INTRODUÇÃO
Diversas fases da vida podem se associar a alterações do processo saúde-doença dos indivíduos, com marcantes modificações nos hábitos de vida e implicações para a saúde, sobretudo no período de transição para a fase adulta [1]. O processo de amadurecimento de adultos jovens apresenta uma série de mudanças e aumento de responsabilidades [2]. Isso pode ser observado principalmente em estudantes universitários, os quais lidam com exigências acadêmicas, necessidade de adaptação às cargas horárias distintas e autodisciplina, em alguns casos acontece concomitante com o trabalho [3], e consequentemente influi em alteração comportamental [1].
Em razão do complexo panorama, têm sido observado um aumento expressivo na prevalência de transtornos mentais [4] em adultos jovens, que direta e indiretamente podem alterar outros condicionantes de qualidade de vida, como a qualidade do sono [1]. Alterações do sono manifestam-se frequentemente em estudantes universitários [5], o que pode ter influência direta no aumento do estresse promovido pela nova rotina [6].
Com o aumento dos transtornos mentais, pode também ocorrer o aumento da busca por agentes os quais minimizam esses sintomas, o que pode justificar a maior prevalência de automedicação em universitários em comparação com adolescentes ou com adultos jovens não universitários [7], além da prevalência de substâncias psicoativas [8]. Dentre essas substâncias destacam-se o consumo de café [9], antidepressivos, hipnóticos/sedativos e ansiolíticos [8].
Embora os distúrbios do sono aumentem com o envelhecimento[10], essas alterações se iniciam a partir da adolescência[11]. Uma forma de contornar as alterações do sono é pelo consumo de cafeína, pois melhora as funções mentais, como concentração e atenção [12]. Por outro lado, em doses elevadas, é possível o surgimento de ansiedade [13], seguida de má qualidade de sono [14]. Além disso, a utilização de medicamentos psicoativos, que auxiliam em situações de má qualidade de sono, pode apresentar ação importante na insônia e em problemas pra dormir [15].
Dessa forma, pode-se sugerir a presença relações entre o uso de medicamentos psicoativos, consumo de café e qualidade do sono, carecendo de estudos que ajudem a compreender essa relação em universitários. Diante disso, o presente estudo objetiva analisar a associação do uso dessas substâncias psicoativas com a qualidade do sono de estudantes universitários.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal, componente de um estudo maior denominado GraduaUEL (análise da saúde e hábitos de vida dos estudantes de graduação da Universidade Estadual de Londrina), que teve como objetivo de analisar aspectos relacionados à saúde física e mental, à exposição a violências e aos hábitos de vida de estudantes universitários da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Foram incluídos todos os estudantes com matrícula ativa no ano letivo de 2019 em um dos 50 cursos de graduação presenciais e um à distância da UEL e com idade igual ou superior a 18 anos, totalizando 12 970 estudantes [16].
O instrumento de pesquisa foi composto pelas seguintes temáticas: caracterização acadêmica e sociodemográfica, hábitos de vida, sono, sintomas depressivos, síndrome de Burnout, violência, e consumo de medicamentos. Após a finalização da primeira versão do instrumento, ele foi submetido à revisão por pares entre os pesquisadores responsáveis pela sua construção. Em seguida, foi encaminhado à avaliação de conteúdo por especialistas da área e, sendo constatadas eventuais necessidades de correção e adequação, elas foram realizadas.
A coleta foi precedida por um pré-teste e um estudo piloto, respectivamente em instituições privada e federal de ensino superior da região. Os dados foram coletados a partir de uma plataforma digital online (Google Forms) durante o período de 29 de abril a 28 de junho de 2019. Durante o período de coleta de dados foi realizada a divulgação da pesquisa e dos seus objetivos por meio impresso, e-mail, redes sociais, visita à todas as turmas presenciais e televisão e rádio da universidade.
