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Historia Caribe

versão impressa ISSN 0122-8803

Hist. Caribe vol.17 no.40 Barranquilla jan./jun. 2022  Epub 25-Out-2022

https://doi.org/10.15648/hc.40.2022.3201 

Artículo de investigación científica

O convento de Nossa Senhora da Conceição de Angra: A atividade litúrgico-musical e a sua implantação numa cidade insular nos séculos XVII e XVIII*

El convento de Nuestra Señora de la Concepción de Angra: La actividad litúrgico-musical y su implantación en una ciudad insular de los siglos XVII y XVIII

The convent of Our Lady of Conception of Angra: The Liturgical-Musical Activity and its implementation in an insular city in the 17th and 18th centuries

Le couvent de "Nuestra Señora de la Concepción de Angra": L'activité liturgique-musicale et son implantation dans une ville insulaire des XVIIe et XVIIIe siècles

LUÍS HENRIQUES** 

** Afiliado al Centro de Sociología y Estética Musical de la Universidad de Évora - CESEM (Portugal). Correo electrónico: luiscfhenriques@uevora.pt. Su interés de investigación se centra en los Estudios de Música Antigua. ID ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6533-1108


Resumo

O convento de Nossa Senhora da Conceição, de religiosas concepcionistas, foi fundado nos limites da cidade de Angra (ilha Terceira, Açores) no início do século XVII. A presença desta comunidade implicou uma nova paisagem sonora no universo religioso da cidade. Os cronistas do século XVII Fr. Agostinho de Monte Alverne e o Padre Manuel Luís Maldonado relatam uma série de eventos entre o convento e a cidade onde a música estaria presente. Este estudo explora, com base nestes relatos, os eventos da comunidade religiosa, como as cerimónias de entrada de noviças e as profissões, e a participação da população da cidade.

Palavras-chave: Angra do Heroísmo; Música sacra; Cantochão; Paisagem sonora; Convento feminino; Concepcionistas

Resumen

El convento Nossa Senhora da Conceição, de concepcionistas religiosas, fue fundado en los límites de la ciudad de Angra (isla Terceira, Azores) a principios del siglo XVII. La presencia de esta comunidad implicaba un nuevo paisaje sonoro en el universo religioso de la ciudad. Los cronistas del siglo XVII, el Fr. Agostinho de Monte Alverne y el Padre Manuel Luís Maldonado, informan una serie de eventos entre el convento y la ciudad donde la música estaría presente. Con base en estos informes, este estudio explora los eventos de la comunidad religiosa, como las ceremonias de entrada de las novicias y las profesiones, y la participación de la población de la ciudad.

Palabras claves: Angra do Heroísmo; Música sacra; Canto llano; Paisaje sonoro; Convento femenino; Concepcionistas

Abstract

The convent of Nossa Senhora da Conceição, of religious conceptionists, was founded on the outskirts of the city of Angra (Terceira island, Azores) in the early 17th century. The presence of this community implied a new soundscape in the religious universe of the city. The 17th century chroniclers Fr. Agostinho de Monte Alverne and Padre Manuel Luís Maldonado report a series of events between the convent and the city where music would be present. Based on these reports, this study explores the events of the religious community, such as the entrance of novices ceremonies and professions ceremonies, and the participation of the city's population.

Keywords: Angra do Heroísmo; Sacred music; Plainchant; Soundscape; Feminine convent; Concepcionists

Résumé

Le couvent "Nossa Senhora da Conceição", des conceptionnistes religieuses, a été fondé dans les limites de la ville d'Angra (île de Terceira, Açores) au début du XVIIe siècle. La présence de cette communauté impliquait un nouveau paysage sonore dans l'univers religieux de la ville. Les chroniqueurs du XVIIe siècle, le Fr. Agostinho de Monte Al-verne et le Père Manuel Luis Maldonado, rapportent une série d'événements entre le couvent et la ville où la musique serait présente. Sur la base de ces rapports, cette étude explore les événements de la communauté religieuse, tels que les cérémonies d'entrée des novices et des professions, et la participation de la population de la ville.

Mots clés: "Angra do Heroísmo"; musique sacrée; chant plat; paysage sonore; couvent féminin; concepcionnistes

INTRODUÇÃO

Angra1 tornou-se sede de diocese em 1534, ano em que também foi elevada à categoria de cidade. Esta nova fase na administração eclesiástica das ilhas comportou uma transformação na paisagem religiosa da cidade de Angra. Para além das várias paróquias fundadas na cidade após a criação do bispado, houve também lugar à fundação de várias casas religiosas, nomeadamente conventos femininos, grupo onde se integra o convento de Nossa Senhora da Conceição objeto do presente estudo. O primeiro convento feminino fundado em Angra foi o de São Gonçalo, de freiras clarissas, em 1545. Seguiu-se o de Nossa Senhora da Esperança, também de freiras clarissas, que terá sido fundado entre 1560 e 1570. O convento de Nossa Senhora da Conceição foi o terceiro, em 1606, e o de São Sebastião, de religiosas capuchas, já no ano de 16802. Enquanto as três casas religiosas acima enumeradas estavam localizadas dentro do tecido urbano na cidade, o convento das concecionistas localizava-se extramuros (sem, porém, se conhecer onde este dividia a cidade), assim como o vizinho convento de Santo António de religiosos capuchos. A paisagem monásti-co-conventual de Angra completava-se com as casas religiosas masculinas do, já mencionado, convento de Santo António dos Capuchos, de São Francisco (o mais antigo da cidade remontando ao final do século XV), o Colégio da Companhia de Jesus e o convento dos agostinianos de Nossa Senhora da Graça. Em 1717 o jesuíta Padre António Cordeiro referia que o convento de Nossa Senhora da Conceição era "de estatuto, & regra tam singular, & perfeyta, que dizem que em Portugal só ha hum Convento semelhante a este"3. Prossegue, comparando-os aos de São Gonçalo e Esperança, que "confessão todos que este os vence no menor trato com seculares, no mayor retiro só a Deos, & no especial excesso do culto Divino"4. Cordeiro localiza a área ocupada pelo convento na "ultima grande rua da Cidade para a porta de São Bento, sem inquietação de casaria nos lados, com os fidalgos Monizes da outra fronteyra parte".

Foi precisamente na primitiva localização da casa dos religiosos gracianos que foi fundado o convento de Nossa Senhora da Conceição. O religioso franciscano Fr. Agostinho de Monte Alverne (c.1629-c.1700) dedicou um extenso capítulo no terceiro volume das suas Crónicas da província franciscana de S. João Evangelista das ilhas dos Açores sobre os desenvolvimentos conducentes à fundação do convento de Nossa Senhora da Conceição de Angra. É sobretudo Monte Alverne e outro cronista angrense, o Padre Manuel Luís Maldonado (1644-1711), que no século XVII referem mais frequentemente o convento concepcionista servindo como bases ao presente estudo, uma vez que as fontes primárias anteriores ao século XVIII relativas a esta instituição são muito escassas, resumindo-se a questões de ordem notarial muitas vezes não mencionando pormenores relevantes para o estudo da paisagem sonora histórica dessa casa. A escassez de fontes primárias com descrições sobre a atividade litúrgico-musical presentes no fundo do convento, atualmente depositado na Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro em Angra do Heroísmo (consistindo sobretudo em documentos de natureza notarial e judicial) condiciona uma visão profunda da atividade desta casa. Deste modo, os testemunhos dos cronistas seiscentistas Monte Alverne e Maldonado constituem uma importante fonte de informação (em alguns casos, a única fonte) para a análise do que terá sido a paisagem sonora envolvente do convento concepcionista de 46 Angra ao longo do século XVII. O contributo dos historiadores angrenses Francisco Ferreira Drumond (1796-1858) e do Padre Jerónimo Emiliano de Andrade (1789-1847), que testemunharam as últimas décadas da sua atividade antes da extinção em 1832, constituem também relatos de vital importância, uma vez mais, por via da escassez de fontes primárias, mas também porque tiveram a oportunidade de assistir a grande parte dos eventos relativos ao convento que narraram nas respetivas obras.

