INTRODUÇÃO
Os produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes são considerados preparações que possuem substâncias naturais ou sintéticas, sendo utilizadas para diversas partes do corpo com a finalidade de proteção, limpeza e embelezamento [1].
Segundo a Resolução n° 211/05 da Anvisa os produtos cosméticos que contém ácido glicólico se enquadram na categoria de produtos de grau 2, ou seja, são produtos que possuem risco em potencial, sendo necessário comprovação de segurança ou eficácia, além de orientações e cuidados com o seu uso [1].
A pele é um órgão que possui três camadas de tecido (figura 1): a epiderme (superior) constituída de epitélio estratificado pavimentoso; a derme (intermediaria) formada de tecido conjuntivo (vasos, nervos, fibras de colágeno e elastina); e a hipoderme (profunda) composta de tecido gorduroso [2].
A pele tem funções de proteção constituindo uma barreira física contra atrito, microrganismos, desidratação e raios ultravioletas. Esse órgão ao mesmo tempo atua na ter-morregulação do corpo humano prevenindo a perda de líquidos e a penetração de substâncias exógenas [3].
O ácido glicólico (figura 2) obtido a partir da cana-de-açúcar, é o alfa-hidroxidoácido (AHA) de menor massa molar entre os representantes dessa categoria [4, 5]. A figura 2 representa a estrutura química do ácido glicólico descrito como Ácido 2-hidroxiacetico, possui alta solubilidade em água e em etanol, sendo o AHA mais utilizado em formulações dermocosméticas, uma vez que seu reconhecimento na prática dermatológica já foi bem estabelecido [6, 7].
Por ser tratar de uma molécula pequena, o ácido glicólico penetra facilmente na pele e por isso é aplicado para o tratamento estético e dermatológico em formulações antirrugas também conhecidos como anti-aging, esfoliantes químicos (peeling), agindo na descamação, melhorando a suavidade e proporcionando emoliência da pele [8]. Além de ser indicado para diferentes finalidades terapêuticas como a queratose seborreica, acne, verrugas, queratose actínica, manchas senis, envelhecimento cutâneo, melasma eoutros problemas relacionados a pele [9].
Alguns pesquisadores recomendam o uso de ácido glicólico tamponado ou parcialmente neutralizado, que é mais segura do que a empregar ácido glicólico livre (não ionizado). O pH de uma solução não tamponada varia de 0,08 a 2,75, assim quanto maior a concentração e menor o pH, mais intenso será a descamação da pele (efeito peeling) [4], ou seja, a biodisponibilidade do ácido glicólico depende da concentração do pH que está sendo empregado na formulação [10].
Apesar da importância e da prevalência de ácido glicólico e outros AHAs, o mecanismo pelo qual ele atua na renovação celular ainda não é bem esclarecido, pouco se sabe sobre como AHAs causam esfoliação química que induz a produção células novas. Foi relatado a ocorrência de um receptor transitório vaniloide 3 (TRPV3), que é um canal nos queratinócitos o qual é potentemente ativado por acidificação intracelular oriunda do ácido glicólico ou de outro AHA e essa acidificação, por sua vez, promove a morte dos queratinócitos fazendo com que ocorra renovação celular [11].
A figura 3 ilustra outro possível mecanismo de ação do ácido glicólico na renovação celular dérmica:
Uma teoria para o mecanismo de ação de AHAs aplicado topicamente é proposta com base em uma análise com os dados experimentais e clínicos. Os AHAs reduzem a concentração de íons de cálcio da epiderme e das junções celulares por mecanismo de quelação. As junções celulares dermossômicas permanecem firmemente ligadas quando na presença de íons cálcio e outros íons divalentes. As adesões celulares quando interrompidas, resultam em descamação. A descamação é reforçada pela clivagem da enzima quimotripética do estrato córneo endógeno nas caderinas desmossomais, que conjugadas aos íons cálcio ficam protegidas da proteólise. Portanto, a diminuição do nível de íons de cálcio na epiderme tende a promover o crescimento celular e retardar a diferenciação celular, dando origem a uma pele mais jovem. Devido a essa propriedade dos AHAs sugere que seja necessário tomar cuidado com o uso excessivo e crônico desses compostos [13].
Considerando a grande utilização das AHAs e seus derivados em produtos cosméticos a Câmara Técnica de Cosméticos (CATEC) recomenda concentração máxima permita em produtos cosméticos, limitada a 10%, calculada na forma ácida, e pH maior ou igual a 3,5, além das recomendações de uso e precauções na rotulagem do produto [14].
