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Forma y Función

Print version ISSN 0120-338X

Forma funcion, Santaf, de Bogot, D.C. vol.22 no.22 Bogotá Jan./June 2009

 

DISCURSO DO LÚDICO NOS DISCURSOS
SOBRE O L
ÚDICO*

THE LUDIC DISCOURSE IN THE DISCOURSES
ABOUT THE LUDIC

 

Renata Marcelle Lara Pimentel*
Giuliano Gomes De Assis Pimentel**
*Centro Universitario de Maringá (CESUMAR), Brasil
renatalara@cesumar.br
**Universidade Estadual de Maringá (UEM), Brasil
ggapimentel@uem.br

Artículo de investigación recibido 08-10-07, artículo aceptado 30-04-09


Resumo

As inquietações teóricas por uma compreensão do lúdico, por vezes, favorecem tentativas de apreensão dos sentidos de forma estanque. Partiu-se de discursos sobre o lúdico, em iniciativas recentes por sistematizá-lo no campo acadêmico. O ponto de entrada foi o tratamento enciclopédico dado ao tema. Tendo a análise de discurso como aporte teórico-metodológico, buscou-se explicitar as estabilizações geradas nos/por tais discursos, de modo a compreender o lúdico em sua discursividade. O não questionamento das relações engessadas entre lúdico e lazer contribui para a sustentação do efeito de evidência de uma propriedade da área. Como esse fenômeno não está instalado em lugar algum, mas se dá nas relações entre sujeitos, ele funciona, discursivamente, como o irrealizado do movimento do lazer, isto é, seu não-pré-construído.

Palavras chave: lúdico, análise de discurso, dicionário, lazer.


Abstract

The theoretical apprehensions for understanding the meaning of what is referred to as 'ludic', which constitutes a terminology frequently used in speeches, sometimes leads to understand such a meaning in a strict form. This paper was based on speeches concerning the 'ludic' terminology, regarding the leisure field, in recent initiatives for systematizing its use in the academic field. The starting point for developing this investigation were the encyclopedia entries describing such terminology and theme. Counting on discourse analysis to provide theoreticalmethodological support, we attempted to evidence the stabilizations generated by such speeches, in order to understant 'ludic' terminology in its discursivity, under the light of discourse analysis. Discourse Analysts perceive that the lack of debates about the relationship regarding ludic and leisure contribute greatly to sustain the effect of evidence of such property in the area. Since such a phenomenon is not installed anywhere but, in fact, occurs in the relationships among subjects, it works in a discursive way as the non-performed part of the leisure movement, that is, its non-pre-built characteristic.

Keywords: ludic terminology, leisure terminology, discourse analysis.


Introdução

ESTE ESTUDO SURGE a partir da conjugação entre a Lingüística e a Educação Física, mais especificamente entre a Análise de Discurso e os Estudos do Lazer que, na Colômbia, se denomina por "Ocio y Tiempo Libre". A observação acadêmica sobre o fato de o lúdico ainda carecer de uma determinada tematização, e a compreensão de que as discussões sobre ele, formuladas por estudiosos do lazer na América Latina, até onde temos conhecimento, ainda são inacabadas, delicadas e tomadas por certo incômodo, levou-nos a pensá-lo discursivamente.

Na condição de analista de discurso, interessa observar como terminologias e conceitos vão sendo configurados e naturalizados na área, produzindo efeitos de evidência. Mas também, como e por que determinadas terminologias, como o lúdico, não encontra, entre os pesquisadores do lazer, 'pontos-de-encontro teórico' acerca do 'incômodo' que esse termo pouco discutido gera no meio acadêmico. Da posição-sujeito 'pesquisador-do-lazer', este é justamente o ponto crucial: por que é tão delicado falar de lúdico no contexto do lazer e o que faz com que tal terminologia não seja necessariamente tematizada, mas apenas discutida em meio a outras temáticas?

Nosso interesse nesta investigação é primeiramente motivado pelo entendimento de que a inter-relação entre áreas, afins ou diversas, favorece a fomentação de problematizações/inquietações necessárias para se pensar em resistências no interior desses próprios campos do saber. Compreender as disciplinas, no seu próprio interior, sem estar já-sempre tomado pelo 'lugar naturalizado' de pesquisador da área, pode ser um princípio de apontamento para que o irrealizado, naquele campo de conhecimento, advenha, "formando sentido do interior do sem-sentido" (Pêcheux, 1990, p. 17).

O aporte teórico-metodológico da análise de discurso francesa é, portanto, por nós, requerido para suscitar as problematizações formuladas e trabalhadas neste estudo. Interessa-nos compreender o lúdico como discurso, partindo de análises de discursos sobre o lúdico. Entendendo o discurso como "efeito de sentido entre locutores", como compreende Orlandi (2000, p. 21), retomando Pêcheux, buscamos produzir deslocamentos, saindo do campo das estabilizações, ao possibilitar que os sentidos se movimentem.