Os frades eremitas de Santo Agostinho chegaram a Angra por volta de 1584, por iniciativa de Fr. António Varejão, após ter recrutado religiosos no capítulo que se celebrou em Santarém nesse ano. Em 1588 o convento dedicado a Nossa Senhora da Graça estaria já fundado perto da ermida de São Lázaro à porta de São Bento. Porém, dado o afastamento do local das instituições religiosas da cidade, nomeadamente da Catedral, sendo difícil a deslocação da comunidade graciana para as procissões e outras cerimónias religiosas realizadas no centro urbano, optou a comunidade por procurar novo local para estabelecer o convento. Desta forma, após procura de vários locais, optaram por estabelecer o novo edifício no sítio das Covas (atual Alto das Covas), uma zona mais integrada na esfera eclesiástica da cidade5.

Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal, cc-508-a (Creative Commons CC0 1.0 Universal Public Domain Dedication).

Figura 1.Pormenor da carta de Angra, de Jan Linschoten, com a localização primitiva do convento graciano. 

O convento concepcionista, tal como os restantes conventos femininos de Angra, era um convento de clausura e por isso a comunicação com o exterior em contatos esporádicos entre as altas hierarquias da casa (nomeadamente a abadessa) e os religiosos que celebravam na igreja era escassa, constituindo as celebrações litúrgicas e a sua expressão musical uma forma de comunicação unilateral com a cidade. As futuras noviças destas casas pensavam duas vezes antes de entrar para o claustro concepcionista angrense, ponderando os vários desafios da vida conventual, amplamente descritos nos sermões pregados na igreja conventual, em alguns casos, realizados após a missa e antes da cerimónia de profissão iniciar.6 E foi precisamente a questão do isolamento do mundo exterior ditado pela clausura que esteve na base da fundação do convento de Nossa Senhora da Conceição. De acordo com o cronista seiscentista Fr. Agostinho de Monte Alverne, Pedro Machado Cardoso, nobre natural da vila da Praia, havia emigrado para as Indias de Castela onde casou com uma fidalga de seu nome D. Isabel de Molina. Após avançada idade e sem ter descendência regressou à ilha Terceira com intenção de aí fundar uma ermida. No convento de Nossa Senhora da Luz, na vila da Praia, encontrou uma irmã, Simoa da Anunciação, aí religiosa e abadessa que, ao saber da sua chegada, veio falar-lhe à porta regral com algumas religiosas. Esta ação desencadeou a denúncia ao padre custódio pela madre Maria de São Jerónimo do sucedido, provocando vários castigos às religiosas e a destituição do cargo de abadessa à madre Simoa da Anunciação. Em consequência da decisão do padre custódio, entendeu Pedro Machado Cardoso, de forma a desembaraçar-se da jurisdição deste clérigo, fundar um convento da ordem concepcionista que estivesse sujeito ao Bispo de Angra e, em sede vacante, ao Deão7. Para tal dotaria a nova casa a fundar com trezentos cruzados de renda com a condição de nele existirem quatro lugares para familiares suas serem freiras, que sua irmã Simoa da Anunciação viesse do convento da Luz fazer a fundação da nova casa com mais quatro religiosas e dela seria abadessa enquanto viva.

Este foi o primeiro convento da Ordem de Nossa Senhora da Conceição no arquipélago dos Açores, seguido pela fundação de um segundo convento na vila da Praia, também na ilha Terceira, por religiosas de Angra. Foram ainda fundadas mais casas desta ordem na vila da Horta (Ilha do Faial), c. 1610, e na cidade de Ponta Delgada (Ilha de S. Miguel) no ano de 16718. Quando comparadas com as casas de religiosas do arquipélago, nota-se que as concepcionistas não tiveram a mesma projeção que, por exemplo, as congéneres clarissas, em termos de propriedades e fundos para a manutenção das respetivas comunidades. No entanto, a fundação de casas concep-cionistas nos três principais centros urbanos do arquipélago sugere que a sua implantação teria intenção de captar as filhas de uma nobreza local de cariz urbano, por sinal, a mais influente em termos sociais.

O Breve do Papa Paulo V, transcrito por Fr. Agostinho de Monte Al-verne nas suas Crónicas é bastante claro nas intenções de fundação do convento, nomeadamente a dissidência da irmã do padroeiro perante a autoridade do custódio do convento da Luz. A intenção de autonomi-zação desta nova comunidade da influência franciscana surge na entrega da obediência ao Bispo de Angra ou Deão, no caso de sede vacante, o que irá proporcionar uma série de comunicações por via litúrgico-musical entre o convento e a cidade, como adiante se verá em maior detalhe. O documento reveste-se ainda de importância enquanto elemento descritivo de como iria funcionar esta casa e qual a rotina litúrgico-musical da mesma, as movimentações da comunidade e o serviço do coro. Ficou determinado no documento que o número de religiosas do convento seria de vinte e cinco, incluindo os quatro lugares reservado a familiares do padroeiro.9 À partida, este número de religiosas permitia o serviço regular do coro, até com alguma sumptuosidade. Atendendo ao número inicial de vinte e cinco e supondo que pelo menos entre quinze e vinte religiosas atendessem à celebração litúrgico-musical dos ofícios diários, obtém-se um número considerável de elementos em cada ofício. Este número terá sido apenas ultrapassado na cidade pelas comunidades religiosas femininas de maior dimensão, nomeadamente os conventos de Nossa Senhora da Esperança e São Gonçalo. Em termos da comunicação musical com o exterior, um número de quinze a vinte religiosas certamente traria algum impacto às zonas circundantes ao convento, que embora constituíssem uma zona ruralizada da cidade (como o era a freguesia de São Bento à época da sua fundação), quem se deslocasse pelos caminhos ou campos poderia ouvir o canto feminino dos ofícios litúrgico-musicais diários.

Para além do número da comunidade religiosa, o Breve pontifício também determinava ainda o sustento anual de trezentos cruzados que havia legado, assim como todos os seus bens após a sua morte, para a fundação da casa, ficando os mesmos sob a administração do Bispo de Angra. Pedro Machado e seus descendentes ficariam padroeiros do convento sendo sepultados na capela-mor da igreja, o lugar de maior prestígio dentro do templo10. Deveria a irmã, Simoa da Anunciação, deslocar-se do convento de Nossa Senhora da Luz da Praia, onde se encontrava, para o novo convento de Angra sendo autorizada a trazer consigo uma imagem de São Boaventura que havia mandado fazer a expensas suas. Houve ainda autorização para que as primeiras religiosas que compuseram a primeira comunidade concepcionista de Angra fossem recrutadas nos restantes conventos femininos terceirenses, deslocando-se de livre vontade e não ultrapassando o número de duas. Desta forma, veio com Simoa da Anunciação do convento de Nossa Senhora da Luz a madre Clara da Madre de Deus; do convento de São Gonçalo, as madres Maria da Ascensão e Bárbara do Espírito Santo e, do convento de Nossa Senhora da Esperança, a madre Ana de Deus com quatro pupilas constituindo-se, assim, a primeira comunidade com cinco religiosas e quatro pupilas11. É interessante verificar ainda a determinação de que o convento não recebesse religiosa alguma, "salvo sendo filhas de gente do governo e principal, excluindo as que totalmente forem ilegítimas", seleção esse que terá implicações dramáticas no contato com o exterior do convento, como se verá mais adiante no século XVIII12. A este respeito, encontra-se numa escritura para a venda de uma casa realizada em Angra a 20 de outubro de 1668. Neste documento vem referenciada a "R.da Donna Maria da Annunciada, madre Relligiosa professa no Conv.to de Nossa Sr.a da Concepção" da cidade, como administradora do morgado onde estava inserida a dita casa13. O "Donna" surge aqui utilizado como identificativo da estirpe fidalga da religiosa, sendo frequente em assinaturas de outros documentos deste tipo. Também António Cordeiro refere que o convento possuía "numero de mais de trinta Freyras, & muytas fidalgas exemplaríssimas"14.

Acrescentou-se ainda aos rendimentos do convento a renda de quarenta cruzados que a irmã de Pedro Machado, Clemência Machado, havia legado ao convento de Nossa Senhora da Luz para que uma parenta sua, pobre, nele fosse recebida. Como foi verificado que tal não se havia efetivado, foi esta quantia transferida para o convento de Angra com a condição de nele se receber alguma parenta pobre dos padroeiros.

Ficava, assim, constituída a fundação do convento de Nossa Senhora da Conceição que teria uma comunidade de vinte e cinco religiosas com respetiva abadessa. Estas ficavam obrigadas a usar hábito branco com escapulário azul "e passado um ano do noviciado são obrigadas a fazer a usada e costumada profissão que as freiras dos mais conventos da mesma ordem costumam fazer", devendo ainda guardar clausura perpétua, cerimónias e usos da ordem, assistindo aos Ofícios Divinos15.