É importante tomar os cuidados necessários com a utilização desses cosméticos, principalmente pessoas com pele sensível, uma vez que, as ações dos ácidos podem causar eritema, inchaço, queimação, coceira, descoloração da pele. Além disso, a pele pode tornar-se sensível aos raios ultravioletas sendo necessária a utilização de um cosmético com foto proteção [9].
Tendo em vista as inúmeras aplicabilidades desses produtos contendo (AHAs), é de grande importância realização de testes de controle de qualidade, para a garantia de que os níveis de ácido glicólico estejam em conformidade com os critérios estabelecidos pela Anvisa [14] a fim de proporciona segurança e eficácia aos usuários que utilizam esses cosméticos.
Sendo assim, o objetivo deste trabalho foi avaliar a qualidade dos produtos cosméticos contendo ácido glicólico disponíveis no comércio nacional. Para isso, foram realizados o teste da análise do rótulo, das características organolépticas dos produtos, determinação do pH, teste de centrifuga e do doseamento do ácido glicólico.
MATERIAL E MÉTODOS
Foram utilizadas oito amostras de produtos cosméticos contendo ácido glicólico. Das 8 adquiridas, 6 eram semi-sólidas sendo classificadas em (ASS1, ASS2, ASS3, ASS4, ASS5 e ASS6) e 2 eram líquidas (AL7 e AL8).
Os reagentes utilizados nos ensaios analíticos foram: água destilada, previamente purificada pelo sistema de purificação de água Quimis* modelo Q-341-25, etanol (EtOH) 95% Dinâmica* e solução de hidróxido de sódio 0,1N.
Os ensaios analíticos empregados na avaliação da qualidade dos produtos cosméticos foram realizados de acordo com o parecer técnico n° 7 de 2001 [14], Guia de controle de qualidade de produtos cosméticos [15], Guia de estabilidade de produtos cosméticos [16] e como preconizado por Henriques etal. [7] encontram-se descritos abaixo:
Análise do rótulo
Foram examinados os rótulos de cada amostra, dando ênfase nos itens relacionados a concentração máxima, data de fabricação e validade, modo de uso e advertências que devem constar no rótulo de acordo com a legislação vigente [14].
Análise organoléptica
Esta análise foi realizada com auxílio de uma lupa, sendo observados o aspecto, cor, textura e aparência de cada amostra. Além do odor, possibilitando o reconhecimento primário do produto [15].
Determinação do pH
Foram realizadas leituras em triplicata para cada amostra, utilizando medidor de pH de bancada (modelo UB-10 - Denver Instrument*) devidamente calibrado com a solução-tampão de pH 4,0 e 7,0. O pH foi determinado através da imersão do eletrodo diretamente nas amostras. Após a obtenção dos resultados, foram calculadas as médias aritméticas e os desvios-padrão (DP) de cada amostra [15].
Teste de centrífuga
As amostras testadas nesta análise foram às formulações semissólidas, utilizando a centrífuga de bancada (Centribio*). Foram pesados 1 g de cada amostra em balança analítica (Shimadzu Ay 220) e colocados em tubo de ensaio a 3000 rpm durante 30 min [16].
Doseamento do ácido glicólico
Conforme o método descrito no Guia de controle de qualidade de produtos cosméticos o teor do ácido glicólico foi determinado por titulação de neutralização ácido-base, que é baseada na reação completa entre um ácido e uma base (reação de neutralização).
Para cada amostra pesou-se 1g do creme ou solução líquida. Em seguida, foram adicionados 50 mL de uma solução EtOH:H2O (1:1, v/v) homogeneizando a solução. Posteriormente, adicionou 3 gotas do indicador fenolftaleína. Logo após, realizou-se a titulação com solução de hidróxido de sódio 0,1 N (fator de correção de 1,05) [7], sendo a análise realizada em triplicata.
Para o cálculo do teor do ácido glicólico, utilizou-se a equação 1 descrita abaixo, conforme recomendado no Guia de controle de qualidade de produtos cosméticos [15].
Em que: C = concentração (p/p) de ácido glicólico, V = volume de hidróxido de sódio 0,1 N gasto, em mililitros (mL), Fc = fator de correção do titulante, e m = massa da amostra em gramas (g).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Análise do rótulo
A análise do rótulo foi realizada em todas as oito amostras dos produtos cosméticos contendo ácido glicólico.
