Introdução
Os Direitos Humanos (DHs) constituem temática que tem comparecido muito fortemente em agendas políticas de governos ditos democráticos, no seio de diversos movimentos sociais que figuram como protagonistas da metamórfica cartografia social, e nos pensamentos e debates que configuram o chamado senso comum. As ciências também despertaram para a temática, dedicando especial atenção à compreensão da materialidade de suas ações/diretrizes, e compõem a polifonia que realiza nas práticas sociais discursivas as significações e ações próprias aos DHs. Tomados pelo marco da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), os DHs têm sido compreendidos como “respostas às dores humanas e aos dramas das sociedades [...], um fio tênue capaz de ligar as múltiplas dimensões políticas, sociais, econômicas e culturais próprias da sociedade humana” (Viola & Zenaide, 2010, pp.141-142).
São plurais os estudos/olhares que as ciências têm lançado acerca desses direitos, sejam a partir de seus fundamentos, sejam do ponto de vista de seus aspectos filosóficos, históricos, jurídicos ou políticos (Chauí & Santos, 2013; Furlan, 2017; Hollanda, 2017; Mascaro, 2017; Pedroza & Chagas, 2016; Santos, 2013; Silva, 2017; Sousa Júnior & Fonseca, 2017). Autores como (Benevides, 2007), (Bicalho, 2005), (Coimbra, 2008), (Méndez, 2004), (Pulino, 2016), (Rifiotis, 2007) e Viola e Zenaide (2007), reafirmam a importância dos aspectos anteriormente nomeados, evidenciando a necessidade permanente de estudos e pesquisas sobre os DHs no âmbito de suas concepções. Essas, em grande medida, trazem imanadas em si elementos que caracterizam os aspectos filosóficos, políticos, ideológicos presentes na abordagem, materialização e efetivação dos DHs.
A Psicologia, enquanto ciência e profissão, também compõe o cenário da comunidade científica que tem buscado se apropriar, investigar e contribuir para a construção de conhecimentos, práticas e culturas para a efetivação cotidiana dos DHs (Conselho Federal de Psicologia & Associação Brasileira de Ensino da Psicologia, 2009). Nesse cenário, avaliamos como importantes as investigações acerca de intervenções e atuações de profissionais da psicologia em interface com os DHs, que buscam analisar a sincronia entre essas atuações com as demandas oriundas do campo desses direitos. Compreendemos, em concordância com (Bock e Gianfaldoni, 2010), que também possuem papel relevante pesquisas sobre como os cursos de graduação em psicologia estão - ou não - formando psicólogas e psicólogos que conseguem articular suas atividades práticas/técnicas aos processos e demandas próprios ao campo dos DHs.
Dessa maneira, buscamos investigar, nesse artigo, como estudantes de um curso de graduação em psicologia, de uma universidade pública brasileira, concebem os DHs. Procuramos, também, compreender que relações esses estudantes fazem entre a formação em psicologia e conteúdos relacionados ao campo dos DHs. Partimos da perspectiva de que ao evidenciarmos essas questões norteadoras, traremos luz a uma possibilidade de compreensão sobre como a graduação em psicologia se aproxima, em suas dimensões teóricas e práticas, dos ideais e demandas pautados pelo campo dos DHs.
Direitos Humanos: invenções e posibilidades
De maneira clássica, a historiografia acerca dos DHs tem buscado situá-los enquanto uma processualidade linear, que possuí alguns marcos históricos importantes - a exemplo da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, na França (1789), e que aparentam evidenciar certa evolução nas concepções que atravessam essas balizas, até que se chegue ao instrumento máximo, na modernidade, da configuração destes direitos: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948). Historicamente, atribui-se aos ideais da burguesia insurgente - por meio da Revolução Francesa, no final do século XVIII - a origem dos fundamentos dos DHs, especialmente os aspectos que tangem às máximas de “igualdade”, “liberdade” e “fraternidade” (Coimbra, Lobo, & Nascimento, 2008). E mais recentemente, tem-se como marco a criação da Organização das Nações Unidas e a da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, após a Segunda Guerra Mundial. Esta Declaração traz a perspectiva de que os DHs são comuns a todos, a partir da manutenção do direito à vida, sem distinção alguma decorrente de origem geográfica, caracteres do fenótipo [...], da etnia, nacionalidade, sexo, faixa etária, presença de incapacidade física ou mental, nível socioeconômico ou classe social, nível de instrução, religião, opinião política, orientação sexual, ou de qualquer tipo de julgamento moral (Benevides, 2007, pp. 336-337).
