INTRODUÇÃO
O selênio (Se) foi descoberto em 1817 pelo químico sueco Jons Jakob Berzerlius, recebendo seu nome em homenagem à deusa grega da lua Selene [1, 2]. Berzelius encontrou traços de Se enquanto buscava a origem da doença de pessoas que trabalhavam em uma fábrica de ácido sulfúrico. De fato, o selênio foi detectado nas lamas depositadas nas câmaras de chumbo da fábrica [3]. É interessante notar, porém, que Séculos antes, em 1295, durante a viagem pela rota da seda e das especiarias, Marco Polo registrou, em suas anotações, um possível caso de intoxicação por selênio. As anotações eram sobre cavalos que manifestavam sintomas, como perda de pelos e cascos, após o consumo de plantas venenosas da região do oeste da China [4]. Anos depois, após os relatos de Marco Polo, foram observados os mesmos sintomas em animais bovinos que se alimentavam das plantas nativas próximas ao Rio Missouri nos Estados Unidos [4]. Em 1928, o Dr. Kurt Franke concluiu que todos os grãos e a forragem de algumas fazendas eram extremamente tóxicos para os animais, porém, apenas em 1933 a presença de selênio foi detectada nesses alimentos [5]. Por conta do seu histórico de intoxicações, o selênio foi visto como um elemento tóxico e sem nenhuma utilidade fisiológica. Aliado a isso, a sua química foi pouco estudada, principalmente devido à dificuldade de manipulação em virtude do desagradável odor de seus compostos [6].
A partir dos experimentos de Klaus Schwarz, em 1957 [4] e da descoberta do papel bioquímico do selênio nas selenoproteínas, na década de 70, a imagem do selênio sofreu uma evolução rápida ao longo do tempo, passando de elemento tóxico para elemento com propriedades medicinais [7-10]. Atualmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera o selênio um oligoelemento essencial para o homem [11].
Dessa forma, o objetivo deste trabalho é fazer uma revisão narrativa, abrangente, destacando os seguintes tópicos: a importância do selênio na dieta alimentar, suas funções biológicas, principais doenças causadas pela deficiência de selênio, sua toxicologia e, por fim, o uso desse elemento em química medicinal.
METODOLOGIA
Foram recuperados artigos e teses acadêmicas que contemplassem o papel do selênio na bioquímica e na química medicinal, publicados em português e inglês, utilizando-se descritores tais como "Selênio E Dieta"; "Selênio E Doença"; "Selenoproteína", "Selênio E Química Medicinal", bem como suas variações em inglês; "Selenium AND Diet"; "Selenium AND Disease"; "Selenoprotein"; "Selenium AND Medicinal Chemistry" nas bases de dados SciFinder, PubMed e Google Acadêmico. A partir da leitura dos títulos e dos resumos, foram selecionadas e incluídas referências que contemplassem o papel do selênio na bioquímica, na patogênese de doenças e na química medicinal, priorizando trabalhos publicados entre 2000 e 2021. Referências mais antigas, quando relevantes, também foram utilizadas de modo a fornecer uma visão abrangente sobre os tópicos abordados. É importante destacar que trabalhos que não puderam ser acessados integralmente foram excluídos da revisão.
A IMPORTÂNCIA DO SELÊNIO NA DIETA E SUAS PRINCIPAIS FUNÇÕES BIOLÓGICAS
É recomendada uma dose diária de ingestão de Se de 55 µg/dia, sendo o limite máximo 400 µg/dia. O consumo diário acima desse valor pode ser danoso ao organismo humano, causando intoxicação; porém, valores abaixo do recomendado podem ocasionar doenças severas [11]. Isso ocorre, pois, o selênio tem papel fundamental, de forma direta ou indireta, no funcionamento de sistemas biológicos, estando presente, principalmente em aminoácidos como a selenocisteína e a selenometionina, essenciais para a função catalítica de selenoproteínas como a enzima Glutationa Peroxidase (GPx) e, também, em outras estruturas orgânicas, como o composto dimetilseleneto (figuras 1 e 2) [6,10].
As selenoproteínas (tabela 1) - proteínas que possuem indispensavelmente o átomo de selênio em sua estrutura - possuem ação antioxidante, atividade sobre o metabolismo tireoidiano, papel na regulação do crescimento e viabilidade celular, funções sobre o sistema imune e sistema reprodutor. O que explica a quantidade significativa de contribuições desse elemento ao corpo humano, é a sua presença em pelo menos 25 proteínas [12].
Atividade antioxidante
Em condições fisiológicas normais, o corpo humano consegue equilibrar, de forma efetiva, a atividade protetora dos antioxidantes e a produção de espécies reativas de oxigênio (EROs). No entanto, quando por algum motivo isso não acontece, ocorre estresse oxidativo, condição que pode ocasionar danos funcionais e estruturais à célula, comprometendo sua integridade. O estresse oxidativo pode afetar biomoléculas como o DNA, os lipídios e as proteínas, estando relacionado à mutagênese, peroxidação lipí-dica, fragmentação proteica, carcinogênese, entre outros [14].