De acordo com o parecer técnico n° 7 de 2001, nos produtos de grau 2 contendo AHAs e seus derivados enxaguáveis deve estar descrito para não aplicar na região dos olhos, enxaguar a pele após concluída a aplicação, se houver a ocorrência de efeitos indesejáveis não persistir no uso. Nas primeiras aplicações utilizar pequenas quantidades do produto e em dias alternados, sendo que pode ocorrer sensação de ardor, pinicação ou ressecamento da pele. Além disso, deve constar no rótulo as precauções de manter fora do alcance de crianças, não ingerir, caso entrar em contato com os olhos enxaguar abundantemente, em caso de irritação suspender o uso do produto e procurar orientação médica [14].
Diante de tais recomendações e precauções, apenas as amostras ASS1, ASS2, AL7 e AL8 estão de acordo com parecer técnico da Anvisa. Com relação à amostra ASS3 na bula sugere recomendações de uso, mas não faz menção ao uso de fotoproteção durante o tratamento, bem como outras medidas de proteção em caso de irritação.
No que diz respeito às amostras ASS4, ASS5 e ASS6 trata-se de produtos manipulados adquiridos no mercado nacional, no rótulo não constava nem as recomendações e nem as precauções do uso do produto, apenas alerta para usar conforme orientação médica.
Vale salientar que todas as amostras analisadas continham em sua embalagem o lote ou data de fabricação e data de validade, sendo que todas estavam dentro do tempo de vida útil do produto.
Características organolépticas
Os resultados alcançados nos ensaios organolépticos das amostras analisadas encontram-se na tabela 1.
Amostras | Ensaios | ||||
---|---|---|---|---|---|
Aparência | Cor | Odor | Textura | Aspecto | |
ASS1 | UB | B | LCP | NGA | C |
ASS2 | UO | BG | LC | NGPA | C |
ASS3 | UB | B | LCP | NGA | C |
ASS4 | UB | B | LCP | NGA | C |
ASS5 | UB | B | LC | NGA | C |
ASS6 | UB | B | LC | NGA | C |
AL7 | UB | I | LCP | NGA | V |
AL8 | UB | I | LCP | NGA | V |
UB: úmida brilhosa; UO: úmida opaca; B: branco; BG: bege; I: incolor; LC: leve característico; LCP: leve característica perfumada; NGA: não há grumos e arenosidades; NGPA: não há grumos e há presença de arenosidades; C: cremosa; V: viscoso; ASS1-ASS6: amostra semissólida; AL7-AL8: amostra líquida.
A figura 4 ilustra as amostras analisadas no presente trabalho dispostas em vidro relógio, afim de verificar as características organolépticas.
As formulações analisadas foram avaliadas com relação a cor, aspecto, odor, textura e aparência, conforme a tabela 1. Sendo que, não foram observadas alterações em tais características, como separação de fase, precipitação e turvação.
Em relação à aparência as amostras ASS1, ASS3, ASS4, ASS5, ASS6, AL7 e AL8 apresentaram úmida brilhosa, enquanto a amostra ASS2 mostrou-se úmida opaca.
Já as amostras ASS1, ASS3, ASS4, AL7 e AL8 possuíam odor levemente característico perfumado, sendo que, as amostras ASS2, ASS5 e ASS6 apresentou odor leve característico sem perfume.
Quanto à textura das amostras ASS1, ASS3, ASS4, ASS5, ASS6, AL7 e AL8 não apresentaram grumos e nem arenosidades. Enquanto, a amostra ASS2 não possuía grumos, mas foi possível verificar arenosidade na formulação. Essa arenosidade pode ser devido a presença de argila mencionada como componente secundário da formulação com finalidade de promover a esfoliação da pele.
Considerando que as características do produto têm forte impacto para o consumidor final, a finalidade dessa análise é garantir que eles possuam a qualidade e segurança almejada [17].
Determinação do pH
A análise do pH é de suma importância para a segurança dos consumidores, visto que, o ácido glicólico é um alfa-hidroxiácido e em valores baixos de pH podem causar irritação dérmica [14].
Além disso, a Câmara Técnica de Cosméticos (CATEC) recomenda que em produtos cosméticos contendo AHAs e seus derivados a formulação deve conter pH maior ou igual a 3,5 e menor ou igual a 5,0, para produtos qualificado como produto de grau 2 [14].
No que diz respeito aos produtos cosméticos testados pode-se notar que as amostras ASS2, ASS3, ASS4 e AL8 estão dentro do limite permitido. No entanto, as amostras ASS1, ASS5, ASS6 e AL7 estão com valores de pH abaixo do permitido pela legislação que é de maior ou igual a 3,5 e menor ou igual a 5,0, conforme apresenta a tabela 2.