A questão inicial é justamente o que vem a ser o lúdico nos discursos sobre ele, para que, mediante tal compreensão, o lúdico possa ser considerado em sua discursividade. Antes, porém, faz-se conveniente explicitar que o "discurso lúdico", tratado pela lingüista Eni Orlandi em Análise de discurso: princípios e procedimentos (2000), representa uma das formas de funcionamentos discursivos. Nesse sentido, lúdico não é tomado como 'brinquedo', mas sim como "jogo de linguagem (polissemia)". Enquanto no "discurso autoritário" a polissemia é contida, e no "discurso polêmico" ela é controlada, no "discurso lúdico" está aberta. O que nos interessa não é tratar do "discurso lúdico" como uma "tipologia discursiva" proposta por Orlandi, mas compreender o lúdico como discurso.

No campo da terminologia (Ferreira, 1999), observamos que os verbetes com o prefixo lud(i) possuem algo familiar. Ludíbrio (escárnio, engano), lúdrico (ridículo, divertido), ludo (espécie de jogo de tabuleiro com uso de dados), ludro (sujo, turvo) e lúdico (adjetivo que se refere a jogos e brinquedos) remetem-se à natureza improdutiva, ambígua e efervescente do jogo.

De forma ampliada, o lúdico é visto como potencial transformador presente em ações criativas, como a atividade científica, o erotismo, a literatura e as artes em geral (Bruhns, 1993). Por outro lado, a investigação contemporânea sobre a indústria cultural entende que diferentes estratégias buscam "manipular" o lúdico em favor do consumo alienado (Bracht, 2003).

A primeira abordagem moderna sobre o tema e, possivelmente, a mais conhecida e polêmica tese sobre a relação do lúdico com a cultura foi defendida por Huizinga (1980). Para ele, o jogo é um construto historicamente constituído pela cultura, mas, dialeticamente, pode tratar-se de um fenômeno que, por ser anterior à cultura (os animais superiores brincam), impulsionou estruturalmente boa parte das instituições humanas (arte, justiça, guerra e sociedade, por exemplo).

Embora presente em diferentes instâncias e dinâmicas da vida social (trabalho, religião, sexo, política, etc.), é no lazer e, mais especificamente no jogo/brincadeira, que o lúdico é privilegiado no mundo acadêmico. Segundo Bramante (1998), a vivência lúdica seria unanimidade entre autores quando se tenta caracterizar o lazer. Mas tal entendimento também reafirma uma idéia de dependência do lúdico às investigações sobre o lazer, ou seja, de não tematização específica da ludicidade nessa área. Daí também o nosso interesse em buscar compreender o lúdico, de forma tematizada, nesse contexto.

Mesmo dentro dessa associação dominante, o termo mostra-se polissêmico. Pode se referir ao comportamento típico de jogo, tendo relação com a atitude ou estado de espírito. Uma segunda significação seria mais restrita, atribuindo ao lúdico apenas um adjetivo para as atividades de jogo e brincadeira. Ainda viria a ser a essência do jogo, confundindo barreiras entre o mundo interno e externo da psique. Em outra abordagem, é tido como constante antropológica que envolve todas as experiências de lazer. Devido ao seu caráter primordial (desestruturador/ estruturador), também seria uma força resistente ao racionalismo (Marcellino, 1990; Bruhns, 1993; Bramante, 1998; Bracht, 2003; Gomes, 2003).

Mais do que a 'diversidade' em torno de posicionamentos teóricos sobre o lúdico, o "não-encontro" de uma definição "adesiva" de lúdico, no campo de estudos do lazer, ultrapassa uma possível "fragilidade" dessa ou nessa área. A inquietação gerada por tal terminologia, ou melhor, constitutiva desta, essa não apreensão de seus sentidos, aponta para um possível movimento (discursivo) no campo do lazer pela ludicidade. Quem sabe um indicativo da desobrigaçação de uma tentativa de controle dos sentidos (como se isso fosse possível) pelos pesquisadores, como forma de "marcar" sua "(in)competência" e/ou "(des) conhecimento"?

A inquietação, como aquilo que possibilita advir o conhecimento, leva-nos a interrogar, portanto, já de forma reelaborada, sobre como o lúdico pode ser compreendido ao considerarmos o discurso dos pesquisadores em lazer, ou cujas idéias são apropriadas por eles, e de que forma ele (se) significa nas relações de sujeitos nas quais se inscrevem a língua e a história. O objetivo, como explicitamos, é compreender o lúdico como discurso e não reproduzir discursos sobre o lúdico. O percurso compreende explicitações dos dizeres "sobre" e do advir "de" "sentidos outros" que levem a "outros sentidos", os quais não estão ditos, mas também estão funcionando.

Levando em conta os efeitos de sentidos na área do lazer, optamos por partir de leituras sobre o lúdico construídas mediante um apanhado de autores em cujas discussões se encontram tentativas de defini-lo. Tomamos primeiramente o Dicionário crítico do lazer (Gomes, 2004), especificamente na palavra "lúdico", considerando-o como um lugar naturalizador de sentidos, que passam a ser tomados no seu efeito de evidência, a começar pela inscrição da palavra 'crítico' no próprio título. O percurso vai se configurando no ir e vir a autores como Huizinga (1980), Marcellino (1990), Bramante (1998), Bracht (2003) e Werneck (2003) nas suas buscas por esboçar ou conjugar uma espécie de 'tentativa de identidade' para o lúdico.

 

1. Entre o "apreensível" e o simbólico

Um dicionário, como o lugar em que os sentidos 'parecem' apreendidos e controlados, é tomado pelo 'efeito de literalidade' e 'naturalidade' que produz. É como se as possibilidades de uma palavra significar outra coisa estivessem restritas à margem de deslocamento técnico permitida pelo próprio dicionário.

