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Universitas Humanística
Print version ISSN 0120-4807
univ.humanist. no.78 Bogotá July/Dec. 2014
Género sem essencialismo: feminismo transgénero como crítica do sexo1
Género sin esencialismo: feminismo transgénero como crítica del sexo
Gender without Essentialism: Transgender Feminism as a Critique of Sex
Jaqueline Gomes de Jesus2
Centro Universitario Planalto del Distrito Federal, Brasil3
jaquelinejesus@unb.br
1Artículo de reflexión en lo cuál emprendo una investigación sistemática, desde una perspectiva interpretativa, en torno de una línea intelectual e de acción feminista en construcción, el "feminismo transgénero" o "transfeminismo", sirviéndome de una lectura crítica de fuentes bibliográficas de diversos orígenes (producción técnica de investigadores y pensamiento comprometido de activistas), que presentan análisis teóricos y políticos propios sobre sexo, género, cuerpo, masculinidad, feminidad y feminismo — en general disidentes al feminismo tradicional. Mi propuesta es, a través de un trabajo de comprensión comparativa, sintetizar los principios del transfeminismo como teoría feminista y su agenda como campo de enfrentamientos ideológicos y prácticos, lo que implica, de alguna manera, en lo encadenamiento de un nuevo discurso, que se basa en textos de diferentes personas acerca de un concepto en abierto.
2Doctorado en Psicología Social del Trabajo y las Organizaciones por la Universidad de Brasília, Brasil.
3Profesora del Centro Universitario Planalto del Distrito Federal, Brasil.
Documento accesible en línea desde la siguiente dirección: http://revistas.javeriana.edu.co
Recibido: 16 de septiembre de 2013 Aceptado: 3 de febrero de 2014
Cómo citar este artículo
Jesus, J. G. (2014). Género sem essencialismo: feminismo transgénero como crítica do sexo. Universitas Humanística, 78, 241-258. http://dx.doi.org/10.11144/Javeriana.UH78.gsef
Resumo
O feminismo transgénero, mais popularmente denominado como transfeminismo, é linha de pensamento e prática feminista que rediscute e critica a subordinação morfológica do género (como construção psicossocial) ao sexo (como biologia), com repercussões teóricas e políticas sobre os corpos. O presente artigo identifica, por meio de análise crítica, os fundamentos teóricos do transfeminismo no processo histórico de consciência política e de resistência, a partir das leituras que orientam académicos e militantes, constituído pelo feminismo negro e outras linhas de pensamento feminista; reconhecendo e apontando para as múltiplas contribuições de diversos saberes. Conclui-se que os elementos fundamentais que determinam e orientam o feminismo transgénero são: a redefinição da equiparação entre gênero e biologia, a reiteração do caráter interacional das opressões, o reconhecimento de histórias de lutas pela livre expressão de género e a validação das contribuições de quaisquer pessoas para o pensamento e a ação transfeminista, independentemente de sua identificação de género.
Palavras-chave: género; sexo; feminismo; processos grupais; relações interpessoais; política identitária; identidade social
Resumen
El feminismo transgénero, más popularmente denominado como transfeminismo, está en la línea de pensamiento y la práctica feminista que retoma la discusión y critica la subordinación morfológica de género (como construcción psicosocial) al sexo (como biología), con repercusiones teóricas y políticas sobre los cuerpos. El presente artículo identifica, por medio del análisis crítico, los fundamentos teóricos del transfeminismo en el proceso histórico de conciencia política y de resistencia, a partir de las lecturas que orientan académicos y militantes, constituido por el feminismo negro y otras corrientes de pensamiento feminista; reconociendo y apuntando hacia las múltiples contribuciones de diversos saberes. Se concluye que los elementos fundamentales que determinan y orientan el feminismo transgénero son: la redefinición de la equiparación entre género y biología, la reiteración del carácter interactuante de las opresiones, el reconocimiento de historias de luchas por la libre expresión de género e a validación de las contribuciones de cualquier persona al pensamiento y la acción transfeminista, independientemente de su identificación de género.
