1. INTRODUÇÃO
A pobreza é um fenómeno que afeta todas as nações indistintamente, embora seja mais evidente nos países em desenvolvimento e se refere principalmente à negação dos direitos humanos ao gerar perdas de bem-estar. Apesar da visibilidade, a discussão relativa ao seu conceito e como ela deve ser medida ainda persiste (Caballero, 2017; Cuenca-López & Torres, 2020; Monte & Cruz, 2012; Rocha, 2006; Vieira et al., 2017).
Em vista disso, uma das medidas mais usadas para mensurar a pobreza é a abordagem unidimensional ou pobreza monetária, que considera pobres aquelas pessoas que não atingem um nível mínimo de renda para satisfazer suas necessidades de consumo (Crespo & Gurovitz, 2002; Ravallion, 1998).
Por outro lado, tem-se a perspectiva multidimensional, que considera as condições básicas de sobrevivência, moradia e alimentação como decisivas para se compreender a pobreza (Bender & Bagolin, 2014; Vieira et al., 2021). Nessa perspectiva, a pobreza consiste em um nível crítico de privação que não se limita apenas à renda suficiente para atingir uma cesta básica de consumo, mas está ligada à falta de proteção social, recursos insuficientes, insegurança civil, climas extremos, dificuldade de acesso a emprego decente, privação de direitos ou vulnerabilidade de crianças, mulheres, idosos, deficientes, povos indígenas e afrodescendentes (House et al., 2020; NU. CEPAL, 2015).
Importante ainda salientar que o conceito de pobreza multidimensional está associado à teoria da pobreza e desenvolvimento humano elaborada por Amartya Sen na década de 1980 (Fahel & Teles, 2018; Vieira et al., 2017). O autor criticou a medida unidimensional da pobreza, argumentando que a pobreza de uma pessoa é determinada por sua capacidade de acesso às condições de saúde, emprego, educação e moradia, serviços básicos, direitos civis e políticos, além da capacidade física e não discriminação, e não apenas pelos bens que possui segundo seus níveis de renda (Fahel & Teles, 2018; Feres & Mancero, 2001; Sen, 1979, 1999).
Com o passar do tempo, a abordagem multidimensional evoluiu constantemente e, atualmente, suas medidas fazem parte das políticas sociais dos países para Combater a pobreza (Brites et al., 2017; Fahel et al., 2016). Assim, uma das metodologias mais utilizadas para estimar a pobreza multidimensional, bem como determinar as privações que sofrem os indivíduos, é o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), desenvolvido por Sabina Alkire e James Foster da Oxford Poverty & Human Development Initiatiave (OPHI), em 2010. O IPM Global é estabelecido com indicadores de saúde (nutrição e mortalidade infantil), educação (escolaridade e assistência escolar) e padrão de vida (combustível para cozinhar, saneamento, água potável, eletricidade, habitação e ativos) (Alkire et al., 2020).
Desde 2010, vários países implementaram o IPM como uma medida oficial permanente de pobreza, complementando, dessa forma, as estatísticas de pobreza monetária. As diferenças de dimensões e indicadores entre os países pode ser explicada pela flexibilidade do método Alkire-Foster, que permite a construção de um índice em conformidade com as necessidades e políticas de cada país (Alkire & Jahan, 2018).
De acordo com os dados do IPM Global de 2021, a pobreza multidimensional afeta, aproximadamente, 1,3 bilhão de pessoas (21,7% de 5,9 bilhões de pessoas) em 109 países analisados. Metade delas são crianças, 84% (1,1 bilhão) vivem em áreas rurais e 16% (quase 209 milhões) em áreas urbanas (UNDP-OPHI, 2021). No caso do Paraguai, foco do presente estudo, segundo dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a incidência de pobreza multidimensional atingiu a 24,93% da população total (INE, 2021).
O IPM é um instrumento eficaz para mensurar a pobreza, sendo particularmente relevante no momento do advento da pandemia da Covid-19. A rápida propagação do novo coronavírus obrigou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar pandemia mundial em março de 2020, gerando diversas implicações económicas, sociais, políticas e psicológicas (Belkiss et al., 2021). A partir daquele momento, boa parte dos países estabeleceram quarentena obrigatória e fechamento de negócios para reduzir a expansão do vírus.