Fonte: Foto do autor.

Figura 2 Convento de Nossa Senhora da Conceição, vista lateral das ruínas da igreja. 

A Ordem da Imaculada Conceição foi fundada por Beatriz da Silva e Menezes (mais tarde tornada santa) no final do século XV na cidade de Toledo. Natural de Campo Maior integrou a corte de D. Isabel de Portugal, futura Rainha de Castela, após casamento com D. João II de Castela. Intrigas na corte castelhana levaram-na a refugiar-se no convento de dominicanas de Santo Domingo, El Real em Toledo. Aí funda em 1484 a nova ordem cuja comunidade inicial é composta por religiosas desse convento, obtendo cinco anos mais tarde bula do Papa Inocencio VIII para a sua instituição. Inicialmente seguia a Regra de São Bento, posteriormente, adotando a Regra de Santa Clara a partir de 1494, ano em que bula Alexandre VI também autoriza a ordem a fundar conventos de clarissas sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição e sob o modelo da primitiva casa de Toledo. Em 1511 o Papa Júlio II reconhece a congregação, dando-lhe regra própria, com o poder de fundar novas casas. Entre 1512 e 1527 o franciscano Fr. Francisco de Quiñones compilou estatutos para a casa de Toledo, bem como outras casas concepcionistas espanholas como a de Cuenca, Torrijos e Madrid. Baseados em outros documentos anteriores, estes estatutos tinham uma profunda incidência em assuntos da liturgia e da formação espiritual, com um forte ênfase na clausura monástica16. A ordem difundiu-se por Espanha rapidamente, tendo como base inicial os recolhimentos, com o estabelecimento de casas sobretudo na região ocidental da Andaluzia, estendendo-se também às colónias do México, Colombia, Ecuador e Peru17.

A chegada das concepcionistas a Portugal efetuou-se no início do século XVII, sendo apontado o convento de Nossa da Conceição de Braga, fundado em 1628, como a primeira casa desta ordem em Portugal. A ordem espalhou-se pelo continente português sobretudo durante a segunda metade de seiscentos concentrando-se no Norte (Nossa Senhora da Penha de França, Braga, em 1652; Nossa Senhora dos Anjos, Chaves, em 1685; Nossa Senhora da Conceição, Arrifana de Sousa, em 1716) e Sul do país (Nossa Senhora da Conceição, Loulé, em 1688) e nos arredores de Lisboa (Nossa Senhora da Conceição, Carnide, em 1694), entre outras casas18. À exceção das casas fundadas em Braga e Lisboa, os conventos concepcionistas têm tendência em localizar-se em zonas desocupadas ou pouco ocupadas com casas religiosas. No entanto, contrariamente à sua influência nos territórios hispânicos, em Portugal, o número de casas religiosas parece não ter tido a mesma influência que as instituições de clarissas, dominicanas ou cistercienses. No caso do arquipélago dos Açores, como anteriormente mencionado, a ordem chegou primeiramente à ilha Terceira, com a fundação do convento de Angra, difundindo-se por mais duas ilhas. Tal como ocorreu no continente português, o número de casas no arquipélago açoriano foi bastante reduzido, quando comparado com as casas de clarissas, que compunham a maior parte das comunidades religiosas femininas açorianas.

Para a gestão do convento de Angra a respetiva regra terá vindo diretamente de Toledo por iniciativa do próprio Pedro Machado Cardoso, assim como os estatutos e forma do hábito de túnica branca e escapulário azul19. Neste caso a fundação do convento de Angra antecede a de Braga, o que levou Fr. Agostinho de Monte Alverne a afirmar que este "foi o primeiro que houve no reino, da Conceição"20. Porém, não é objetivo do presente estudo analisar as questões fundacionais dos conventos da ordem concepcionista em Portugal. Importa para o presente estudo a data de fundação do convento de Angra como início de um período de um novo tipo de atividade litúrgico-musical num espaço ainda praticamente por ocupar na cidade de Angra ao início do século XVII. É também relevante perceber que o convento feminino veio ocupar um espaço de fronteira entre o espaço urbano e o espaço rural, adequado a uma instituição de clausura e recolhimento.

A Ordem Concepcionista possuía um Breviário próprio, compilado em Toledo no ano de 1508, com autoria atribuída ao franciscano Fr. Ambrosio Montesino21. Uma versão deste breviário foi atualizada em 1551, impressa no mesmo ano em Alcalá de Henares por Juan Brocar22. Nesta edição vinha referido que as religiosas deveriam celebrar os ofícios divinos segundo o Breviário Romano, de acordo com a versão utilizada pelos franciscanos, celebrando a oitava da festa de São Francisco, sem incluir mais festas franciscanas para além desta. No caso do convento de Angra, tomando-se como certa a referência de Fr. Agostinho de Monte Alverne de que a regra e estatutos vieram diretamente de Toledo para Angra, é de supor que também tenha vindo desta cidade o Breviário próprio da ordem, possivelmente a edição de 1511 aí impressa. Porém, dado o distanciamento temporal de quase um século não será de excluir a presença do Breviário de 1551 (que poderia muito bem já estar em uso em Toledo), como a edição mais próxima à da fundação do convento angrense.

Uma outra fonte importante no respeitante à regulamentação da prática musical nos conventos concepcionistas foram as várias Regras da ordem publicadas ao longo do século XVII. Nestes volumes surge estipulado que deveria existir uma vigária (coral) no coro encarregada da escolha das melhores vozes para a interpretação do cantochão e maior solenidade dos ofícios, momentos de elevação e devoção da comunidade durante os mesmos. Era encorajada uma leitura prévia do repertório monódico pelas religiosas antes de entrar no coro a fim de evitar erros, nomeadamente as cantoras encarregadas do canto das lições. Como é frequente, surgem também recomendações no que respeita ao andamento com que é interpretado o cantochão. Deveria haver alguma pausa no seu canto, no tom indicado a meio de cada verso. Exceção seria feita nos dias das festividades mais importantes em que eram permitidas mais liberdades na ornamentação das melodias, porém, mantendo o maior rigor na correta acentuação e pronúncia do texto, sobretudo durante o canto dos Ofícios, cujas antífonas, capitulas, lições e orações deveriam ser praticadas entes de entrar no coro23.

Através destas regras percebe-se uma separação entre os dias festivos e os não festivos na celebração do Ofício Divino no coro. Nos dias feriais os ofícios litúrgico-musicais deveriam ser cantados de forma mais austera, embora mantendo o devido rigor na sua interpretação, que seria posta de parte na celebração das festas mais importantes. Nestes dias era permitido ornamentar o cantochão, todavia, mantendo o rigor da sua interpretação. Esta permissividade festiva na adição de elementos ao texto monódico original sugere uma prática musical aproximada a cantare super librum, isto é, um tipo de improvisação sobre as melodias de cantochão. Por outro lado, a adição de elementos externos também poderia estar ligada com a harmonização vocal do cantochão, nomeadamente a prática do fabordão, processo comum nas comunidades religiosas e uma das técnicas mais simples de criar polifonia a partir do repertório monódico. Apesar de não existir referência direta a estas práticas no convento de Angra ou sobreviverem elementos do repertório monódico cuja prática se possa relacionar, não inviabiliza a hipótese de que estas estivessem em uso pelas con-cepcionistas angrenses uma vez que eram práticas generalizadas por todas as instituições religiosas.

As Constituições da Ordem são também claras no que respeita à regulação do serviço do coro. Este espaço deveria ter uma abertura para a igreja uma cortina negra, que estaria sempre fechada sendo aberta somente para as religiosas poderem ver o Santíssimo Sacramento exposto. A divisão do coro tanto com a igreja como com o restante edifício era realizada através de portas com fechadura que estariam também fechadas abrindo-se somente para a celebração dos ofícios divinos, no caso da porta que comunicava com o edifício, e a que comunicava com a igreja deveria ter somente espaço para um cálice abrindo-se apenas na ocasião da comunhão das religiosas, de tal forma que estas nunca possam ser vistas pelas pessoas exteriores que se encontrassem na igreja24. Relativamente ao funcionamento do coro, as religiosas que fossem do coro (isto é, que estivessem encarregadas de cantar os ofícios diários) estavam obrigadas a nele servir nas festas solenes, domingos e outros dias de primeira classe segundo o Breviário Romano utilizado pelos franciscanos, cantando apenas a oitava da festa de S. Francisco de entre as comemorações semelhantes dessa ordem. Em todos os domingos e dias simples deveria ser cantado o ofício da Imaculada Conceição segundo constava no Breviário junto com a comemoração própria do dia. Estava também indicada recitação de vinte e quatro Pater noster com Ave Maria para as religiosas do coro durante o ofício de Matinas, cinco durante Laudes, sete para Prima, Terça, Sexta, Nona e Completas e doze para Vésperas.25 Constituíam festas importantes do calendário, nas quais as religiosas deveriam confessar-se e comungar, a festa da Imaculada Conceição, Natal, Purificação da Virgem, Primeira Semana da Quaresma, festa da Anunciação, Semana Santa, Domingo da Ressurreição, Pentecostes, festa da Visitação e Natividade da Virgem, festa de S. Francisco e festa de Todos-os-Santos26.