Existem defesas antioxidantes não enzimáticas, como as vitaminas C, E, glutationa reduzida (GSH), e as enzimáticas, como a superóxido dismutase (SOD), a catalase (CAT), a glutationa peroxidase (GPx), a glutationa redutase (GR), e a glutationa 5-transferase (GST). Essas enzimas protegem o tecido do estresse oxidativo causado pelas EROs [15]. As principais espécies químicas vinculadas ao estresse oxidativo são o radical ânion superóxido (O2), o radical hidroxil (OH), o peróxido de hidrogênio (H2O2), o óxido nítrico (NO) e o peroxinitrito (ONOO-) [16].
É importante destacar que além das defesas anteriormente citadas, grande parte das 25 selenoproteínas humanas possuem atividade antioxidante, com destaque para as GPx. As GPx são enzimas dependentes de Se, e estão presentes em todos os tecidos de mamíferos onde ocorrem processos oxidativos. Elas podem prevenir a produção de EROs, e, dessa forma, contribuir para a proteção de biomoléculas contra a oxidação. Essas enzimas possuem diferentes estruturas químicas e atuam como antioxidante em diferentes locais do organismo (tabela 2) [17].
Atividade sobre o metabolismo tireoidiano
Os hormônios tireoidianos, triiodotironina (T3) e tiroxina (T4), são essenciais para a manutenção da qualidade de vida, pois são eles os responsáveis pelo desenvolvimento e crescimento de diversos órgãos e tecidos nos vertebrados. A glândula tireóide secreta majoritariamente T4, e após desiodação, grande parte desse T4 se transforma em T3 circulante. O T3 apresenta atividade biológica pelo menos 5 vezes maior do que o T4, e por esse motivo sua biossíntese deve ocorrer de forma adequada, para que haja a homeostase corporal [18].
Os hormônios tireoidianos são ativados e inativados por enzimas da família iodotironi-nas deiodinase (DI1, DI2 e DI3) através do processo de desiodação (Esquema 1) [19].
Nas últimas décadas, foi identificada a presença de selenocisteína nos sítios ativos destas três enzimas, evidenciando a importância do selênio no metabolismo tireoidiano [20].
Além de expressarem enzimas da família iodotironinas deiodinase, os tireócitos também expressam outras selenoproteínas que podem possuir atividades importantes para sua homeostase, são elas a Selenoproteína de 15kDa (Sep 15), Glutationa Peroxidase 1 (GPx1), Glutationa Peroxidase 3 (GPx3), Tioredoxina Redutase (TrxR), Selenoproteína P (SePP) e Selenoproteína W (SeW) [20].
Atividade sobre o sistema imune
O sistema imune, também chamado de sistema imunológico ou imunitário, é constituído de uma diversidade de moléculas, células e órgãos, e tem como finalidade principal manter a homeostase corporal, através do combate às agressões em geral [21]. A função imunológica é dividida em imunidade inata, que segundo Medzhitov & Janeway representa uma resposta ligeira e padronizada a um número grande, porém limitado, de estímulos [22], e imunidade adaptativa (adquirida), que segundo Delves & Roitt [23] apresenta algumas peculiaridades, entre elas: especificidade, diversidade de reconhecimento, especialização da resposta e memória imunológica [23]. A suplementação de Se, em níveis adequados, demonstra-se importante para atividade do sistema imune 24-27].
Diversas células que compõem a imunidade inata demonstram ser afetadas pelo nível de Se. Por exemplo, o Se e as selenoproteínas, em níveis adequados, regulam a função de migração e a fagocitose em macrófagos [24]. Experimentos realizados com macrófago de hamster sírio dourado e Staphylococcus aureus mostraram que altos níveis de Se nos meios de cultura propiciaram aumentos significativos na atividade fagocítica do macrófago [28]. As células Natural Killer (NK) também são afetadas pelo Se de forma direta ou indireta. A título de exemplificação, Ravaglia et al. reportaram que a concentração de Se no soro foi positivamente associada às células CD16 + NK periféricas em pessoas com 90 anos ou mais [29]. Por fim, um estudo realizado com camundongos observou que a associação do Se com antioxidantes pode aumentar a imunidade inata, evidenciando a importância desse oligoelemento para essa função imunológica [30]. Além disso, células que compõem a imunidade adaptativa também são afetadas pelo nível de Se no organismo. O Se demonstra efeito positivo sobre a proliferação e diferenciação de células T auxiliares (Th, do inglês Thelper) do grupamento de diferenciação CD4+ [24]. Um estudo demonstrou que a administração de nanopartículas de Se induziu um padrão robusto de citocinas Th1 após uma vacinação com antígenos de superfície da hepatite B em camundongos [31]. Estudo realizado com seres humanos, envolvendo a suplementação de Se, demonstrou uma atividade aumentada das selenoenzimas GPx1 e GPx4 em linfócitos, enzimas responsáveis por evitar o estresse oxidativo nessa importante célula do sistema imune [32].
