1. Das considerações iniciais
A proposição de reformas políticas como solução aos problemas da recente democracia brasileira é um tema recorrente desde a redemocratização. Segundo Souza e Lamounier (2006), "tais propostas têm vindo à tona por motivos às vezes puramente conjunturais, e quase sempre de maneira fragmentada, isto é, sem a imprescindível fundamentação analítica, histórica e comparativa" (p. 49).
No entanto, o afã reformista não ocorre no vácuo: mudanças nas regras do jogo do sistema eleitoral têm sido prática corrente nas democracias consolidadas (Gallagher & Mittchels, 2005). Na verdade, as mudanças pretendidas em nosso sistema são difusas, embora se possa notar a recorrência de temas como a legitimidade, a representatividade, a accountability e o bom funcionamento das instituições. Por seu impacto no sensível ponto da representação, devem ser fruto de consensos que envolvam um amplo espectro do arco político, uma vez que existe uma boa margem para a engenharia política para a sua adoção. (Nohlen, 1992, p.18).
Diante do complexo alinhamento político e da engenharia institucional por trás das reformas políticas, o presente artigo busca analisar os projetos de reforma de natureza constitucional e identificar neles a existência de aspectos estratégicos envolvidos na proposição das mudanças -maximizadoras ou normativas. Dado que o sistema eleitoral gera perspectivas aos indivíduos -de serem eleitos- e aos partidos -de serem fortalecidos-, é importante constatar que poucos políticos estariam dispostos a decidir sobre regras que prejudicassem o seu desempenho.
Embora grande parte das propostas analisadas não tenham se transformado em normas, o artigo visa explorar os projetos de reforma sob um aspecto, até onde temos conhecimento, inexplorado: as estratégias de maximização de ganhos eleitorais inerentes às propostas de reforma eleitoral versus a estratégia normativa. Para tanto, analisamos as Propostas de Emenda Constitucional (PEC) do Congresso Brasileiro sobre o tema durante 29 anos da democracia brasileira e criamos um banco de dados com 493 observações dispostas em 5 grandes categorias de análise: sistema eleitoral, regras eleitorais, regras para as campanhas e registros de eleitores, alteração no número de cadeiras e unificação das eleições. A partir do conhecimento acumulado pela literatura, pretende-se inferir sobre os desenhos propostos nas PECs avaliando as possíveis perdas e ganhos para os partidos. Tal abordagem se aproxima de Boix (1999), Benoit (2007) e Colomer (2004, 2005, 2018), ocupados com o problema da causação reversa dos estudos dos sistemas eleitorais.
2. Revisão de literatura
As grandes mudanças nos sistemas eleitorais consistem em passar de um princípio de representação a outro. As principais alterações, no decorrer dos anos, em vários países, foram no sentido da passagem do sistema majoritário para o proporcional. Por trás disso, a ampliação do sufrágio e a pluralidade de vozes na sociedade, decorrentes das ondas democráticas. Desde então, não houve recuo aos sistemas majoritários. Por isso, as reformas eleitorais que mudam o princípio de representação são raras atualmente. No entanto, o ímpeto reformista persiste de modo sutil. Hoje, há uma tendência de alterar aspectos pontuais da representação política -relação voto-cadeira, o grau de proporcionalidade da representação parlamentar, do tipo de barreira, listas abertas ou fechadas etc.- e da governança eleitoral.
Nos bastidores destas mudanças estão os atores políticos. Survey, realizado pela American Political Science Association (APSA) (Carey, et al., 2013), exalta o papel central dos cientistas políticos em estudos sobre as diversas perspectivas derivadas dos arranjos eleitorais. Contudo, a autora revela que não há evidências sistemáticas de que os parlamentares escolham cursos de ação distintos dos que teriam escolhido sem o apoio dos engenheiros institucionais. Ao contrário, parecem apoiar, a partir dos achados científicos, aqueles arranjos mais favoráveis aos seus propósitos: uma atuação estratégica - em contraposição aos sistemas eleitorais ideais pensados pelos acadêmicos.
Para além dos modelos ideais, Gallagher e Mitchell (2005) lembram que não há sistema eleitoral perfeito. Sabe-se que este compreende as regras e os aspectos técnicos que afetam a dinâmica política nacional e que o desenho importa ganhos e perdas para cada um dos competidores - por exemplo, sistemas majoritários tendem a dois partidos, elevando a desproporcionalidade da representação. Dificilmente se pode dizer qual o desenho eleitoral ideal, embora a ciência política se dedique de forma intensa ao estudo do impacto dos mais diversos arranjos institucionais eleitorais para a representação e o controle público.
Como reporta Nohlen (1992), é preciso levar em conta que os políticos têm uma aproximação muito pragmática com as propostas de reforma, que, para eles, têm relação direta com a manutenção dos seus cargos. A questão é saber se essa racionalidade maximizadora é dominante nas propostas apresentadas. Muito dessa abordagem se trata de uma análise institucionalista dos estudos eleitorais - os sistemas eleitorais importam. Desde Duverger (1951), sabe-se que eles são a ligação decisiva entre a preferência dos eleitores e as escolhas políticas feitas pelos governos nas democracias representativas.
Por isso, muito esforço acadêmico tem sido empenhado na identificação de qual instituição eleitoral é capaz de criar essa conexão de forma mais efetiva (Powell, 2000 como citado em Carey, et al., 2013). Para os institucionalistas, os sistemas eleitorais são escolhidos por atores políticos diretamente afetados pelas consequências inerentes a esses arranjos. Cox (1997) resume tal tese: não haveria necessidade de se buscar um novo sistema eleitoral se ele não importasse. A questão central é: por que os partidos mudam as regras do jogo mesmo quando estão ganhando?
