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Fronteras de la Historia

versão impressa ISSN 2027-4688versão On-line ISSN 2539-4711

Front. hist. vol.29 no.1 Bogotá jan./jun. 2024  Epub 01-Jan-2024

https://doi.org/10.22380/20274688.2562 

Sección especial

“É público que é mal procedida”: indígenas e mestiças entre as denúncias de prostituição levadas ao Tribunal Eclesiástico do bispado do Maranhão no século XVIII

“Es público que se está portando mal”: indígenas y mestizas en las demandas de prostitución presentadas ante el Tribunal Eclesiástico del obispado de Maranhão en el siglo XVIII

“It’s Public that It Is Misbehaving”: Indigenous and Mestiza Women among the Prostitution Allegations Brought to the Ecclesiastical Court of the Bishopric of Maranhão in the 18th Century

Maria Rosalina Bulcão Loureiro*  1
http://orcid.org/0000-0002-4658-8028

*Universidade Federal do Maranhão. rosalina.bulcao21@gmail.com • https://orcid.org/0000-0002-4658-8028


Resumo

O julgamento de crimes sob a alçada do bispo para todos os cristãos da Amazônia colonial, incluindo os indígenas, se fez com a implantação da primeira diocese na Amazônia colonial em 1677. A importância das dioceses e a preocupação com o disciplinamento de costumes aumentou a partir do Concílio Tridentino, deslocando-se da Europa para a América portuguesa e favorecendo a criação de bispados vigilantes aos preceitos tridentinos. A acusação de manter casa de prostituição, denominada de alcouce, no Livro de Registro de Denúncias do bispado do Maranhão, documentação raramente utilizada para estudar os indígenas, evidencia a ação das nativas na Capitania do Maranhão, possibilitando a desconstrução de estereótipos fortemente enraizados na historiografia.

Palavras-chave: Bispado do Maranhão; Tribunal Eclesiástico; disciplinamento de costumes; mulheres indígenas

Abstract

The trial of crimes under the jurisdiction of the bishop for all Christians in colonial Amazonia, including the indigenous people, began with the establishment of the first diocese in Colonial Amazonia in 1677. The importance of the dioceses and the concern with the disciplining of customs increased after the Council of Trent, moving from Europe to Portuguese America and favoring the creation of bishoprics vigilant to the Trentine precepts. The accusation of keeping a house of prostitution, termed as brothel in the Register Book of Allegations of the Bishopric of Maranhão, documentation rarely used to study the indigenous populations, highlights the actions of the native women in the Captaincy of Maranhão, allowing for the deconstruction of stereotypes strongly rooted in historiography.

Keywords: Bishopric of Maranhão; Ecclesiastical Court; Disciplining of Customs; Indigenous Women

Resumen

El juzgamiento de los crímenes bajo la jurisdicción del obispo, para todos los cristianos de la Amazonía colonial, incluidos los indígenas, tuvo lugar con la creación de la primera diócesis en dicha región, en 1677. La importancia de las diócesis y la preocupación por la disciplina de las costumbres aumentaron después del concilio tridentino, al pasar de Europa a la América portuguesa, y favorecieron la creación de obispados vigilantes de los preceptos tridentinos. La acusación de mantener una casa de prostitución, llamada alcouce, en el Libro de Registro de Denuncias del obispado de Maranhão, documentación poco utilizada para el estudio de los indígenas, muestra la actuación de estos en la Capitanía de Maranhão, al tiempo que permite deconstruir estereotipos fuertemente arraigados en la historiografía.

Palabras clave: obispado de Maranhão; tribunal eclesiástico; disciplina aduanera; mujeres indígenas

Introdução

Em fevereiro de 1765, o vigário geral da diocese do Maranhão, João Rodrigues Covette, iniciava uma denúncia contra a “cafuza” e “forra”, Lourença, acusada de fazer da sua moradia “casa de alcouce” na qual desonestavam-se “várias mulheres com vários homens” (APEM, Ec, 212, f. 72 r.). Os relatos das cinco testemunhas convocadas pelo Tribunal Eclesiástico revelaram outras “mulheres suspeitas” de frequentar a casa: as mamelucas Brígida, Cizília, Cipriana e a cafuza Antônia. A acusação, presente no Livro de Registro de Denúncias do Tribunal eclesiástico do bispado do Maranhão, aponta para um aspecto de pouca projeção nos estudos sobre a temática indígena: o protagonismo das mulheres indígenas e mestiças a partir da documentação do acervo eclesiástico do Maranhão colonial.

O estudo das indígenas a partir destas fontes mostra-se necessário para a desconstrução de generalizações que acabaram por ocultar as especificidades da Amazônia colonial. O movimento da Igreja católica conhecido como Contrarreforma e realizado a partir das mudanças aprovada no Concílio de Trento (1545-1563), promoveu, entre outras medidas, o desenvolvimento das dioceses na Europa e a vigilância da experiência religiosa dos seus fiéis. Embora nenhuma resolução tenha abordado diretamente a questão da expansão católica no ultramar junto aos nativos, os princípios tridentinos chegaram a todos os leigos da Amazônia colonial, incluindo os indígenas2.

As mulheres indígenas e mestiças que aparecem na documentação estavam sob a jurisdição do bispo, ou seja, assim como qualquer outro cristão, deveriam cumprir as obrigações e preceitos católicos para a salvação de suas almas, tais como assistir à missa, receber os sacramentos e seguir todos os procedimentos para, por exemplo, contrair matrimônio. Por essa razão, todos os cristãos batizados, inclusive os indígenas, estavam sujeitos às denúncias e julgamento perante o foro eclesiástico3.