É importante notar a referência no breve de fundação ao período de um ano de noviciado, seguido de profissão. Embora não tenham sido até ao momento encontradas referências à presença de música neste momento (o da profissão) de central importância na comunidade religiosa angrense, pode-se conjeturar qual o ambiente sonoro desta cerimónia partindo de outros exemplos estudados dentro da ordem. É este o caso da América Latina cujo contexto da paisagem sonora concepcionista foi recentemente alvo de um estudo aprofundado. Por aqui, percebe-se imediatamente que os conventos concepcionistas do Novo Mundo foram locais de intensa atividade musical, mantendo uma proximidade litúrgico-musical com a prática musical franciscana.

A cerimónia de profissão das religiosas constituía uma ocasião de grande importância na vida do convento. E nesta cerimónia a música ocupava um lugar de destaque. A profissão representava simultaneamente um ponto de separação e uma transição na hierarquia do convento. A parta da tomada de posse do convento, a dedicação da igreja e o cerimonial de profissão de uma noviça, embora constituam momentos pontuais, são indicadores importantes para o conhecimento da projeção do convento no seu contexto social27. Como refere Fr. Agostinho de Monte Alver-ne na transcrição do breve de fundação do convento, nele houve o cuidado de especificar que só seriam aceites para religiosas professas as filhas das melhores famílias de Angra e jamais filhas ilegítimas. Esta determinação constitui uma clara separação entre a nobreza, de onde provinham grande parte das religiosas, e aquelas de origem obscura ou de extratos mais baixos da sociedade angrense que, por via da sua ascendência, ocupariam cargos de servitude, mas nunca tomariam hábito. Um caso semelhante a este ocorria também nos conventos do Novo Mundo, onde as jovens com ascendência africana ou indígena não eram admitidas como religiosas professas, sendo estas últimas provenientes das melhores famílias de origem espanhola28. Era tradição nestes conventos que durante a cerimónia de profissão, a nova religiosa levasse consigo uma estatueta ou gravura do Menino Jesus.

A música estava presente neste momento. Como refere Fr. Agostinho de Monte Alverne ao relatar a entrada das primeiras nove religiosas para o convento de Angra, comparando-as aos nove coros de anjos, poderá depreender-se que a sua descrição foi baseada num contexto musical terreno e que, de facto, estas religiosas cantavam. A música estava presente deste a entrada para o convento como noviça, isto é, a tomada do hábito, e a profissão solene após a conclusão do período do noviciado que, de acordo com Monte Alverne, durava um ano. Relativamente à ce-rimónia de entrada no noviciado, no coro-baixo da igreja eram rasgadas as roupas que a candidata usava no mundo exterior sendo-lhe entregue o hábito branco. Toda a atenção estava concentrada na noviça durante a profissão solene. Estes momentos atraíam grande número de população à igreja do convento, nomeadamente as famílias das futuras religiosas, marcando um momento de demarcação social para as mesmas29.

Em alguns casos são reportados excessos relativamente a esta cerimó-nia, mais concretamente nos conventos do Novo Mundo, onde são criticadas ações como as procissões de chegada ao convento das futuras religiosas que eram feitas em carruagens, contrariando o caráter de des-pojamento e humildade, assim como a oferta de banquetes após a ce-rimónia de profissão com demasiados festejos, prática musical e danças no parlatório do convento recebendo dinheiro para isso.30 Também na Península ocorriam este tipo de excessos, como reporta em 1805 um residente em Madrid às autoridades, queixando-se de que tanto a ce-rimónia de tomada de hábito para o início do noviciado e de profissão terminavam frequentemente com receções, festejos excessivos, concertos musicais e danças nos parlatórios dos conventos31.

O mesmo ocorre em Itália, mais concretamente na cidade de Siena, no início do século XVII. Era usual as famílias das jovens que iriam entrar no noviciado convidarem um grande número de outras famílias com quem mantinham laços de amizade para acompanharem a jovem ao convento, testemunhando a cerimónia de tomada de hábito, oferecendo-lhes posteriormente um banquete. As autoridades eclesiásticas proibiram estas práticas, nomeadamente o banquete, a música, decorações, convidados e presentes nesta cerimónia. Porém, as instituições religiosas continuaram a prática dos divertimentos proibidos que, no início de seiscentos, estavam já enraizadas nestes locais. Estas cerimó-nias - especialmente a tomada de hábito e profissão - também em Siena estavam abertas à comunidade, impregnadas de pompa, tendo a música um papel importante em acentuar o carácter dramático realçando a importância da cerimónia. Aqui o envolvimento das famílias das jovens reforçava, embora de forma informal, os laços entre o convento e a comunidade, estendendo a influência do mesmo a um círculo mais abrangente o que traria benefícios à casa32.

No caso dos conventos do Novo Mundo, encontra-se um repertório polifónico para-litúrgico composto sobretudo por vilancicos, escritos propositadamente para as cerimónias de profissão. É isso que acontece com algumas obras do compositor Gaspar Fernandes, mestre de capela da Catedral de Puebla (México), autor de quatro vilancicos para o convento da Santíssima Trinidad. Estas obras eram muitas vezes encomendadas pelas famílias das futuras religiosas, exaltando as suas qualidades no dia do seu casamento metafórico com Cristo e invocando o seu nome em polifonia33. Outros músicos da Catedral tomavam parte nestas cerimónias, sendo contratados para tocarem nas igrejas dos conventos onde se realizariam as cerimónias. Para o contexto de Angra esta última ideia surge como uma interessante hipótese, uma vez que a Catedral da cidade possuía no século XVII uma capela musical organizada, como mestre de capela e organista, possibilitando a sua deslocação para outras cerimónias na cidade, nomeadamente aquelas em que participava o bispo, em particular, na celebração de pontificais que, como se verá adiante, ocorreram na igreja do convento de Nossa Senhora da Conceição. No caso de do convento de La Madre de Dios em Logroño, nas entradas de noviças e profissões solenes, participavam por vezes a capela de La Redonda (futura Catedral), onde a prática polifónica estaria certamente presente34.

A entrada no noviciado fazia-se por volta dos quinze anos, sempre com a aprovação do bispo e voto das religiosas do convento, sendo a profissão realizada aos dezasseis. No caso dos conventos do Novo Mundo, os músicos da Catedral realizavam um exame de cantochão às noviças de forma a assegurar a capacidade da futura religiosa para o serviço litúr-gico-musical no coro. Em muitos casos, este exame também assegurava a isenção do pagamento de dote por via das capacidades musicais da candidata. Este exame era geralmente assinado pelo mestre de capela da Catedral35. Os manuais sobre a organização interna dos conventos são importantes fontes para se conhecer o funcionamento da casa, uma vez que nele vêm explicitadas as regras do serviço do coro, de como os ofícios deviam ser celebrados, assim como as cerimónias importantes na vida da comunidade, entre as quais a da entrada no noviciado e a profissão das religiosas36. Relativamente ao ato em si, a entrada no noviciado e tomada de hábito surge regulada dos cerimoniais da Ordem Concepcionista. A cerimónia iniciava com a entrada da futura noviça acompanhada pela família na igreja. Os sinos da igreja deveriam ser tocados até estarem todas as religiosas da casa reunidas no coro-baixo cada uma com uma vela acesa. A candidata, também com uma vela acesa, deveria ajoelhar-se junto ao degrau do altar-mor, iniciando-se a cerimónia. O oficiante da celebração, após as orações iniciais, benzia as novas vestes da candidata aspergindo-as em seguida com água benta. Uma série de perguntas seriam feitas à candidata pelo oficiante, nomeadamente se pretendia entrar no convento de sua livre vontade, após as quais seria acompanhada ao coro-baixo sendo cantada a antífona Conceptio tua, do ofício de Vésperas para a festa da Conceição. Poderia ser também cantada a antífona Veni sponsa Christi, com o salmo Beati qui habitant in domo no oitavo tom. Estas últimas rubricas deveriam ser apenas cantadas se a candidata fosse virgem, caso contrário, estava prescrito o canto da antífona Veni electa mea com o salmo Beati qui habitant no primeiro tom37. A estas antífonas seguia-se o canto do hino Veni Creator Spiritus pela comunidade, podendo ser esta rubrica de polifonia.