Além dessas características, a Declaração traz ainda a perspectiva de que os DHs são naturais, universais e históricos. São universais, de acordo com alguns autores (Benevides, 2007, Rifiotis, 2007, Viola & Zenaide, 2010) na medida em que se atribui a eles a perspectiva de que não se referem a pessoas/membros necessariamente de determinadas nações ou Estados, ou seja, qualquer pessoa, em qualquer lugar será considerada sujeito para os DHs. Segundo (Benevides, 2007, p. 337), os DHs são naturais porque “existem antes e acima de qualquer lei, e não precisam estar legalmente explicitados para serem evocados”. Já sua natureza histórica refere-se aos diferentes momentos pelos quais os DHs passaram para afirmar determinadas conquistas no âmbito social.
Aos DHs classicamente são consideradas três dimensões, que caracterizam de modo geral os objetivos e tipos de garantias destinadas aos sujeitos, às comunidades e gerações humanas. A primeira se refere às liberdades individuais e civis, a segunda diz respeito aos direitos sociais (por exemplo, as questões relacionadas ao mundo do trabalho: salário mínimo, férias, jornadas fixas, previdência, etc.) e algumas garantias sociais mínimas (educação, saúde, habitação, lazer, etc.). A terceira dimensão faz alusão aos chamados direitos coletivos da humanidade, desta geração e das futuras: defesa do meio ambiente, paz, desenvolvimento sustentável, etc. (Benevides, 2007; Carbonari, 2007; Sader, 2007; Viola & Zenaide, 2010).
É importante evidenciar que esses direitos foram forjados, historicamente, num processo de lutas e conquistas sociais amplas e complexas, e que estão diretamente relacionadas ao paulatino desenvolvimento do modo de produção capitalista (Trindade, 2011). Isso significa dizer os DHs são frutos da modernidade e que carregam em si ideais, crenças e valores atravessados por questões fundantes do modo de produção capitalista. Em função disso, os DHs também são atravessados pelas questões relacionadas aos exercícios de poder (Foucault, 2008), e, por isso, estão no bojo de um conjunto de relações de forças (Nórte, Macieira, & Rodrigues, 2010) que tangenciam os sujeitos não só na busca de garantia da sua materialidade, mas também na perspectiva de que esses direitos corroboram com a manutenção dessa forma de organização social.
Autores como (Bobbio, 1992/2004), (Méndez, 2004) e (Rubio, 2014) evidenciam que, no campo de estudos sobre os DHs, se constituiu certa perspectiva de concepção acerca desses direitos, de forma a naturalizá-los e cristalizar sua compreensão. (Rubio, 2014) classifica essa visão como hegemônica, ou seja, ela possui forte influência no modo como os sujeitos em geral apreendem e concebem os DHs. O autor destaca que essa concepção é atravessada pela característica de naturalizar e universalizar tanto o processo de construção dos DHs, quanto de titularidade dotada aos sujeitos desses direitos. Isso significa dizer que, exemplificando a partir das noções de “liberdade” e “igualdade” presentes na Declaração Universal dos direitos humanos -DUDH-, que essas são condições naturais e inalienáveis de qualquer ser humano. Ou seja, todo e qualquer ser humano, segundo essa interpretação, nasce livre e igual a outros humanos. (Méndez, 2004) classifica essa perspectiva como uma “visão idolátrica dos DHs”, caracterizada por ele como anistórica, anacrônica.
Concordamos com (Bicalho, 2005) quando afirma que é possível atravessar as discussões e práticas de DHs por uma perspectiva que ultrapasse esse modo hegemônico de pensar tal questão: os DHs compreendidos somente como dados naturais e ordenamentos jurídicos, mas enquanto possibilidade de vislumbrar os paradigmas que norteiam a produção de DHs enquanto ordenadores sociais, enquanto produtores de modos de vida, enquanto produção de subjetividade. Dentro dessa perspectiva, destacamos a concepção de (Deleuze, 1992) de que os DHs têm, historicamente, servido para levar às populações subalternizadas uma ilusão de participação e de que existe uma preocupação com seu bem-estar, a ilusão de que algum humanismo no capitalismo seja real. Na mesma lógica, (Coimbra, Lobo e Nascimento, 2008) e (Geisler e Coimbra, 2008) discutem que ao longo dos anos, dos contextos históricos e das práticas sociais contextualizadas, as promessas de igualdade de direitos panfletadas pelos DHs têm se mostrado muito danosas ao modelo capitalista, que tem por mola de sustentação justamente o oposto a isso: a produção, em larga escala, de desigualdades e diferenças de condições sociais, injustiças e de mazelas.
