INTRODUÇÃO
A Organização Pan-Americana da Saúde (2002) preconizou como assistência farmacêutica o conjunto de atitudes, valores éticos, comportamentos, habilidades, compromissos e responsabilidades na prevenção de doenças e promoção à saúde, por meio do uso seguro de medicamentos [1]. Neste sentido, as atividades hospitalares do farmacêutico clínico visam melhorar a eficácia da farmacoterapia, norteando suas ações no uso racional e seguro de medicamentos [2-3]. Uma vez que a intervenção terapêutica no tratamento de enfermidades em ambiente hospitalar apresenta incidência de erros relacionados à prescrição variando de 39 a 74 %, o que implica em maior risco de óbito do paciente [4-7].
Na integração com a equipe de saúde, o farmacêutico desenvolve suas ações de forma a contribuir com o uso correto e racional de medicamentos. Um dos métodos empregados nessa prática é o seguimento farmacoterapêutico (SF), que se pauta em um conjunto de intervenções voltadas às necessidades do paciente no concernente ao uso de medicamentos, mediante a detecção de problemas relacionados a medicamentos (PRM) para a prevenção e resolução de resultados negativos associados aos medicamentos (RNM), devendo estas intervenções ser devidamente documentadas [8-10].
A atuação farmacêutica em hospitais veterinários no contexto internacional, tem-se destacado nos países desenvolvidos da América do Norte, Europa e Oceania, em que a Farmácia Hospitalar Veterinária (FHV) é reconhecida como área de formação profissional. Observa-se que nesses países ofertam serviços estruturados como sistemas de vigilância em saúde com monitoramento de reações adversas a medicamentos no âmbito veterinário [11].
No Brasil, observa-se que as iniciativas para o avanço das atividades de FHV, apesar de incipientes, vem se destacando frente aos países em desenvolvimento, principalmente no que tange sobre o reconhecimento da Farmácia Veterinária como especialidade farmacêutica pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF) [11, 12]. No ano seguinte, a publicação da Lei 13.021/2014 do Ministério da Saúde do Brasil (MS) obrigou as farmácias de qualquer natureza ter a responsabilidade e a assistência técnica de farmacêutico habilitado para seu funcionamento [13].
A Resolução 1.015/2012 do Conselho Federal de Medicina Veterinária não determina que o farmacêutico seja o responsável técnico pela farmácia de hospitais e clínicas veterinárias [14]. Mas a necessidade de formulações farmacêuticas veterinárias adequadas para cada espécie desencadeia a utilização de medicamentos de uso humano. Diante disso surgiu a obrigatoriedade da contratação de farmacêuticos para os hospitais veterinários para a comprovação da responsabilidade técnica, este é um pré-requisito para a aquisição de medicamentos de uso humano, principalmente, aqueles descritos na Portaria n° 344/1998 do MS [15]. É importante ressaltar que o profissional que atua nesse seguimento deve ter visão abrangente, voltada para atender as peculiaridades dos animais, de forma a auxiliar no manejo terapêutico destes pacientes, objetivando o melhor desfecho clínico [11].
Segundo estabelecido pelo Terceiro Consenso de Granada, os PRM resultam em RNM e devem ser classificados, conforme os critérios de utilização dos medicamentos, como necessários, efetivos e seguros [11]. Na medicina humana, os protocolos e recomendações de prevenção dos PRM estão bem definidos [16]. O seguimento veterinário no Brasil, por estar vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), não apresenta propostas de execução voltadas à segurança do paciente. No entanto, Martins et al. (2017), visando a segurança do paciente veterinário que está submetido a um tratamento farmacológico, realizaram um modelo proposto de prescrição hospitalar voltado para uso no âmbito veterinário [17].
Sendo assim, diante da necessidade de se identificar os PRM durante os cuidados farmacêuticos no ambiente hospitalar veterinário, o presente estudo teve como objetivo avaliar a farmacoterapia em um hospital veterinário universitário de uma instituição de ensino superior.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo observacional descritivo de coleta transversal e retrospectivo, baseado na revisão de dados disponíveis nos formulários internos da avaliação técnica das prescrições medicamentosas da divisão farmacêutica de um hospital veterinário do Centro-Oeste brasileiro.
O local onde foi desenvolvido este estudo trata-se de um hospital veterinário de ensino universitário, no qual possui a capacidade de internação de 37 cães e gatos nos leitos de enfermaria, clínica geral e especialidades, doenças infectocontagiosas, urgência e emergência. O hospital oferece atendimento nas especialidades de cirurgia geral, cardiologia, dermatologia, odontologia, ortopedia, oncologia, oftalmologia e neurologia.