Tais restrições sanitárias afetaram negativamente a economia global, além de aumentar a vulnerabilidade e privações das famílias com menor nível de renda (Lechuga-Nevárez & Chavarria, 2020). Nesse sentido, verifica-se que o coronavírus afeta mais as pessoas pobres, que sofrem de múltiplas privações relacionadas ao acesso a água potável, serviços de saúde, superlotação de domicílios e déficit de saneamento básico (Barraza et al., 2020; Santos, 2020; UNDP-OPHI, 2021). Os indivíduos que possuem privações são mais suscetíveis ao vírus, sendo que concomitantemente a pandemia acentua a pobreza multidimensional entre essas pessoas.
Além disso, nos países da América Latina, existem barreiras significativas quanto ao acesso aos serviços de saúde, bem como limitações quanto à disponibilidade de recursos humanos e infraestrutura de saúde para atender a população doente. Com relação ao nível educacional, a interrupção do ano letivo atinge, principalmente, alunos que se encontravam em situação de vulnerabilidade, acentuando as lacunas educacionais. Como já salientado, a pandemia também gerou contração do emprego, afetando principalmente os trabalhadores informais e mulheres (Bárcena et al., 2021).
Percebe-se que a pandemia da Covid-19 colocou em risco os progressos na redução da pobreza multidimensional. Prevê-se que o vírus venha a ter um impacto substancial a sobre a mesma por meio de dois dos indicadores em que se baseia o IPM global, e que serão gravemente afetados pela pandemia: a nutrição e a assistência às crianças na escola (Alkire et al., 2020). Além disso, o efeito poderia ser maior nas economias mais pobres, com menor taxa de vacinação, deficiente infraestrutura de saúde e escassa proteção social (Mejía et al., 2020).
Diante da relevância do tema, o efeito da pandemia da Covid-19 sobre o nível de pobreza multidimensional é um tema debatido na literatura. Nesse ínterim, alguns autores indicam que a pandemia poderia aumentar a pobreza multidimensional e as privações da população mais vulnerável (Alkire et al., 2021; Ba, 2020; Flores Tavares & Betti, 2020; Millan-Guerrero et al., 2021). Outros autores destacaram a proteção social como medida para garantir o consumo e o bem-estar dos cidadãos e desse modo reduzir o efeito da pandemia sobre o aumento da pobreza multidimensional (Bárcena et al., 2021; Bonfiglio & Robles, 2021; Carvalho, 2021).
A partir dessas considerações, o objetivo deste estudo é analisar o efeito da pandemia sobre a evolução da pobreza multidimensional no Paraguai durante o período 20162020. Além de fornecer um panorama a respeito da evolução da pobreza multidimensional no país, são analisadas as privações sofridas pela população paraguaia nas dimensões consideradas no IPM paraguaio (trabalho e seguridade social, saúde e meio ambiente, educação, habitação e serviços básicos) a partir do advento da pandemia da Covid-19. Assim, o estudo proporciona a análise mais acurada a respeito da realidade social do país e pode auxiliar os gestores públicos no intuito de desenvolverem políticas públicas adequadas para reduzir a pobreza multidimensional no país.
Além dessa introdução, o estudo está organizado em mais quatro seções. A segunda apresenta uma revisão de literatura que tange ao efeito da pandemia sobre o IPM no mundo e na América Latina. Já a terceira seção apresenta a abordagem multidimensional da pobreza e o método Alkire-Foster. Por sua vez, a quarta seção apresenta os resultados da análise descritiva da pobreza multidimensional no Paraguai e os efeitos da pandemia sobre ela. Por fim, são apresentadas as conclusões do trabalho.
2. REVISÃO DE LITERATURA
Alguns estudos avaliaram o efeito da pandemia da Covid-19 sobre a pobreza multidimensional no mundo e na América Latina, considerando diversas dimensões e indicadores. Nesse sentido, Liu et al. (2021) analisaram o impacto da pandemia sobre a pobreza multidimensional nas zonas rurais da China em 2020, utilizando as seguintes dimensões: condições materiais, níveis de rendimento, condições de saúde, desenvolvimento industrial e oportunidades de emprego dos agricultores. Os resultados indicaram que o efeito da pandemia é maior nas regiões que apresentam níveis de pobreza multidimensional mais elevados, particularmente para a parcela da população que sofre privações na dimensão de saúde, seguida pelo desenvolvimento industrial, emprego e renda.