O registro das denúncias do Livro de Registro de Denúncias seguia sempre o mesmo formato: a queixa era pormenorizada, inquiriram-se de seis a nove testemunhas e, por fim, o vigário-geral decidia a pena adequada prevista nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Em geral, as denúncias que envolviam indígenas e mestiços eram realizadas em processos sumários, sem direito de defesa do acusado e sem longas discussões jurídicas ou, inclusive, representação legal (Muniz, “Church and Justice” 187).

Contudo, mesmo em processos sumários, as denúncias levadas ao Auditório Eclesiástico estão repletas de detalhes sobre a vida de homens e mulheres de todas as esferas sociais, evidenciando a difícil internalização aos preceitos católicos e ao comportamento moral e religioso das populações que viviam sob a autoridade dos bispos (Muniz, Réus de batina 430).

Nesse sentido, o funcionamento de um Tribunal Eclesiástico envolvido diretamente com o disciplinamento social dos leigos, incluindo os indígenas, deu-se com a introdução de mais um poder na Amazônia colonial no final do século XVII: o bispado do Maranhão. Criada em 1677, a primeira diocese da região abrangia o estado colonial do Maranhão e Grão-Pará4, representando não apenas uma mudança no processo de cristianização - que se desenvolvia principalmente pela ação das ordens regulares -, mas também na introdução de mais um poder envolvido diretamente com a administração da mão de obra nativa, situação que gerou conflitos com os demais agentes da colonização.

De acordo com André Luís, o percentual diminuto da população de colonos, a complexidade da região amazônica e as constantes ameaças de outras potências europeias levaram o Estado português a realizar diversas ações para inserir os nativos na sociedade colonial, especialmente por meio da conversão cristã, mas sem desconsiderar as metas econômicas que perpassavam obrigatoriamente pela exploração da mão de obra nativa (Ferreira 19).

O bispado do Maranhão, mediante o Tribunal Eclesiástico, que também foi chamado de Tribunal Episcopal ou Auditório Eclesiástico, promoveu o disciplinamento social dos paroquianos. Em uma narrativa permeada pela colaboração e por conflitos entre Igreja e Estado, o desenvolvimento da malha diocesana na região se deu principalmente pela ação do Estado Português, que buscava manter e expandir os domínios no território. No final do século XVIII, a diocese já era composta, na Capitania do Maranhão, por vinte e cinco (25) paróquias que perfazem o total de 61.699 habitantes (Muniz, “Church and Justice” 174)

O local da denúncia de Alcouce refere-se à cidade de São Luís, sede do bispado do Maranhão. As denúncias do Auditório Eclesiástico, embora não fossem centralizadas apenas na sede do bispado, foram produzidas principalmente na cidade de São Luís, especialmente pelo fato de ser a área mais populosa da diocese. Por esse motivo, a sede do bispado foi o ponto de referência para onde eram enviados os processos que vinham de espaços distantes da cidade de São Luís (Muniz, Réus de batina 96-97).

No ano em que a denúncia contra a cafuza Lourença foi levada ao conhecimento do Auditório Eclesiástico, já estava em curso no Estado do Grão-Pará e Maranhão uma nova etapa do processo de colonização e cristianização dos povos indígenas: as reformas pombalinas. Dentre tais reformas, destacam-se a Lei de 6 de junho de 1755, que restituiu a liberdade dos indígenas, e o Alvará de 7 de junho de 1755, que revogou a jurisdição temporal dos missionários junto aos povos indígenas. Além dessas, o Diretório Pombalino, publicado em 1757, estabeleceu medidas de trabalho, cristianização, casamento e civilização aos povos nativos5.

A denúncia apresentada no Livro de Registro de Denúncias, a qual envolvia indígenas e mestiças na cidade de São Luís, na segunda metade do século XVIII, é significante para desconstruir estereótipos que as confinam a uma posição puramente sexualizada, seja por conta da disseminada visão da luxúria, seja por conta das violências sofridas - construção que atravessa todo o período colonial. A narrativa historiográfica do papel das nativas foi atingida tanto pela invisibilidade dos povos indígenas, quanto pela construção de uma historiografia voltada para a ação masculina, promovendo generalizações que dissimulam a complexa realidade social vivida por essas mulheres (Julio, “O recorte de gênero”, Damiana da Cunha).

Além disso, as fontes utilizadas para o estudo das mulheres indígenas, em sua grande maioria, foram produzidas pelo olhar do “outro”, tais como exploradores, missionários e viajantes. A análise dessas fontes produziu uma narrativa historiográfica que enfatizou a disponibilidade sexual das indígenas e a marginalização de suas experiências.

Nas décadas de 1920 e 1930, os textos dos missionários e viajantes foram retomados no pensamento sociológico nacional, que buscava construir uma identidade brasileira para um país que havia se tornado independente no final do século XIX. Em 1928, Paulo Prado publicou Retrato do Brasil valendo-se, por exemplo, dos escritos do Padre Manuel da Nóbrega. Para o autor, a “lascívia do homem branco solto no paraíso” se devia à “submissão fácil e admirada da mulher indígena, mais sensual do que o homem como todos os povos primitivos e que em seus amores dava preferência ao europeu” (Paulo Prado 31).

Cinco anos após a publicação de Retrato do Brasil, Gilberto Freyre, ao analisar os relatos de missionários e viajantes, destacaria novamente a disponibilidade sexual das indígenas, afirmando que “eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses”. A visão acrítica da documentação, especialmente a partir dos relatos de missionários, vistos por muito tempo como fatos fidedignos, contribuiu para a ênfase no aspecto sexual das indígenas e mestiças, escravizadas ou livres, do período colonial (Freyre 161).