Atividade sobre a regulação do crescimento e viabilidade celular
As selenoproteínas podem afetar de forma significativa diversos processos celulares. A Tioredoxina Redutase (TrxR) é uma selenoenzima homodimérica que contém FAD, que juntamente com a Tioredoxina (Trx) como substrato e NADPH, como cofator, forma um poderoso sistema dissulfeto de ditiol oxirredutase, conhecido como TrxR\ Trx (esquema 1). Esse sistema é associado a regulação do crescimento celular e inibição do processo de apoptose. Três isoformas da TrxR são encontradas nos seres humanos: Tioredoxina Redutase 1 (TrxR1, citosólica), tioredoxina redutase 2 (TrxR2, mitocon-drial) e tioredoxina redutase 3 (TrxR3, testículos) [33, 34]. Nesse contexto, as sele-noproteínas vão afetar de forma indireta o crescimento celular através dos efeitos da TrxR sobre o ribonucleotídeo redutase. Trx é reduzida por TrxR, e Trx reduzida leva a ativação da ribonucleotídeo redutase, enzima essencial para a síntese de nucleotídeos, o que leva a síntese do DNA. Além disso, a Trx pode aumentar a resposta da célula a outros fatores de crescimento, e isso é evidenciado em células tumorais por sua secreção em grande quantidade. Além disso, conforme discutido anteriormente, compostos contendo Se podem, ainda, promover a sobrevivência da célula contra a morte induzida por estresse oxidativo, advindo de compostos que geram radicais livres [34].
Atividade sobre o sistema reprodutor
O Se é um elemento essencial para o sistema reprodutor masculino e feminino, pois age no desenvolvimento das gônadas, fertilização e gametogênese. No sistema reprodutor masculino, a manutenção de níveis adequados de Se parece ser essencial para o desenvolvimento normal dos testículos, espermatogênese, função e motilidade espermática [35]. Estudos em modelos animais machos levantam a hipótese de que a deficiência de Se afeta a capacidade reprodutiva do homem via estresse oxidativo, e que a reposição de Se é benéfica para os testículos [36].
Brown & Burk (1973) avaliaram a retenção de Se radiomarcado injetado (75Se) na forma de H2SeO3, em diferentes tecidos de ratos machos e fêmeas, demonstraram que o tecido testicular retém grande quantidade de Se. Os autores observaram que 3 semanas após a injeção, o complexo testículo epidídimo possuía 41,8% do 75Se administrado, enquanto que a maior taxa de retenção nos ovários foi de 0,3%, aproximadamente [37].
Estudos conduzidos por Kehr, Malinouski e Finney (2009), usando microscopia de fluorescência raios-x para entender melhor a distribuição celular e subcelular de Se em testículo de camundongo, demonstraram que ele está especificamente concentrado nas espermátides. Evidenciou-se também que o enriquecimento de Se na peça intermediária dos espermatozóides ocorre graças a presença da forma mitocondrial da enzima GPx4, responsável pela absorção de Se no tecido reprodutivo [38]. Um outro estudo realizado por Sahu, etal. indicou a redução do dano provocado pelo diabetes tipo I nas células do epidídimo de ratos suplementados com zinco e selênio [39].
No sistema reprodutor feminino o Se encontra papel na regulação de foliculogênese, segundo Grazul-Bilska, et al. [40]. Experimentos conduzidos por Basini & Tamanini [41], realizados com animais, demonstraram que o Se pode regular o crescimento das células granulosas e a biossíntese do 17ß estradiol em ovários adultos in vitro. Além da sua provável influência no desenvolvimento embrionário, o Se pode proteger a reprodução feminina do estresse oxidativo, causador de diversas patologias importantes [40]. Na gravidez, estudos demonstram que a deficiência de Se possui grande impacto nas complicações obstétricas, especialmente nas gestações que apresentam complicações [42]. Além disso, o esgotamento de Se está associado ao aborto espontâneo [43].
SUSCEPTIBILIDADE A DOENÇAS DEVIDO A DEFICIÊNCIA DE SELÊNIO.
Há evidências de que a deficiência do oligoelemento Se pode ter consequências adversas para a suscetibilidade a doenças e a manutenção de uma saúde ideal. O baixo nível de Se pode contribuir para etiologia do processo da doença, e em alguns casos, o baixo nível de Se pode ser um resultado da própria condição e pode exacerbar a progressão da doença, como no caso da infecção por HIV (do inglês, Human Immunodeficiency Virus) [2]. A deficiência de Se contribui de maneira expressiva para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, câncer, infecções virais, diabetes mellitus, doença de Alzheimer, entre outras.
Além disso, regiões que possuem o solo pobre em Se, como regiões da África Central, China, Nova Zelândia, parte da Europa Oriental e Rússia, demonstram ser áreas endêmicas de doenças causadas por sua deficiência, como a doença de Keshan, uma cardio-miopatia que foi observada pela primeira vez na província de Keshan, na China, e a doença de Kashin-Beck, osteoartropatia encontrada em áreas rurais da China, Tibete e Sibéria [2].
Doenças cardiovasculares
Diversos estudos evidenciam a correlação entre o baixo nível de Se sérico e as doenças cardiovasculares. Por exemplo, Estudos clínicos conduzidos em três países, Alemanha, Finlândia e Suécia, demonstraram que pacientes que tiveram infarto agudo do miocárdio (IAM) tinham concentrações subnormais de Se sérico. Além disso, foi relatado nos Estados Unidos (EUA) e na Alemanha, que pacientes com Arteriosclerose Coronariana também possuíam baixas concentrações de Se sérico [44]. Outro estudo, realizado na Noruega por Salomen e colaboradores, reportou que indivíduos com concentrações séricas de 35g Se/L ou inferior, possuem risco de morte por doença isquêmica cardíaca 6,9 vezes maior quando comparados a indivíduos com concentrações séricas iguais ou maiores a 45g Se/L [45]. Além disso, Navarro-Alacon & Lopez-Martínez [46] definem que o Se é um oligoelemento de suma importância na prevenção das doenças cardiovasculares, tendo em vista que a baixa concentração de Se está associada a diferentes cardiopatias ao facilitar a formação de hidroperóxidos lipídicos que causam danos ao endotélio vascular [46]. Por fim, um estudo de metanálise realizado por Kuria et al. demonstrou que a suplementação de Se em níveis elevados está associada à diminuição da incidência e mortalidade por doenças cardiovasculares [47].