Problematizando os fundamentos dos DHs - igualdade, liberdade e fraternidade - (Coimbra, 2011) propõe um olhar diferenciado sobre como a gênese desses irá produzir uma noção de ‘direitos’ e de ‘humanos’ que se fundamentam justamente na lógica exclusiva e produtora de desigualdades e mazelas. Tal lógica, própria da sociedade burguesa capitalista, vai exatamente à contramão do que os Direitos Humanos e seus ordenamentos jurídicos e ontológicos apregoam. Segundo a autora, as grandes declarações que fundamentam os atuais paradigmas em DHs na contemporaneidade (a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1879, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948) têm seus princípios amparados pela corrente filosófica do Jusnaturalismo Moderno (Sousa Júnior, 2016), que compreende como “sagrado” e natural aos homens os direitos à liberdade e à propriedade.
Bicalho (2005) e Coimbra (2011) discutem a ideia de que a partir desta lógica, os chamados direitos universais não deveriam universalizar-se para quaisquer humanos, mas especialmente para aqueles que estivessem contemplados na perspectiva do chamado direito natural à propriedade. Logo, os direitos só seriam dirigidos a determinadas pessoas, a determinados humanos, aqueles que eram/são os possuidores de propriedades e capital. Todos os outros humanos, os não detentores desses atributos seriam, assim, considerados como não cidadãos, nem tampouco humanos, e, dessa forma, não teriam uma série de garantias jurídicas asseguradas.
Para (Bicalho, 2005), essa lógica é a que sustentou e legitimou determinadas práticas do mundo ocidental moderno, tais como a escravidão e o direito de só determinadas pessoas, possuidoras de determinadas qualidades (especialmente as relacionadas aos bens materiais) poderem ser consideradas cidadãos, e, em consequência disto, humanos para os direitos em questão. (Coimbra, 2011) também sustenta essa ideia, de que os DHs têm deixado claro quais são os direitos e os humanos para quem eles devem ser concedidos. A autora afirma ainda que, “se tomados em sua perspectiva histórica, tanto o humano, quanto os direitos são construções das práticas sociais em determinados momentos, que produzem continuamente esses objetos, subjetividades e saberes sobre eles” (Coimbra, 2011, p. 88).
A ciência moderna também teve papel importante na produção e difusão destes ideais que sustentam os paradigmas dos DHs, dentro desta perspectiva excludente da lógica capitalista. (Coimbra, Lobo e Nascimento, 2008) mencionam que o próprio surgimento da concepção de humano teve como colaboradores essenciais os saberes oriundos da ciência. A instituição científica teve o papel de esquadrinhar e dar visibilidade ao chamado homem “normal”, e, em consequência disto, também deu visibilidade ao chamado indivíduo perigoso.
Foucault, 2008b, 2010) revelou em seus estudos que essas práticas aconteceram em especial entre os séculos XVII e XVIII, notadamente por meio dos saberes médicos e das reformas das antigas práticas de punição: o biopoder atuando como imprescindível dispositivo de ordenamento e manutenção das relações sociais, atravessadas pelo poder. Desta forma, determinados segmentos e indivíduos identificados como não normais, desviantes, marginais sempre estiveram fora da ótica dos DHs. Como afirma (Coimbra, 2011), a estes “efetivamente, os direitos, assim como a dimensão humana, sempre foram - e continuam sendo - negados, pois tais parcelas foram produzidas para serem vistas como não-cidadãs, como não pertencentes ao gênero humano” (p. 89).