Porém, trabalhos recentes vêm buscando apontar outros papéis e experiências vividas por essas mulheres, que, durante muito tempo, permaneceram incluídas em estereótipos produzidos pelo olhar europeu e reproduzidos na historiografia nacional. A denúncia de alcouce presente no Livro de Registro de Denúncias do bispado do Maranhão nos permite inserir uma discussão sobre as mulheres indígenas e mestiças da sociedade colonial do Maranhão para além desse olhar preconceituoso, iniciando uma discussão sobre o protagonismo dessas mulheres em relação aos poderes que buscavam controlar seus corpos e comportamentos.

O Tribunal Eclesiástico e a reforma dos maus costumes no Maranhão colonial

O bispado do Maranhão foi criado em 30 de agosto de 1677 mediante a bula Super universas orbis ecclesias, do Papa Inocêncio XI. Reunindo um imenso território que “ia desde o Cabo do Norte (englobando as capitanias do Maranhão e Grão-Pará) até o Ceará, tornou-se, desde a sua criação, um imenso desafio à Igreja”. No século XVIII, mais precisamente em 1720, foi fundado o bispado do Pará, que reconfigurou os limites da diocese do Maranhão, englobando, a partir desse momento, o Piauí, antes pertencente ao bispado de Pernambuco (Muniz, Réus de batina, “Church and Justice”).

A criação da primeira diocese na região não se constituiu apenas como uma questão espiritual, mas imbricando o aspecto temporal, visto que a introdução do bispado e o desenvolvimento da malha diocesana também esteve vinculada aos seguintes objetivos: expansão das fronteiras e uma melhor gestão nas disputas em torno das disputas pela mão de obra indígena (Muniz, “O primeiro bispo deste Estado” 37-39).

O território do estado do Grão-Pará e Maranhão era considerado estratégico por ser uma zona de transição entre o Estado do Brasil e a América espanhola. Além disso, a presença portuguesa, pelo espaço e biodiversidade, não se deu da mesma forma nas Capitanias que compunham o Estado do Grão-Pará e Maranhão. Por tal atributo, os processos de ocupação foram diretamente influenciados pela interação com os povos nativos que habitavam a região, fazendo da sociedade que se desenvolveu nestes territórios extremamente dependente da mão de obra indígena (Mello; Melo).

Fonte: Muniz, “O Primeiro Bispo deste Estado” 32.

Figura 1 O bispado do Maranhão (1677-1720) 

Fonte: Muniz, “Church and Justice” 175.

Figura 2 Paróquias do bispado do Maranhão no século XVIII 

O disciplinamento social e a reforma dos costumes na Amazônia colonial intensificaram-se com a criação da diocese do Maranhão. O caráter repressivo da Igreja tem seu marco na Europa, no movimento conhecido como Contrarreforma, a partir das determinações do Concílio de Trento (1545-1563), atingindo posteriormente todos os leigos da América portuguesa (Muniz, Réus de Batina). Assim, embora os princípios de Trento, impostos inicialmente à cristandade europeia, não tivessem sido pensados para os habitantes do novo mundo, chegaram até os indígenas a partir da vigilância aos desvios morais que eram denunciados e julgados pelo Tribunal Eclesiástico do bispado do Maranhão.

Funcionando em todas as dioceses, embora sua documentação seja raríssima, a presença de um Tribunal Eclesiástico destinado a reprimir e julgar as transgressões realizadas pelos leigos, incluindo os indígenas, ainda é pouco conhecida. Uma das causas da pouca visibilidade do bispado do Maranhão ao projeto de cristianização dos indígenas se justifica pela construção de uma narrativa que legou aos missionários, especialmente os jesuítas, o protagonismo da ação evangelizadora, desconsiderando as ações perpetradas por outros integrantes da Igreja, bem como a resposta dos indígenas às diferentes tentativas de torná-los cristãos.

O Tribunal Episcopal ou Auditório Eclesiástico estava diretamente envolvido no disciplinamento social e na reforma dos costumes, pois era acionado em questões espirituais ou temporais sujeitos ao julgamento e às punições, que variam entre admoestações, pagamentos de multas, prisões e até degredo.

Os crimes julgados por este Tribunal localizavam-se no livro V das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, destacando-se os pecados da carne - sodomia, bestialidade, molície -, além dos crimes de simonia, sacrilégio, perjúrio, falsificação, usura, adultério, incesto, estupro e rapto, concubinato, alcouce, homicídio e furto (Muniz, “O juízo eclesiástico do Maranhão colonial”). Nesse caso, todos os cristãos batizados, inclusive os indígenas, estavam sujeitos às denúncias e ao julgamento perante o foro eclesiástico, pois, como cristãos, deviam apresentar as mesmas obrigações e cumprir todos os sacramentos católicos.

Nesse sentido, a jurisdição dos Tribunais Episcopais incidia em razão das pessoas (ratione personae) e da matéria (ratione materiae). Quanto à pessoa, relacionava-se a competência para julgar todos os crimes cometidos pelo clero secular, excetuando alguns (como lesa-majestade e disputas relativas aos bens da Coroa). Quanto à matéria, ou seja, quanto à natureza dos delitos, sua competência era abrangente, incidindo sobre clérigos e leigos (Gouveia, “Os indígenas”; Muniz, Réus de batina).