A endogeneidade do sistema eleitoral fornece algumas pistas. De um lado, o equilíbrio produzido por essas normas afeta a sobrevivência dos partidos, inseridos nos diversos cenários criados pela instituição - majoritários e proporcionais. Tal é a lei de Duverger (1951): sistemas majoritários tendem a reduzir o número de partidos para dois e os proporcionais tendem a não reduzir o número de partidos.
Por outro lado, os partidos acreditam que podem manipular essas regras para potencializar os seus resultados: obter mais acentos nas legislaturas. Trata-se, nesse caso, de uma resposta aos efeitos mecânicos e psicológicos previstos por Duverger (1951). Entretanto, a endogeneidade turva a percepção da direção de causalidade e provoca novas questões: é o sistema partidário que estrutura os partidos ou o contrário?
Benoit (2007) vai direto a esse ponto ao perguntar como os sistemas eleitorais são influenciados pelos sistemas partidários. Em outras palavras, quais processos políticos tendem a produzir, manter e modificar as instituições eleitorais? Segundo o autor, os atores políticos se adaptam aos incentivos estratégicos apresentados pelas leis eleitorais, mas uma das suas adaptações é modificar o conjunto institucional que transforma as estratégias em resultados.
Para Boix (1999) a chave para tal questão está no comportamento estratégico das elites em direção à mudança ou manutenção do status quo. De forma próxima, Colomer (2004) imputa a causalidade à composição atual das câmaras, que tendem a privilegiar regras eleitorais que robusteçam as forças existentes -a regra micro-mega, segundo a qual o grande prefere o pequeno e o pequeno prefere o grande- e, vai além, ao colocar a lei de Duverger "de cabeça para baixo" (2005). Aponta, também, que há um equilíbrio institucional-comportamental, operado pelos partidos, capaz de cristalizar o sistema eleitoral em torno das forças existentes (Colomer, 2018).
Os sistemas eleitorais oferecem distintos incentivos para a criação e resistência dos partidos. Assim, o argumento institucional maximizador volta a ter força: precisamente porque os sistemas eleitorais podem ter consequências importantes na formação do sistema partidário, pode-se supor que eles são escolhidos por atores políticos já existentes na defesa do interesse próprio.
Essas são as teses baseadas na racionalidade instrumental, sob observação de Norris (2011) a respeito das preferências dos partidos sobre instituições eleitorais alternativas estão baseadas nas expectativas sobre os payoffs que essas regras lhes trarão no futuro. Assim, a revisão ou mudança das normas eleitorais seria um subproduto dos ganhos individuais e partidários estimados a partir de novas diretrizes.
Ao lado da perspectiva instrumental, observam-se explicações com fundo histórico e contextual. Kutz (2002) expõe a dificuldade de transportar essa matriz analítica, típica da ciência política norte-americana, para a América Latina sem levar em conta o papel das práticas informais, da influência das ideias e dos modelos e da estrutura nesses países. Nessa mesma linha crítica à razão instrumental, Norris (2011) busca uma explicação cultural para as reformas eleitorais. Muitas vezes, a racionalidade instrumental não pode ser claramente observada nos casos analisados, pois os elementos contextuais negam essa premissa. Por isso, a partir da ideia do ciclo de políticas públicas de Easton (1965 como citado em Norris, 2011), tenta-se entender como os processos de reforma entram na agenda pública.
Para essa linha, não apenas a racionalidade instrumental das elites partidárias podem direcionar os processos de mudança nos sistemas eleitorais, mas também os elementos normativos e as pressões externas de outros atores com legitimidade social - a exemplo das manifestações populares, das decisões judiciais, das pressões presidenciais e da opinião pública. Assim, os sistemas eleitorais são produtos de um determinado desenvolvimento histórico, do contexto social em que surgem e, especialmente, da estrutura social e política locais.
3. Desenho de pesquisa
A pesquisa observou se houve atuação estratégica dos partidos nas proposições de PECs na Câmara dos Deputados brasileira, ao invés de focar nos grandes projetos de Reforma Política. O trabalho tem um recorte temporal das PECs sobre sistema eleitoral de 1990 a 20191. A escolha foi demarcada para fins de análise após a primeira eleição direta para presidente até o ano de 2019, com o intuito de delinear sobre como a jovem democracia brasileira vem configurando suas regras do jogo político-eleitoral, visto que tem nos seus representantes a possibilidade de proposituras.
Para a análise deste artigo, estudamos as propostas encaminhadas pela Câmara dos Deputados, por considerar que essa casa abre mais espaço para ideologias, anseios, demandas e a representação do povo. Logo, respeitando o posto na Constituição, na Câmara baixa é que se encontra maior esforço de propor soluções legislativas. Essa análise impõe um desafio empírico: como observar o comportamento estratégico? Conforme exposto, utilizamos como parâmetro os três mecanismos essenciais no entendimento das mudanças eleitorais propostos por Benoit (2007): a) o papel da agência; b) as motivações por trás da mudança; e c) o ambiente legal em que tais decisões se operam.
Para tanto, separamos as PECs em categorias temáticas de acordo com a frequência de cada tema ao longo dos anos. Essa abordagem ajuda a observar, a partir da identificação partidária do autor da proposta, os possíveis resultados estratégicos para os partidos em cada tema. Embora esse desenho tenha problemas -os parlamentares podem não partilhar da posição do partido sobre os conteúdos-, controlamos isso por meio do número de propostas de mesmo teor do partido sobre a temática em questão durante o tempo.