Do mesmo modo, Barraza et al. (2020), usando dados de 2018, identificaram as condições onde os domicílios salvadorenhos são mais vulneráveis e poder-se-iam tornar pobres durante a pandemia da Covid-19 em 2020. As privações analisadas foram: acesso a serviços de saúde, superlotação, acesso a saneamento, subemprego e acesso à segurança social. Estimou-se que 85,8% dos agregados familiares sofrem de pelo menos uma das seis privações assinaladas. Além disso, as famílias que têm maior risco frente à pandemia são os pobres multidimensionais, além daquelas chefiadas por mulheres.
Outro estudo avaliou a relação entre os casos positivos da Covid-19 e o índice de pobreza multidimensional na cidade de Manizales, na Colômbia, no ano de 2020. O IPM da Colômbia é calculado através da metodologia de Alkire e Foster, estabelecendo cinco dimensões (condições educativas do domicílio, condições das crianças e dos jovens, saúde, trabalho, acesso aos serviços públicos e condições de moradia) e 15 indicadores. Cada dimensão tem um peso de 20% e os indicadores têm o mesmo peso dentro de suas respectivas dimensões. Neste caso, as famílias são consideradas pobres se estiverem privadas pelo menos 33,3% dos indicadores. Os resultados indicam que nas comunas de maior pobreza (maior IPM), a densidade de casos por COVID-19 é mais elevada (Henao-Cespedes et al., 2021).
Já o estudo de Tavares & Betti (2021) demonstrou quanto e como a população brasileira é privada de determinados indicadores relacionados à capacidade de prevenir e se recuperar da infecção da Covid-19. Para tal, utilizou-se o método AF e uma abordagem Fuzzy-set como medida complementar para mensurar a pobreza multidimensional e os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) para o período 2017-2018. As variáveis utilizadas correspondem ao acesso a água potável, saneamento, eletricidade, habitação, refeições escolares, despesa de consumo alimentar, habitação sobrelotada, tempo de deslocamento ao trabalho, poluição do ar interior por combustível de cozinha, e seguro privado. Os índices revelam uma desigualdade considerável entre as regiões e os grupos étnicos, o que confirma a hipótese existente que os grupos minoritários e as regiões vulneráveis estão mais expostos ao vírus.
Por sua vez, Belkiss et al. (2021) avaliaram o impacto da pandemia na pobreza multidimensional dos indivíduos que residem nas vinte e seis capitais brasileiras mais o Distrito Federal. Para tal, consideraram quatro dimensões (acesso à educação; à saúde; ao trabalho; à habitação) e doze indicadores para mensurar o índice de pobreza multidimensional nos sete meses iniciais da pandemia, usando o método Alkire-Foster e os dados da PNAD COVID-19. Os resultados estabelecem que a incidência de pobreza multidimensional não teve grandes alterações ao longo do período de 2020.
Posteriormente, Bonfiglio & Robles (2021), através de seis dimensões (saúde e alimentação; serviços básicos; habitação digna; ambiente; educação; emprego e segurança), analisaram os efeitos da crise sanitária, econômica e social nas zonas urbanas da Argentina causados pela pandemia da Covid-19. Os resultados demonstraram que a pandemia teve efeitos negativos nas dimensões de emprego e segurança social, educação, alimentação e saúde, embora a assistência social (transferência de renda e ajuda alimentar) tenha permitido a redução do impacto da pandemia, principalmente, na população de mais baixa renda.
3. POBREZA MULTIDIMENSIONAL E MÉTODO ALKIRE-FOSTER
O conceito de pobreza e sua medição mudou ao longo do tempo, passando de uma abordagem unidimensional, em termos monetários, para uma perspectiva multidimensional, que além do rendimento, considera outras áreas sociais, políticas e culturais relevantes para o bem-estar da população (Belkiss et al., 2021; Cuenca-López, 2020; Najam, 2020; United Nations, 1997).
A abordagem multidimensional da pobreza implica que o indivíduo sofre múltiplas desvantagens, que torna difícil ter uma vida digna. Logo, a pobreza representa a privação das capacidades básicas das pessoas em relação a educação, saúde, trabalho, segurança social, habitação, desigualdade de gênero, participação política e nível de vida em geral (Marinho & Sabino, 2016; Sen & Anand, 1997).