A palavra "lúdico", por exemplo, em dicionários não especializados, como o Aurélio eletrônico (Ferreira, 1999), caminharia entre "jogos, brinquedos e divertimento", restrita a tais termos, igualmente dicionarizados. Ou seja, jogo é significado por terminologias que também estão disponíveis para consulta, no dicionário, como é o caso de brinquedo e divertimento, os quais vão produzir, por sua vez, também efeitos de sentidos na recorrência à origem etimológica das palavras, limitando-se às relações terminológicas. Questionando o efeito de literalidade, Pêcheux (1997, pp. 262-263) afirma que "uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhes seria próprio, preso a sua literalidade; nem, acrescentaríamos, sentidos deriváveis a partir dessa literalidade por meio de uma combinatória lógicolingüística que dominaria sua ambiguidade [...]"1.

Os dicionários especializados são uma tentativa de sair desse lugar comum, ou senso comum, no sentido de se contrapor a significações generalizadas presentes nos dicionários não-especializados. Ao se buscar uma especificidade para as palavras, de modo que elas sejam significadas de forma apropriada à área de conhecimento na qual circulam, os dicionários especializados podem re-colocar em funcionamento o efeito de transparência e de controle dos sentidos.

Dicionário crítico do lazer (2004) traz no próprio título a inscrição dessa memória social em torno do dicionário. Isso pode ser observado ao tomarmos a marca "crítico", palavra também afetada por um efeito de transparência. Crítico, no dicionário eletrônico Aurélio (1999), é definido primeiramente como algo "pertencente ou relativo à crítica", que, por sua vez, é definida como "arte ou faculdade de examinar e/ou julgar as obras do espírito, em particular as de caráter literário ou artístico" ou "a expressão da crítica, em geral por escrito, sob forma de análise, comentário ou apreciação teórica e/ou estética".

No caso das palavras "crítico" e "crítica", estas possuem outras definições no dicionário não-especializado, que poderiam levar a outros sentidos; o que possibilitaria um estudo só sobre isso. Mas os sentidos que participam da memória social da crítica/crítico estão presos a essa idéia de julgamento de alguma coisa, como se fosse revelá-la, trazer à tona o que estava "escondido", ou mesmo apontar os pontos de fragilidade.

Quando se insere a palavra "crítico" em meio ao Dicionário do Lazer, a memória em torno da palavra dicionário advém, mas já afetada pela especialidade de uma área, no caso, a do Lazer. Ou seja, ao mesmo tempo em que o lugar social do dicionário é posto em questionamento, como lugar de evidência, de não-questionamento, o campo do lazer também é problematizado do seu lugar naturalizador, na re-produção de sentidos que se 'cristalizam' no meio acadêmico e profissional, já que em um dicionário especializado funcionam pré-construídos de uma área de conhecimento. A palavra crítico, ao sugerir uma problematização de definições da própria área para os termos nela empregados, também arrisca re-instaurar um (novo) lugar de evidência.

 

2. (Des) dicionarizando o lúdico

A explicitação da memória social em torno do dicionário ajuda a compreender os sentidos produzidos pelo dicionário especializado, no contexto do lazer. Isso considerando que o nosso foco de interesse, o lúdico como discurso, se inscreve fortemente nesse campo de estudo, sendo uma entre as terminologias dicionarizadas por um instrumento específico destinado aos estudiosos, estudantes e profissionais da área.

O dicionário de língua portuguesa do Brasil cumpre um "papel legitimador" de uma língua nacional na constituição/consolidação de uma nação (que se queria) distinta de Portugal, mas que para ser legitimada/reconhecida como legítima, precisava se identificar com o mundo ocidental europeu2. Daí o "duplo eixo", referido por Orlandi (2002, p. 30), segundo o qual se trabalha a gramatização, em um país colonizado, como é o caso do Brasil: "o da universalização e o do deslocamento".

Os dicionários especializados também cumprem esse papel legitimador na instauração de um saber que se quer próprio à área, buscando marcar sua diferença na relação com outros campos do saber. Já um dicionário que, dentro da própria área, se quer ainda crítico em relação à mesma, traz inscrita a possibilidade desse duplo de "universalização e de deslocamento". Primeiro se faz reconhecido na área para depois buscar marcar sua especificidade em relação a esta, procurando realizar um deslocamento de sentidos tomados em sua evidência. Vale saber se esse movimento realmente se efetiva ou se re-instaura, como dissemos, um (outro) espaço naturalizador.

Para discutirmos o Dicionário crítico do lazer, vamos partir da obra clássica Homo Ludens, do filósofo e historiador Johan Huizinga, datada da década de 30, à qual Gomes (2004) também faz referência. A explicação para lúdico, por este autor, está atrelada a jogo, e este é o elemento central de sua discussão ao longo do livro. Nesse caminhar, lúdico aparece preso à palavra jogo no sentido de "regras". E como jogo faz parte do universo do lazer, interessa à área e à construção de um dicionário na área.