Por fim, a escolha das PECs se justifica pela sua natureza legal especial. Como parte dos assuntos relacionados ao sistema eleitoral estão elencados na Constituição Federal, o processo de mudança do sistema eleitoral se tornou politicamente custoso -envolve a construção de uma maioria expressiva, 3/5 dos votos em dois turnos nas duas casas do Congresso.2 As PECs fornecem bons subsídios à inferência do papel da agência e das motivações por trás das mudanças. Primeiro, o pressuposto de admissibilidade é a assinatura de 1/3 dos membros da casa em que são propostas- nesse caso, 171 parlamentares.3 Ademais, todos os projetos de emenda são acompanhados da justificativa, bem como são identificados por autoria, o que permite estabelecer as preferências dos proponentes (agentes) sobre os mais diversos temas eleitorais.
Variável dependente: Conteúdo da PEC. A literatura busca explicar a modificação dos sistemas eleitorais como fruto do comportamento estratégico. Em nossos dados, observamos grande variação no conteúdo das PECs eleitorais ao longo do tempo e em relação a matérias. A questão é: o que causa essa grande variação? Comportamento estratégico ou outro mecanismo?
Variável independente: Previsão de ganhos eleitorais. A questão central é o que leva à mudança das regras eleitorais. A literatura aponta que os partidos modificam a legislação de modo a obterem ganhos em seu favor (nesse caso, por meio da apresentação de PECs). Para os teóricos da escolha racional, o mecanismo causal por trás dos ganhos seria o comportamento estratégico dos partidos, maximizadores de ganhos eleitorais. Na prática, três situações parecem gerar o ímpeto reformista. Primeira, a PEC pode resultar em ganhos visíveis ao partido, ampliando o seu potencial de obtenção de cadeiras.
Desse modo, um partido grande se beneficiará da instituição de uma cláusula de barreira, já que a eliminação dos pequenos competidores pode ampliar sua representação na casa legislativa. Segunda, a PEC pode gerar perdas para os partidos. É o caso de propostas de redução do número de cadeiras em que todos têm a possibilidade de perder espaço. Terceira, a PEC pode trazer resultados obscuros, não se pode definir com clareza os ganhos previstos para os partidos. Esse é o caso do voto facultativo, cujo resultado para os partidos é imprevisível.
Diante desses cenários, o mecanismo do cálculo estratégico não explica com clareza o conteúdo das propostas apresentadas. Ainda sob a chave da racionalidade, partindo de Kurt (2002), pode-se adicionar outros mecanismos como o do cálculo normativo - quando os atores propõem mudanças de acordo com preceitos teóricos. Esse outro mecanismo parece justificar parte das propostas não instrumentais sob a ótica do ganho de cadeiras.
Dados: coletamos dados das PECs entre 1990 e 2019 no sítio da Câmara dos Deputados, perfazendo um total de 493 observações, divididas em cinco categorias. Tais dados permitiram observar o fluxo das propostas, os temas em destaque durante o período, a justificativa de cada proposta, bem como os autores e seus partidos.
Categorias: diante do grande número de emendas e da diversidade de temas propostos, as PECs foram agrupadas em 5 categorias: sistema eleitoral, regras eleitorais, alteração no número de cadeiras, regras para as campanhas e registros de eleitores e unificação das eleições; a partir das definições delineadas na literatura (Katz, 2005; Gallagher & Mitchell, 2005; Mozzafar & Schedler, 2002).
Katz (2005, como citado em Gallagher & Mitchell, 2005) reflete sobre a amplitude do que se entende por sistema eleitoral. Sob uma perspectiva restrita, encontra apenas 14 mudanças significativas no mundo desde os anos 50. Segundo os autores, o sistema eleitoral pode ser entendido como "o conjunto de regras que estruturam como os votos são expressos numa votação para uma assembleia representativa e como são convertidos em cadeiras nessa assembleia" (Gallagher & Mitchell, 2005, p. 3). Nesses termos, seriam considerados apenas os seguintes itens: a magnitude do distrito, fórmula, threshold legal e tamanho da assembleia.4
Sob uma perspectiva ampla, observou-se um número de reformas significativo.5 Afinal, outras questões consideradas menores são importantes para prover vantagem partidária. Os dados coletados sobre as PECs do sistema eleitoral no Brasil mostram justamente uma preocupação com os temas "no varejo". Essa ideia de sistema está contida no conceito mais amplo de regulação eleitoral, amplo conjunto de regras referentes às eleições. Essa regulação, nos termos de Gallagher e Mitchell (2005), parece guardar ligação com o que Mozaffar e Schedler (2002) tratam como governança eleitoral: "o amplo conjunto de atividades que cria e mantém a moldura institucional em que a votação e a competição eleitoral ocorrem" (p.7).
Para Katz (2005), a visão ampliada do sistema de representação proporcional incluiria propostas de: a) mudanças no método e fórmula de medição; b) introdução ou modificação dos thresholds; c) realocação de cadeiras, o que afeta a magnitude dos distritos; d) modificação dos sistemas de preferência dos votos intrapartidários - voto em lista aberta ou fechada. Numa visão ainda mais alargada do sistema eleitoral, pode-se incluir os processos de elaboração de regras de governança eleitoral, conforme explicitados por Mozaffar e Schedler (2002): e) o financiamento de campanha; f) registro de candidatos; g) desenho institucional dos election management bodies (EMB).6
De acordo com tais definições, combinamos as propostas coletadas nas seguintes categorias: 1) Alteração do sistema eleitoral: compreende propostas de mudança no sistema de representação proporcional para sistema misto, majoritário, além do proporcional para senador; 2) Regras eleitorais: agrega as diversas propostas que tratam sobre reeleição, segundo turno, terceiro mandato, registro dos candidatos, fim do segundo turno, mudança do/no segundo turno, reeleição, fim da reeleição, mudar regras da reeleição, tempo de mandato; 3) Regras para as campanhas eleitorais e registro de eleitores: supõe alterações nas regras para pesquisas eleitorais, disciplina das coligações, uso de rádio e televisão, financiamento de campanha, e compreendem mudanças no sistema de voto facultativo, direito de voto e de regras de domicílio eleitoral; 4) Alteração no número de cadeiras: compreende as propostas de mudanças no número de cadeiras das assembleias representativas; 5) Unificação das eleições: atina às propostas em favor da unificação das eleições.