Estudos realizados em animais também evidenciam que o Se possui atividade protetora contra substâncias cardiotóxicas, xenobióticos e infecções virais que atingem o coração.
Sua deficiência pode ser um fator secundário de hipertensão e isquemia miocárdica [44].
Diabetes Mellitus
Diabetes Mellitus é uma desordem metabólica crônica, com elevados índices glicêmicos devido à insuficiência da secreção e ação da insulina endógena, dislipidemias e disfunção endotelial. Essas alterações contribuem para o surgimento de danos na membrana plasmática das células e estrutura do DNA [48]. A evolução dessa disfunção está diretamente relacionada ao aumento da produção de espécies reativas de oxigênio e peroxidação lipídica [49,50,12], além da ativação de fatores de transcrição, produção intracelular de precursores dos produtos de glicação avançada (AGE, do inglês Advanced Glycation End-products) e ativação da proteína quinase C (PKC, do inglês Protein Kinase C).
O aumento intracelular de AGE, que ao se ligar aos seus receptores inativam estruturas e desestabilizam funções enzimáticas, leva ao aumento da produção de espécies reativas e estimula o fator de transcrição NF-kB (fator nuclear kappa B), aumentando a transcrição de óxido nítrico, que parece ser um mediador do dano da célula beta pancreática. Estudos demonstram que o aumento nos níveis celulares de selênio reduz a atividade do NF-kB em macrófagos e, por participar do sítio ativo de selenoenzimas antioxidantes, como a glutationa peroxidase, a ação do Se na diabetes está relacionada a redução dos danos causados pelo estresse oxidativo, melhorando o quadro inflamatório, que ocorre após o NF-kB estimular a transcrição de citocinas inflamatórias, como a IL-1, IGF-1, TNF-α, TGF-b [51].
Um ensaio clínico randomizado reportado por Farrokhian e colaboradores (2016), apontou uma redução significativa nos níveis plasmáticos de insulina em pacientes portadores de diabetes tipo 2 que receberam suplementação com 200 jjg/dia de selênio, quando comparados ao grupo que recebeu placebo. Também foi observado o aumento da sensibilidade à insulina nesses pacientes [52]. Por outro lado, alguns autores alertam para um maior risco do desenvolvimento de diabetes tipo 2 associado a altos níveis de selênio plasmático [52, 53]. Por exemplo, um estudo recente (2019) conduzido por Zhang et al. demonstrou que pacientes hipertensos com concentrações plasmáticas de selênio acima de 94,8 µg/L tiveram maior chance de desenvolver diabetes tipo 2 [55]. De qualquer maneira, os resultados reportados sugerem a importância do selênio também na homeostase da glicose [56], sendo possível, nesse caso, que tanto a deficiência quanto o excesso de selênio no plasma sejam relevantes para a fisiopatologia da doença, o que explicaria os resultados aparentemente divergentes encontrados nesses estudos.
Sistema nervoso central e doença de Alzheimer
A fisiopatologia da doença de Alzheimer (DA) está associada ao estresse oxidativo e a outras desordens neurodegenerativas. Esse estresse é originado do desequilíbrio entre substâncias oxidativas, como radicais livres e as defesas antioxidantes do organismo. É imprescindível manter o organismo com baixas concentrações de radicais livres para que o sistema imune funcione adequadamente. De acordo com estudos, o aumento na peroxidação lipídica está relacionado às desordens neurodegenerativas, sendo a primeira ação que ocorre antes do aparecimento da DA. O selênio evita o estresse oxi-dativo das células, inclusive dos neurônios, além de ser essencial para as atividades do sistema nervoso central (SNC), sua deficiência apresenta relação com o declínio cognitivo [57]. Nesse contexto, o selênio atua através das selenoproteínas, destacando-se as glutationas peroxidase 1 (GPX-1) e 4 (GPX-4), que são expressas abundantemente no cérebro e exercem atividade antioxidante [58]. Em 2020, Zhang et al. investigou os efeitos da selenometionina em modelo murino triplo transgênico de DA (3xTg-DA). Os autores observaram melhora da plasticidade sináptica através da modulação do influxo de Ca+2 mediado pelos receptores de iV-MetikD-Aspartato (NMDA) sinápticos e extra-sinápticos dos animais estudados que receberam selenometionina. Também foi observado que o desequilíbrio sináptico encontrado na DA era similar ao encontrado em ratos incapazes de expressar a selenoproteína K. Dessa forma, foi possível relacionar o tratamento com selenometionina ao aumento dos níveis de selenoproteína K e a melhor modulação das sinapses pelos receptores NMDAs [59].