Huizinga (1980) considera que há regras no jogo que são instituídas, mas também aceitas pelos sujeitos que se colocam em jogo. Neste, há competição. Na sua visão, o lúdico pode estar no jogo quando, ao assumir/aceitar essas regras, ao se colocar numa condição de competição, o sujeito não simplesmente coloca o outro como seu opositor, mas como um integrante do processo, com quem também pode rir, conversar, etc. Quando o outro passa a não ser mais considerado no seu aspecto 'cordial', o lúdico desaparece.

Gomes (2004), autora que apresenta os sentidos para lúdico no Dicionário crítico do lazer, diz concordar com Huizinga "quando este ressalta que o lúdico caracteriza-se pela livre escolha, busca a satisfação [...]", mas discordar da gratuidade (ou desinteresse) do lúdico, de ser "exterior à vida real", "propiciando a evasão" (da realidade). Desta forma, mostra posicionar-se ao lado de Humberto Eco, em sua análise do dizer de Huizinga, falando que o jogo "não é desinteressado".

Huizinga produz certo saudosismo das civilizações em que o jogo estava nitidamente inscrito nas ações cotidianas, misturando-se e fundindo-se a elas. No seu entendimento, essa mesclagem vai sendo afetada com o passar dos anos, pelo ritmo do trabalho, que impõe o controle rigoroso do tempo e sua necessária oposição à livre escolha.

O esporte ocupa, na vida social moderna, um lugar que ao mesmo tempo acompanha o processo cultural e dele está separado, ao passo que nas civilizações arcaicas as grandes competições sempre fizeram parte das grandes festas, sendo indispensáveis para a saúde e a felicidade dos que nelas participam. Esta ligação com o ritual foi completamente eliminada, o esporte se tornou profano, foi 'dessacralizado' sob todos os aspectos e deixou de possuir qualquer ligação orgânica com a estrutura da sociedade, sobretudo quando é de iniciativa governamental. (Huizinga, 1980, p. 220)

Ele não diz que o jogo tenha desaparecido da civilização afetada pelas relações de mercado ou que não estabeleça ligação com a realidade, mas que deixou de estar inscrito nas relações cotidianas de modo a confundir-se com elas; até porque o compreende como regras às quais os sujeitos se submetem e as aceitam. O jogo passa a ser afetado por essa separação entre o que vem a ser considerado 'sério' e o que foi colocado como contrário à 'seriedade'.

É na separação entre relações intrínsecas cotidianas e o jogo que está um dos incômodos de Huizinga. Nas comunidades rurais, trabalho e lazer, labor e lúdico eram dimensões complementares e indissociáveis na prática. A identificação do lúdico com o lazer e de ambos com o não-sério3, leitura coerente com o ascetismo moderno, é uma construção advinda de uma nova etapa da história humana na qual tempo é dinheiro. Evidencia-se, portanto, uma necessidade positivista e industrial em separar o tempo, visando sua racionalização. O que é produtivo ao sistema passa a ser valorizado e, no tempo de não-trabalho, são reunidas todas as manifestações lúdicas (outrora entrelaçadas na vida cotidiana), funcionalmente manipuladas, por meio da recreação, para compensar o desgaste do trabalho estranhado4.

O incômodo com essa condição moderna do lúdico vai fazer Huizinga entender o jogo das antigas civilizações como "o verdadeiro jogo", "a verdadeira civilização". É a mecanização do jogo que o filósofo denuncia, proveniente dessa separação provocada pela imposição do trabalho, tendo que ser visto como algo oposto àquilo que não pode ser considerado sério. O problema é que a sua constatação levou-o a uma idolatria do passado, num fortalecimento da dicotomia entre verdadeiro e falso, sagrado e profano, real e imaginário, e não em uma complexidade ou contradição constitutiva.

Destarte, o jogo, no qual as regras são necessárias, deixa de possuir o seu elemento lúdico quando a razão, o controle, matam qualquer possibilidade de advir relações subjetivas, de certa forma desinteressadas no sentido de que em meio a regras e a adversários sobreviva o espírito aventureiro, amigo, humano. Por isso, ele falar em "desinteressado". Não que o jogo em si seja desprovido de desinteresse, mas o lúdico, instantes únicos, estaria.

O que chama mais atenção em Huizinga é a necessidade de marcar algo como "verdadeiro", opondo-se àquilo que seria "falso": "verdadeiro jogo"; "verdadeiro espírito lúdico"; "autêntico jogo"; "verdadeira civilização". Ao retomar a criança, para falar de lúdico, este não está inscrito na faixa etária, ou seja, preso a um período da vida, como acontece com a definição de jogo do dicionário não especializado. Está na ludicidade possível pela libertação de certos controles que ainda não tomaram conta da imaginação da criança. Porém, continua funcionando a idéia de que existe um "jogo verdadeiro", pressupondo-se a existência de um jogo falso: "[...] no verdadeiro jogo é preciso que o homem brinque como uma criança" (Huizinga, 1980, p. 221).