A variável dependente deste estudo foi a qualidade de sono, avaliada por meio da escala Pittsburgh Sleep Quality Index (PSQI) [17], versão traduzida e validada no Brasil [18]. Após o término da coleta, os dados foram exportados para uma planilha do Microsoft Excel®, e duplamente conferidos para identificar e corrigir possíveis inconsistências. O cálculo da escala PSQI foi realizado em triplicata seguindo os preceitos preconizados pela ferramenta original [17,18], além da exclusão das análises de indivíduos que relataram duração do sono menor que 3 horas, latência do sono superior a 300 minutos ou que apresentaram eficiência habitual do sono acima de 100 %, e nos casos que relataram duração do sono 30 minutos a mais do que o tempo de permanência na cama. Foi utilizado o ponto de corte >5 para determinação da má qualidade do sono [17,18].
As variáveis independentes foram o consumo de café e a utilização de medicamentos psicoativos. O consumo de café foi avaliado com base nos últimos 30 dias, categorizado em consumo elevado da seguinte forma: sim (quatro a cinco vezes ao dia ou seis ou mais vezes ao dia) ou não (quase nunca/nunca, menos de uma vez ao dia ou uma a três vezes ao dia) [19]. A utilização de medicamentos foi avaliada com base no uso de medicamentos contínuos, seguindo a classificação Anatomical Therapeutic Chemical (ATC), da Organização Mundial da Saúde [20]. Foram consideradas apenas as classes: N05B (Ansiolíticos), N05C (Hipnóticos e Sedativos) e N06A (Antidepressivos), denominados, para a presente investigação, "medicamentos psicoativos".
Com o objetivo de caracterizar a população de estudo, foram utilizadas as seguintes variáveis: sexo (masculino; feminino), idade (18 a 20 anos; 21 a 23 anos; 24 anos ou mais), período noturno do curso (sim; não), satisfação com o curso (muito satisfeito/ satisfeito; nem satisfeito, nem insatisfeito; insatisfeito/muito insatisfeito), índice de massa corporal (IMC) (kg/m2) (< 18,5; 18,5 até < 25,0; 25,0 até < 30,0; > 30,0) [21] e indicativo de depressão (sim; não). O índice de massa corporal foi calculado a partir do peso e altura autorrelatados. O indicativo de depressão foi designado a partir do Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9), com ponto de corte > 9 para indicativo de depressão [22].
A análise estatística foi realizada por meio de análises descritivas com frequências absolutas e relativas, e análise de associação, por meio da Regressão de Poisson com variância robusta, para cálculo da razão de prevalência (RP) e intervalo de confiança à 95 % (IC 95 %), utilizando-se o programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 19. Também foi realizada a RP ajustada para possíveis fatores de confusão com as variáveis de caracterização (sexo, idade, período noturno do curso, satisfação com o curso, índice de massa corporal e indicativo de depressão), sendo as variáveis idade e IMC utilizadas de forma contínua.
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina (CAAE 04456818.0.0000.5231). Todos os participantes foram apresentados aos objetivos da pesquisa e ao termo de consentimento livre e esclarecido, os quais assinalaram-no eletronicamente de modo autônomo, antes de terem acesso ao instrumento de pesquisa.
RESULTADOS
O questionário foi preenchido por 3525 estudantes, entre os quais 3252 preencheram os requisitos exigidos. Foram excluídos 517 indivíduos por não responderem completamente a escala PSQI. Logo, a população final de estudo foi constituída por 2721 universitários (figura 1), sendo a maioria do sexo feminino (68,1 %) e com idade entre 18 e 20 anos (44,8 %). Cerca de um terço dos estudantes apresentaram IMC≥25,0 kg/ m2 e o indicativo de depressão identificado em 73,4 % dos estudantes (tabela 1).