A divisão de farmácia hospitalar desta instituição conta com a colaboração de 03 farmacêuticos especialistas, no qual realizam o serviço de triagem técnica e avaliação clínica das prescrições medicamentosas e posteriormente realizam a dispensação dos medicamentos por dose unitarizadas em seringas preenchidas com o medicamento na dose e hora certa a ser administrada pela equipe veterinária.
Todas as prescrições medicamentosas do mês de maio de 2019 foram incluídas neste estudo e enviadas ao serviço de farmácia durante a rotina diária para que fossem triadas e por fim dispensados os medicamentos aos pacientes. Excluiu-se do estudo todas as prescrições que eram destinadas ao recebimento somente de material médico hospitalar. Os dados foram categorizados e analisados e distribuídos por frequência encontrada.
Na tabela 1 está representado o formulário desenvolvido para este estudo que foi utilizado para a coleta de dados. Este por sua vez foi desenvolvido sustentado no Manual de dispensação Farmacêutica 2009, publicado por Iglésias-Ferreira etal. (2009) [18] e nos indicadores para avaliação da prescrição publicado no material adaptado por Martins et al. (2017) à dispensação hospitalar veterinária [17] que se utilizou de ferramentas do Programa Nacional de Segurança do Paciente do ISMP-Brasil [18].
Legenda: *Freq: Frequência de uso, 1. ¿0 medicamento é necessário? 2. ¿0 medicamento é adequado? 3. íA posologia é adequada? 4. ¿0 paciente tem condições de utilizar o medicamento? 5. íA farmácia tem condições de fornecer o medicamento? 6. Dados incompletos quanto à concentração, dose, posologia e/ou via de administração. Preencher com S (sim) e N (não).
Os PRM identificados na triagem foram comparados com as informações obtidas nas bases de dados do Micromedex Solutions* 2.0, versão utilizada na plataforma Sabiá* e o aplicativo Vet Smart*, versão 2013 atualizado em 2019. Após a determinação dos PRM, procedeu-se a classificação quanto aos critérios de necessidade e efetividade segundo o Terceiro Consenso de Granada [19-20] (tabela 2).
Legenda: *Este critério apesar de fazer parte do consenso de Granada, não fez parte do estudo. Devido à inviabilidade de realização do serviço de SF, uma vez que este estudo foi retrospectivo.
Para o processo de discussão foi realizado uma revisão integrativa de estudos de utilização de medicamentos na medicina veterinária nas seguintes bases de dados: PubMed", Scientific Eletronic Library on Line (SciELO) e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), utilizando-se dos descritores: farmácia veterinária, segurança do paciente, problemas relacionados a medicamentos, avaliação de prescrição, medicamentos veterinários e serviços farmacêuticos.
Este estudo utilizou-se de informações disponíveis nos documentos internos do setor de farmácia do hospital veterinário e não envolveu animais nem seres humanos dessa forma não houve necessidade de aprovação do estudo por comitê de ética em pesquisa.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Avaliou-se um total de 188 prescrições de 116 animais, sendo 105 para caninos, 10 para felinos e um para roedor. Um total de 731 medicamentos foram prescritos e, dentre estes, 76,6 % eram analgésicos ou antimicrobianos (tabela 3).
A via de administração mais frequente nas prescrições foi a via parenteral, apesar de que ao se pensar na segurança do paciente deve-se optar por vias não invasivas, quando existem apresentações farmacêuticas indicadas para a via e que a condição clínica permita [21]. No entanto, no âmbito hospitalar veterinário a preferência pela via parenteral nas prescrições é justificada empiricamente pela praticidade na administração do medicamento, por conta das características do perfil do paciente veterinário como, exigir contenção física, morder ou arranhar inesperadamente [17].
Identificou-se nas prescrições avaliadas que 7,1 % não apresentaram descrito a via de administração do medicamento. Vale ressaltar que informar como deverá ser administrado o medicamento é de suma importância na obtenção da eficácia da terapêutica, uma vez que durante a triagem da prescrição esta informação torna-se essencial para efetividade no processo de dispensação e consequentemente na bem como na prevenção de RNM [21].
Partindo-se da premissa de que a prescrição é uma ordem médica ao farmacêutico para a dispensação, ou ao enfermeiro para a administração do medicamento, o fato de 52 prescrições neste estudo não apresentarem a via de administração do medicamento, pode representar um grande risco à segurança do paciente, no que tange à dispensação e administração do medicamento [22-23].