Na profissão solene, o hino Veni Creator Spiritus surge no início e fim da cerimónia, tal como acontece na ordem franciscana. Também o oficiante canta este hino três vezes entre as leituras e orações. Em seguida, era cantada a antífona Prudentes Virgines pelo oficiante e ministros junto à grade do coro-baixo, continuando até se encontrarem todas as religiosas nesse espaço. Aí chamava a candidata à grade respondendo a mesma cantando a antífona Et nun sequor. Após o oficiante perguntar-lhe se aceitava os quatro votos, a candidata colocava as mãos entre as da abadessa, cantando o coro de religiosas a Ladainha dos Santos, sendo depois levada para o fundo do coro-baixo enquanto o oficiante cantava três vezes, de forma crescente em volume sonoro, a antífona Veni sponsa Christi38. Tal como em outras ordens, estas duas cerimónias de passagem à comunidade religiosa constituem um cerimonial complexo pleno de simbolismo no abandono do mundo e entrada no mundo espiritual do espaço conventual. Como referido anteriormente, constituíam estas cerimónias momentos de grande importância, não só na vida da casa religiosa, mas 60 na área circundante a esta com grande impacto na família das candidatas.

Um dos momentos mais significantes de comunicação do convento com a comunidade angrense foi o da própria dedicação desta casa. A 13 de abril de 1608, estando já concluídas as obras do convento, tomaram os respetivos hábitos as madres Simoa da Anunciação e Clara da Madre de Deus, provenientes do convento de Nossa Senhora da Luz da vila da Praia, as madres Maria da Ascensão e Bárbara do Espírito Santo, do convento de São Gonçalo, e a madre Ana de Deus com quatro pupilas, do convento de Nossa Senhora da Esperança. A entrada destas religiosas fez-se na presença do clero secular e regular da cidade, assim como das figuras cívicas (Câmara), nobreza e povo. No dia 13de abril realizou pontifical o Bispo de Angra D. Jerónimo Teixeira Cabral, a cerimónia litúrgico-musical máxima para o momento de alta relevância na vida do convento39. Esta cerimónia terá sido certamente solenizada com música, em cantochão ou canto de órgão (polifonia), pelos clérigos aí presentes, possivelmente os frades franciscanos, ou a capela de música da Catedral, na hipótese de ter sido repertório polifónico. A partir desta altura foi determinado que se cantasse anualmente, a 13 de abril, o ofício para a dedicação de uma igreja pela comunidade residente, comemorando a data de dedicação do respetivo templo com oitavário.

A 23 de fevereiro de 1612 existe notícia de novo pontifical celebrado na igreja do convento pelo Bispo de Angra. A data assinalou a eleição da madre Simoa da Anunciação como abadessa perpétua do convento de Nossa Senhora da Conceição. Foi esta ocasião novo momento de comunicação com a população da cidade, quatro anos após a entrada das religiosas naquela casa. Nesta celebração pregou o reitor do colégio jesuíta da cidade, o padre Matias de Sá, com a assistência de toda a nobreza da ilha40. A ocasião terá também sido certamente solenizada com cantochão ou polifonia. Embora não apareça qualquer referência à presença das corporações religiosas da cidade, nomeadamente os franciscanos e gracianos, será de supor que estivessem presentes dada a importância da celebração, face ao que ocorreu em outras cerimónias deste tipo, estando também presente o Cabido. Uma vez mais sugere-se que tomassem parte no canto os franciscanos ou a própria capela da Catedral. Porém, não será de excluir a participação da comunidade de religiosas que, embora não se conheça o seu número à data, seria já em número suficiente para assegurar o cantochão. Nos 28 anos do seu abadessado, a madre Simoa da Anunciação foi tida como muito zelosa do serviço litúrgico-musical, exigindo rigor no coro, nomeadamente na celebração dos ofícios diários41.

A 8 de dezembro de 1617, festa de Nossa Senhora da Conceição, entraram no noviciado sete irmãs, filhas de Manuel de Sá Soto-Maior, provedor da Fazenda Real na Baía de Todos-os-Santos, e de Helena de Argolo, esta última irmã do Bispo de Angra D. Agostinho Ribeiro. Este bispo fez pontifical na igreja do convento sendo também ele o pregador da cerimónia. As irmãs professaram no ano seguinte, na festa de São João Evangelista (27 de dezembro), realizou o bispo novo pontifical que durou sete horas e no qual pregou o reitor do colégio jesuíta, o padre Francisco Valente. Anos mais tarde veio para Angra a mãe das religiosas, Helena de Argolo, que também se fez religiosa concepcionista tendo vivido no convento com as filhas42.

A festa de Nossa Senhora da Conceição constituía certamente um momento central no calendário litúrgico-musical do convento de Angra. No caso do convento de La Madre de Dios de Logroño, esta era uma festa de capital importância, não só na vida da comunidade religiosa, como da própria cidade. Nela participava o bispo assim como o clero urbano, altas figuras da nobreza e outras figuras da administração da cidade espanhola. A festa era celebrada com o canto do ofício de Vésperas e Matinas com órgão (canto de órgão?) e sermão por um frade franciscano ou dominicano. Na véspera, ao meio dia, tocavam os sinos, cantando-se de tarde o ofício de Vésperas e, à noite, o de Matinas após o qual era cantado o ofício de Laudes43. Embora não se tenha referências detalhadas para o caso de Angra, é de supor que as celebrações concepcionistas na cidade fossem muito aproximadas ao cerimonial descrito em Logroño, neste caso com a presença da igreja paroquial de Nossa Senhora da Conceição, cuja colegiada costumava participar nas manifestações religiosas mais importantes da cidade. No caso do sermão, a presença dos franciscanos seria usual, assim como a dos jesuítas que, de acordo com o Padre Cordeiro, vinham prestando um intenso serviço espiritual à comunidade do convento concepcionista44.

Fonte: Foto do autor.

Figura 3 Convento de Nossa Senhora da Conceição, vista do claustro. 

A fundação do convento de Nossa Senhora da Conceição de Angra implicou, como primeira obrigação litúrgico-musical da comunidade, a celebração anual de sufrágios pela alma do fundador, Pedro Machado Cardoso. Após a sua morte deveria cantar-se na igreja do convento uma missa pro defunctis no dia dos defuntos, ou na oitava, enquanto durasse o mundo45. Embora não surja mencionado nas intenções do fundador, para além da missa pro defunctis, seriam certamente também celebrados os ofícios diários do cerimonial pro defunctis. Estes incluiriam certamente o canto do ofício de Vésperas, Matinas e Laudes, assim como das chamadas horas menores.

Um dos momentos importantes nas redondezas da comunidade concep-cionista de Angra foi o estabelecimento do convento de Santo António de frades capuchos nas suas imediações. O convento de Nossa Senhora da Conceição constituiu um ponto de paragem da procissão de entrada no convento de Santo António. Este convento de religiosos capuchos começou a tomar forma em 1643. A 14 de Maio desse ano, Quinta-Feira da Ascensão, foi cantada missa na igreja de Nossa Senhora da Guia do convento de São Francisco assistindo os novos religiosos capuchos. Na cerimónia onde esteve o Santíssimo Sacramento exposto, estavam presentes os religiosos da Companhia de Jesus, os religiosos gracianos, o Cabido e restante clero da Catedral, assim como a colegiada da paroquial de Nossa Senhora da Conceição e restante clero secular da cidade, assim como muito povo. Mais tarde, saiu uma procissão com o Santíssimo Sacramento de São Francisco com destino ao novo convento de Santo António em que seguiam as corporações religiosas enunciadas anteriormente, os religiosos franciscanos e os novos religiosos capuchos. Junto da porta do convento de Nossa Senhora da Conceição estava um altar, onde foi colocada a custódia com o Santíssimo Sacramento, foi cantando um ofício e feita oração, dos quais não se têm mais detalhes46. A descrição deste evento, embora concisa, menciona momentos de prática musical à entrada do convento de Nossa Senhora da Conceição, certamente não tendo participado as religiosas desta instituição mas sim os religiosos franciscanos ou outro grupo de clérigos do cortejo, que deveria incluir a capela de música da Catedral. Encontra-se neste caso um momento de comunicação musical do exterior para o convento que, tal como a comunicação do interior, não terá sido correspondido pela outra parte, neste caso, a comunidade residente em clausura.