Observemos também os recortes5 abaixo:

No caso do esporte temos uma atividade nominalmente classificada como jogo, mas levada a um grau tal de organização técnica e de complexidade científica que o verdadeiro espírito lúdico se encontra ameaçado de desaparecimento.6 (Huizinga, 1980, p. 221)

O autêntico jogo desapareceu da civilização atual, e mesmo onde ele parece ainda estar presente trata-se de um falso jogo, de modo tal que se torna cada vez mais difícil dizer onde acaba o jogo e começa o não-jogo.7 (Huizinga, 1980, p. 229)

Chegamos, portanto, através de um caminho tortuoso, à seguinte conclusão: a verdadeira civilização não pode existir sem um certo elemento lúdico, porque a civilização implica a limitação e o domínio de si próprio, a capacidade de não tomar suas próprias tendências pelo fim último da humanidade, compreendendo que se está encerrado dentro de certos limites livremente aceitos.8 (Huizinga, 1980, p. 234)

Essa 'necessidade' de 'des-qualificação' do jogo, do lúdico e da sociedade como 'verdadeiro' ou 'falso', de explicitação de uma 'autenticidade' ou 'ausência desta', incomoda não só pela retomada desses pré-construídos de verdade e de validade, mas, inserido nisso, a própria negação de uma contradição constitutiva em funcionamento.

Arriscamos dizer que uma civilização não existe sem o lúdico, porque se faz entre regras e não-regras, entre o controle e o não-controle, na submissão e no domínio; nas relações sagradas e profanas. A dicotomia é uma tentativa de marcação de territórios necessária a uma sociedade que precisa definir limites; por isso separar o que vai ser tomado como certo daquilo que vai ser julgado como errado. Mas a dicotomia é constitutiva, não separatória. O sagrado se inscreve no profano e vice-versa, assim como há uma liberdade inscrita no controle, e regras para a liberdade. Por isso, faz sentido pensar na presença do lúdico no jogo. Em outros termos, seria condizente suspeitar que a essência da ludicidade seja justamente a sua capacidade metafórica ("transferência"). Metáfora discursivamente entendida como "constitutiva do sentido", já que este existe "exclusivamente" nas relações metafóricas, conforme Pêcheux (1997, p. 263).

Não podemos desconsiderar, no entanto, que o controle gerado 'de fora para dentro' do jogo, ou seja, a partir de uma influência da ordem do urbano (competições, maratonas, campeonatos, disputas 'autorizadas', demarcadas, legalmente aceitas, em lugares legítimos ou legitimados, que não 'desorganizam' o espaço da cidade), na condução do jogo, vai produzindo efeitos de fechamento de sentidos no advir da ludicidade. Por mais que ocorram tentativas de apreensão do jogo, de controle deste, podem existir espaços nos quais ele aconteça em situações 'ilegítimas', 'despreocupadas', construídas no contato entre sujeitos que se colocam em relações 'desobrigadas' —o que requereria uma análise propriamente dita de situações de jogo.

Em seus 'percursos' sobre a cidade, Orlandi (2004) leva a observar que o discurso do urbano se constitui a partir da sobreposição do conhecimento urbano à realidade da cidade. Interrogando-se por essa organização urbana, a autora busca olhar para "lugares onde os sentidos faltam" (desorganizam esse urbano); vestígios do real da cidade a se dizer. Tal discussão nos faz questionar se a busca de apreensão do lúdico no contexto do jogo ou do brincar, ou mesmo a recusa de que ele esteja em funcionamento no primeiro, conduziria a uma tentativa de conjugação da ludicidade à 'organização' do que chamaremos de um 'discurso disciplinar do lazer'. Trata-se de uma necessidade de dar conta do lúdico, em espaço organizado e definido, dentro dessa área disciplinar (sistematizada) que estaria, como possibilidade, apagando o lúdico em seu sentido desorganizador, destituído de controle, devido a uma ânsia por visualizá-lo, mas não permitindo a ele se dar a ver.

No Dicionário Aurélio eletrônico (Ferreira, 1999), jogo aparece como "atividade física ou mental organizada por um sistema de regras que definem a perda ou o ganho". Tal definição traz à tona a questão da regra, que pode estar ou não funcionando como elemento inibidor da ludicidade, quanto menos se abrem brechas para o 'não-controle'. O lúdico não é referido nesse contexto, e ganhar ou perder está relacionado a regras, àquilo que é previamente definido como ganho ou perda resultante desse 'funcionamento regrado'. Mas 'perde-se' e 'se ganha' de infinitas outras formas que fogem ao controle racional.

A descontinuidade conceitual entre jogo e lúdico, observada no Aurélio (Ferreira, 1999), se re-verte num descontinuum, em meio a uma tentativa de 'desatrelamento', do lúdico ao jogo no Dicionário crítico do lazer. Apesar deste instrumento lingüístico não trazer definição de jogo, se 'contorce' para tentar definir lúdico na referência a "jogo" a todo o momento.

Outra abordagem pela qual o lúdico é tomado é a 'positividade' do termo, na 'positividade' do sentido. Gomes (2003) se refere ao alerta de estudiosos do lazer sobre se associar ao lúdico apenas o prazeroso. É o caso de Bracht (2003), citado pela autora. A crítica advém, por parte deste autor, porque, numa situação de jogo em que a criança sinta prazer, por exemplo, também existe o controle de 'fora', da indústria cultural. Para outros pesquisadores, como Marcellino (1990), segundo Gomes, lúdico também "pode significar uma experiência revolucionária" (Gomes, 2004, p. 144).