4. Análise: as propostas de reforma
A tese de que a causa de parte dos problemas políticos no Brasil decorre das regras eleitorais parece partilhada pelos parlamentares, insatisfeitos com as regras do jogo. Desde 1988 a reforma do sistema eleitoral é uma constante na agenda congressual. Esse fato pode ser observado diante da grande saliência que os temas eleitorais têm no total de PECs apresentadas na Câmara dos Deputados entre 1990 e 2019.
O percentual de PECs cuja temática aborda a mudança do sistema eleitoral, dentre o total das PECs na atividade legislativa, representa 13% das apresentadas nesse período, número bastante elevado tendo em vista o grande quantitativo de temas regulados pela Constituição Federal de 1988. Há evidências de que, para os legisladores, as instituições eleitorais importam. A questão é se, cientes disso, eles atuam para influenciar os resultados institucionais de forma instrumental, conforme sugere uma parcela da literatura, ou por outros mecanismos como a estratégia normativa.
Os anos de 1990 e 2007 chamam especialmente nossa atenção, com propostas sobre alteração na idade do voto, a sugestão de mudança do voto obrigatório para voto facultativo. E, no caso de 2007 especificamente, PECs que giram em torno das alterações de cadeiras para o número de senadores, mudanças no tempo do mandato e o fim da reeleição. Nesta situação, podemos inferir que a PEC traz ganhos que o partido não consegue visualizar (obscuros).
Além da relevância frente a outras PECs, a temática eleitoral não ocorre de modo uniforme durante os anos, respondendo a alguns picos de atividade, em especial nos anos de 1995, 2003 e 2007. Esses dados levantam a questão do que leva esses temas a surgirem na agenda pública de modo tão destacado nesses períodos. Percebe-se que os anos que aparecem com maior número de PECs são os anos antecessores às eleições municipais (1995, 1999, 2003 e 2007) e, em menor intensidade às eleições nacionais.
Não parece haver coincidência, por exemplo, no fato d e q u e as inúmeras propostas de redução de idade para candidatos a prefeito ocorram no ano anterior ao pleito municipal. Para Lúcio Rennó (2008) as reformas em geral ganham tom fortuito quando são adotadas nas vésperas das eleições - e esse parece ser o motor de muitas das propostas apresentadas. Sendo assim, as temporadas de reformas, em regra, seguem de perto o ciclo eleitoral. Também no caso brasileiro pós-redemocratização, observa-se o caráter casuístico de inspiração eleitoral para as reformas adotadas, sobretudo após uma análise mais detida aos seus conteúdos.
Há também situações em que as propostas são decorrentes de esforços mais coordenados de reforma política. Nesses termos, o ano de 1995 é exemplar: as 48 PECs apresentadas no período estão ligadas aos trabalhos da Comissão Especial de Reforma Política. Em especial, o número de PECs neste ano concentra a atenção em propostas relativas à reeleição e de garantia da fidelidade partidária. Converge também neste sentido o ano de 2007, com 53 PECs, das quais 10 circunscrevem o tema do fim das reeleições, 9 sobre o tempo de mandato e 6 acerca da unificação de eleições. Além da lógica pré-eleitoral e dos esforços coordenados de reforma política, os dados trazem informações relevantes sobre a recorrência dos temas propostos. Em destaque estão as propostas relativas à unificação das eleições.
Apesar do debate sobre reforma eleitoral reaparecer de forma cíclica na agenda pública, como em 1995, 2008, 2013 e 2019 e receber grande atenção acadêmica, os dados obtidos no sítio da Câmara dos Deputados sugerem não só uma constância do debate na casa legislativa, mas também um viés reformista incremental de grande parte das PECs apresentadas no período. A lógica pulverizada das propostas sugere a falta de consenso necessária sobre os temas debatidos e os seus efeitos para os partidos.
Feitas tais considerações sobre a lógica geral observada nas propostas de mudanças no sistema eleitoral, passamos ao objetivo central do artigo: as PECs são orientadas por uma estratégia instrumental ou há outra lógica por trás da proposição - a lógica normativa?
4.1 Comportamento estratégico: instrumentalidade ou normatividade?
Sistema Eleitoral
A profusão de PECs sobre as regras eleitorais ao longo do tempo e dos temas derrubam os questionamentos sobre a importância estratégica das regras eleitorais para os partidos e parlamentares. A literatura aponta a mudança das regras eleitorais como uma estratégia de conquista e manutenção do poder. Nesta seção, analisaremos esse ponto em cinco das categorias definidas em nossa base de dados. O olhar mais próximo ao fluxo de propostas sugere um comportamento muito menos instrumental do que o proposto pela literatura.
Um grupo de propostas merece destaque não só pela frequência de ocorrência, 30 observações, mas pela ruptura que sugere: as propostas de mudança no sistema eleitoral. Esse é o objeto clássico das teses sobre o comportamento instrumental, uma vez que há um grande conhecimento acumulado sobre os impactos dos sistemas eleitorais na competição política desde Duverger (1951).