Desse modo, considerando que os indígenas batizados, assim como os demais leigos, estavam sujeitos à jurisdição do bispo, os documentos eclesiásticos podem revelar detalhes da vida desses sujeitos, tais como a sua inserção na sociedade colonial. Ao tratar da historiografia europeia no âmbito da história religiosa, Jaime Ricardo aponta que, a partir da década de setenta, os trabalhos renovaram-se em profundidade e perspectivas de análise, possibilitando novas abordagens, especialmente no que tange ao desenvolvimento do conceito de disciplinamento social (Gouveia, “Vigilância e disciplinamento” 823).

Apesar dos avanços nos estudos sobre disciplinamento social, nem a historiografia portuguesa, nem a brasileira deram a devida atenção ao funcionamento dos Tribunais Eclesiásticos enquanto instituições de vigilância e disciplinamento social (Gouveia, “Vigilância e disciplinamento” 824). Dessa forma, apesar de ter crescido nos últimos anos o interesse pelo estudo da justiça eclesiástica diocesana, no geral, ainda é bastante incipiente a atenção conferida ao assunto por parte das historiografias portuguesa, brasileira, espanhola e italiana. A escassez é ainda mais notória em relação à dinâmica entre a justiça eclesiástica diocesana e as populações indígenas (Gouveia, “Os indígenas” 192).

O estudo das mulheres indígenas e nativas a partir da documentação do bispado do Maranhão mostra-se inovador, pois, contrariamente à visão construída pela historiografia tradicional, a documentação do acervo eclesiástico aponta para o protagonismo das mulheres indígenas na sociedade do Maranhão colonial. As denúncias trazidas até o Tribunal Episcopal são uma fonte inestimável para evidenciar o grau de inserção destas mulheres na sociedade, bem como a “resposta” das mesmas à ordem colonial e ao processo de cristianização, ajudando, com isso, a construir uma narrativa ainda pouco conhecida da Amazônia colonial.

Contudo, as fontes eclesiásticas, se não observadas com o devido cuidado, parecem, à primeira vista, demonstrar uma desordem social gerada pela promiscuidade do intercurso sexual fácil e fortuito cometido pela grande massa de homens e, notadamente, mulheres marginalizadas no mundo colonial.

A visão de uma colônia assinalada pelo desregramento sexual desde os primeiros contatos entre indígenas e europeus foi o ponto central de uma narrativa que buscou entender a formação da sociedade brasileira pela miscigenação. As análises sobre as diferentes dimensões da mestiçagem, por exemplo, são centrais desde as primeiras reflexões sobre a “história nacional” elaboradas no século XIX (Garcia 27-44). Desse modo, de maneira quase natural, ao encontro das índias teria seguido o enlace com as negras, depois com as mulatas e assim se formaria o povo brasileiro (Vainfas, “Moralidades brasílicas” 229).

Porém, trabalhos recentes buscam apontar outros papéis vividos por essas mulheres, que, durante muito tempo, permaneceram incluídas em estereótipos produzidos pelo olhar europeu e projetados pela historiografia nacional. Longe de negar a violência do contato, o que se busca é inserir, a partir dos dados encontrados na documentação, outros significados sobre ser uma mulher indígena na sociedade, mais particularmente ser uma mulher indígena na Amazônia colonial (Conceição; Ferreira; Garcia; Julio, “O recorte de gênero”).

A denúncia formalizada e julgada pelo Auditório Eclesiástico encontra-se no Livro de Registro de Denúncias6, que compõe uma das vinte e quatro séries documentais do Acervo Eclesiástico, dividida em processos civis e criminais. O Livro de Registro de Denúncias, iniciado em 1762 e finalizado em 1782, é considerado um dos mais importantes documentos para se avaliar como o Auditório Eclesiástico procedia mais objetivamente em alguns processos que se iniciavam com a denúncia do promotor ou do meirinho, cobrindo várias localidades do bispado (Muniz, Réus de batina 84).

A partir da denúncia de Alcouce levada ao Auditório Eclesiástico, se buscará evidenciar o grau de atuação das mulheres indígenas na sociedade do Maranhão colonial, as estratégias de sobrevivência e as respostas dadas aos poderes que buscavam controlar seu corpo e comportamentos. Assim, as indígenas encontradas na documentação eclesiástica destoam dos lugares estereotipados construídos na historiografia, pois onde houve oportunidade, houve ação das mulheres para, dentro do possível, controlar suas vidas (Julio, “O recorte de gênero” 1-12).

Indígenas e mestiças sob as malhas da justiça eclesiástica do bispado do Maranhão: desconstruindo estereótipos

No dia 11 de fevereiro de 1765, o Tribunal Eclesiástico, por meio do seu meirinho, iniciou uma acusação de alcouce contra a cafuza e a forra, Lourença, na cidade de São Luís, sede do bispado do Maranhão. De acordo com a denúncia, Lourença “que morava na Praia Grande, em uma loja das casas dos Monteiros, que tem alugada por sua conta”, consentia “desonestar-se várias mulheres com vários homens” (APEM, Ec, 212, f. 73 v.). No início da denúncia, duas outras mulheres são citadas juntamente com seus parceiros: a mameluca Brígida, que se encontrava presa, e o Sargento José Pinto, assim como a mameluca casada Cizília e Inácio José Gomes de Sousa. Ao final da denúncia, o meirinho enfatizava que “provado o que basta, proceder contra a denunciada com todos os passos civis e crimes para a sua emenda” (APEM, Ec, 212, f.73 v.).