A partir deste viés crítico, podemos situar os DHs como invenções humanas que podem permitir um status de sujeito de direitos a alguns seguimentos humanos, mas não necessariamente para todos os segmentos humanos. Assim, fica imanente uma concepção acerca destes direitos enquanto possibilidades, que para se efetivarem ficam sujeitos a agenciamentos diversos dos contextos nos quais se produzem, de maneira que não há uma naturalidade, tampouco uma essencialidade subjacente a todos os seres humanos no que tange à garantia e materialidade destes direitos. Ao evidenciá-los enquanto possibilidades podemos concebê-los enquanto dispositivos1 de subjetivação, ou seja, os DHs se agenciam (seja na sua materialidade, seja no impacto simbólico que provocam em um determinado tempo e espaço) como instâncias que viabilizam um determinado modo de ser, pensar, estar no mundo, possibilitando um certo lugar de interioridade e de individualidade do ser humano (Foucault, 1985, 2008; Leite & Dimenstein, 2002). A partir desta perspectiva, tomamos os DHs enquanto produtores de subjetividades, e essa é direção que orienta nosso olhar acerca de como esses direitos podem estar sendo percebidos, concebidos, vivenciados por diferentes pessoas, em diferentes contextos.
Método
A pesquisa foi realizada com estudantes do curso de psicologia de uma Instituição de Ensino Superior Pública, no Distrito Federal, unidade da República Federativa do Brasil, sede do governo nacional, durante o segundo semestre de 2019. Foram convidados a responder um questionário, com perguntas abertas, estudantes recém ingressantes no curso, bem como acadêmicos que cursavam o décimo semestre, último antes da colação de grau. Os estudantes eram convidados a responder questões sobre direitos humanos, de forma livre, sem tempo limite. Participaram da pesquisa 42 estudantes calouros e 12 estudantes formandos, que tiveram suas identidades preservadas. Os estudantes são identificados, na parte de discussão dos resultados apenas pelas alcunhas de “calouro” ou “formando”, sendo, cada um deles, diferenciados, por números (por exemplo calouro 1; formando 3). Destacamos que todos os procedimentos éticos de cuidado com os participantes foram realizados de acordo com a resolução n°466/2012, do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde brasileiro, respeitando os preceitos éticos e legais a serem seguidos nas investigações envolvendo seres humanos. Nesse sentido, assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que informava sobre os riscos e potencialidades de estarem participando da pesquisa.
O questionário continha as seguintes perguntas: (1) O que você pensa sobre os Direitos Humanos? (2) O que são Direitos Humanos para você? (3) Como você vê a relação entre formação em Direitos Humanos e a formação em Psicologia? (4) O que você acha sobre o seu curso de psicologia ter uma formação em Direitos Humanos?.
As respostas foram categorizadas de acordo com a perspectiva da análise de conteúdo temática (Gomes, 2007), que busca evidenciar núcleos de sentido componentes da comunicação, cuja presença pode revelar significados e concepções relativas ao objeto analítico. A categorização ocorreu a partir da decomposição do conteúdo das respostas dos questionários, de modo a permitir que algumas categorias analíticas ficassem evidentes ao interlocutor. As categorias evidenciadas nesse estudo são: (a) Concepções acerca dos Direitos Humanos; e (b) Psicologia e Direitos Humanos: uma relação necessária?.
Cada categoria surge a partir de leitura exaustiva do conteúdo das respostas oferecidas em articulação com a literatura que discute as temáticas em questão, de forma a buscarmos evidenciar um panorama acerca de como se produzem algumas pistas sobre o(s) modo(s) como um curso de graduação em psicologia pode oferecer possibilidades/potencialidades para reflexão acerca desses direitos e das práticas que a profissão produz direta/indiretamente sobre eles.
É importante ressaltar, também, que as categorias foram produzidas especialmente a partir do mote de cada pergunta feita aos estudantes, no questionário. Contudo, o que se apresenta aqui não é uma mera organização de respostas à determinadas perguntas, mas um exercício de tecelagem entre diferentes perguntas e respostas, que fazem evidenciar concepções, além de nos dar pistas de que prováveis sentidos e práticas sociais podem vir a serem sustentados por essas concepções.
A seguir, apresentaremos as categorias e as análises produzidas a partir de cada uma delas.