Conforme descrito anteriormente, o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM) foi desenvolvido para medir as necessidades múltiplas que os indivíduos enfrentam. O IPM reflete a incidência de pobreza multidimensional (a proporção de pessoas que são pobres multidimensionais) e sua intensidade (o número médio de privações que cada pessoa pobre experimenta ao mesmo tempo) (Alkire & Roche, 2011; Vieira et al., 2021)
Concretamente, em 2010, Sabina Alkire e James Foster, por meio da Iniciativa de Oxford sobre Pobreza e Desenvolvimento Humano (OPHI) da Universidade de Oxford, juntamente com o Gabinete do Relatório sobre o Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), elaboraram o Índice de Pobreza Multidimensional com base no quadro conceitual das capacidades de Amartya Sen (Alkire et al., 2020)
O método propõe a construção de um indicador composto, onde, por um lado, apre-senta-se a quantidade de privações que sofre o indivíduo; e, por outro lado, a proporção de indicadores que não conseguem o satisfazer sobre o total de indicadores considerados. Em seguida, determina-se a aplicação de um limiar de pobreza multidimensional, denominado k, onde aqueles indivíduos ou famílias que acumularem mais de k privações são considerados pobres multidimensionais (Alkire & Jahan, 2018; Macció & Mitchell, 2019).
O IPM é um método robusto que preenche um conjunto de axiomas ou propriedades que se adaptam às várias situações ou características de cada país, pois permite escolher as dimensões e indicadores qualitativos e quantitativos que determinam se uma pessoa seja classificada como pobre multidimensional. Atualmente, o IPM é a medida oficial de pobreza utilizada por organizações multinacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Além disso, o IPM é calculado para mais de 100 países no mundo e, como já salientado, foi construído a partir da abordagem utilizada na América Latina e na Europa, que levou em consideração o trabalho de Sen, quem persuasivamente defendeu concei-tuações mais amplas da pobreza, além da renda (Najam, 2020).
No caso do Paraguai, o IPM é utilizado como medida oficial da pobreza desde 2021 pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) com a colaboração de diversos organismos nacionais e internacionais e o assessoramento da OPHI. Desse modo, o IPM Paraguai se configura como uma medida direta da pobreza baseada também na abordagem de direitos humanos e das capacidades desenvolvidas por Amartya Sen, em 1998 (INE, 2021).
O cálculo do IPM é composto por duas variáveis, sendo que a primeira consiste na porcentagem de indivíduos identificados como pobres multidimensionais ou incidência (H); e a segunda representa a porcentagem média de carências que experimentam os indivíduos pobres multidimensionais ou intensidade (A). Assim, o IPM é o produto de H x A, e este é interpretado como a porcentagem de privações ponderadas que apresentam os lares ou pessoas pobres em relação ao máximo de privações que poderiam existir se todas as pessoas ou lares de um país fossem pobres e privados em todos os indicadores. O valor do índice pode variar de 0 a 1, sendo que valores próximos de a 0 indicam menor presença de privações e próximos de 1 indicam mais privações da população.
As etapas para calcular o IPM, segundo o método de Alkire-Foster, são as seguintes: 1- Definir o propósito da medida; 2- Definir a unidade de identificação (indivíduo ou lar); 3- Definir as dimensões; 4- Definir os indicadores das dimensões; 5- Definir os cortes de privação de cada indicador; 6- Definir os pesos das dimensões e dos indicadores de cada dimensão; 7- Definir o limiar de pobreza multidimensional, (k); 8- Identificar quem é pobre sob a óptica multidimensional.
A fonte de dados utilizada para o cálculo do IPM Paraguai é a Encuesta Permanente de Hogares Continua (EPHC) relativa ao período de 2016 a 2020, que corresponde aos anos que os dados estão disponíveis e contemplam o período (no caso o ano de 2020) em que são verificados os efeitos da pandemia. Esta pesquisa tem representatividade nacional e departamental e investiga, principalmente as características de habitação, acesso a serviços básicos, saúde, educação, trabalho e renda.
A dimensão da amostra da EPHC para o quarto trimestre de cada ano é de 6000 famílias, com exceção dos anos de 2016 e 2017, que possuíam dimensões em termos de amostra superiores, a fim de obter desagregações geográficas mais amplas. De qualquer forma, com 6000 famílias obtém-se representatividade com níveis confiáveis para todo o país, incluindo áreas urbana e rural, além de nove desagregações (Assunção, San Pedro, Caaguazú, Caazapá, Itapuá, Alto Paraná, Central, Outros Urbano e Outros Rural).
