos urbanos.


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