Variáveis | N.° | % |
---|---|---|
Sexo (n=2721) | ||
Feminino | 1854 | 68,1 |
Masculino | 867 | 31,9 |
Idade, em anos (n=2721) | ||
18 a 20 | 1220 | 44,8 |
21 a 23 | 943 | 34,7 |
≥24 | 558 | 20,5 |
Indice de massa corporal, Kg/m2 (n=2708) | ||
≤18,5 | 250 | 9,2 |
18,5 até <25,0 | 1601 | 59,1 |
25,0 até <30,0 | 586 | 21,7 |
≥30,0 | 271 | 10,0 |
Período do curso noturno (n=2721) | ||
Não | 1975 | 72,6 |
Sim | 746 | 27,4 |
Satisfação com o curso (n=2718) | ||
Muito satisfeito/satisfeito | 1985 | 73,1 |
Nem satisfeito, nem insatisfeito | 555 | 20,4 |
Insatisfeito/muito insatisfeito | 178 | 6,5 |
Indicativo de depressão (n=2669) | ||
Não | 711 | 26,6 |
Sim | 1958 | 73,4 |
Consumo de psicoativos (n=2721) | ||
Não | 2415 | 88,8 |
Sim | 306 | 11,2 |
Tipo de psicoativo (n=340)* | ||
Antidepressivos | 281 | 91,8 |
Hipnóticos/sedativos | 42 | 13,7 |
Ansiolíticos | 17 | 5,5 |
Consumo elevado de café (n=2719) | ||
Não | 2336 | 85,9 |
Sim | 383 | 14,1 |
Qualidade do sono (n=2721) | ||
Boa | 663 | 24,4 |
Ruim | 2058 | 75,6 |
*O número total de substâncias (n=340) é maior do que o número de usuários (n=306) em razão de alguns estudantes utilizarem mais de um medicamento psicoativo.
Verificou-se, ainda, que o consumo de medicamentos psicoativos foi de 11,2 %, principalmente de antidepressivos (91,8 % dos psicoativos utilizados). O consumo elevado de café foi relatado por 14,1 % dos estudantes. Em relação à qualidade do sono, identificou-se má qualidade do sono em 75,6 % dos estudantes (tabela 1).
Em análise controlada por fatores de confusão, a má qualidade do sono apresentou maior prevalência entre os estudantes que utilizam medicamentos psicoativos (RP 1,11; IC 95 % 1,06-1,16) e apresentam consumo elevado de café (RP 1,06; IC 95 % 1,01-1,11), bem como aqueles que utilizam medicamentos psicoativos ou apresentam consumo elevado de café (RP 1,10; IC 95 % 1,06-1,15) (tabela 2).
Variáveis independentes | Qualidade do sono ruim | RP bruta (IC 95 %) | RP ajustada (IC 95 %)*** |
---|---|---|---|
Uso de medicamentos psicoativos | |||
Sim | 275 (89,9) | 1,22 (1,16-1,27)* | 1,11 (1,06-1,16)* |
Não | 1783 (73,8) | 1,00 | 1,00 |
Consumo elevado de café | |||
Sim | 318 (83,0) | 1,12 (1,06-1,17)* | 1,06 (1,01-1,11)** |
Não | 1739 (74,7) | 1,00 | 1,00 |
Uso de medicamentos psicoativos e consumo elevado de café | |||
Sim | 38 (86,4) | 1,14 (1,02-1,29)** | 1,00 (0,89-1,13) |
Não | 2020 (75,5) | 1,00 | 1,00 |
Uso de medicamentos psicoativos ou consumo elevado de café | |||
Sim | 555 (86,0) | 1,19 (1,14-1,24)* | 1,10 (1,06-1,15)* |
Não | 1503 (72,4) | 1,00 | 1,00 |
*p<0,001; **p<0,05. ***Ajustado por sexo, idade (contínua), período noturno do curso, satisfação com o curso, índice de massa corporal (contínua) e indicativo de depressão.
DISCUSSÃO
A maioria dos participantes desta pesquisa demonstrou má qualidade de sono (75,6 %) e a associação com o uso de substâncias psicoativas e consumo de café confirmam a hipótese desta investigação. Diversos estudos analisaram as condições de sono de estudantes universitários, os quais identificaram altos níveis de transtornos do sono [23-26], condizente com este estudo. Inclusive, é um problema que tem apresentado tendência de aumento, visto que em uma pesquisa realizada em 2018, na Noruega, foi constatado que 30,5 % dos estudantes relataram problemas de sono, em contraste com 22,6 % em 2010 [27].