A prostituição era um fenômeno social adaptado às sociedades modernas e por essa razão um fato comum na vida de homens e mulheres. De acordo com Vainfas, em Portugal, a prostituição pareceu ser o caminho natural das “mulheres violadas”, pois a legislação portuguesa dispunha, em caso de defloramento, a reparação pelo casamento apenas se a mulher gritasse “Fuão me fez isso”, apontasse o local, o culpado e mostrasse as “partes corruptas”. Se o acusado se encontrasse no local, ficaria provado o crime, salvo se pudesse dar provas de sua inocência (Vainfas, Trópico dos pecados 70).

Na Europa, a prostituição seguiu o processo de urbanização medieval e floresceu pujante:

Na França, qualquer aglomeração de certa importância possuía o seu prostibulum, além de casas de banho e outros lugares onde celibatários, padres e homens casados iam buscar os deleites do sexo com prostitutas ou mulheres disponíveis. Na Espanha, bordéis se alternavam com a prática da alcahuetería (alcovitice), na qual lucravam as celestinas - feiticeiras, alcoviteiras e rufionas a um só tempo. Na Veneza do século XVI erigiu-se uma verdadeira civilità puttanesca, pelo prestígio e pela abundância de suas cortesãs, apreciadas em toda a Europa. E também em Portugal, ainda na Idade Média, a prostituição “gozava de alto valor, merecendo a tolerância e a complacência de toda uma sociedade”. (Vainfas, Trópico dos pecados 70)

Embora houvessem leis restritivas, a prostituição gozava de proteção municipal. Além disso, foi considerada pelos teólogos um crime menor em comparação ao adultério, pois, desde o século XIII, os textos de São Tomás de Aquino e Santo Agostinho justificavam que a prostituição era garantidora de uma boa ordem familiar, defendendo as esposas, donzelas e as religiosas contra os desejos masculinos vivenciados em bordeis, casas de alcouce ou prostíbulos (Del Priore; Vainfas, Trópico dos pecados).

No entanto, a luta da Igreja cristã no movimento da Contrarreforma do século XVI teve como objetivo promover o núcleo familiar como o eixo irradiador da moral cristã, incentivando a multiplicação das famílias dentro do ideal da Igreja católica. Conforme explicita Mary del Priore, a busca por parte das autoridades eclesiásticas e civis para transformar o casamento cristão na única forma de sexo lícito, criou uma representação ideal da mulher para casar, baseada na continência, castidade e submissão, ou seja, a mulher pura, identificada com a Virgem Maria. Tal construção ideológica foi, ao mesmo tempo, útil para a edificação do seu extremo oposto: a prostituta representando uma alternativa à imposição da sexualidade cristã (Del Priore 32).

O discurso moralizador cristão sobre o casamento e o controle de corpos instalou-se na América portuguesa dentro de um modelo normatizador que buscou implantar a família e a fé católica no projeto português. No entanto, considerando a norma e a realidade colonial, os comportamentos desviantes, tais como a prostituição, foram considerados uma ameaça aos ditames católicos. Com isso, sofreram, devido à vigilância da Igreja, denúncias no Tribunal Episcopal do bispado do Maranhão.

Os estudos de pesquisadores como Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre destacaram a prostituição como um fenômeno de grandes proporções na colônia, especialmente pela justificativa da escravidão. Caio Prado, em sua obra clássica, “A formação do Brasil contemporâneo”, baseando-se nos relatos de viajantes do século XIX, construiu a imagem de uma completa irregularidade dos costumes sexuais na colônia. De acordo com o autor, a prostituição era o destino de boa parte do contingente feminino em oposição à vadiagem, construído ao polo masculino. Desse modo, a função específica da mulher escravizada foi servir de “instrumento de satisfação de seus senhores e dominadores” e por isso não ultrapassaria “o nível primário e puramente animal do contato sexual” (Prado Júnior 340-354).

O trabalho de Gilberto Freyre endossou a vinculação entre prostituição e escravidão africana, principalmente ao abordar o aspecto exploratório da prostituição das escravizadas pelos senhores:

Atribuem alguns cronistas da escravidão grande importância à prostituição das negras; mas das negras e mulatas exploradas pelos brancos. La Barbinais afirma que até senhoras se aproveitavam de tão nefasto comércio. Enfeitavam as molecas de correntes de ouro, pulseiras, anéis e rendas finas, participando depois dos proventos do dia. (Freyre 537)

No entanto, as fontes eclesiásticas do bispado do Maranhão assinalam os novos caminhos das mulheres acusadas de prostituição. Esses estudos podem contribuir para esclarecer partes ainda ocultas e desconstruir um olhar exclusivamente masculino e misógino da história, reforçador, ainda, de estereótipos que atribuem às mulheres apenas papéis secundários e invisibilizados. Assim, os dados levantados na documentação perpassam pelos conflitos e negociações que expandem as experiências das mulheres indígenas e mestiças na sociedade colonial.

As constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia estabeleceram o alcouce como “crime [...] detestável e péssimo e gravemente aborrecido por direito, por ser o princípio de toda a desonestidade, pois por meio de pessoas que alcovitam mulheres e as dão em sua casa a homens, perdem muitas a castidade e a honra” (CPAB 344).