Resultados e discussão
Categoria 1: Concepções acerca dos Direitos Humanos
Essa categoria busca evidenciar de modo objetivo diferentes concepções acerca dos Direitos Humanos dentre os estudantes que responderam aos questionários. Por concepções podemos nos remeter especialmente ao que (Foucault, 2006, 2012) discute a partir de sua perspectiva do que chama autoria. De maneira tradicional, concepção pode ser compreendida, como assinala (Cunha, 2010), como um exercício de construção de significado. Este, por sua vez, consiste na representação, na linguagem do significante, num sinal daquilo que busca representar, de maneira a produzir coletivamente uma inteligibilidade (Cunha, 2010). Dialogando de maneira diversa a que (Cunha, 2010) aborda a ideia de concepção, (Foucault, 2006, 2012), ao discutir da noção de autoria, parte daquilo que entendemos como sinal, significado da coisa, fenômeno, e adentra na ideia que um nome (uma concepção) não é apenas um elemento do discurso, pois exerce papéis como o de classificação, agrupamentos e hierarquias. Um nome, segundo o autor, permite agrupar diversos discursos, textos e contextos, permite perceber rupturas, fissuras produzidas por determinados discursos e por seus modos particulares de operar.
Além disso, (Foucault, 2006, 2012), a partir de suas análises, coloca em evidência que há uma função na autoria: ela caracteriza modos de existência, circulação e funcionamento de discursos na sociedade, pois está conectada aos sistemas jurídico-institucionais. Com efeito, as concepções, os significados estão emprenhados de processos discursivos que se conectam a um tempo, contexto, malhas de relações de poder e artifícios políticos. Uma concepção não é meramente um nome, algo estático e absoluto, é necessariamente processualidade.
Assim, percebemos aqui, que aquilo que evidencia uma atribuição de concepção ao que se chama Direitos Humanos, por parte de estudantes de psicologia, em alguma medida nos traz pistas do que vem a ser as relações de poder e práticas sociais engendradas e articuladas por esses fenômenos em nossa contemporaneidade. Buscaremos evidenciar tais articulações com alguns trechos de suas respostas ao questionário, que consideramos marcantes. Exemplo disso pode ser verificado em algumas respostas à pergunta o que são direitos humanos? :
“São os direitos que todo cidadão tem” (calouro 2).
“Acho que são leis, tópicos, artigos que visam garantir o direito à vida, respeito etc. a todas as pessoas” (calouro 3).
“São os direitos básicos que todas as pessoas têm” (calouro 10).
“São um conjunto de leis ou regras que servem para assegurar à todos os direitos básicos, como saúde, educação, alimentação, além de servir para proteger todos contra abusos, violência” (calouro 19).
“São os direitos básicos que permitem ao ser humano uma vida digna e completa” (calouro 28).
“São a tentativa de estipular quais direitos deveriam ser mínimos e básicos para todas as pessoas em quaisquer sociedades” (formando 3).
“São direitos e garantias fundamentais inerentes a qualquer pessoa, como é o direito a uma vida digna, à liberdade, à segurança, etc.” (formando 6).
“São direitos e garantias fundamentais inerentes a qualquer pessoa, como é o direito a uma vida digna, à liberdade, à segurança, etc.” (formando 11).
O conjunto de respostas acima evidencia que tais concepções estão fortemente arraigadas às perspectivas de DHs muito ligadas ao que (Rubio, 2014) convencionou chamar de visão hegemônica, ou “idolátrica” nas palavras de (Méndez, 2004), desses direitos. Com efeito, percebe-se que os elementos relacionados a uma naturalidade, uma naturalização concernente a esses direitos está fortemente presente nos fragmentos discursivos. Tal ordem discursiva produz efeitos nos contextos sociais onde circula e é produzida, demonstrando, a partir das respostas que não há uma percepção de que os DHs são frutos de processos históricos, e que, como pontua (Flores, 2009), o processo de construção dos direitos, ou das intenções desses direitos dizem respeito à lutas advindas da tentativa de superação de contextos de injustiça e desigualdade sociais, para que todos possam ter condições de possibilidades para uma existência considerada digna. (Flores, 2009) evidencia, ainda, a necessidade de ruptura com uma noção de dignidade em seu caráter de abstração, quando essa é compreendida de maneira desconectada com a história e contextos. A autora propõe que a concepção de dignidade, tal como podemos perceber em repostas ao questionário deste estudo (por exemplo: São direitos e garantias fundamentais inerentes a qualquer pessoa, como é o direito a uma vida digna, à liberdade, à segurança, etc.) apenas reforça o ideal burguês subjacente à perspectivas anacrônicas dos DHs: a manutenção de um status quo de profundas desigualdades e injustiças sociais.