Para a seleção das dimensões do IPM do Paraguai, levou-se em consideração que elas estão relacionadas com as políticas públicas do país e com a disponibilidade de dados na EPHC. Além disso, as dimensões devem estar relacionadas com privações que determinam pobreza e não o bem-estar, que por sua vez se vinculam com direitos garantidos. Por fim, para definir os domicílios pobres multidimensionais, foi estabelecido o valor de k = 26%, sendo esse denominado limiar de Pobreza Multidimensional. Isso significa que as famílias com mais de 26% de privações são consideradas pobres mul-tidimensionais.
Assim, o IPM do Paraguai incorpora as seguintes quatro dimensões com seus respectivos indicadores e pesos, que se pode observar na Tabela 1:
Trabalho e Previdência Social | Habitação e serviços | Saúde e ambiente | Educação | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Desemprego | 5 | Materiais inadequados na casa | 8,33 | Pessoas doentes ou acidentadas sem acesso a cuidados de saúde profissionais | 6,25 | Não assiste à escola pessoas de 6 a 17 anos de idade | 8,33 |
Subocupação por insuficiência de tempo | 5 | Superlotação | 8,33 | Falta de acesso a água potável | 6,25 | Escolaridade atrasada | 8,33 |
Trabalho de pessoas de 10 a 17 anos | 5 | Práticas inadequadas ou falta de serviços de eliminação de resíduos | 8,33 | Falta de saneamento básico | 6,25 | Ensino obrigatório incompleto ou analfabetismo | 8,33 |
Não contribui para a aposentadoria | 5 | Utilização de carvão ou lenha para cozinhar | 6,25 | ||||
Falta de acesso a aposentadoria ou pensão | 5 |
Fonte: Elaboração própria.
4. ANÁLISE DOS RESULTADOS
Nesta seção, apresenta-se o efeito da pandemia da Covid-19 sobre a incidência, intensidade e o Índice de Pobreza Multidimensional obtidos pelo método Alkire-Foster, no período de 2016-2020, além de apresentar as taxas de privações dos indicadores no período de 2019-2020, quando são evidenciados os efeitos da pandemia.
Na Figura 1, pode-se observar que a incidência de pobreza multidimensional (H) tem diminuído ao longo do tempo. Nesse sentido, a porcentagem de pessoas pobres multi-dimensionais se reduz de 26,75% a 24,93%, entre 2019 e 2020, ou seja, caiu 1,82 pontos porcentuais (pp). Então, em 2020 a quantidade de pobres multidimensionais foi de 1.782.000 pessoas. A mesma tendência pode ser observada na área rural, onde a queda foi de 5,29 pp. Já na área urbana, houve aumento da incidência de pobreza em 0,5 pp.
Depois de se observar a incidência, na Figura 2, tem-se a intensidade de privações ou percentagem média de carências que experimentam os indivíduos pobres multi-dimensionais. A intensidade também apresenta diminuição ao longo do período de análise, caindo 1,23 pp no período 2019-2020. Assim, a nível nacional, em 2020, a intensidade de pobreza multidimensional (A) no Paraguai foi de 37,70%. Com relação às zonas urbana (35,61%) e rural (38,75%), não há diferenças significativas.
É importante salientar que a diminuição da pobreza no período de análise se deve, principalmente, ao crescimento económico sustentado, que permitiu maior geração de empregos e rendimentos (Ibarrola, 2020). Assim, o crescimento económico permitiu aumentar as remunerações da população empregada, além de gerar novos postos de trabalho para aqueles que estavam desempregados (Serafini et al., 2019).
No entanto, foi o gasto social que teve maior contribuição na queda da pobreza multidimensional, graças à criação da Secretaria de Ação Social (SAS), âmbito em que foi elaborado um plano de combate à pobreza e vulnerabilidade (Borda & Caballero, 2020). Nesse sentido, foram implementados programas de proteção social, de saúde e educação, que obtiveram resultados relevantes no combate à pobreza e desigualdade no período 2000-2010. Posteriormente, no período 2011-2020, deu-se continuidade aos programas, embora com menor impacto sobre a pobreza (Borda et al., 2021).
Desse modo, pode-se concluir que a proteção social foi o mecanismo que permitiu a uma importante parcela da população a obtenção de rendimento mínimo para ter acesso a determinados bens e serviços (água potável, energia elétrica, saúde e educação) e, desse modo, melhorar o nível de bem-estar (Serafini et al., 2019).