A denúncia do Auditório Eclesiástico contra a cafuza Lourença reuniu cinco testemunhas, todos homens, como Bento Garcês, alcaide do Juizado Geral, que dizia conhecer a denunciada “moradora na Praia Grande, em uma loja da casa dos Monteiros” e sabia ser casa de alcouce. Manuel José Joaquim, outra testemunha, “ouve dizer que mora com os Monteiros, mas não sabe dizer se tem as casas alugadas ou é criada dos dito Monteiro”. Já a testemunha Antônio Francisco julgava que a loja era alugada “por serem casas de aluguel”, e, nesse sentido, também testemunhou Guilherme José que “sabe pelo ver que mora na loja dos Monteiros na Praia Grande que estão alugadas” (APEM, Ec, 212, ff. 74 r., 75 v.).

O fato de Lourença ocupar e/ou alugar uma loja na Praia Grande assinala um aspecto comum nas denúncias de casas de alcouce: a dupla funcionalidade que possuíam, pois cultivavam uma atividade comercial e, de forma paralela, sustentavam a prostituição. Ao refletir sobre a atividade das casas de alcouce do século XVIII na sociedade mineira, Figueiredo inferiu que as mulheres vendeiras ocuparam um espaço considerável nas preocupações da administração colonial e também da Igreja. Assim, um pequeno tribunal itinerante do bispado em várias cidades mineiras encontrou mulheres vendeiras que travestiam atividade comercial em prostituição nos seus estabelecimentos (Figueiredo 126). De acordo com Del Priore, as casas de alcouce de Minas Gerais e São Paulo colonial exerciam função simultânea de vendas de comida e bebida (Del Priore 32).

Um fato que não foi posto na denúncia, mas pode ser levantado, refere-se à conveniência e conhecimento da família Monteiro com o destino da loja ocupada por Lourença. Além disso, uma casa de alcouce na Praia Grande, considerado um dos locais mais importantes e adensados da cidade de São Luís desde o século XVII (IPHAN 44), permite compreender que esses ambientes não se situavam apenas em lugares afastados, mas podiam aproximar-se de residências, igrejas e locais onde funcionava a administração civil. Dessa forma, assim como o concubinato, a prostituição apresentava-se como uma ameaça à ordem social instalada que trazia na família e no casamento cristão monogâmico e indissolúvel os seus elos estruturais.

Além da denúncia inicial do Auditório Eclesiástico ter nomeado a cafuza Lourença e as mamelucas Brígida e Cizília, as testemunhas também citaram a cafuza Antônia e a mameluca Cipriana. As qualidades e o status jurídico dessas mulheres nos permitem aproximá-las de uma ascendência indígena. Ademais, a própria qualificação admite posicionar tais mulheres no mundo do trabalho colonial identificando-as como o elemento estável da sociedade colonial.

O status jurídico de Lourença foi determinado como “forra”, o que nos leva a compreendê-la como uma mulher indígena, pois o termo forro na Amazônia Colonial referia-se aos indígenas livres e não libertos que poderiam, ou não, ter passado pelas fileiras da escravidão (Chambouleyron e Bombardi; Ferreira).

Os elementos na documentação pertinentes a Cizília também indicam uma ascendência indígena, pois dois testemunhos a qualificaram como “mameluca que foi do serviço da defunta Inácia Pereira” e “mameluca Cizília, forra pela lei” (APEM, Ec, 212, f. 76 v.). Na Amazônia colonial, a expressão “que foi do serviço” também se referia aos indígenas inseridos no mundo do trabalho, especialmente após a aplicação da Lei de liberdade de 1755. O mesmo se dá com a qualificação da cafuza Antônia em “forra pela lei e do serviço de Mariana Frois” (APEM, Ec, 212, f. 74 r.). Pode-se, a partir desses elementos, compreender que as denunciadas sofreram um triplo estigma: eram mulheres, indígenas e prostitutas.

Quanto às duas outras mulheres, as mamelucas Brígida e Cipriana, embora a documentação não aponte outros elementos que permitam identificar uma ascendência indígena, possivelmente se possa confirmar que eram mulheres mestiças na sociedade do Maranhão colonial e, como tais, desclassificadas socialmente.

No entanto, mais do que descrever a prostituição como um fenômeno social, buscaremos apreender o sentido dessa prática para as mulheres denunciadas no Tribunal Episcopal, pois, em um espaço no qual não estavam excluídas do mundo do Trabalho, algumas voltaram-se para a prostituição. Dessa forma, importa questionar: por que abandonaram seus ofícios ou os exerciam paralelamente com o meretrício? Quais vantagens poderiam adquirir nesta atividade? Que negociações estavam em jogo para a sua sobrevivência na sociedade colonial?

De acordo com os testemunhos obtidos no Auditório Eclesiástico, a mameluca Cizília também assistia na casa, “desonestava-se com vários homens” e era conhecida “como mulher mal procedida na matéria da lascívia” (APEM, Ec, 212, f. 77 r.). Contudo, diferentemente das demais mulheres expostas na denúncia, pesava contra Cizília o fato de ser “casada com o cafuzo Aleixo que se tinha ausente”.

As expressões que marcavam um estado conjugal de Cizília e Aleixo apenas na formalidade confirmavam que “não fez vida com seu marido”, “vive ausente do seu marido” e “vive forra do seu marido” (APEM, Ec, 212, ff. 74 r., 76 v., 76 r.). Mesmo que não tenha sido a intenção da testemunha Antônio Francisco Lima Pereira Guimarães, ao ser inquirido, a expressão “forra do seu marido” faz uma analogia singular entre casamento e escravidão, levando ao entendimento de que o comportamento de Cizília, mesmo desviante aos olhos da Igreja, representava uma expressão de liberdade.