Neste sentido, a inserção da equipe multiprofissional no ambiente hospitalar é uma das formas de se promover a segurança do paciente, sobretudo na medicina veterinária, de forma a evitar tal situação. E ademais, o serviço farmacêutico na avaliação das prescrições é uma das ferramentas da farmácia hospitalar que proporciona formas de se evitar o erro de medicação em até quase 80 % [24-26]. Reis (2013) em seu estudo evidenciou no serviço de farmácia clínica em um hospital para pacientes humanos, que cerca de 933 intervenções foram realizadas por se detectar prescrições com algum PRM [27].
Nunes (2010) percebeu que a implantação do serviço de farmácia clínica realizado por um farmacêutico dentro do serviço de terapia intensiva de um hospital para humanos, houve uma redução de custos para o hospital de R$ 50 000,00 no tratamento dos pacientes. Posteriormente, foram contratados mais quatro farmacêuticos por seis meses que resultou na redução dos custos de R$ 510 000,00. Neste mesmo estudo, notou-se que das 654 notificações de PRM realizadas pelos farmacêuticos do serviço 540 foram consideradas pertinentes e relevantes ao corpo clínico [28].
A posologia é uma informação essencial para que se avalie tecnicamente o uso de mais de um medicamento pelo mesmo paciente, evitando-se assim as potenciais interações medicamentosas (PIM) [17]. Em quase 5 % das prescrições avaliadas neste estudo não foi identificada a posologia (tabela 4). Sabe-se que a ausência de posologia pode levar a inefetividade do tratamento por erros de administração de dose ou até mesmo à intoxicação. Gimenes (2010) verificou que cerca de 18 % de prescrições sem indicação da posologia [21].
Legenda: *Não possuía dados clínicos do paciente, como motivo que levou a internação hospitalar. **Não apresentou escrito a concentração do medicamento, dose, posologia ou via de administração do medicamento, ***PIM: potenciais interações medicamentosas.
Neste estudo identificou-se 4 itens medicamentosos considerados como desnecessários ao tratamento, por conter formulação com duplicidade de fármacos. Desta forma, os resultados corroboram para evidenciar que durante a rotina da dispensação hospitalar, a avaliação correta da farmacoterapia por meio da revisão técnica das prescrições medicamentosas é de fundamental importância na identificação de PRM.
Desses 4 itens em duplicidade, descritos acima verificou-se que estes eram medicamentos compostos por polifarmácia administrada com ampola de glicose 50 %, e mais dois polivitamínicos que continham também glicose, sacarose na sua composição. Em um estudo conduzido por Reis (2013) no hospital para pacientes humanos de ensino encontrou-se cerca de 19 % de medicamentos considerados como desnecessários [27].
O processo de medicação inicia-se com a prescrição médica e que a seleção adequada do medicamento é uma etapa importante da farmacoterapia segura, pois a falha neste processo pode acarretar problemas nas demais etapas [29-30]. Além disso, para a determinação da quantidade de medicamentos prescritos deve-se considerar as necessidades, bem como os potenciais riscos e benefícios da sobreposição de fármacos com igual ação [31-33].
Outra consideração relevante é sobre o número de medicamentos prescritos e a análise do balanço entre potenciais benefícios e riscos em seu uso. A avaliação regular dos esquemas terapêuticos, com foco na adesão, adequação às preferências individuais e identificação de riscos pode minimizar danos e maximizar os benefícios pretendidos [31-33].
Foi evidenciada a prescrição de medicamentos não padronizados e disponíveis para uso, medicamentos não apresentando concentração a serem administradas, posologias inadequadas como dose inferior ou superior ao recomendado como padrão em literatura. A prescrição de medicamentos não padronizados para uso pode influenciar na não adesão terapêutica bem como no atraso e início do tratamento [5,17, 34].
Subtende-se que na elaboração do plano terapêutico o médico veterinário realizou uma decisão fundamentada baseada em evidências científicas. No entanto, antes de realizar a dispensação ou distribuição dos medicamentos é de responsabilidade do farmacêutico do serviço de farmácia hospitalar a triagem técnica e legal da prescrição. E ao se deparar com inconformidades na prescrição, o processo de distribuição e dispensação dos medicamentos, pode sofrer atrasos ou implicar em erros que poderão gerar consequências aos pacientes [5, 34].