Entre os principais programas sociais encontra-se o Tekoporã, que consiste em conceder transferências de rendas às famílias em situação de pobreza e vulnerabilidade com a condição de enviar seus filhos à escola e submetê-los a exames médicos e vacinações, com o objetivo de romper o ciclo intergeracional da pobreza e manter as crianças e adolescentes no sistema educacional, aumentando o nível de capital humano da população jovem (Cuenca et al., 2021).
A partir dos resultados da Incidência (H) e Intensidade (A) de pobreza multidimensional, pode-se obter o Índice de Pobreza Multidimensional IPM= H x A, por meio do método Alkire-Foster. Assim, na Figura 3, observa-se que o IPM no ano 2020 foi de 0,094 com tendência de decrescimento ao longo do tempo, mas com diferenças entre as zonas urbana (0,047) e rural (0,173). O IPM indica que para o ano 2020, do total das possíveis privações que podem afetar a população paraguaia, 9,40% afetam os pobres multidimensionais.
No ano de 2020, teve início a pandemia da Covid-19, que afetou a população em geral, principalmente, nas condições de saúde, educação, mercado de trabalho e nos índices de pobreza. Em consequência da crise sanitária, milhares de cidadãos se viram obrigados a permanecerem isolados em suas casas para diminuir o contágio da Covid-19, o que gerou perdas de postos de trabalho e redução do rendimento médio, que por sua vez, afetou a qualidade de vida da população.
Para mitigar o impacto económico e social provocado pela crise sanitária do corona-vírus e aumentar o nível de consumo da população, o Estado implementou algumas políticas. -A estratégia do Governo para fazer frente à emergência sanitária consistiu em três eixos principais: i) despesas para o funcionamento do Estado; ii) reforço do sistema de saúde (aquisição de insumos e medicamentos, infraestrutura sanitária); iii) transferências de renda (Borda et al., 2021)
Entre as principais medidas implementadas, tem-se que o aumento das despesas sociais por meio do programa Pytyvõ e Nangareko, consistiu em conceder transferências monetárias e cestas de alimentos às pessoas que perderam os seus empregos devido à pandemia, sobretudo, para a população do setor informal da economia (Borda et al., 2021). Além disso, houve aumento da abrangência dos programas existentes, como Te-koporã, Pensão de Idosos e Abraço, que favoreceu que um maior número de cidadãos tivesse acesso a um rendimento mínimo para o consumo. Para o setor formal da economia, foram suspensos temporariamente os contratos para evitar a propagação do vírus, embora os empregados continuassem recebendo parcialmente seus salários através por meio do Instituto de Previdência Social (IPS) (Borda & Caballero, 2020).
Assim, a assistência por meio dos programas sociais ajudou a conter o aumento da pobreza em 2020 e a reduzir os efeitos negativos perniciosos da Covid-19. Em geral, esses resultados estabelecem que os programas de transferências são uma ferramenta chave na luta contra a pobreza e vulnerabilidade nos países, bem como no Paraguai, e que em períodos de crise, como a pandemia da Covid-19, podem dar um alívio às pessoas que se encontram em situação de pobreza e sofrem múltiplas privações.
Como evidenciado na Figura 4, embora o IPM nas áreas urbana e rural tenha diminuído 2,1% e 12,2% entre os anos de 2019 e 2020, respectivamente, à área rural apresenta maiores privações com relação a área urbana, ou seja, do total das possíveis privações que podem afetar a população rural, 17,27% afetam aos pobres multidimensionais e somente 4,73% a população urbana.
Assim, estes resultados indicam que a pobreza multidimensional é mais aguda nas zonas rurais, e isso significa que a população rural sofre maiores privações em comparação à população que reside em regiões mais urbanizadas. Nesse sentido, (Sili et al., 2017) estabelecem que a pobreza afeta mais fortemente a população rural, principalmente, devido à baixa qualidade educacional e a falta de acesso às terras para o cultivo de subsistência, menor produtividade e dificuldades de acesso a financiamento para o cultivo. Outros fatores que aumentam a pobreza rural correspondem à falta de medidas que diminuam os efeitos climáticos, como seguro agroclimático, e infraestrutura rodoviária deficiente para o transporte da produção agrícola (Serafini et al., 2019). Além disso, o crescimento do setor agropecuário nas últimas décadas não teve efeito distributivo importante sobre as famílias mais vulneráveis (Borda & Caballero, 2020).