É importante destacar o aumento considerável da comunidade ao longo do século XVII. Do número inicial de 25 religiosas, em meados de seiscentos o seu número ascendia a 63, mantendo-se os 17 moios de trigo da fundação, quantidade considerada insuficiente para o seu sustento47. Na última década do século XVII a comunidade do convento ascendia já a cerca de 80 religiosas professas, 3 noviças e 5 pupilas48.

Trata-se de um aumento significativo da comunidade quando comparado com a intenção fundacional de apenas vinte e cinco religiosas. Este aumento terá possivelmente ocorrido por ser esta uma casa reservada à elite da cidade por via de uma seleção muito rigorosa da ascendência das futuras religiosas. Acabava por constituir um sinal de estatuto social para as a famílias terem uma das suas filhas no convento.

O convento foi também ponto de passagem de inúmeras procissões de preces realizadas em Angra ao longo dos séculos XVII e XVIII, que ali se dirigiam sobretudo pela localização, não só da comunidade das con-cepcionistas, mas também pela vizinha comunidade dos capuchos. Estas procissões eram um dos eventos de maior relação da casa religiosa com a comunidade angrense. É necessário ter em conta que a clausura obrigava ao corte de contatos com o exterior, sendo muito certamente aos serviços religiosos abertos à comunidade celebrados por clérigos, possivelmente franciscanos à entrada da igreja. Porém, uma vez mais a música constituía a forma de comunicação privilegiada entre o interior das grades e o exterior uma vez que eram as religiosas que asseguravam o serviço do coro nestas ocasiões. O século XVII foi particularmente nefasto em termos de catástrofes naturais, como refere o Padre Manuel Luís Maldonado na sua Fenix Angrence. Partindo dos seus relatos, sabe-se que uma grande percentagem das numerosas procissões de preces realizadas em Angra ao longo da centúria de seiscentos como penitência e ensejo pela melhora dos tempos passaram pela porta do convento concepcionista. Entre estes eventos, citam-se aqueles de maior impacto na vida religiosa e cívica da cidade como exemplos para as outras ocasiões, nomeadamente as crises sísmicas de 1614, 1647 e 1672.

Em 1614, por ocasião do grande terremoto que ficou conhecido com a "cahida da Praia" que afetou as povoações em torno dessa vila, não se consegue perceber se as procissões de preces realizadas em Angra passaram pelo convento concepcionista. Maldonado refere apenas "da Conceipção".49 Com esta esta expressão poderia estar a referir-se à igreja paroquial dita "Conceição dos Clérigos" que, dado o percurso que a procissão tomou antes da Conceição com paragem na ermida de Nossa Senhora dos Remédios que lhe ficava próxima, indo posteriormente à igreja do convento de S. Francisco, que também ficava nas imediações da igreja paroquial, é de supor que a "Conceição das Freiras" tenha ficado fora do itinerário processional50.

O ano de 1647 foi um ano nefasto para a cidade de Angra e ilha Terceira em geral. A seca que se fez sentir por toda a ilha reduziu as colheitas sendo considerado por Maldonado como o ano "da fome, e terremotos"51. Uma crise sísmica abalava a ilha desde o mês de dezembro, culminando num grande terremoto na madrugada de 12 de janeiro, continuando as réplicas até ao início de julho. Durante a primeira metade de 1647 realizaram-se inúmeras procissões de preces pela cidade, organizadas pelas corporações religiosas desde a Catedral até aos religiosos gracianos e franciscanos. Se o convento de Nossa Senhora da Conceição estava ainda numa zona isolada da cidade, não constituindo um ponto de passagem determinante no itinerário tomado pelas procissões de preces, em 1647 esse parece já não ser o caso. Para a entrada da zona da porta de São Bento no roteiro processional terá contribuído certamente a fundação nas redondezas do convento concepcionista do convento de frades capuchos, referido anteriormente. Após a fundação da sua casa de Angra os capuchos começaram a tomar parte, junto com os franciscanos, gracianos e jesuítas, nas cerimónias religiosas celebradas na cidade. Com a localização de dois conventos na zona de São Bento, as procissões passaram a tomar um desvio da igreja paroquial da "Conceição dos Clérigos" à "Conceição das Freiras, convento de Santo António dos Capuchos e ermida de Nossa Senhora do Desterro, regressando depois ao itinerário usual na igreja do convento de São Fran-cisco52. Estas procissões incluíam o canto das ladainhas, certamente por todas as comunidades que as integravam o que causaria um interessante impacto sonora nas ruas da cidade, por vezes celebrando-se um breve ofício junto às portas das igrejas e ermidas onde passavam geralmente preenchido com um ou mais sermões frequentemente pregados por um religioso graciano ou jesuíta.

No caso do terremoto que assolou a ilha a 5 de abril de 1672, realizaram-se novamente as procissões de preces com canto de ladainhas e pregações ao longo desse mês e durante o mês de maio. Por via das inúmeras celebrações de preces (quase diariamente) na cidade, refere o Padre Manuel Luís Maldonado que estava a comunidade de Angra em dúvida quanto a celebrar a festa do Pentecostes. No final do século XVII o carácter popular da celebração da festa do Espírito Santo estava enraizado nas nove ilhas do arquipélago constituindo momentos em que a música e dança, nomeadamente as folias, eram particularmente mais festejadas. Desta forma, as penitências associadas às preces impediam o folguedo popular inerente aos festejos do Espírito Santo que não só ocorriam nos impérios montados por toda a ilha, como também nas casas religiosas da cidade, incluindo o convento de Nossa Senhora da Conceição, onde a respetiva abadessa era coroada nesse dia. No convento de Nossa Senhora da Esperança, tiveram-se certos acontecimentos aí ocorridos como ação divina, resolvendo-se celebrar a festa do Espírito Santo como até ali se havia realizado. No que respeita ao convento das concepcionistas, eventos ocorridos nesta casa religiosa irão determinar o festejo do Domingo de Pentecostes. Maldonado atribui origem milagrosa a estes eventos relatando-os da seguinte forma: ouviram-se no claustro do convento concepcionista o canto das folias do Espírito Santo; os religiosos capuchos terão visto do seu convento uma bandeira vermelha a esvoaçar no telhado do dormitório das religiosas, tendo mandado averiguar do que se tratava. Informado o prelado angrense, determinou que se festejasse a festa na forma com que se fazia até então53. Maldonado utilizou uma ocorrência com um carácter miraculoso no seu relato destas ações festivas como forma de também reforçar a importância da casa religiosa concepcionista como a mais singular da cidade. Acontecendo nela o milagre do som da folia e da bandeira, o impacto na celebração do Pentecostes seria maior, tendo maior peso da decisão do bispo.

Os acontecimentos que terão causado maior impacto em Angra, sobretudo nas questões de comunicação do convento com exterior no século XVIII, dizem respeito ao período de passagem do chamado Regimento do Porto pela cidade por volta de 1766-1774. Em 1766, no seguimento das reformas pombalinas, foi o arquipélago dos Açores reorganizado administrativamente em capitania-geral, com sede em Angra. Foi o seu primeiro capitão-general D. Antão de Almada que chegou a Angra a 28 de outubro desse ano com numeroso cortejo. Foi destacado o 2.° Regimento da guarnição militar do Porto, comandado pelo coronel António Freire de Andrade como apoio da administração do novo capitão-general dos Açores. A permanência desta corporação militar em Angra durante quase duas décadas suscitou grande instabilidade em termos sociais. Várias foram as queixas sobre o mau comportamento da tropa ao capitão-ge-neral, queixando-se este para a Corte da quebra de confiança que a indisciplina deste grupo lhe causava "contaminado na parte principal" não podendo assegurar o sossego dos povos tanto mais que muitas pessoas do sexo feminino "se tinham entregado nos seus braços, namoradas dos encantos aparentes que sempre figuram semelhantes empregados"54. Estas preocupações materializaram-se em 1773, num caso notório que muito escândalo causou na cidade. D. Mariana Estácio, donzela filha de Manuel Jacinto de Lacerda e de D. Mariana Paula, entrara nesse ano no noviciado no convento de Nossa Senhora da Conceição. A jovem donzela fugiu do convento com o cadete do Regimento Jacinto Martins. Porém, como o militar não violara a clausura do convento, o processo decorreu de forma pacífica, sendo o castigo mais brando. Porém, o comandante do Regimento havia tomado o partido do cadete na questão da donzela fugida do convento concepcionista o que mais preocupou o capitão-general quanto à permanência deste grupo militar na ilha Tercei-ra55. Desta forma, foi o Regimento mandado embarcar até ao dia 23 de julho de 1774 por ordem real de 15 de julho com destino à ilha de Santa Catarina do Brasil onde havia conflitos com tropas espanholas. Todavia, só no final do ano é que de fato embarcaram rumo ao Brasil56.