Nesse caso específico, o casamento empreendido não promoveu vantagens no aspecto relacionado às obrigações devidas com o matrimônio, como o sustento. Dessa maneira, diferentemente de outras mulheres que puderam obter vantagens com o casamento cristão, Cizília pode ter procurado a prostituição por razões de sustento, evidenciando que muitas mulheres, à custa de seu trabalho, eram as mantenedoras da própria sobrevivência. Além disso, o fato de ser “forra da lei” desconstrói a ideia de que a prostituição era um destino imposto, especialmente na relação entre senhores e escravizadas. Ao que parece, Cizília garantiu seu próprio sustento decidindo a atividade que, mesmo casada, exerceria.

A fonte não esclarece as justificativas da ausência de vida conjugal, porém podemos entender que a mobilidade da mão de obra masculina, em razão das atividades, tais como as entradas nos sertões, podem justificar o motivo do contingente feminino ser mais expressivo nas povoações. O autor Almir Diniz compreende que a ausência constante dos homens indígenas, causada pela mobilidade das atividades em que eram explorados, acabou por criar um mundo de mulheres (Carvalho 311). Assim, seja pelas condições ou não do cotidiano, as mulheres indígenas passaram a ter um papel ativo e essencial na sociedade colonial.

A mameluca Brígida também foi citada na denúncia por andar publicamente em tratos ilícitos com o sargento José Pedro, um “homem casado”. Nesse caso em questão, houve até a intervenção de autoridades civis, pois, segundo as testemunhas, Brígida encontrava-se presa “por ordem do governador”, enquanto o sargento, que também havia sido preso, já estava em liberdade7 (APEM, Ec, 212, f. 75 r.). A perseguição ao ofício da prostituição pode ser justificada pela ação da Igreja na implantação do casamento cristão. Mary Del Piore entende que “mais do que perseguidas por seu ofício, as meretrizes, como as encontramos definidas nos processos do século XVIII, são perigosas por engendrar uma prole ilegítima [...] porque contrariava o ideal da “pureza do sangue” (Del Priore 36)

No entanto, a prostituição poderia ser alvo de perseguições a partir do instante em que ameaçasse a ordem social estabelecida, não apenas pela Igreja, mas também pelo Estado. Ao esclarecer a repressão da prostituição nas Minas Gerais colonial, Figueiredo considera que:

O que aparentava ser uma preocupação com vício e devassidão, digno de repreensão e moralmente condenável, não escondia aquilo que verdadeiramente incomodava as autoridades em um século cravejado de tensões e conflitos cotidianos sob uma ordem política extremamente instável. (Figueiredo 126)

Dessa forma, em um ambiente marcado por uma grande diversidade social e jurídica do público frequentador, pois, de acordo com a denúncia, não só o Sargento José Pedro e o estudante Inácio José Gomes de Sousa visitavam o estabelecimento, mas também se desonestavam “vários negros e negras”. Assim, as condições propiciaram a criação de um espaço afastado dos ditames estatais e cristãos, gerando a preocupação das autoridades. Além disso, a notoriedade dos tratos ilícitos entre a mameluca Brígida, mulher desqualificada socialmente, e o sargento José Pedro, pode ter levado à decisão do governador pela prisão dos dois, embora no momento da formalização da denúncia apenas Brígida permanecesse presa.

Os testemunhos também assinalaram que Antônia, cafuza forra da lei, do serviço de Mariana Frois, também foi vista na casa de alcouce, sendo “notoriamente mal procedida”. O fato de Antônia estar inserida no mundo do trabalho e mesmo assim fazer da prostituição um ofício paralelo, contraria à percepção posta por Figueiredo nas Minas Gerais do século XVIII, no qual o binômio: exclusão do mundo do trabalho-miséria teria sido um dos indicadores da quantidade de mulheres que exerciam a atividade do meretrício (Figueiredo 134). Com isso, não queremos afirmar que as mulheres exploradas economicamente não viviam em condições precárias, mas buscar compreender o sentido da prostituição para uma mulher indígena já inserida no mundo do trabalho.

A prostituição pôde ser considerada uma opção além do casamento, concubinato ou exploração econômica, garantindo maior autonomia dessas mulheres em escolher suas próprias atividades. A autonomia de Lourença a levou a ocupar uma loja, que, paralelamente a atividade comercial, promovia a prostituição, rendimentos que talvez pagavam os custos do aluguel e poderia dar a ela condições de sobrevivência. Dessa forma, as mulheres comumente alugavam quartos ou casas, e misturavam o ocasional ofício do meretrício com outras atividades (Del Priore 41).

Provavelmente, a atividade garantia vantagens materiais além de propiciar a criação de sociabilidades entre essas mulheres que garantiam seu próprio sustento, bem como de seus filhos e demais familiares em uma sociedade na qual eram triplamente estigmatizadas. Essas mulheres eram inferiorizadas, além do gênero e da qualidade, como “desonestas” e “mal procedidas”, reafirmando a inferioridade nos processos eclesiásticos.

Uma testemunha ainda apontou que Lourença era conhecida por levar “recados de homens para mulheres e destas para aqueles” (APEM, Ec, 212, f. 77 r.). Por vezes, os encontros sexuais eram favorecidos pela prática da alcoviteira, ou seja, homens e mulheres que se dedicavam a facilitar as condições para o intercurso sexual. As práticas desses sujeitos eram diversificadas, pois “podiam oferecer sua própria casa para isso ou somente passar bilhetes e cartas em que detalhes do encontro seriam acertados, tirando daí algum ganho” (Figueiredo 133).