Formas alternativas de estratégias para se tornar o uso de medicamentos mais seguros podem ser empregadas durante a prática clínica, como a disponibilização por parte da farmácia ao prescritor de uma lista dos medicamentos disponíveis e padronizados na instituição, informatização da prescrição, programas de educação continuada, etc. [29].
Dos 244 (35 %) PRM identificados, erros na prescrição e medicamentos não padronizados representaram 74,2 %, seguido de dosagens incorretas e duplicidade na terapêutica. Segundo Martins (2017), os PRM mais frequentes no seguimento hospitalar veterinário são os oriundos de erros na prescrição, tais como ausência de tempo de tratamento, forma farmacêutica, tempo e velocidade de infusão do medicamento, concentração do fármaco e via de administração [17]. Por sua vez, Reis (2013) encontrou em seu estudo de avaliação de prescrições como PRM mais frequente os erros de dosagens (46,7 %) [27].
Toda a cadeia da farmacoterapia é de responsabilidade multidisciplinar e como este se inicia com a prescrição, torna os erros nessa etapa como os mais graves, haja vista que podem refletir em toda a cadeia nas unidades hospitalares, afetando a segurança do paciente por meio dos PRM e ocasionando danos à saúde [30, 35-40].
Dos 244 PRM evidenciados neste estudo, 7,8 % representavam PIM, sendo relatadas entre moderada e grave. Reis (2013) em seu estudo evidenciou 7,5 % de PIM nas prescrições avaliadas [27]. A relação das PIM encontradas nas prescrições de acordo com a sua intensidade, efeito provocado e conduta sugerida, estão representadas na tabela 5.
Legenda: PIM: potencial interação medicamentosa RNM: reação negativa ao medicamento
Fonte: Micromedex Solutions® 2.0, versão utilizada através da plataforma Sabiá® e o aplicativo Vet Smart® versão, 2013 atualização 2019.
A interação medicamentosa (IM) pode ocorrer em situações de polifarmácia quando os medicamentos são administrados em associação, podendo esta IM variar de insignificante à potencialmente letal [41-42]. Neste estudo detectou-se uma PIM com intensidade grave e que não se recomenda a combinação dos dois medicamentos. No entanto, é evidente que é necessário não só a identificação de uma PIM. Mas sim a realização do SF, com acompanhamento e monitoramento de exames laboratoriais e clínicos dos pacientes em que se detectou uma PIM, cabendo ao clínico avaliar a necessidade de uso do medicamento.
O âmbito veterinário é escasso de estudos sobre PIM nos pacientes e a maioria das bases de dados disponíveis para pesquisa são relativas a estudos e informações de PIM relatadas em humanos, devendo se considerar a fragilidade das informações obtidas. No entanto, a detecção dessas PIM em uma prescrição já serve de subsídio na triagem da prescrição antes da dispensação e como pré-seleção do paciente para que seja feito a avaliação da farmacoterapia e monitoramento de possíveis aparecimentos de RNM durante o período de internação.
CONCLUSÃO
O presente estudo verificou que no tratamento farmacoterapêutico em um hospital veterinário de ensino, a maioria dos medicamentos prescritos para uso durante o período de internação são analgésicos e antimicrobianos de administração parenteral.
Na avaliação técnica das prescrições sobre uso dos medicamentos, observou-se que apesar de um pequeno percentual, a prescrição de medicamentos considerados pelo critério de triagem como desnecessários e inadequados estiveram presentes. Houve também a detecção de PRM nas prescrições, tais como: erros na prescrição (não apresentou escrito a concentração do medicamento, dose, posologia ou via de administração do medicamento), medicamentos não padronizados para uso na instituição, dose errada do medicamento, PIM e duplicidade terapêutica.
Vale ressaltar que este estudo visou utilizar-se de uma ferramenta de triagem de prescrição, para rastrear e avaliar o processo de uso de medicamentos e identificar PRM. No entanto, durante atividades de serviços clínicos farmacêuticos essas prescrições identificadas com PRM, são selecionadas e o paciente fará parte de outra etapa do serviço não desenvolvido neste estudo que é o seguimento farmacoterapêutico, podendo parte destes PRM identificados nessa primeira avaliação não apresentar significados relevantes.
Sendo assim, as identificações desses PRM neste estudo podem servir de subsídios para implantação de programas de educação continuada direcionadas a prescritores e profissionais da equipe profissional multidisciplinar que atuam na assistência em saúde no âmbito hospitalar veterinário, visando contribuir para o uso correto e seguro de medicamentos durante a farmacoterapia.