O sucedido com D. Mariana Estácio constitui um exemplo sintomático da transformação que estava a ocorrer nas casas religiosas ao longo da segunda metade do século XVIII. Em certa forma, a sua função nas ilhas açorianas esgotara-se no final do século XVIII, nomeadamente as tarefas específicas da evangelização, pregação e confissão, no caso das comunidades masculinas57. No caso das comunidades femininas, o ingresso nos conventos das filhas segundas, era realizado quase de forma forçada uma vez que estas não fariam carreira militar ou política e os dotes necessários ao casamento eram mais dispendiosos que aqueles para ingresso na vida regular. A vida regular era encarada como a manutenção do seu estatuto social, acrescentando dignidade e honorabilidade conferida pela religião58. A crise nas comunidades regulares agravou-se ao longo da segunda metade do século XVIII com uma série de leis regalistas cerceadoras das corporações religiosas, à proibição da entrada na vida religiosa de novos membros a partir de 1798 e da aquisição de novos bens59. A falta de disciplina nos conventos femininos insulares parece aparente no final do século XVIII como o demonstra as considerações tecidas ao convento de Nossa Senhora da Conceição de Angra, considerado o mais austero do arquipélago: "se nellesse observasse a vida comum [...] nada haveria a reformar; porem esta falta he geral em todos os Mosteiros deste bispa-do"60. No caso de D. Mariana, embora não se conheçam detalhes sobre a sua presença no convento e o sucedido com o cadete do Regimento do Porto, sugere ter sido esta um dos exemplos dos filhos a quem era imposta a vida regular por imperativos familiares, e não propriamente por vocação religiosa. A falta de vocação proporcionou muitas fugas e contatos ilícitos com o exterior das casas religiosas, assim como inúmeros pedidos de abandono da vida regular, em grande parte justificados pela pressão familiar que os obrigara na menoridade a entrarem para os conventos61.

Não só os conventos franciscanos masculinos terceirenses, como também os femininos, possuíam órgãos nas respetivas igrejas que após a extinção das ordens religiosas nos Açores, através do decreto de 17 de maio de 1832, foram vendidos para igrejas seculares da ilha. É este o caso do convento de Nossa Senhora da Luz, na vila da Praia, cujo órgão foi vendido para a colegiada de Nossa Senhora da Conceição de Angra (popularmente designada como "Conceição dos clérigos") após a sua extinção62. Também o convento de Nossa Senhora da Conceição possuía um órgão que, após a extinção das ordens, foi vendido para a igreja paroquial de Santa Bárbara das Nove Ribeiras63.

O órgão apresenta-se como o instrumento mais nobre para solenizar a atividade musical no convento concepcionista. Ao mesmo tempo, o instrumento representou também certamente um considerável investimento para a comunidade angrense o que, de certa forma, representa uma valorização da atividade musical pelas religiosas. Este acaba por ser o símbolo mais material da cultura musical no convento, cuja presença é sinónimo de alguma importância dada pela comunidade às atividades litúrgico-musicais da sua igreja. O instrumento que existiu no convento de Nossa Senhora da Conceição foi construído por Joaquim António Peres Fontanes, datando do ano de 1793. É composto por vinte registos, dez acionados pela mão esquerda e dez acionados pela mão direita64. A Junta de Paróquia de Santa Bárbara adquiriu-o em 1837 para uso na igreja paroquial65.

Adquirido já numa fase muito posterior da existência do convento concepcionista, este é, talvez, o exemplo mais notório da importância dada ao serviço do coro e, consequentemente, à atividade musical pelos conventos femininos de Angra. No caso dos conventos de Nossa Senhora da Esperança e São Sebastião não se conhece que neles tenha existido órgãos. Porém no convento de São Gonçalo ainda se encontra um instrumento construído também por Fontanes no ano de 1793. No caso deste instrumento, o mesmo possui uma sonoridade e qualidade dos registos acima do que é usual encontrar nos órgãos do arquipélago. Foi também o convento de São Gonçalo centro de uma atividade litúrgico-musical dinâmica66. Por esta associação, supõe-se que no caso do convento de Nossa Senhora da Conceição houve uma preocupação idêntica no que concerne à participação do instrumento no serviço musical do coro. O órgão adquirido para esta casa veio, em certa forma, solenizar o quotidiano musical do serviço do coro, constituindo simultaneamente um elemento de projeção sonora para além do espaço da clausura sendo certamente ouvido nas imediações do convento.

Após 1834, e a extinção das Ordens Religiosas em território português no seguimento das novas políticas Liberais, foi o convento de Nossa Senhora da Conceição dado como extinto. As religiosas que lá se encontravam à data foram reunidas, tal como as restantes da ilha Terceira, no convento de São Gonçalo. Após a sua extinção, por morte da última religiosa Madre Matilde Clementina do Carmo a 20 de junho de 1885, sendo os seus bens incorporados nos próprios nacionais. Enquanto o órgão de São Gonçalo conservou-se na respetiva igreja (talvez por a sua atividade se ter prolongado até 1885), no caso do convento concepcionista o instrumento aí existente foi vendido, como anteriormente referido, assim como uma grande percentagem do seu espólio67. Em 1833 foi decidido transferir-se para o edifício do convento o Hospital de Santo Espírito, passando o imóvel a ser administrado pela Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo, em cuja posse permanece atualmente. O convento havia sido concedido à Misericórdia para hospital por D. Pedro IV, em Decreto datado de 2 de abril de 183 368. Em 1855 D. Pedro V confirmou o decreto de cedência do imóvel através de alvará passado a 15 de outubro desse ano69. No ano 1860 instalou-se também em parte do edifício o Asilo de Mendicidade cuja inauguração ocorreu a 14 de abril desse ano70.

CONCLUSÃO

O convento de Nossa Senhora da Conceição surge num fluxo de fundação de casas femininas no arquipélago açoriano motivada por uma "profunda piedade e vontade de serviço a Deus de ricos instituidores que, movidos pela adesão aos valores da vida contemplativa" legavam os bens que possuíam geralmente com a condição de que a instituição sustentasse familiares seus, como é exemplo Pedro Machado71. Neste caso, o padroeiro quis libertar-se da administração franciscana da ilha, introduzindo uma nova regra nas comunidades religiosas da ilha. A comunidade concepcionista de Angra floresceu ao longo do século XVII e XVIII muito certamente por ser um grupo seletivo, onde só entravam como noviças filhas das melhores famílias da cidade, colocando-o como uma das instituições religiosas mais prestigiadas da ilha. A sua implantação numa zona relativamente despovoada da cidade criou uma nova paisagem sonora em seu redor, em muito alimentada pela atividade litúrgico-musical diária das religiosas no coro.

Apesar da clausura imposta, a comunidade religiosa contatava com a cidade através das celebrações realizadas na sua igreja, nomeadamente os pontificais celebrados pelo Bispo de Angra, a quem o convento estava sujeito, assim como as cerimónias de admissão de noviças e profissões solenes. Nestes eventos, a música desempenhava um papel central enquanto elemento de comunicação (embora unilateral) entre a comunidade e a cidade. Ao mesmo tempo, constituiu um elemento de afirmação social por parte do convento, como testemunha a aquisição de um órgão para solenizar o serviço litúrgico-musical no final do século XVIII. Por esta altura, embora já esgotado o seu papel inicial, o convento ainda se mantinha como um importante local de concentração das filhas de famílias das altas estirpes angrenses, sendo muitas delas alvo da cobiça dos jovens angrenses. Em 1834, com o decreto que extinguiu as ordens religiosas em Portugal, foi o convento de Nossa Senhora da Conceição de Angra extinto, ficando as religiosas obrigadas a recolherem ao convento de São Gonçalo da mesma cidade. Perdeu-se, assim, o rasto da comunidade concepcionista de Angra bem como da paisagem sonora que haviam criado dois séculos antes, mantendo a igreja atividade litúrgica (e, possivelmente, também musical), porém, com uma sonoridade completamente diferente daquela para que tinha sido inicialmente construída.