No dia 13 de fevereiro de 1765, o Vigário Geral João Rodrigues Covette formulou a cominação da pena. Estabeleceu que “obrigam as testemunhas desta denúncia que seja presa a cafuza Lourença forra, por ter casa de alcouce, consentindo que nela se desonestem homens com mulheres” e também as custas do processo (APEM, Ec, 212, f. 78 v.). A pena de prisão obedecia, em parte, às Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que situava para o crime de alcouce:

Qualquer pessoa, seja homem ou mulher, que for convencida de dar mulheres a homens, consentindo que com elas pequem em sua casa, ou em outra, ou que as solicitar, ou induzir por qualquer via, que seja para pecarem com homens, pela primeira vez seja presa, e condenada em dez cruzados e dois anos de degredo para fora do arcebispado. (CPAB 344)

A prostituição, embora sofresse com a vigilância da Igreja e a repressão do Estado, também foi uma estratégia de sobrevivência para as mulheres indígenas e mestiças da sociedade maranhense colonial e uma opção para além do casamento cristão. Os ditames morais cederam lugar ao cotidiano de exploração enfrentado por elas, pois muitas eram mantenedoras do seu próprio sustento. Assim, a presença das mulheres em diversos espaços da sociedade colonial demonstra a sua participação ativa, promovendo estratégias e negociações em meio às tensões e conflitos presentes.

Conclusão

A estrutura repressiva do bispado do Maranhão funcionou a partir do Tribunal Episcopal - ou Auditório Eclesiástico -, responsável por processar e julgar os comportamentos contrários aos preceitos da Igreja católica de todos os paroquianos, incluindo os indígenas. A denúncia de alcouce presente no Livro de Registro de Denúncias do bispado do Maranhão permite entrever algumas discussões e compreensões que vão na contramão do que a historiografia, baseada especialmente nos relatos missionários, construiu acerca das mulheres indígenas na sociedade colonial.

Respeitando os limites da documentação apresentada, pode-se compreender que a prostituição poderia se revelar como uma alternativa ao casamento cristão ou exploração da mão de obra prevista nas leis indigenistas. Além disso, pode-se conjecturar que a prostituição, longe de apresentar um padrão único de comportamento, também favorecia que essas indígenas e mestiças alcançassem certa mobilidade social que dificilmente conseguiriam sendo uma mulher indígena e obrigada ao trabalho na Capitania do Maranhão.

Dessa forma, embora a análise tenha se baseado apenas em uma acusação levada ao conhecimento do Auditório Eclesiástico, pode-se observar que as indígenas, apesar da imposição da moral cristã, responderam, na prática, às estruturas coloniais por seus próprios termos, gerando uma necessidade de maior controle e repressão dos poderes constituídos.

Lourença, assim como Brígida, Cizília, Antônia e Cipriana decidiram, dentro dos limites, viver a partir de suas próprias regras, participando de forma ativa da formação e transformação da sociedade colonial. Com esta análise, não queremos negar o processo extremamente violento que envolveu as nativas, porém afirmar que, manter uma realidade exclusiva, é manter a continuidade da sua invisibilidade historiográfica, pois esses papéis construídos não dão conta de toda a complexidade que essas mulheres viveram na sociedade colonial.

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2O uso do termo leigo reside na preocupação em diferenciar a população comum dos eclesiásticos. Por leigos, enquadram-se homens e mulheres, livres ou escravos, brancos, africanos ou indígenas de todas as idades e procedências, mas que receberam o sacramento do batismo e por isso faziam parte da comunidade católica (Muniz, Réus de batina 415).

3O bispado do Maranhão possuía, desde a sua criação, jurisdição sobre todos os índios batizados não aldeados. Com a reforma pombalina, a jurisdição é ampliada, pois os aldeamentos são extintos e substituídos por vilas e lugares. Sobre a formação das vilas de índios e lugares na Capitania do Maranhão, ver Dornelles (308-327).

4O Estado do Maranhão e Grão-Pará foi instituído em 13 de junho de 1621 pela Coroa Portuguesa em unidade administrativa separada do Estado do Brasil e ligado diretamente a Portugal. Compreendia as capitanias do Piauí, Maranhão, Grão-Pará e Rio Negro, hoje Amazonas. Por resolução régia, em 1652, o Estado do Maranhão foi dividido em duas capitanias: a do Maranhão e do Grão-Pará. A partir de setembro de 1751, com a redefinição de novas estratégias de defesa e colonização para a região Amazônica, a capital passa a ser Belém e o Estado passa a se denominar Estado do Grão-Pará e Maranhão (Mota 37-38).

5O Diretório Pombalino, publicado em 1757, substituiu o Regimento das Missões, vigente desde 1686. O Regimento das Missões foi uma síntese de diversos interesses que gravitavam em torno da questão indígena como as ordens missionárias, a diocese do Maranhão, os indígenas e os interesses da Coroa.

6Com o objetivo de facilitar a leitura ao longo do texto, atualizou-se a linguagem das fontes transcritas para o português contemporâneo.

7Considerando que o ano da denúncia de alcouce data de 1765, o governador da Capitania do Maranhão era o sobrinho distante do marquês de Pombal, Joaquim de Mello e Póvoas.

1Possui Graduação em História (2019) e Direito (2011) pela Universidade Federal do Maranhão, mestrado em História pela Universidade Federal do Maranhão (2022). Doutoranda em História na Universidade Federal do Maranhão. Integrante do grupo Indígenas na História do Maranhão (IHMA) da Universidade Federal do Maranhão e colaboradora do projeto “Vilas indígenas na Amazônia pombalina”.

Recebido: 27 de Fevereiro de 2023; Aceito: 05 de Julho de 2023

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