Outros experimentos também demonstram a essencialidade do selênio para a atividade do sistema nervoso central. Animais alimentados com dietas deficientes em selê-nio mantiveram níveis relativamente elevados em seus cérebros, enquanto em outros órgãos, como fígado e rim, esse mineral foi severamente esgotado. Outra evidência é que, quando o selênio foi administrado para animais com déficit de selênio, uma grande parte foi rapidamente direcionada para o cérebro [60].
Câncer
O selênio possui efeito antimutagênico, como demonstrado por diversos estudos. Indícios apontam que normalmente ocorrem distúrbios metabólicos em células tumorais, devido a um aumento na produção de espécies reativas de oxigênio (EROs), levando ao estresse oxidativo. Em altas concentrações, as EROs geram danos irreversíveis nos lipídios, proteínas e no DNA. Suspeita-se que essas alterações estejam ligadas ao desenvolvimento do câncer. Foram separados dois mecanismos para explicar os possíveis efeitos do selênio nas células: 1) a presença do selênio nas selenoenzimas que tem ação antioxidante poderia interferir na formação do câncer e, 2) a atuação dos metabólitos do Se sobre o processo de carcinogênese e durante a progressão do câncer [61].
Por exemplo, em 2019 Narod et al. reportou um estudo de caso-controle aninhado realizado na Polônia a partir da análise de um banco biológico da clínica Cancer Genetics Outpatient, em Szczecin. Nesse estudo, 97 pacientes mulheres com diagnóstico de câncer e 184 mulheres não afetadas pela doença tiveram seus níveis de selênio sérico avaliados. Cabe ressaltar que dos 97 casos incidentes de câncer analisados, 53 eram de câncer de mama. Os resultados reportados pelos autores sugerem que o baixo nível de selênio sérico (≤ 70 µg/mL) está associado a um risco duas vezes maior de desenvolvimento de câncer. Os resultados foram similares em uma análise restrita ao surgimento de câncer de mama nas pacientes estudadas. Os autores também sugeriram o maior risco de desenvolvimento de câncer em mulheres com níveis de selênio sérico maiores que 90 µg/mL, porém os resultados obtidos, nesse caso, não foram estatisticamente significativos [62]. De fato, diversos estudos parecem apontar para um comportamento em U entre os níveis de selênio sérico e o risco de desenvolvimento de câncer, de forma similar ao que ocorre no caso do diabetes mellitus [63, 64].
A nível celular e molecular é notável a possível atuação do selênio e de seus metabólitos em diversos processos metabólicos que regulam a carcinogênese. A título de exemplificação, foi demonstrado que a selenometionina (SeMet) pode ativar a proteína P53, supressora de tumor, dependente da proteína Ref-1, que atua no reparo do DNA e tem atividade redox; [65]. Além disso, especula-se que o selênio, por sua potente ação antioxidante, poderia ser um micronutriente importante na prevenção de síndromes relacionadas ao desenvolvimento do câncer, tais como a cachexia. Essa síndrome é causada, principalmente, pela ação pró-inflamatória gerada por espécies reativas de oxigênio, através da ativação do complexo protéico NF-kB (Fator nuclear kappa B). Porém, a verdade é que, até o momento, nenhum ensaio clínico foi capaz de verificar benefícios da suplementação de selênio em pacientes com câncer [66].
HIV e outras infecções virais
A deficiência de micronutrientes é associada a uma progressão mais rápida do HIV e à maior mortalidade dos pacientes. Além disso, alguns estudos indicam que a suplementação de micronutrientes, como o selênio, atrasam a progressão para SIDA, aumentando a expectativa de vida [67]. Ellwagner, et al. (2011) afirma que a associação entre selênio sérico baixo (não obrigatoriamente deficiente), baixas contagens de células CD4+ e elevada carga viral também podem ser relacionados ao baixo nível de albumina sérica, encontrado de forma recorrente em indivíduos que apresentam estado mais avançado na infecção por HIV [68].
Em 2006, Jones et al. demonstraram o aumento dos níveis plasmáticos de selênio em pacientes submetidos à terapia antirretroviral [69]. Recentemente, em 2015, um estudo publicado por Hileman e seus colaboradores procurou avaliar se as concentrações plasmáticas de selênio em um coorte de adultos residentes dos EUA, portadores do vírus HIV, em terapia antirretroviral, se relacionava à marcadores de inflamação sistêmica, a ativação imune e a doença vascular subclínica. Os autores também procuraram avaliar os efeitos da rosuvastatina nos níveis de selênio plasmático em 24 e 48 semanas. O estudo reportou maiores níveis de selênio sérico em pacientes caucasianos, com maior proporção de células T CD8+CD38+HLA-DR+ e menor índice de massa corpórea, porém não foi encontrada associação entre a dosagem de selênio com a presença subclínica de doenças cardiovasculares ou outros marcadores de inflamação. O uso da rosuvastatina provocou um aumento nos níveis de selênio dos pacientes ao longo de 48 semanas, porém os resultados foram inconclusivos e mais estudos são necessários [70].
O déficit de Se também induz a uma prejudicada imunocompetência do hospedeiro humano e permite que variantes benignas de vírus de RNA rapidamente sofram mutações, tornando-as virulentas devido ao estresse oxidativo metabólico [2]. Em um modelo in vitro de deficiência de Se foram investigadas as respostas do vírus do Nilo Ocidental (WNV, do inglês West Nile Virus) à suplementação de Se e foi observado que os baixos níveis de Se não afetam a cinética de replicação do vírus, mas a suple-mentação com Se presumivelmente protege as células infectadas pelo WNV da morte celular [71].