No dicionário que se quer crítico, ao trazer tais posicionamentos teóricos, Gomes procura problematizar visões, tidas como extremistas, que vêem no lúdico apenas o seu aspecto positivo ou somente uma 'subversão'. Há, por parte da autora, uma sedução por compreender o lúdico como linguagem, como movimento. Isso pode ser observado quando afirma: "[...] entre as abordagens possíveis, parece-me acertada a compreensão do lúdico como uma forma de expressão humana, ou seja, como linguagem, conforme sinalizou José Alfredo Debortoli"9 (Gomes, 2004, p. 145). A partir disso, cita a necessidade de estudar autores como Bakhtin. Como não se apropria de tais estudos na discussão, Gomes restringe-se a afirmar:

[...] o lúdico, sendo linguagem humana, pode manifestar-se de diversas formas (oral, escrita, gestual, visual, artística, dentre outras) e ocorrer em todos os momentos da vida [...]. Todavia, como visto, em nossa sociedade capitalista o lúdico é equivocadamente relegado à infância e tomado como sinônimo de determinadas manifestações da nossa cultura (como festividades, jogos, brinquedos, danças, músicas, entre inúmeras outras). Mas as práticas culturais não são lúdicas em si. É a interação do sujeito com a experiência vivida que possibilita o desabrochar da ludicidade.10 (Gomes, 2004, p. 145)

A autora 'requer' uma desestabilização inicial de posicionamentos teóricos, talvez por ter sido seduzida a inscrever na discussão do lúdico o aspecto linguagem. Mas há uma falta necessária à discussão de Gomes, que, a nosso ver, configura-se como sendo a abordagem discursiva, na qual discurso não é fala, escrita ou imagem, mas "efeito de sentido".

Ao falar sobre a "interação do sujeito com a experiência vivida" para o "desabrochar da ludicidade", abre para a possibilidade de se situar suas idéias na relação constitutiva entre sujeitos e sentidos, o que já desestabiliza tentativas de 'localização' do lúdico em materialidades como o jogo, a dança, o brincar. Posicionando-se numa perspectiva materialista, Pêcheux (1997, p. 255) formula como tese que "o real existe, necessariamente, independente do pensamento e fora dele, mas o pensamento depende, necessariamente, do real, isto é, não existe fora do real"11.

No recorte abaixo, Gomes retrata o 'mesclar' entre elementos socialmente apresentados como antagônicos:

Nessa direção, entendo o lúdico como expressão humana de significados da/na cultura e referenciada no brincar consigo, com o outro e com o contexto. Por essa razão, o lúdico reflete as tradições, os valores, os costumes e as contradições presentes em nossa sociedade. Assim, é construído culturalmente e cerceado por vários fatores: normas políticas e sociais, princípios morais, regras educacionais, condições concretas de existência.12 (Gomes, 2004, p. 145)

Em outro recorte, diz:

Como expressão de significados que tem o brincar como referência, o lúdico representa uma oportunidade de (re)organizar a vivência e (re)elaborar valores, os quais se comprometem com determinado projeto de sociedade. Pode contribuir, por um lado, com a alienação das pessoas: reforçando estereótipos, instigando discriminações, incitando a evasão da realidade, estimulando a passividade, o conformismo e o consumismo; por outro, o lúdico pode colaborar com a emancipação dos sujeitos, por meio do diálogo, da reflexão crítica, da construção coletiva e da contestação e resistência à ordem social injusta e excludente que impera em nossa sociedade.13 (Gomes, 2004, p. 146)

Entende que o lúdico não está livre das regras sociais, sendo afetado por elas. Assim, poderia servir tanto à alienação quanto à resistência à ordem social. Por mais que tenha encontrado no lúdico o seu constituinte 'contradição', baseada em trabalho anterior (Werneck, 2003) no que se refere aos antagonismos presentes no lúdico, continua pensando-o de forma fragmentária e estanque. Ao fazer isso, retrocede à idéia de que lúdico é algo controlável, manipulável, podendo ser regido de acordo com os interesses de alguém.

Há de se observar com cuidado o possível jogo de compensações ao se buscar um conteúdo crítico para o sentido de lúdico em nossa sociedade. Baudrillard (1992), ao falar da "degradação no nível função, a degradação funcional do jogo" surge com contra-argumentos para as tentativas de utilizar o jogo para satisfazer alguma compensação ou solucioná-la. Por se acreditar que o lúdico possa ser alienante ou emancipador, surgem o jogo-terapia, o jogo-criatividade, o jogo-educação, o jogorevolução entre outras funções comuns em toda a psicologia infantil e pedagogia.

Segundo o autor, nessa perspectiva funcional, mesmo se visto como alternativa para o sistema, o jogo não passa de um meio. Esquecendo-se dele como prazer em si próprio, cai-se novamente nas malhas do poder:

[...] o jogo como transgressão, espontaneidade, gratuidade estética ainda é apenas a forma sublimada da velha pedagogia dominante, que consiste em conferir um sentido ao jogo, destiná-lo a um fim e, portanto, expurgá-lo de seu próprio poder de sedução. (Baudrillard, 1992, p. 180)

Baudrillard chama a atenção para a impossibilidade de capturar-se ou apreenderse racionalmente no lúdico a "paixão pela ilusão que o caracteriza". Essa "ilusão", ou perda temporária de alguns constrangimentos da vida social ('realidade'), situa-se além da capacidade funcional do jogo. Por isso, o lúdico não precisa ser funcionalizado para a subversão; seu espírito já é de uma transgressão à realidade.