Considerando que o ácido glicólico tem mais facilidade de penetração na pele do que outros AHAs devido ao tamanho molecular, isso o torna preferível para ser empregado em produtos cosméticos. Assim, o pH da formulação é um parâmetro mais importante do formulado, a literatura cientifica tem mostrado que o pH 3,5 proporciona melhor regeneração celular e que valores abaixo desse valor o ácido glicólico torna-se mais ácido e maior a chance de irritação e lesão da pele [7, 18].
As consequências de um pH abaixo do estabelecido pela Anvisa para produtos cosméticos contendo AHAs e seus derivados podem causar implicações como, eritema, inchaço, queimação, descoloração da pele, dentre outras sequelas [9].
Teste de centrífuga
As amostras semissólidas ASS1-ASS6 foram submetidas ao teste da centrifuga para avaliar a estabilidade física dos cremes, como, precipitação, separação de fases, formação de um sedimento compacto (caking) e fusão das partículas (coalescência) [16].
Ao final do teste as seis amostras semissólidas analisadas mantiveram-se estáveis, não sendo observadas alterações físicas, o que demonstra e apresenta qualidade quanto a esse parâmetro, conforme ilustrado na figura 5.
Doseamento do ácido glicólico
O doseamento do ácido glicólico foi realizado por método titulométrico de neutralização ácido-base, que dependendo da concentração de cada solução um anula o efeito do outro [19]. Sendo assim, é uma análise que procura determinar uma quantidade desconhecida do analito (ácido glicólico) por meio da adição de uma solução titulante de concentração conhecida (NaOH 0,1N), que reage com a substância a qual se pretende determinar a concentração com auxílio de um indicador visual de pH fenolftaleína [20].
Os resultados da análise de teor e desvio padrão do ácido glicólico estão apresentados na tabela 3.
Amostras | Teor de ácido glicólico (%p/p) ± DP* |
---|---|
ASS1 | 2,28 ± 0,17 |
ASS2 | 8,99 ± 0,40 |
ASS3 | 6,42 ± 0,24 |
ASS4 | 5,63 ± 0,83 |
ASS5 | 5,78 ± 0,04 |
ASS6 | 9,23 ± 0,05 |
AL7 | 4,30 ± 0,03 |
AL8 | 5,39 ± 0,17 |
*Média de três determinações ± desvio padrão (DP); ASS1-ASS6: amostras semissólidas; AL7-AL8: amostras líquidas.
Em relação à quantificação do ácido glicólico, observa-se que todas as oito amostras estão de acordo com o especificado na Anvisa, uma vez que permaneceram dentro limite estabelecido de 10% de ácido glicólico em produtos cosméticos [14].
A concentração do ácido glicólico quando utilizado em baixas concentrações 2 a 10% tem finalidade de tratar acne, queratose actínica, hipercromias, rugas. Já em concentrações maiores tem como objetivo o efeito peelings, que estimula a remoção da camada externa da pele e pôr fim à renovação celular da pele [21].
Contudo devem-se tomar certos cuidados com a utilização desse ácido em concentrações maiores principalmente com o tempo de aplicação, pois pode desencadear efeitos indesejáveis, como eritema, hiperpigmentação, cicatrizes hipertróficas, alterações dérmicas, dentre outras consequências [21, 22].
Tendo em consideração todos os testes de controle de qualidade aplicado aos produtos cosméticos contendo ácido glicólico em sua formulação, observa-se que são analises de fácil realização e de baixo custo. Sendo imprescindível sua realização para garantir um produto de qualidade e de segurança comprovada aos consumidores finais.
CONCLUSÃO
Com relação às análises realizadas apenas quatro de oito amostras apresentou pH abaixo do estabelecido pela Anvisa. Quanto à análise de rótulo as amostras manipuladas amostras não constam das recomendações e precauções de uso que são necessários para o produto, enquanto a amostra ASS3 não constava as precauções de uso do produto, como o uso de foto proteção e as medidas de proteção em caso de irritação.
No que se refere às análises de teor as oito amostras foram aprovadas, pois permaneceram dentro do limite de 10% estabelecido pela Anvisa para produtos contendo AHAs e seus derivados.
Portanto, conforme os resultados apresentados ficam evidente a importância da realização do controle de qualidade dos produtos cosméticos contendo ácido glicólico, além de maior fiscalização dos produtos manipulados pela falta de informações no rótulo, para garantir o bem-estar, segurança e eficácia para os consumidores. Além disso, vale ressaltar que o método empregado é simples, de baixo custo, de fácil aplicabilidade e reprodução, podendo ser realizado por farmácias de manipulação no controle de qualidades dos produtos contendo o ácido glicólico.