É provável, também, que a deficiência de Se modifique a morfologia e a função das células epiteliais brônquicas (BECs, do inglês Bronchial epithelial cells), aumentando a suscetibilidade à infecção viral. Num sistema in vitro, os BECs deficientes de Se apresentaram atividade normal da enzima superóxido dismutase (SOD), mas a atividade de GPX-1 diminuiu e ocorreu uma maior produção de IL-6 (Interleucina 6) induzida pelo vírus da influenza do que nos BECs com níveis suficientes de Se. Além disso, a apoptose induzida pelo vírus influenza foi maior quando havia deficiência de Se quando comparada aos BECs suficientes. Esses resultados mostram que a falta de Se afeta a morfologia das células epiteliais das vias aéreas humanas e a resposta de defesa do hospedeiro ao vírus da influenza [72].
Doença de Keshan
Em 1935, um surto de cardiomiopatia relativamente rápida, progressiva e fatal foi relatado pela primeira vez em Keshan e nos países vizinhos na província de Heilongjiang, no nordeste da China. Inicialmente, acreditavam que se tratava de um processo infeccioso agudo [73]. No ano de 1958, Muth et al. demonstraram que a adição de Se na dieta fornece proteção contra o desenvolvimento da doença do músculo branco em ovelhas, doença que acomete rebanhos criados em terras com baixos níveis de Se e que se caracteriza pelo aspecto calcário deixado nos músculos dos animais, consequência da fibrose e da deposição anormal de cálcio [74]. Em 1960, após o reaparecimento de quadros de miocardite (Keshan), nas províncias de Sichuan e Yunnan, no sudoeste da China, concluiu-se que existiam semelhanças morfológicas, tais como fibrose irregular, necrose e miocitólise, entre essa doença e a doença do músculo branco [75]. Partido dessa premissa, estudos epidemiológicos demonstraram que áreas endêmicas da doença de Keshan possuíam baixos níveis de Se no solo e em alimentos, quando comparadas com outras áreas da China. Após a realização de Ensaios-piloto de reposição de Se, estudos epidemiológicos relacionaram a eficácia do tratamento com selenito de sódio com a prevenção da doença de Keshan e o alívio das manifestações clínicas [73, 76, 77]. Estudos publicados em 2020 e 2021 ainda relacionam a presença de baixos níveis de selênio sérico e capilar detectados com as áreas endêmicas da doença de keshan [78, 79].
Doença de Kashin-Beck
A doença de Kashin-Beck (KBD, do inglês Kashin-Beck disease) é uma doença osteo-condral crônica endêmica que apresenta alta morbidade e prevalência em algumas regiões da China, Rússia e Coréia do Norte [80], porém as taxas de incidência na Rússia e na Coreia do Norte vem decrescendo com o desenvolvimento sócio-econômico desses locais, de acordo com dados do Kashin-Beck Disease Fund [81]. Por outro lado, estima-se que na China de 2 a 3 milhões de pessoas apresentem algum grau de sintoma da doença [81].
Indivíduos acometidos pela KBD, apresentam como principal característica baixa estatura, além de deformações nas articulações, pés, pernas e dedos, que começam a aparecer a partir dos 5 anos de idade, ou até antes. A baixa estatura, causada pela KBD, ocorre devido a necroses focais nas placas de crescimento, que não estão presentes na placa de crescimento de indivíduos não acometidos. À medida que a KBD progride, é possível observar diferenças entre a cartilagem normal, pois os aglomerados de condró-citos, as áreas necróticas e os núcleos comprimidos tornam-se cada vez mais abundantes. A KBD não só lesa a cartilagem, mas também pode lesar os músculos esqueléticos, o coração, a parede dos vasos sanguíneos, os nervos periféricos, o estômago, as glândulas endócrinas e a medula óssea. Pode ainda ocorrer perturbações no metabolismo do enxofre e do selênio, peroxidação lipídica e metabolismo da cartilagem [80, 82].
Como previamente discutido, sabe-se que o selênio é importante para a biossíntese de selenoproteínas, que por sua vez estão envolvidas em reações redox, na peroxida-ção lipídica e protegem contra o estresse oxidativo. Nesse contexto, a deficiência de Se diminuirá o processo antioxidante do corpo. Além disso, o Se também é um elemento presente nas enzimas tireoidiana deiodinase e, uma deficiência de selênio, semelhante à deficiência de iodo, influenciará a síntese, a secreção e o uso do hormônio tireoidiano e, portanto, o desenvolvimento dos ossos e da placa de crescimento [82]. Nesse contexto, em uma meta-análise publicada em 2016, foi demonstrado que os níveis de selênio sérico, sanguíneo, urinário e capilar de pacientes com KBD era significativamente menor do que em indivíduos saudáveis, porém não foi encontrada diferença nos níveis de iodeto plasmático ou urinário entre os grupos [83], provando a importância da deficiência de selênio no curso da patologia.