A naturalização de processos sociais, tais como a luta cotidiana por DHs ou a ideia de que a condição de dignidade é inerente ao ser humano, ou ainda, que essa condição está garantida quando se tem um determinado direito prescrito, são exemplos importantes de como esses processos de naturalização, que muitas vezes se tornam evidentes pelas concepções que se tem desses processos, demonstram que, como discutem (Coimbra, 2011), (Deleuze, 1992), (Flores, 2009) e (Reis, 2012, 2017), as concepções de DHs, muitas vezes têm servido como fundamento para o exercício de práticas, modos de ser, crenças e ações na sociedade que levam ao agravamento das condições de vida de pessoas e contextos que intencionam proteger.
Os questionários utilizados neste estudo evidenciam as concepções dos autores de suas respostas na direção que essa discussão está sendo produzida. São diversas as respostas que trazem em seu escopo o destaque a palavras como “dignidade”, sem que essa concepção seja melhor desenvolvida, mas sempre se avizinhando de outros conceitos/concepções, tais como “direitos naturais”, “direitos de todas as pessoas”, “direitos democráticos”, “direitos inerentes a qualquer pessoa”. Ou seja, se evidencia uma inclinação à um conjunto de perspectivas que naturalizam tais diretos e processos sociais que os acompanham.
Passaremos, agora, à apresentação e discussão da próxima categoria.
Categoria 2: Psicologia e Direitos Humanos: uma relação necessária?
Ao tratar da formação/graduação em Psicologia, partimos do princípio de que essa ciência pode ser concebida, historicamente, como um equipamento social de saber-poder, ordenador de modos de vida, produtora de processos de institucionalização (Bicalho et al, 2009). A Psicologia, desde sua origem enquanto ciência moderna, atrelada às características cientificistas, positivistas, tem voltado seu olhar especialmente para os processos de normalização, construindo técnicas e saberes normatizantes (Prado Filho, 2005), enfatizando aquele/aquilo que é doente, faltante, dificultoso, desequilibrado, desajustado. Destarte, concordamos com o pensamento de (Foucault, 2008) quando debate o surgimento da Psicologia como disciplina da norma, reguladora, vigilante, produtora de uma ortopedia nas subjetividades desviantes, desequilibradas, anormais. Conforme (Foucault, 2008), a Psicologia emerge, dentre uma série de outros saberes, no final do século XIX, dentro de um exercício do poder que não mais estava centrado no corpo, mas, agora, na subjetividade, na produção desta. Corroborando essa perspectiva, Prado (Filho, 2005) afirma que a Psicologia, e outros saberes “psis” (psicanálise e psiquiatria), compõem corpos de conhecimentos e técnicas de intervenção sobre a subjetividade, conjuntos de saber-poder que operam sobre sujeitos como dispositivos normalizadores.
Destarte, ao analisar as respostas produzidas no questionário de nossa pesquisa, percebemos uma estreita relação que os estudantes, sejam calouros ou formandos, atribuem à importância da ciência psicológica se aproximar mais do âmbito dos DHs. Essa necessidade de aproximação se evidencia em diferentes sentidos, remetendo à uma percepção de que o curso não oferece muito explicitamente essa aproximação, como podemos verificar nas seguintes transcrições:
“Uma vez que o objeto de estudo da psicologia clínica é a pessoa, em sua totalidade, falar de DHs deveria ser comum. Entretanto, para mim a psicologia ainda segrega a relação entre os temas” (Formando 1).
“É uma relação muito estreita. Mais do que qualquer outro curso, a psicologia deveria se envolver mais com as discussões sobre DHs” (Formando 4).
“Existe uma citação na disciplina ‘Ética profissional’, porém não há um pensamento em como essa questão se dá em outros contextos. A formação em psicologia é, de certa forma, alienada, muito voltada para si” (Formando 8).
“Vejo uma relação onde a troca é fundamental para o desenvolvimento da psicologia e dos DHs. Estão intrinsecamente ligados, porém, nosso curso ainda está muito aquém. A psicologia estuda que é próprio do humano, e precisa dialogar com os direitos desse ser” (Formando 11).