A Constituição Federal adotou o sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados em seu art. 45 e essa norma é objeto recorrente de propostas de reforma - categoria sistema eleitoral. Nessa categoria, dois grupos de PECs se destacam a adoção do sistema misto e o sistema majoritário para Câmara dos Deputados. Essas são mudanças que, de fato, alterariam de modo mais fundamental a estrutura eleitoral brasileira, com custos e benefícios bastante conhecidos pela literatura e, aparentemente, pelos parlamentares.7
A adoção do sistema eleitoral misto é bastante popular entre os parlamentares e ganha destaque em 4% das PECs apresentadas no período da análise. A propositura do sistema misto aparece uma última vez, de acordo com os dados coletados para esta pesquisa, com a PEC 258/2013 de autoria de Marcus Pestana (PSDB/MG) apensa à PEC 170/1999, que diz respeito ao número de cadeiras a serem ocupadas nas câmaras dos deputados. Com 18 menções em PECs, a propositura para as escolhas de deputados serem feitas parte de maneira proporcional e parte majoritária ganha mais força no ano de 2017.
As dúvidas em torno da racionalidade instrumental partidária em relação ao sistema misto são elevadas. O tema mais parece mimetizar o sistema alemão do que apresentar uma solução definitiva à representação.8 Nicolau (2008) expõe as nódoas da questão: para além da apresentação superficial do debate, inúmeras questões técnicas devem ser acessadas na implementação do sistema misto. Sem a resposta de tais questões, fica difícil saber de modo exato qual o ganho -eleitoral- esperado de cada partido com sua adoção. Por exemplo, o sistema proporcional brasileiro tem um viés altamente inclusivo aos pequenos partidos, que poderia ser mitigado na construção de um sistema misto com cláusulas de barreira. Ocorre que nenhuma das propostas expõe as questões sobre as normas técnicas.
Nesses termos, o mecanismo da ação racional -maximização de espaços de poder- não se revela tão cristalino. De fato, há um argumento malicioso e plausível para uma possível ação estratégica: o partido no poder poderia moldar as normas regulatórias -de quórum maioria simples- para obter ganhos estratégicos frente ao novo sistema. Vejamos a lógica de proposição: entre 1990 e 1995, treze propostas de parlamentares de diversos partidos caminhavam nesse sentido. Antes de 1995, seis das sete propostas sobre o tema foram originárias de partidos da coalizão do presidente Collor: PFL, PTB e PDS.9
Contudo, essa medida não parece refletir um cálculo estratégico, mas sim uma lógica normativa, herdada do debate da década de 1960. Ademais, parte desse período precede a revisão constitucional, ocorrida em 1993, e parece refletir uma retomada do tema a partir da sua lógica normativa: maior accountability. Este é o caso da PEC- 24/1991, que previa adoção do sistema distrital misto e foi prejudicada pela revisão constitucional.10
Na década de 2000, a proposição do sistema misto torna-se menos intensa, aparecendo 5 vezes em 19 anos. Contudo, as propostas sobre o tema são originadas do PMDB, do DEM (antigo PFL) e do PSDB, defensores históricos do sistema misto. Para o deputado Márcio Junqueira (DEM/RR), seria uma solução para resolver a crise ética inspirada "no experimentado e eficiente modelo germânico". Também amparado no sistema alemão, o deputado Roberto Magalhães (DEM/PE) observa o sistema misto como uma opção de melhoria da accountability. Para o deputado Rodrigo Rocha (PMDB/PR), a dificuldade de entendimento das regras eleitorais pela população exigiria a adoção do sistema misto, capaz de produzir regras claras e maior accountability. Do mesmo modo, na década de 1990, os parlamentares parecem interessados em uma solução para o problema da prestação de contas, mas estão parcamente cientes dos impactos dessas regras em seu desempenho eleitoral. A análise das PECs apresentadas no período não permite identificar um cálculo instrumental - a maximização dos resultados para os partidos.
Uma hipótese seria a natureza normativa das propostas suplantar a ideia de instrumentalidade -alguns partidos e atores políticos parecem comprometidos com ideais particulares de sistemas eleitorais- alguns setores do PSDB insistem na tese do voto distrital, sem que isso pareça trazer vantagens concretas ao partido. Talvez isso se deva ao impacto que as teses acadêmicas, ao demonstrar os sistemas eleitorais de modo comparativo, provocam nos atores políticos. Contudo, essa tese necessita de análises empíricas aprofundadas, o que foge ao escopo desta análise.
Ainda na categoria sistema eleitoral, o segundo grupo de propostas sugere a adoção do sistema majoritário para a eleição da Câmara dos Deputados. Tem-se 11 PECs para alteração do sistema proporcional pelo majoritário nas eleições para deputados. Duas delas promovidas por partidos recém criados, o PROS e o REDE, com as PECs 3/2015 e 327/2017. De plano, a proposição de alteração do sistema proporcional para o majoritário parece um retrocesso, aos olhos do exposto por Colomer (2004; 2018), que observa uma tendência à maior representatividade dos sistemas eleitorais quando se garante a proporcionalidade, haja vista também que os partidos menores teriam mais chances de competir com coeficientes eleitorais menores e magnitudes mais altas.
O PMDB já demostrou interesse pela eleição majoritária para deputados e vereadores. Na época, o senador José Sarney (PMDB) e o vice-presidente da República, Michel Temer11 (MDB) mostraram-se simpatizantes. Sua justificativa é que muitas coligações beneficiam as legendas que, sozinhas, não conseguem votos suficientes para atingir o coeficiente eleitoral; o que reforça a ideia de que os partidos grandes preferem o sistema majoritário.12
A PEC-133/2003, proposta pelo deputado Jaime Martins, do extinto PL/ MG, expõe o problema subjacente às propostas de implementação do sistema majoritário. Primeiro, o partido em questão, diante da sua exígua representação na Câmara, teria incapacidade de se estruturar numa disputa por cadeiras num sistema majoritário - a força partidária seria uma das explicações para um partido defender tal regra, conforme se infere de Boix (1999).