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* Este artículo forma parte del proyecto: "O convento de Nossa Senhora da Conceição de Angra: A atividade litúrgico-musical e a sua implantação numa cidade insular nos séculos XVII e XVIII" 43 financiación propia.

1 Irá utilizar-se daqui em diante apenas a denominação de "Angra", para denominar a cidade uma vez que o título "do Heroísmo" apenas foi adicionado no século XIX.

2António Cordeiro, Historia Insulana das Ilhas a Portugal Sugeytas no Oceano Occidental (Lisboa Occidental: Na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1717), 290.

3António Cordeiro, Historia Insulana, 291.

4António Cordeiro, Historia Insulana, 291.

5Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas da Província de S. João Evangelista das Ilhas dos Açores. Volume 3 (Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1962), 101-102.

6César Favila, "Music and Devotion in Novohispanic Convents, 1600-1800" (Tese de Doutoramento em Musicologia, The University of Chicago, 2016), 102-103.

7Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 77.

8Susana G. Costa, Açores: Nove Ilhas, Uma História (Berkeley: Institute of Governmental Studies Press/University of California, Berkeley, 2008), 141.

9Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 77.

10Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 78.

11Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 81.

12Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 78.

13Henrique Braz, "Ruas da Cidade (Notas para a Toponimia da cidade de Angra, da Ilha Terceira)", Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira No. IV (1946): 82.

14António Cordeiro, Historia Insulana, 291.

15Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 79.

16Bert Roest, Order and Disorder: The Poor Clares between Foundation and Reform. (Leiden e Boston: Brill, 2013), 208.

17Francisco Delicado Martínez. "La clausura femenina en Yecla, Región de Murcia: el convento de monjas franciscanas concepcionistas del Sagrado Corazón de Jesús. Mecenazgo, patrimonio histórico y memoria", em La clausura femenina en el Mundo Hispánico: una fidelidad secular: Simposium (XIX Edición) Vol. 2, coord. Francisco J. Campos e Fernández de Sevilla (San Lorenzo del Escorial: Real Centro Universitario Escorial-María Cristina, 2011), 829.

18Maria do Pilar Vieira, "CONCEPCIONISTAS FRANCISCANAS, Monjas", em Dicionário de História Religiosa de Portugal, Volume 1, dirigido por Carlos Moreira Azevedo (Lisboa: Círculo de Leitores, 2000), 405.

19Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 81-82.

20Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 83.

21María Mantesanz del Barrio, "El Breviário de la Inmaculada Concepción y Ambrosio Montesino. Una noticia bibliográfica", Revista de Filología Románica Vol. II No. 14 (1997): 273.

22María Mantesanz del Barrio, "El Breviário de la Inmaculada Concepción", 277.

23César Favila, "Music and Devotion", 26-27.

24Fr. Juan Merino, Constitvciones Generales para todas las Monjas y Religiosas svjetas a la obediencia de la Orden de N. P. S. Francisco... ponendose al principio las Reglas de Santa Clara, primeira, y segunda; la de las Monjas de la Purissima Concepcion... (Madrid: En la Imprenta Real, 1642), 44.

25Fr. Juan Merino, Constitvciones Generales, 45.

26Fr. Juan Merino, Constitvciones Generales, 45v.

27Antonio J. Sánchez,"Las monjas concepcionistas en Andalucía", em La clausura femenina en España: actas del simposium: 1/4-IX-2004, coord.. Francisco J. Sevilla (San Lorenzo de El Escorial Real Centro Universitario Escorial-María Cristina, 2004), 844-845.

28César Favila, "Music and Devotion", 86-87.

29César Favila, "Music and Devotion", 90.

30César Favila, "Music and Devotion", 90.

31César Favila, "The Sound of Profession Ceremonies in Novohispanic Convents", Journal of the Society for American Music Vol. 13 No. 2 (2019): 146-147

32Colleen Reardon, Holy Concord within Sacred Walls: Nuns and Music in Siena, 1575-1700 (Oxford: Oxford University Press, 2002), 51-52.

33César Favila, "Music and Devotion", 91.

34Antonio B. Salamanca, "El convento de Madre de Dios de las Concepcionistas Franciscanas de Logroño", em La clausura femenina en España: actas del simposium: 1/4-IX-2004, coord. Francisco J Sevilla (San Lorenzo de El Escorial: Real Centro Universitario Escorial-María Cristina, 2004), 868.

35César Favila, "Music and Devotion", 104-105.

36Antonio J. Sánchez,"Las monjas concepcionistas", 844.

37César Favila, "Music and Devotion", 114-115.

38César Favila, "Music and Devotion", 128-129.

39Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 81.

40Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 81-82.

41Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 82.

42Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 82.

43Antonio B. Salamanca, "El convento de Madre de Dios", 869-870.

44António Cordeiro, Historia Insulana, 291.

45Manuel Luís Maldonado, Fenix Angrence, Volume 2 (Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1990), 17-18.

46Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 35-36.

47Fr. Agostinho de Monte Alverne, Crónicas, 82.

48Manuel Luís Maldonado, Fenix Angrence, 19.

49Manuel Luís Maldonado, Fenix Angrence, 38.

50Manuel Luís Maldonado, Fenix Angrence, 38.

51Manuel Luís Maldonado, Fenix Angrence, 305. Veja-se o título que o autor dá para os relatos correspondentes ao ano de 1647.

52Manuel Luís Maldonado, Fenix Angrence, 305-306.

53Manuel Luís Maldonado, Fenix Angrence, 676.

54Henrique Braz, "Ruas da Cidade", 89-90.

55Francisco F. Drumond, Annaes da Ilha Terceira, Volume III (Angra do Heroísmo: Typ. de M. J. P. Leal, 1859), 37-38.

56Francisco F. Drumond, Annaes, 40.

57Maria F. Enes, "A vida conventual nos Açores — Regalismo e secularização (1759-1832)", Lusitânia Sacra No. 11 (1999): 326.

58Maria F. Enes, "A vida conventual", 338.

59Maria F. Enes, "A vida conventual", 325.

60Maria F. Enes, "A vida conventual", 341.

61Susana G. Costa, Açores: Nove Ilhas, Uma História, 137.

62Félix J. da Costa, Angra do Heroísmo Ilha Terceira (Açores) (Angra do Heroísmo: Typ. do Governo Civil, 1867), 106.

63Luís Henriques “Os órgãos na ilha Terceira na primeira metade do século XIX: elementos introdutórios a uma cartografia organológica”, Museologia & Interdisciplinaridade Vol. 8 No. 15 (2019): 285.

64Dinarte Machado e Gerhard Doderer, Inventário dos Órgãos dos Açores (Angra do Heroísmo: Presidência do Governo Regional dos Açores/Direção Regional da Cultura, 2012), 95. Registação: (para a mão esquerda) Oitava real, Dozena, Flautado de 6 tapado, Quinzena, Mistura, Dezanovena e 22.a, Símbala, Flauta em 12 tapado, Flautado de 12 aberto, Fagote; (para a mão direita) Oitava real, Dozena, Flautado de 6 tapado, Flautim, Dezanovena, Vintedozena, Flautado de 12 tapado, Flauta travessa, Flautado de 12 aberto, Clarineta.

65Luís Henriques, "Os órgãos na ilha Terceira", 285.

66Dinarte Machado e Gerhard Doderer, Órgãos, 83.

67Jerónimo E. d'Andrade, Topographia ou Descripção física, politica, civil, ecclesiastica, e histórica da Ilha Terceira dos Açores. Parte Primeira anotada pelo vigário José Alves da Silva (Angra do Heroísmo: Livraria Religiosa — Editora, 1891), 141.

68Jerónimo E. d'Andrade, Topographia, 140.

69Félix J. da Costa, Angra do Heroísmo, 90.

70Félix J. da Costa, Angra do Heroísmo, 9.

71Maria F. Enes, "A vida conventual", 323.

Para citar este artículo: Henriques, Luís "O convento de Nossa Senhora da Conceição de Angra: A atividade litúrgico-musical e a sua implantação numa cidade insular nos séculos XVII e XVIII", Historia Caribe Vol. XVII No. 40 (Enero-Junio 2022): 43-74. DOI: https://doi.org/10.15648/hc.40.2022.3201

Recebido: 08 de Maio de 2019; Aceito: 26 de Junho de 2020; : 08 de Julho de 2020

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