O uso de medicamentos psicoativos encontra-se cada vez mais presente, dado que foi observado que a prevalência de diagnósticos de insônia atribuídas por médicos aumentou de 3,9 % em 2006 para 6,2 % em 2013. Assim como houve um crescimento do uso de medicamentos que auxiliam no sono, passando de 21,0 % em 2006 para 29,6 % em 2013, indicando maior conhecimento e tratamento que melhoram a qualidade do sono [28], mas também aumento da medicalização de problemas que poderiam ser controlados ou amenizados com medidas não farmacológicas, como a higiene do sono.
Para amenizar e tratar os distúrbios do sono, são realizados tratamentos farmacológicos [29] e não farmacológicos, como terapia comportamental cognitiva, ainda que a associação de ambos é classificada como padrão para insônia [30]. No que concerne ao tratamento farmacológico, os fármacos utilizados incluem hipnóticos, sedativos e antidepressivos [31]. No presente estudo, o uso de medicamentos psicoativos foi relatado por 11,2 % dos interrogados, sendo antidepressivos os mais utilizados. Há uma preferência na prescrição de antidepressivos a sedativos-hipnóticos, uma vez que são mais seguros e possuem efeitos sedativos [32]. Ainda, a depressão, para a qual os antidepressivos são prioritariamente utilizados, está relacionada com as anormalidades no padrão do sono. Enquanto o intuito do antidepressivo é reverter essas anormalidades, pode ocorrer de se comportarem de forma contrária, prejudicando o quadro de sono [33].
De forma contrária ao uso de antidepressivos e medicamentos com efeitos sedativos, estudantes universitários, a fim de manter-se atentos aos estudos, fazem o uso de substâncias psicoestimulantes, como o café [34,35]. O moderado consumo de café traz benefícios ao nível de atenção [36], entretanto, quando o consumo é elevado, efeitos negativos na qualidade do sono podem ser percebidos [14], o que foi corroborado por esta investigação.
Assim, o consumo elevado de café, identificado em 14,1 % dos estudantes avaliados na presente investigação, pode ser prejudicial, resultando em dificuldades para dormir, e, posteriormente, sonolência e cansaço [37,38], o que piora o quadro se a ingestão for horas antes de dormir [39]. A dependência de cafeína é correlacionada a uma piora dos distúrbios e da qualidade do sono, seguida de disfunção diurna [40,41]. A privação de uma adequada noite de sono pode resultar em riscos à saúde do indivíduo, podendo estar associada ao aumento do nível de sofrimento psicológico [42], assim como saúde física e mental, como alterações no desempenho cognitivo [43], surgimento de síndrome metabólica, diabetes, hipertensão, doença arterial coronariana [44], e alterações no sistema imunológico [45].
Como limitações do estudo, temos as inerentes ao recorte transversal, que não permite o estabelecimento de nexos causais, assim como a baixa taxa de resposta. Por outro lado, como fortaleza, tem-se o fato de ter investigado uma comunidade geral de universitários, e não especificamente um curso ou centro de estudos.
As duas substâncias são utilizadas comumente para melhora dos efeitos negativos consequentes da má qualidade de sono: os medicamentos para possivelmente regular o sono e as comorbidades relacionadas, e o café para melhorar o estado de alerta. Entretanto, os resultados encontrados na presente investigação indicam associação dessas substâncias com a má qualidade do sono, sugerindo que estas substâncias podem estar sendo utilizadas de forma inadequada ou exagerada, mas também que sua utilização pode ser uma estratégia para minimizar os efeitos deletérios presentes em estudantes com distúrbios do sono. Portanto, a interrelação entre as variáveis avaliadas ficou evidente, indicando importante associação entre o consumo de café e substâncias psicoativas, isoladamente ou não, com a qualidade do sono. Logo, é necessário realizar novos estudos com estudantes universitários, de preferência com delineamento longitudinal, para confirmar as causas específicas da má qualidade de sono e a relação com o uso de substâncias psicoativas e o consumo de café.