Onde, então, o lúdico se materializa e o lazer se materializa? Se tomarmos o lúdico como materializado no lazer, precisamos nos perguntar o que é o lazer e como ele acontece. Gomes (2004, p. 125), ao buscar uma definição para lazer, no mesmo dicionário em questão, apresenta:

[...] em síntese, entendo o lazer como uma dimensão da cultura constituída por meio da vivência lúdica de manifestações culturais em um tempo/espaço conquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações, especialmente com o trabalho produtivo.14

Em sua definição de lazer, pode-se entender que o lúdico se inscreve como algo necessário à existência deste. Assim, se não há vivência lúdica, não haveria lazer. Contudo, os sentidos para o lazer, que tentam se firmar entre os estudiosos, trazem a idéia de "uso do tempo livre", "ocupação do tempo disponível", entre outros. Esses profissionais, ao buscarem uma "identidade" para o lazer, reproduzem identificações.

Para reconhecer a existência do lazer, recorre-se à oposição entre lazer e trabalho, mesmo que se busque teorizar sobre a existência do lazer interdependente ao trabalho, como afirma Gomes (2004, pp. 124-125):

[...] o lazer se inscreve no seio das relações estabelecidas com as diversas dimensões da nossa vida cultural (o trabalho, a economia, a política e a educação, entre outras), sendo institucionalizado na atualidade como um campo dotado de características próprias.

Essa institucionalização, presente na área do lazer, faz advir essa memória de lazer como oposição a trabalho, fortalecendo a dicotomia entre fazer (produtivo) e não-fazer (improdutivo); entre ocupação (seriedade) e desocupação (vagabundagem). A própria tentativa de dar ao lazer o seu caráter de "seriedade", "falar de lazer é coisa séria", inscreve essa necessidade de marcar-se como um profissional "sério" dentro da sociedade. Então se diz para o profissional do lazer: 'você não trabalha, só se diverte'. E o profissional responde: 'O lazer é o meu trabalho'. Mas há aquele que também diria: 'O trabalho é o meu lazer'. E aí se começa a deslocar o sentido de trabalho como algo separado do lazer.

A dificuldade de se encontrar uma definição para o lúdico também está no fato de que ao se requerê-lo para a área do lazer, este já está afetado por essa memória. Assim, essa relação dicotômica com o trabalho acaba afetando as tentativas de definição de lúdico.

E se lazer não é sinônimo de lúdico e vice-versa, como afirma Gomes (2003), embora coloque o lúdico como necessário ao lazer, tem-se um efeito de aproximação nem sempre possível. Compreendemos que lazer envolve o que eu faço em algum momento, de alguma forma, que me permita uma sensação de liberdade mesmo estando submetido a regras, e de criação, mesmo sem resultado. Nesse caso, o lúdico nem sempre está presente no lazer, embora seja requerido. Este não existe já, pelo fato da prática de lazer acontecer.

 

3. Considerações (não) estabilizáveis

Os entremeios pelos quais buscamos nos inserir nas discussões acadêmicas sobre lúdico, no contexto dos estudos do lazer, levam à compreensão, até o momento, de que metodologicamente é possível 'atribuir-lhe' uma definição, mas não apreendêlo. Compreender o lúdico implica estar inserido nele, ser por ele interpelado. Ao se tentar racionalizá-lo, confronta-se com uma interdição à ludicidade.

O lúdico impõe resistência. Arriscamos dizer que a sua constitutividade está em resistir. É resistindo que é possível se ter ludicidade. Resistência não como oposição direta, mas aquela inscrita no interior do próprio movimento. Metaforizando Orlandi (2004, p. 68), resistir é, também nesse contexto, "desorganizar", ou seja, "desentender, incompreender". Diríamos, desestabilizar.

O sentido discursivo de lúdico está inscrito nele como silêncio. Aquele que ao se tentar traduzir em palavras, deixa de ser silêncio, porque existe enquanto silêncio que é. "O silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma totalidade significativa" (Orlandi, 1997, p. 70). Assim, não se trata do silêncio como ausência de sonorização/barulho, mas do silêncio "como sentido, como história (silêncio humano), como matéria significante". Trata-se do silêncio que não está apenas entre as palavras, mas "as atravessa" (Orlandi, 1997, p. 71).

Tal compreensão leva a esboçar um entendimento da dificuldade em definir o lúdico, não só entre os profissionais da área, mas também entre os não profissionais. Bramante (1998, p. 13) relata que "ao perguntar-se para essas pessoas o que estão sentindo naquele exato momento da experiência lúdica, constata-se a lembrança com meias palavras como... é..., sabe..., ...olha, ...eu não sei lhe explicar... você tem que experimentar para sentir...".

Mas além do "silêncio fundador", aquele que existe nas palavras como condição para a produção de sentidos, o lúdico, tal como é definido nos dicionários não especializados, também faz advir o "silêncio local", que se refere à censura, ou seja, aquilo que é proibido dizer em uma determinada época e lugar. Lúdico, portanto, preso a brincadeira, jogo, diversão e recreação, silencia outros sentidos como a crítica e o pensamento para a crítica. Então a única liberdade possível para o lúdico fica sendo aquela da ausência do trabalho e a desobrigação momentânea de não cumprir obrigações. Instaura-se, assim, novamente, o funcionamento da dicotomia do lúdico como oposição à seriedade, ao comprometimento.