As expressões acima evidenciam o que autores como (Nórte, Macieira e Rodrigues, 2010), (Prado Filho, 2005) e (Bicalho et al, 2009) quando remetem à psicologia como dispositivo controle social, além de centrar suas ações num universo particular, de maneira liberal e, muitas vezes sem a percepção de que processos psicológicos são atravessados por processos sociais, como as garantias ou violações de DHs. Chama-nos atenção o fato de que a percepção dos estudantes formandos é a de que o curso de psicologia pouco oferece espaços e debates que possam ser compreendidos como do escopo dos DHs, salvo algumas exceções, como no caso mencionado sobre a disciplina de ética profissional.
No caso dos calouros, a percepção de que os DHs deveriam estar presentes na formação em psicologia não é diferente, como nos evidenciam as seguintes expressões:
“Há uma relação entre DHs e psicologia, acho importante esse estudo e essa conexão entre outras áreas” (Calouro 37).
“Acho que é uma relação muito próxima, já que ambas prezam pelo bem estar do ser humano” (Calouro 33).
A compreensão acerca da relação entre a psicologia e os DHs por parte de muitos calouros, em nossa pesquisa, evidencia ideias ou representações da psicologia ainda muito conectada ao campo da clínica de consultório, liberal, fortemente difundida no contexto brasileiro. Essa perspectiva pode ser percebida em expressões como as que seguem:
“DHs garantem tudo para que a psicologia ajude uma pessoa a superar seus traumas” (Calouro 39).
“As duas tem uma ligação forte, já que a psicologia lida diretamente com o ser humano e os DHs influenciam muito o ser humano e seu lado psicológico” (Calouro 23).
“Não consigo estabelecer uma relação clara ente DHs e psicologia” (Calouro 15).
“Estão diretamente ligados, pois as duas visam à saúde mental” (Calouro 32).
Evidenciamos, com os trechos acima, que as relações entre DHs e psicologia, no âmbito da graduação muitas vezes são compreendidas como extremamente importantes, seja por calouros ou egressos, pois há uma percepção de que a psicologia atua, direta ou indiretamente, na consolidação desses direitos. Contudo, evidenciamos também, que, especialmente por parte dos formandos, há uma percepção de que o curso não oferece elementos satisfatórios para que a atuação profissional em psicologia possa engendrar a garantia de DHs. As relações que se colocam explícitas são direcionadas a áreas ou ações específicas da psicologia, como no caso da saúde mental e das discussões sobre uma conduta ética por parte do profissional.
Nessa direção, (Yamamoto e Oliveira, 2010) discutem a histórica distância que os cursos de formação em psicologia têm construído em relação a atividades fora das clássicas áreas que compunham o “currículo mínimo” (clínica, escolar e organizacional), e como esse fato gerou um conjunto de efeitos colaterais para nossa prática profissional e para a “visão geral” que a sociedade tem acerca da psicologia: uma ciência/profissão que historicamente tem servido às elites econômicas, com extrema dificuldade em encontrar a legitimidade de suas práticas fora das áreas clássicas. A atuação no campo das políticas sociais, por exemplo, é expressão de como nossa atuação está, ao longo dos seus anos de institucionalização, desconectada com uma visão de DHs que seja garantista, de modo a reproduzir no campo dessas políticas um modus operandi que reifica a visão liberal e individualista da atuação profissional de psicólogos e psicólogas.
Acrescentamos a esse debate o fato de compreendermos a formação em Psicologia, para além de uma formação em uma prática/profissão, como a produção de sujeitos que têm socialmente legitimados, a partir dos jogos de verdade, o saber/poder sobre a forma de funcionamento das pessoas, em nossa sociedade. O profissional da psicologia tem legitimado o poder de intervir dentro de processos de normalização de sujeitos, em nome de construtos socialmente produzidos pelas ciências modernas: normalidade, saúde, bem-estar, etc. A formação em Psicologia, pode, então, ser entendida como dispositivo que atuará na transformação de sujeitos e realidades. Transformação essa que, historicamente tem sido utilizada como instrumento de esquadrinhamento, que cura e procura colocar dentro das normas da sociedade, eliminando e deslegitimando a diferença (Ribeiro & Baptista, 2016).