Em outro estudo, foi demonstrado que a supressão completa, em modelo murino, do gene Trsp, que codifica o RNAt do aminoácido selenocisteína, causa a morte ainda em estágio embrionário, ratificando a importância desse aminoácido [84]. Engenhosamente, Downey et al. promoveu a deleção direcionada do gene Trsp apenas em células osteocondroprogenitoras, observando sintomas semelhantes a KBD em modelo animal (murino), porém os camundongos evoluíram para morte prematura. Apesar do estudo evidenciar a importância do selênio para o desenvolvimento dos sintomas da KBD, não é clara a importância do gene Trsp na patogênese da doença [85].
Por fim, um estudo de intervenção, realizado com crianças normais em área endêmica da China, mostrou que a incidência de KBD em 9.343 crianças com suplementação de Se na dieta (0,45%) foi inferior ao de 2.963 crianças que não tiveram a suplementação de Se incorporada à dieta (1.9%). Além disso, em 2.197 pacientes com KBD, observou-se uma taxa de reparo das alterações patológicas da metáfise (64,8%), além de baixa taxa de agravamento da doença (2,8%) após suplementação com selênio, enquanto que no grupo que não recebeu suplementação as taxas foram de 19,9% e 11,3%, respectivamente [86]. Porém, em estudo mais recente, Guo et al. [80] afirmaram que a suple-mentação com Se não pode prevenir totalmente a incidência de KBD, que também pode diminuir sem qualquer alteração no status do Se ambiental. Sendo assim, apesar de diversas hipóteses terem sido consideradas, e da doença ser conhecida há mais de 150 anos, sua etiologia ainda não foi bem compreendida.
USO DO SELÊNIO NA QuÍMICA MEDICINAL
Em 1998, a União Internacional de Química Pura e Aplicada - IUPAC (do inglês, International Union of Pure and Applied Chemistry) definiu Química Medicinal como sendo "uma disciplina baseada em química, que envolve, também, conhecimentos das ciências biológicas, médica e farmacêutica e que tem por finalidade a invenção, descoberta, planejamento, identificação e preparação de moléculas biologicamente ativas, o estudo do metabolismo, a interpretação a nível molecular do mecanismo de ação e a construção de relações entre a estrutura molecular e a atividade biológica" [87].
Conforme discutido anteriormente, o átomo de selênio está presente no aminoácido selenocisteína (figura 1), componente-chave do sítio ativo de muitas selenoenzimas, como por exemplo, as enzimas da família das glutationas peroxidases (GPxs) [88]. A GPx, juntamente com outras enzimas, atua no sistema de defesa antioxidante, convertendo as espécies reativas de oxigênio, danosas aos organismos, em metabólitos inócuos [89]. No mecanismo de ação da enzima glutationa peroxidase, primeiramente é proposto que a enzima, na sua forma ativa selenol (Enz-SeH, A), reage com um equivalente de peróxido, reduzindo-o à água ou álcool, dependendo da estrutura do peróxido, e formando o ácido selênico (Enz-SeOH, B). Então, B é atacado por um equivalente da glutationa reduzida (GSH) formando o sulfeto de selenenila (Enz-Se-SG, C) e água. Na última etapa, o selenosulfeto C reage com um segundo equivalente de GSH regenerando a forma ativa da enzima e produzindo, simultaneamente, a glutationa oxidada (GSSG). Por fim, a GSH é regenerada a partir da GSSG com o auxílio de outra enzina, a glutationa redutase (GR) (esquema 3) [90].
Com o avanço do conhecimento bioquímico acerca dos diversos mecanismos de ação das selenoenzimas e de outras enzimas importantes na patogênese de diversas doenças, tornou-se possível planejar de maneira racional a estrutura de compostos de organosele-nio, moléculas que apresentam em sua estrutura uma ou mais ligações do tipo carbono-selênio. Esse tipo de molécula vem ganhando grande importância em química medicinal [91], não só pela capacidade que algumas estruturas apresentam de mimetizar, in vitro e in vivo, com baixa toxicidade, a ação antioxidante de enzimas tais como a GPx [92], como também pelo potencial de alguns selenaheterociclos de interagir com macromoléculas biológicas. Dentre os diversos derivados de organoselenio bioativos reportados na literatura recente destacam-se o ebselen, o disseleneto de difenila e o ethaselen.
Ebselen
O 2-fenil-1,2-benzisoselenazol-3(2H)-ona, também chamado de Ebselen, é um sele-naheterociclo sintético e lipossolúvel [93], que apresenta baixa toxicidade [94], boa biodisponibilidade e boa permeabilidade pela barreira hematoencefálica [95], capaz de modular processos inflamatórios ao mimetizar a atividade catalítica da enzima glu-tationa peroxidase (GPx) [96], (esquema 4). A baixa toxicidade do Ebselen pode ser explicada pelo fato do átomo de selênio não ser liberado da molécula durante as bio-transformações, devido à estabilização do mesmo por ciclização intramolecular [97,98].
Diversos análogos do ebselen foram sintetizados através da modificação da estrutura básica do mesmo, ou incorporando algumas características estruturais da enzima nativa. Estas transformações são realizadas no intuito de aumentar a potência, melhorar os parâmetros farmacocinéticos, ou facilitar a síntese. Os substituintes, tanto no anel ben-zisoselenazolona quanto ligados ao átomo de nitrogênio, têm um efeito significativo sobre a atividade antioxidante destes compostos. Como exemplificação, demonstrou-se que a substituição de um átomo de hidrogênio por um grupo nitro ou por uma amida, na posição orto ao selênio (esquema 5), resulta em um aumento de nove e três vezes, respectivamente, na atividade GPx-like dos compostos quando comparados ao Ebse-len. Este comportamento é caracterizado pela interação intramolecular entre o oxigênio e o átomo de selênio, que é estabilizado, prevenindo a reação de troca de tiol, que impede a formação do selenol ativo [97, 99, 100].