Além da visível ausência de cálculo estratégico por trás da proposta, a justificativa fala por si: "reconhecendo que o eleitor brasileiro, em geral apoia muito mais o candidato que o partido, propomos que a eleição se faça pelo número de votos de cada candidato, desconsiderando a divisão de cadeiras por partidos".13 Pelo exposto, as regras eleitorais não teriam maiores consequências, segundo a tese sustentada pelo parlamentar. Nesse caso, nem o cálculo estratégico nem o normativo estariam em jogo.
Contudo, a proposta do deputado Jaime Martins pode ser vista como um ponto fora da curva. A PEC-585/2006, do deputado Arnaldo Madeira, PSDB-SP, parece se alinhar com a tese do cálculo normativo. Estrategicamente falha para um partido de oposição com força reduzida no cenário nacional desde a saída da presidência em 2002, a PEC traduz um papel normativo claro: aprimorar a democracia representativa com maior accountability.14 As demais propostas apresentadas ao longo dos anos partilham dessa mesma perspectiva normativa, refutando a tese do cálculo instrumental nessa dimensão da reforma eleitoral. Ao que parece, a racionalidade aqui está normativamente orientada.
Regras para as campanhas e registro de eleitores
Outra categoria de destaque entre as PECs versa sobre a fidelidade partidária. Embora não seja um tema atualmente regulado pela Constituição, 19 propostas (4% do total) versam sobre o tema da perda dos mandatos dos membros do Poder Legislativo e do Poder Executivo que se desfiliem dos partidos pelos quais foram eleitos.
Apesar dos estudos serem poucos e relativamente recentes no país, Ranulfo Melo (2004) chama atenção para o fato: de 1985 a 2002 as taxas de migração no país são muito elevadas; quase 30% dos deputados federais que assumiram uma cadeira deixaram os partidos pelos quais foram eleitos e, muitas vezes, numa mesma legislatura a mudança é repetida duas, três e até quatro vezes por um mesmo deputado. Os partidos, segundo Roma (2007), ao aumentar o tamanho de suas bancadas, possibilitam, entre outras coisas, maior poder de barganha, um aumento dos recursos do Fundo Partidário e mais tempo de exposição no horário de propaganda eleitoral.
Avaliando a migração partidária entre os anos (1995 - 2006), na Câmara dos deputados, Ferreira (2011) afirma que o maior impacto é gerado nos partidos menores, uma vez que os partidos maiores sofrem pequenas oscilações e a tese de instabilidade política causada pela migração é refutada. Na visão proposta pelo autor, existem dois padrões de bancadas partidárias: grandes e pequenos. As migrações se dão de maneira mais contundente nos partidos pequenos, especialmente em períodos mais próximos de eleições municipais e presidenciais, já que se aumentam as bancadas e não se modificam, de maneira significativa, as maiores bancadas que compõem a Câmara.
A tentativa de incorporar essa regra ao arcabouço constitucional aponta a sensibilidade estratégica do tema para os partidos: como norma constitucional, a fidelidade partidária dificilmente seria desafiada por maiorias voláteis no congresso. O tema esteve em pauta na PEC 182/2007, do Senador Marco Maciel (DEM/PE), que acabou por apensar mais 14 propostas de emenda existentes no Congresso Nacional.
Ao contrário do sistema eleitoral, a apresentação desse tema expressa o interesse estratégico de partidos consolidados na arena eleitoral, em especial pelos elevados incentivos à migração partidária no presidencialismo de coalizão.15 Desde 1995, quando a deputada Rita Camata (PMDB/ES) propôs a fidelidade partidária, representantes dos seguintes partidos corriqueiramente retornam ao tema: o DEM (antigo PFL),16 o PMDB,17 o PSDB e o PC-do-B. Importante notar a reincidência do tema em PECs separadas das grandes reformas.
Aqui, o cálculo estratégico é evidente, sobretudo, para os partidos tradicionais. Nos dados observados, apenas 3 propostas de partidos de pouca expressão -o PDS (1992), PPR (1995) e PC-do-B (2007)- foram a favor da fidelidade partidária. Importante notar que, de 2008 a 2016, o tema não se configurou entre as PECs, em virtude da resolução 22.610/2007 do TSE,18 posteriormente validada pelo STF nos julgamentos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.999 e 4.086. A ADI 3.999, reforça o cálculo estratégico dos partidos quanto à fidelidade partidária: enquanto DEM pediu ao TSE a confirmação da fidelidade partidária, o PSC buscava a inconstitucionalidade da regra - o que sugere uma estratégia de atração de novos parlamentares para aumentar o poder de fogo desse partido.
Depois de 2007, somente com a PEC 282/2016, o tema voltou a tramitar. Ela enfatiza, para além do veto das coligações partidárias, o estabelecimento de normas de acesso dos partidos aos recursos do fundo partidário e tempo de propaganda em rádio e TV. Transforma-se na Emenda ao texto Constitucional 91/2016 que "Altera a Constituição Federal para estabelecer a possibilidade, excepcional e em período determinado, de desfiliação partidária, sem prejuízo do mandato" (Brasil, 2016). A referida PEC garante a desfiliação partidária num prazo de 30 dias seguintes a EC sem prejuízo ao mandato eletivo. A norma também indica que o candidato que se desfilie não é obrigado a uma nova filiação.