Após a análise do índice de pobreza multidimensional como um todo, têm-se as taxas de privação, evidenciadas no Quadro 1, que indicam a porcentagem de pessoas pobres que é privada de um determinado indicador. As principais privações que apresentaram maior redução entre os anos 2019 e 2020, ou seja, com o advento da pandemia, foram as práticas inadequadas ou falta de serviços para eliminação de lixo, com queda de 3 pp; pessoas doentes ou acidentadas sem acesso à assistência médica profissional, com queda de 2,78 pp; uso de carvão ou lenha para cozinhar, com uma queda de 2,73 pp; e não contribui para a aposentadoria caiu 1,92 pp.
Dimensões | Indicadores | Ano | Diferença | |
---|---|---|---|---|
2019 | 2020 | (2020 - 2019) | ||
Educação | Pessoas de 6 a 17 anos de idade que não frequentam a escola | 5,28 | 5,43 | 0,15 |
Escolaridade atrasada | 8,87 | 9,10 | 0,23 | |
Ensino obrigatório incompleto ou analfabetismo | 7,59 | 6,65 | -0,94 | |
Saúde e ambiente | Pessoas doentes ou acidentadas sem acesso a cuidados de saúde profissionais | 10,23 | 7,45 | -2,78 |
Falta de acesso a água potável | 6,67 | 6,32 | -0,35 | |
Falta de saneamento básico | 12,37 | 10,82 | -1,55 | |
Utilização de carvão ou lenha para cozinhar | 19,63 | 16,90 | -2,73 | |
Trabalho e Previdência Social | Desemprego | 3,98 | 4,03 | 0,05 |
Subocupação por insuficiência de tempo | 7,86 | 6,73 | -1,13 | |
Trabalho de pessoas de 10 a 17 anos | 4,44 | 4,16 | -0,28 | |
Não contribui para a aposentadoria | 25,09 | 23,17 | -1,92 | |
Falta de acesso à aposentadoria ou pensão | 2,98 | 2,14 | -0,84 | |
Habitação e serviços | Materiais inadequados na casa | 8,08 | 6,67 | -1,41 |
Superlotação | 7,27 | 8,06 | 0,79 | |
Práticas inadequadas ou falta de serviços de eliminação de resíduos | 24,60 | 21,60 | -3,00 |
Fonte: Elaboração própria.
Quanto à gestão integral de resíduos sólidos e perigosos no Paraguai, esta é uma grande responsabilidade devido ao impacto que gera direta e indiretamente no meio ambiente e na saúde das pessoas. Nesse sentido, atualmente, o Paraguai dispõe de um plano de gestão de resíduos a nível nacional para orientar as ações e reduzir a poluição, fato que se evidenciou com a queda da privação de práticas inadequadas ou falta de serviços de eliminação de lixo (MADES/PNUD/FMAM, 2020).
Por sua vez, no caso da saúde no Paraguai, segundo os dados do INE no ano de 2020, somente 25,5% da população tem acesso a um seguro médico. No entanto, as pessoas sem seguro de saúde podem recorrer gratuitamente aos serviços de saúde pública para receber cuidados primários, o que explicaria a redução da privação de pessoas doentes ou acidentadas sem acesso à assistência médica profissional (Gómez & Escobar, 2021).
Já a utilização de lenha ou carvão é predominante no caso das famílias pobres. O uso deste tipo de combustível é prejudicial para o meio ambiente e a saúde, especialmente, para as mulheres e meninas, pois são elas as encarregadas pelo provimento da lenha ou carvão, além da preparação dos alimentos no domicílio (Céspedes, 2021; PNUD, 2020; Troncoso et al., 2018). A utilização de carvão ou lenha diminuiu entre 2019 e 2020 devido à escassez de lenha nas proximidades dos centros populacionais, mas isso implicou maior tempo para a colheita, acondicionamento e cozedura de alimentos (Viceministerio de Minas y Energía, 2019).
Por outro lado, as privações que apresentaram elevação entre 2019 e 2020 foram superlotação, com aumento de 0,79 pp; escolaridade atrasada, com aumento de 0,23 pp; pessoas de 6 a 17 anos de idade que não frequentam a escola, com aumento de 0,15 pp; e desemprego com aumento de 0,05 pp.