O ebselen vem sendo amplamente estudado, também, como neuroprotetor [95], além de possuir notável atividade contra isquemias [101] e acidentes vasculares cerebrais [102]. Essa molécula também ganhou atenção por sua possível aplicação no tratamento do diabete mellitus tipo 2 [103], bem como por sua atividade contra o antígeno 85 do Mycobacterium tuberculosis [104, 105].
O ebselen também tem despertado interesse na pesquisa contra o câncer. Como exemplo, em 2017, alguns derivados de ebselen foram descritos como inibidores da atividade da enzima metionina aminopeptidase-2 humana (MetAP2), que é essencial para o avanço de diversas doenças, incluindo tumores sólidos. O derivado mais potente apresentou IC50 de 0,12 µM (figura 3) e todos os outros derivados da série demonstraram atividade inibitória sobre a enzima alvo, com IC50 variando entre 0,32-24,3 µM. O composto A832234 foi usado como referência no teste enzimático (IC50 = 0,01 µM) [96].
Disseleneto de difenila
O 1,2-difenil disseleneto, também conhecido como disseleneto de difenila (figura 5), é um composto orgânico de selênio que possui coloração alaranjada e apresenta efeitos anti-ulcerosos, antiinflamatórios, hepatoprotetor [106] e antioxidante em alguns modelos experimentais para a avaliação de estresse oxidativo [107]. O mecanismo de ação antioxidante do disseleneto de difenila pode ser explicado pela capacidade intrínseca dessa molécula de mimetizar a ligação S-S presente no sítio ativo de enzimas da família das tiol peroxidases (Tpx). Dessa forma, a ligação Se-Se pode ser reduzida, com o consumo de moléculas contendo o grupo tiol, ou pela enzima TrxR [108], formando um selenol, de forma análoga à observada para o Ebselen (esquema 6) [109].
Existe intenso debate acerca dos possíveis efeitos tóxicos provocados pelo disseleneto de difenila e por seus análogos [108]. Alguns autores, defendem que a introdução de grupos funcionais tais como o trifluorometil, metóxi e cloro ao anel aromático da fenila provoca a redução de alguns efeitos colaterais observados em camundongos, enquanto outros autores reportam um aumento de toxidez para esses mesmos compostos [110, 111]. Além disso, alguns derivados de disseleneto, como o disseleneto de 4,4-bisme-toxidifenila (figura 4), parecem demonstrar atividades biológicas in vivo relacionadas com sua capacidade de modular receptores biológicos, e não com uma possível atividade antioxidante mimetizando a ação de enzimas da família das Tpx [112, 113].
Ethaselen
O 1,2-[bis(1,2-benzisoselenazol-3(2H)-ona)]etano (figura 5), também conhecido como ethaselen é um novo composto orgânico de selênio, que demonstrou uma atividade antitumoral relevante e se tornou um protótipo anticâncer com baixa toxicidade e poucos efeitos adversos [114]. Diversos estudos apontam a capacidade do ethaselen em inibir a enzima TrxR, hiperexpressa em alguns tipos de carcinomas humanos, que conforme discutido anteriormente (esquema 2) é componente essencial de diversos sistemas de oxirredução, sendo capaz de comandar a maturação celular e inibir a apoptose [115, 116].
Infelizmente, o ethaselen é pouco solúvel em água e sua biodisponibilidade oral, por consequência, é consideravelmente baixa, criando diversos obstáculos para o desenvolvimento de formulações e para que a quimioterapia com essa molécula seja bem-suce-dida. Desenvolver um sistema de entrega de ethaselen que promova maior seletividade e solubilidade, para que ele chegue ao tecido-alvo provocando um mínimo de reações adversas é desafiador, porém Liu et al. [117] reportou em 2010 o desenvolvimento de micelas a partir de copolímeros, que levaram à uma melhora nos parâmetros farmaco-cinéticos e a maior concentração da substância nos tumores. O ethaselen está atualmente em estudos clínicos de fase 1 contra carcinoma de células não pequenas [118, 119].
CONCLUSÃO
Nas últimas décadas o selênio deixou de ser visto como um átomo tóxico e sem importância fisiológica. Com o avanço da biologia, foram identificadas 25 selenoproteínas que desempenham funções biológicas essenciais em animais e humanos. Hoje, sabe-se que a deficiência de selênio está diretamente relacionada à predisposição no desenvolvimento de algumas doenças, como o câncer, por exemplo, e é, também, a principal causa de enfermidades como as doenças de Keshan e Kashin-Beck. No campo da química medicinal, foi provado que é possível desenvolver moléculas bioativas, com baixa toxidez, contendo átomos de selênio em sua estrutura. Com a maior compreensão dos processos bioquímicos modulados pelas diversas selenoproteínas, os químicos medicinais poderão sintetizar compostos de organoselênio mais potentes, com menor citotoxicidade e melhores parâmetros farmacocinéticos, viabilizando, então, a comercialização de fármacos contendo selênio em suas estruturas.