A novidade é que, em 2017, o tema ganhou aprovação nas duas casas, com a proposta oriunda da PEC 33/2017 no Senado. Mais adiante, transformou-se na EC 97/2017, que altera as regras eleitorais e passa a vigorar em 2020, são elas: veto às coligações partidárias nas eleições proporcionais e criação de normas para acesso do fundo e tempo de propaganda gratuita eleitoral - somente os partidos que alcançarem o mínimo de candidatos eleitos terão acesso.
Cadeiras legislativas
A terceira categoria de propostas refere-se à alteração do número de cadeiras nas casas legislativas. Trata-se de um tipo de previsão curiosa do ponto de vista estratégico e frágil, sob a ótica normativa. As PECs ventilam a redução do número de cadeiras na Câmara dos Deputados e, ainda, redução do tempo de mandato dos senadores. A Ilustração 04 elucida o grande volume de propostas tendentes a reduzir o número de cadeiras dos deputados.
Dividimos a análise das 29 propostas dessa categoria em dois grupos: 1) propostas relativas à redução do número total de deputados federais; 2) propostas relativas à modificação do piso mínimo e máximo de representantes por estado. Em ambos os casos, as propostas estão tramitando junto com a PEC-170/1999, que atualmente conta com 15 PECs apensadas.19
No primeiro caso, as propostas de emenda visam a redução do número de deputados. Sob o ponto de vista da maximização do poder dos partidos -e especialmente dos parlamentares- a redução do número de cadeiras não traz ganhos visíveis a nenhum dos partidos. Por que eles as propõem, então? Seria por um cálculo normativo, conforme a alternativa esperada ao cálculo estratégico? Encontramos evidências frágeis disso. Vejamos os casos.
A PEC-519/2006, do deputado Jaime Martins, do extinto PL/MG, propõe a redução do número de deputados a 450, sob a justificativa de redução dos recursos públicos e da maior celeridade do processo legislativo. Por sua vez, a PEC-587/2006, do deputado Eduardo Sciarra (PFL/RS), propõe a redução para o número de 342 deputados federais, com mínimo de 5 e máximo de 65 deputados por estado, sob a tese da redução dos escândalos e dos gastos públicos. Ainda mais restritivo, o deputado Clodovil Hernandes (PR/SP), propôs a PEC-280/2008, que limita o número de deputados em 250, novamente sob a justificativa da redução de gastos.
Percebe-se que, ao invés da racionalidade instrumental -ampliação do espaço dos partidos nas casas legislativas-, o comportamento dos proponentes aparece orientado por argumentos como a redução dos custos com o Congresso. O problema reside na fragilidade do argumento para os partidos: a redução de cadeiras afetaria a representação e não implica numa gestão fiscal eficiente para o Congresso - que recebe, afinal, uma parcela fixa em duodécimos da arrecadação do Governo Federal.20 Embora não se possa identificar uma estratégia de maximização do espaço dos partidos, tais propostas podem ser estratégias individuais de credit claiming, na tentativa de sinalizar uma atitude moralizadora ao eleitorado.
Ao mesmo tempo, parte dessas propostas visa alcançar a proporcionalidade populacional em conjunto com a redução de parlamentares. O segundo grupo de propostas visa corrigir a desproporcionalidade populacional gerada pelo desenho do art. 45, §1° da CF/1988. Nesses casos, observa-se uma atuação estratégica dos parlamentares dos estados mais populosos em relação aos estados sobrerrepresentados. A PEC- 170/1999 é ilustrativa; além de reduzir o número total de cadeiras, busca estabelecer o piso mínimo de 3 deputados para os estados menos populosos e máximo de 65 nos estados mais populosos. Ao contrário do primeiro grupo, esse grupo de propostas encontra uma racionalidade clara: reduzir a influência dos estados com representatividade exacerbada, como o Norte e Nordeste na Câmara. Assim, tais propostas não apresentam um corte partidário, mas sim regional.21
Unificação das eleições
Por fim, outra categoria com elevada frequência nos dados coletados é a unificação das eleições. São 48 referências ao tema na pesquisa coletada, desde 1995, em quase todos os anos, há pelo menos uma proposta que visa coincidir os pleitos eleitorais. Há um forte interesse dos parlamentares e as propostas sobre esse tema são bem distribuídas entre os partidos.22
A questão é: qual o efeito disso para os partidos no processo eleitoral? Os ganhos estratégicos aos partidos não são visíveis. A rigor, a unificação das eleições produziria efeito de coattail - capacidade do líder do partido atrair voto para outros candidatos dentro do partido. Assim, se poderia esperar que os principais competidores das disputas presidenciais -PT e PSDB23- fossem os beneficiados pela unificação. Algumas das propostas abordam o tema, mas o fazem sob uma perspectiva normativa do coattail: a PEC 402/2005 aponta a mudança como capaz de garantir unidade ideológica e programática dos partidos.
Nohlen (1992) acredita que o efeito da simultaneidade será o influxo direto da decisão na eleição presidencial sobre a decisão do eleitorado na eleição parlamentar. A tese da unificação das eleições busca expandir ainda mais esse efeito ao incorporar os prefeitos e os vereadores nessa influência. Ou seja, um bom candidato a presidente atrai votos a um partido na eleição parlamentar.
Borges e Turgeon (2017) identificam que as eleições presidenciais podem trazer benefícios não apenas aos deputados aliados do presidente, mas também àqueles integram a coalizão. Assim como inferem sobre a influência das lideranças estaduais sobre os demais cargos. Nessa mesma linha, Samuel (2000) observa que, no Brasil, os efeitos de coattail ocorrem de modo distinto: os governadores são os atores responsáveis pela coordenação dos votos. Da mesma forma, Zucco (2008) nota que os deputados eleitos pelo PT, nas eleições de 2006, tiveram melhor performance nos estados governados pelo PT, não por conta da presidência do partido.