Nesse sentido, a pandemia da Covid-19 aumentou as desigualdades entre as famílias pobres, onde o quadro se tornou mais crítico, principalmente, para aquelas com um número elevado de membros que vivem em uma casa. O aumento do desemprego e a escassez de renda obrigaram as famílias a compartilharem a casa entre seus membros, ocasionando superlotação. Isso gerou maior risco de contágio do vírus, além da falta de acesso a serviços de água potável e saneamento básico (Llerena Lanza & Sánchez Navárez, 2020; Organización Panamericana de la Salud, 2020).
Além disso, a pandemia da Covid-19 provocou o fechamento das escolas com a finalidade de controlar o contágio entre indivíduos, o que afetou a escolaridade da população jovem, já que muitas crianças e adolescentes não tinham as condições mínimas para continuarem acompanhando as aulas em casa, resultando em elevado número percentual de evasão escolar (Pachay-López & Rodríguez-Gámez, 2021). Além de interromper as aulas, o fechamento das escolas afetou a alimentação e nutrição da população estudantil, especialmente, da parcela mais vulnerável (NU. CEPAL, 2020).
Por último, a taxa de desemprego aumentou significativamente com o início da pandemia em março de 2020, além de provocar precarização da força de trabalho e aumento da informalidade. Nesse contexto, é possível concluir que os programas sociais garantiram a manutenção e/ou elevação do nível de renda, o que diminuiu o IPM, apesar da elevação do desemprego. Cabe ainda salientar que, aproximadamente, metade dos empregos na América Latina são informais e no caso do Paraguai a informalidade laboral atinge 65% da população (Arreaza et al., 2021; Serafini et al., 2019).
CONCLUSÃO
A pobreza é um fenómeno multidimensional que priva as pessoas dos seus direitos básicos de bem-estar. Nesse sentido, Amartya Sen indicou que os níveis de pobreza não dependem exclusivamente da renda, mas também de outros fatores como a saúde, educação, habitação, segurança etc.
Dessa forma, Sabina Alkire e James Foster desenvolveram o índice de Pobreza Multidimensional (IPM) para determinar qual porcentagem da população é pobre e as privações que estas sofrem. A medida do IPM é utilizada oficialmente desde 2010 em vários países, sendo que desde 2021 o Paraguai implementou o uso deste índice como medida complementar à pobreza monetária.
O IPM é uma ferramenta eficaz para mensurar os efeitos da pandemia da Covid-19 sobre a evolução da pobreza, além de estabelecer quais indicadores a população sofre maiores privações. Nesse sentido, a pandemia é um risco para as pessoas porque se evidencia a fragilidade das famílias pobres multidimensionais para cumprir a medida de isolamento social preventivo, o que gera maior probabilidade de contraírem o vírus. Além disso, o isolamento pode afetar o nível de consumo e a nutrição das famílias, devido à diminuição da renda, além do nível de escolaridade das crianças.
Levando todos esses aspectos em consideração, o objetivo deste estudo foi analisar o efeito da pandemia sobre a evolução da pobreza multidimensional no Paraguai durante o período 2016-2020. Os resultados indicam que a incidência de pobreza multidimensional no Paraguai diminuiu em 2020, comparativamente a 2019, fruto principalmente das políticas sociais aplicadas para redução do impacto da pandemia da Covid-19.
As privações que apresentaram quedas importantes com o aparecimento da pandemia foram correspondentes às práticas inadequadas ou falta de serviços de eliminação de resíduos, pessoas doentes ou acidentadas sem acesso a cuidados de saúde, utilização de carvão ou lenha para cozinhar, e não contribuição com a aposentadoria. Por outro lado, as privações que mostram aumento em função da pandemia são superlotação, escolaridade atrasada e pessoas de 6 a 17 anos de idade que não frequentam a escola, além d-e desemprego.
A partir dos resultados verificados, seria fundamental que o Estado aumentasse a cobertura da proteção social às zonas mais vulneráveis a fim de melhorar o bem-estar dessa população, embora isso não seja suficiente. Também deve haver uma política de desenvolvimento regional adequada, que permita atrair mais investimentos e a criação de empregos de qualidade, aumentando assim a remuneração da população. Além disso, é importante melhorar as condições de saúde e educação da população para que haja cidadãos mais saudáveis, instruídos, capacitados e produtivos.