Os fragmentos de narrativas aqui trazidos evidenciam que, seja em nível de representação do que venha a ser a prática do profissional da psicologia (expresso aqui pela voz dos calouros), seja pela perspectiva do formando, há uma equivalência em seus discursos que a formação (pelo menos cinco anos de atividades de ensino e práticas supervisionadas) parece evidenciar: o fato de que a relação entre psicologia e DHs tem sido compreendida desde um referencial liberal, descolado da história de ambas as disciplinas, pautado numa visão de ser humano e de mundo que legitimam práticas individuais em detrimento de aspectos que considerem o coletivo, que referendam discursos excludentes em nome de méritos que estão descolados do processo histórico no qual se situam, e, sobretudo, demonstram que há uma visão geral que não compreendem a prática profissional de psicólogas e psicólogos como práticas de garantia, efetivação e promoção de DHs, em diferentes cenários e com diferentes problemáticas a serem enfrentadas.
Considerações finais
Compreendemos que nosso estudo tem objetivo bastante delimitado, não pretendendo ser um estudo generalizante, que coloca diversos cursos de graduação em um mesmo bojo de condições, potencialidades e limitações. Contudo, compreendemos que ele carrega as características de um estudo de caso, bastante localizado e específico, mas que pode conter pistas para pensarmos como vem se forjando a construção de profissionais de psicologia no contexto brasileiro.
Pudemos evidenciar que, muito embora a busca pela aproximação da psicologia com os DHs (seja em suas dimensões filosóficas, seja em suas reverberações práticas - garantias e violações de DHs) se coloque como um movimento histórico da categoria profissional, a formação profissional parece estar caminhando em passos lentos nessa direção, ainda incorporando ao processo de formação de novos profissionais de psicologia elementos pontuais de uma atuação sustentada na defesa e garantia desses direitos. A pesquisa em tela evidencia que a compreensão do que são os DHs por parte de alunos que estão finalizando o curso de psicologia pouco se diferem daqueles alunos recém ingressantes na profissionalização: uma visão fortemente marcada por um ideário liberal, romântico e anacrônico dos Direitos Humanos. Poucas foram as respostas que evidenciavam uma percepção mais dinâmica e fluída desses direitos, e com quase nenhuma perceptiva de pensar o próprio exercício profissional da psicologia como um exercício contínuo da garantia dos DHs.
Tomar os Direitos Humanos enquanto um marco para a profissionalização nos parece urgente, tendo em vista a continua ampliação dos horizontes de atuação da prática profissional de psicólogos/psicólogas, sua interface cotidiana com diversos espaços de produção de modos de vida, violações de direitos e pautas ético-políticas. Parece urgente, nessa mesma perspectiva, que cursos de formação de profissionais da psicologia estejam alinhados a uma dimensão ética dos DHs, que respaldam o ser humano a partir de um contínuo exercício de afirmação da diferença. É cada dia mais demandado dos profissionais da psicologia, que nossa prática seja realizada de maneira ética (tanto no que diz respeito ao cumprimento do que se situa em nosso código de ética profissional, quanto num fazer pautado pela promoção de práticas potentes que promovam a dignidade humana), de forma a configurar um caminhar ético-político, nos termos do que (Yamamoto, 2012) defende, quando discute nosso compromisso social: uma ciência e profissão que se constituam com um profundo compromisso com as mudanças sociais, em direção a uma sociedade justa e equânime. É nossa defesa a ideia de que tornar-se psicólogo/psicóloga seja o equivalente a tornar-se um profissional da defesa permanente e inegociável dos DHs, e isso deve se iniciar no primeiro dia de aula no curso, e jamais cessar.
O estudo em tela se coloca com uma mirada pontual, da formação de psicólogos e psicólogas no contexto brasileiro atual, buscando tornar evidentes alguns pontos de potencialidades e fragilidades de nossa formação enquanto profissionais que buscam historicamente construir um compromisso social. Sugerimos, como reflexão oriunda desse estudo, que outras pesquisas busquem evidenciar práticas formativas que extrapolem o modelo liberal de construção profissional de psicólogos, apostando em iniciativas de ordem mais coletivistas e plurais, colocando em movimento a ideia de que os DHs se realizam nas práticas sociais, defendendo as diferenças e amplificando as multiplicidades éticas, estéticas e políticas.