O argumento comum para sustentar a defesa da unificação das eleições refere-se aos gastos gerados pelos pleitos. Por exemplo, em 2014, o custo do voto por eleitor foi de R$ 4,80 para quase 143 milhões de brasileiros.24 A PEC 117/2011, por exemplo, fia-se nessa justificativa. Do mesmo modo, a PEC-6/2003, a PEC 49/2019 e a PEC 179/2019 apresentam o problema dos gastos como um ponto negativo às campanhas. Ano a ano, como num rosário, os argumentos desse tipo de PEC se repetem.
Ao lado desse argumento, residem as teses da paralisia administrativa perpetrada pela recorrência das eleições. Esse é um tema recorrente em propostas como: PEC 273/2004, PEC 402/2005, PEC 164/2007, PEC 224/2012, dentre outras. Em outros casos, a unificação das eleições vem como mecanismo de proibição das reeleições, como sugerem a PEC 352/2013 e a PEC 214/2019, cuja justificativa versa para o impedimento do uso indevido da máquina pública, uma vez que beneficiaria àqueles que tentam a reeleição. A iniciativa garantiria uma maior isonomia entre os candidatos.
No entanto, resta a dúvida se a concentração das eleições em apenas um período tornaria o debate público centrado em temas locais em detrimento dos temas nacionais. Também surge a dúvida: se o viés paroquial for bastante espaçado das eleições, não reduziria a mobilização popular em torno dos problemas políticos, visto o processo eleitoral passar a ser espaçado. Sob uma perspectiva normativa, a maior frequência de pleitos traria maior debate democrático.
Assim, no que concerne à unificação das eleições, a não aprovação de nenhuma das propostas nesse sentido pode representar um cálculo instrumental dos parlamentares. Longe do claiming effect relativo aos gastos públicos, uma hipótese crível é que tal mudança conformaria um obstáculo àquelas opções de carreira política que começam na Câmara e ambicionam os executivos estaduais ou de grandes cidades. Com a adoção de eleições simultâneas, os deputados poderiam recear abandonar o mandato para concorrer a um novo cargo, pois implicaria o risco de ficar quatro anos sem um novo mandato.
Muito menos, o debate parece ser orientado por razões normativas, afinal os custos das eleições não podem ser percebidos como um desperdício de dinheiro em uma democracia. Pode-se dizer que o argumento da unidade ideológica provocada pela unificação pode trazer ganhos aos partidos, mas essa não é uma conclusão intuitiva. Nesse caso, mais uma vez, o debate parece ancorado menos em visões instrumentais -os ganhos aos partidos e parlamentares não são explícitos- e mais em visões normativas ou de claiming effects.
5. Considerações finais
O Poder Legislativo teve grande atividade propositiva referente às mudanças constitucionais no sistema político. Para tanto, este artigo analisou a produção de Propostas de Emenda Constitucional entre os anos de 1990 e 2019 e observou uma profunda saliência da questão eleitoral frente ao conjunto de PECs apresentadas. O trabalho evidencia, no bojo desta produtividade, o surgimento de inúmeras propostas de cunho pontual ao longo dos anos e, em alguns momentos, projetos estruturados de reforma que acabam por apensar boa parte dos temas discutidos de forma isolada. A natureza pontual dessas PECs e a diversidade de temas são traduzidas em um resultado: incapacidade de mudança das regras do jogo.
O artigo buscou investigar se os cálculos estratégicos geram a proposição de emendas constitucionais eleitorais. Alternativamente, propõe que uma racionalidade normativa poderia orientar os parlamentares na proposição dessas normas. Os resultados encontrados na análise das categorias selecionadas são díspares, mas apontam algumas conclusões. Primeiro, dentre as propostas analisadas, uma menor parte parece guiada por interesses estratégicos dos partidos. O caso da fidelidade partidária parece ser o que mais se aproxima da tese esposada pela literatura aqui resenhada.
Segundo a variável, a racionalidade normativa ganha destaque em algumas propostas, em especial naquelas ligadas à melhoria da prestação de contas dos políticos para a sociedade - embora elas sugiram uma redução do espaço dos parlamentares e dos partidos. Por fim, uma terceira variável, não prevista no desenho de pesquisa, parece orientar as proposições: o framing. Nesse caso, os parlamentares parecem influenciados por uma visão de economia pública guiada pelo incessante debate da imprensa sobre os gastos públicos.
Apesar do número de propostas, apenas três foram transformadas em normas e, como se sabe, pouco mudou a forma de fazer política no Brasil. Contudo, a falta de um consenso é fato notório diante da composição da Câmara Baixa -os dados informam uma diversidade de visões sobre funcionamento do sistema e o teor das propostas em questão. Dessa forma, fica claro que atingir consensos sobre como deve funcionar o sistema parece ser um problema de difícil resolução- a racionalidade estratégica coexiste como a normatividade e o framing.
Os resultados obtidos oferecem insights interessantes, sobretudo por desafiar um argumento bem-posto na literatura, porém ainda são inconclusivos. A análise necessita cobrir todas as propostas de emenda e suas categorias propostas para produzir resultados mais robustos. Do mesmo modo, os resultados não são generalizáveis, já que se trata de um estudo de caso único. Uma pesquisa comparativa nos mesmos moldes pode fornecer as bases para entender o que leva os atores a propor mudanças nos sistemas eleitorais.
De qualquer modo, até onde sabemos, este trabalho inova ao coletar dados de 29 anos de PECs apresentadas, categorizar as suas propostas e buscar analisar de modo estruturado as motivações por trás de sua apresentação. Trata-se, pois, de uma agenda de pesquisa em aberto e capaz de prover intuições sofisticadas sobre o comportamento dos políticos em relação às instituições eleitorais.