No espaço urbano, o lúdico, para ser socialmente aceito como um não interdito, precisa ser autorizado, legitimado. Por isso, as práticas lúdicas públicas geralmente aparecem vinculadas a 'atividades' de lazer, institucionalmente organizadas em ruas, praças e escolas. Nesses casos, não só o espaço é delimitado como o tempo é controlado e os jogos/brincadeiras dados/conduzidos pelos organizadores. Há, contudo, práticas lúdicas que se inscrevem no cotidiano da rua, desorganizando o espaço urbano na perspectiva do discurso da urbanidade. Funcionam como parte integrante do real da cidade, possibilitando que outros sentidos advenham15. Isso pôde ser observado em uma pesquisa realizada por Pimentel (2004), que investigou o lazer como práticas discursivas inscritas no cotidiano da rua.

O estudo surgiu de observações cotidianas de uma rua, na cidade de Maringá (PR), onde ocorriam práticas de lazer não legitimadas, por sujeitos outros (moradores da rua ou das proximidades), ocupando espaços, nesse caso, de interdição como a rua e a calçada, urbanisticamente destinadas à circulação de carros e pessoas, e não para a realização de brincadeiras e jogos. Tal investigação permitiu observar que

[...] o que funciona mesmo como Rua Lúdica não é o que permanece como préconstruídos do lazer: jogos e brincadeiras, ou mesmo o uso do chamado 'tempo-livre', que por si só já se opõe a trabalho: tempo ocupado. A ludicidade da rua é justamente o ludismo silenciado na rua, no lazer nessa rua. Daí dizermos que a rua lúdica é a rua silenciada. (Pimentel, 2004, p. 10)

Referida aqui na tentativa de suscitar problematizações, tal discussão leva-nos a re-afirmar a possibilidade de que o lúdico se configure, no contexto do lazer, como o seu "irrealizado". Nesse sentido, para que o lúdico se realize no lazer, ele antes requer ser compreendido em sua especificidade constitutiva: ser inapreensível na resistência à apreensão.

O entendimento de que profissionais/estudiosos do lazer não encontram, nem na prática, nem na teoria, uma orientação de como lidar com o lúdico, põe a ver que a ludicidade requer outros olhares, sentidos outros. Não significa destituir o lúdico de uma abordagem científica. Tomá-lo em sua cientificidade é justamente não aprisioná-lo a definições e conceitos limitadores e distorcidos. Pêcheux, ao formular os dispositivos teóricos e analíticos da AD, queria justamente dotar a lingüística de um instrumento científico. Segundo Henry (1997, p. 36), para Pêcheux "os instrumentos científicos não são feitos para dar respostas, mas para colocar questões".

Se o lúdico não se faz/significa tomado pela evidência, 'movendo-se' a cada tentativa de apreensão, já que "o dizer precisa da falta" (Orlandi, 1997, p. 49), ele é, pois, um não-pré-construído do lazer. O incômodo gerado não permite que seja aceito sem questionamento, sem contraposições. Desestabiliza o lugar das evidências. Não se 'instala' em lugar algum, embora historicamente diligências ocorressem nesse sentido, mas se dá nas relações de linguagem, sempre em movimento.


* Artigo resultado de investigação interinstitucional. Iniciado em 2006 e concluído em 2009. Possui financiamento pela Fundação Araucária do Governo do Estado do Paraná, Brasil, para sua difusão.

1 Grifos do autor.

2 Tal discussão pode ser encontrada nos estudos de Orlandi (2002); Orlandi (1990); Guimarães (2001).

3 Até o período pré-industrial, as pessoas sabiam, na maior parte das vezes, quando estavam se divertindo e quando estavam trabalhando (e o trabalho era considerado penoso, tanto que a palavra advém do latim tripalium, i. e., tortura). Mas esses momentos não eram racionalizados, divididos em tempos estanques. Quando isso ocorre, o lazer, fruto das reivindicações dos operários e —contraditoriamente— descanso necessário à recomposição psicossomática para o labor, é associado como momento do lúdico. Essa associação reproduzida no campo epistêmico —o lúdico passa a ver visto como objeto dos estudos do lazer— está longe de ser algo natural, mas fruto da organização do tempo sob o capitalismo, visando à produtividade (Sant'anna, 1994).

4 Interessante notar na atualidade a tentativa de tornar o ambiente de trabalho mais lúdico, especialmente nas empresas que necessitam de criatividade como causa motora de sua produção. Destarte, o trabalho precisa ser lúdico para ser significativo, embora ainda se objetive o lúdico apenas no jogo/brincadeira ou na infância.

5 Os trechos em questão não aparecem recuados segundo as normas de citação longa porque estão sendo apresentados como um recorte de análise, não simplesmente como citações.

6 Grifo nosso.

7 Grifos nossos.

8 Grifo nosso.

9 Grifo da autora.

10 Grifos da autora.

11 Grifos do autor.

12 Grifos da autora.

13 Grifo da autora.

14 Grifos da autora.

15 Estudos sobre o real da cidade podem ser encontrados em: Orlandi (2001); Orlandi (2003); Orlandi (2004).


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