Palabras clave: género; sexo; feminismo; procesos grupales; relaciones interpersonales; política identitaria; identidad social
Abstract
Transgender feminism, more popularly termed as transfeminism, is a feminist line of thought and practice which discusses and criticizes the morphological subordination of gender (as psychosocial construction) to sex (as biology), with theoretical and political repercussions on the bodies. This article identifies, through critical analysis, the theoretical foundations of transfeminism in the historical process of political consciousness and resistance, from readings which orientate academics and activists, constituted by the black feminism and other lines of feminist thought; recognizing and pointing out to the multiple contributions of diverse guidelines. The conclusion is that the fundamental elements that determine and guide transgender feminism are: the redefinition of the match between gender and biology, the reiteration of the interactional character of the oppressions, the recognition of stories of struggle for free gender expression and the validation of contributions from any individuals for the transfeminist thought and action, regardless of their gender identification.
Keywords: gender; sex; feminism; group processes; interpersonal relations; social identity
Introdução
Transfeminismo é um termo surgido no contexto do movimento intelectual e político da população transgénero4 -composta majoritariamen-te por travestis e mulheres e homens transexuais5- norte-americana, que é cada vez mais frequente nas rodas de discussão feministas e sobre género da América Latina, em especial por meio das redes sociais da internet.
Mais raramente conhecido como feminismo transgénero, o transfeminismo pode ser definido como uma linha de pensamento e de prática feminista que, em síntese, rediscute a subordinação morfológica do género (como construção psicossocial) ao sexo (como biologia), condicionada por processos históricos, criticando-a como uma prática social que tem servido como justificativa para a opressão sobre quaisquer pessoas cujos corpos não estão conformes à norma binária homem/pénis e mulher/vagina, incluindo-se aí: homens e mulheres transgénero; mulheres cisgénero histerectomizadas e/ou mastectomizadas; homens cisgénero orquiectomizados e/ou emasculados; e casais heterossexuais com práticas e papeis afetivossexuais divergentes dos tradicionalmente atribuídos, entre outras pessoas. O transfeminismo é uma categoria do feminismo em construção, a qual emerge como resposta teórica e política à falha do feminismo de base essencialista, comumente biológica, em reconhecer o género como uma categoria distinta da de sexo, o que reforça estereótipos sobre os corpos.
O presente artigo desenvolve uma arqueologia do transfeminismo, identificando os seus fundamentos teóricos no processo de conscién-cia política e de resisténcia constituído pelo feminismo negro e outras linhas linhas de pensamento feminista; reconhecendo e apontando para as múltiplas contribuições de diversos saberes, académicos e militantes, na sua formulação ora em curso.
Procedeu-se a uma análise crítica de textos de diversos autores, em diferentes línguas e campos do conhecimento, sobre as características, os objetivos e os elementos fundamentais que determinam e orientam o feminismo dito transgénero ou trans6, buscando-se verificar leituras que influenciam suas produções.
O Transfeminismo é Útil?
Um texto cuja leitura seria indicada para uma pessoa interessada em entender a razão de ser da linha de pensamento e ação transfeminista seria Histerectomia, um relato, crónica de Lia Mara Mayer (2013) -reconhecida como um desabafo- sobre as reações de pessoas próximas, ante ao fato de que, casada e com um filho, ela teria que retirar o seu útero.
Nessa confissão, ela reproduz falas significativas que ouviu, como: "viver sem útero deve ser muito difícil, afinal, é sua esséncia que não existe mais" (Mayer, 2013, p. 1). Alguns dos poucos que já tiveram um contato com discussões transfeministas, e pelo menos conhecem o termo, perguntarão: o que a experiéncia dessa mãe de família tem a ver com a de pessoas trans?; simplificando, tudo.
Tal qual questões relevantes para pessoas cisgénero7 não se restringem às próprias pessoas cisgénero, o mesmo ocorre com certas particularidades na vivéncia social de pessoas transgénero, que não se limitam a elas, porque o fator que permeia ambos os grupos é o género, vivido de formas semelhantes e diversas.
Mayer vivenciou uma opressão cotidianamente impingida pelo senso comum, em especial, a mulheres transexuais: a de que seriam menos mulheres -ou que não seriam mulheres- por não terem a esséncia feminina supracitada, atribuída a um órgão reprodutivo, o útero.
Perceber isso é ter um olhar transfeminista, a partir de vivéncias como as das pessoas trans, útil para análise e ação frente ao que se pode chamar de um apartheid de género (originalmente cunhado por Martine Rothblatt como apartheid de sexo) que sufoca pessoas de todos os géneros e identidades sociais.
Retomando o subtítulo, pode-se aventar que o transfeminismo é útil porque auxilia na compreensão do género para além das limitações interpretativas colocada pelo pensamento atrelado à genitalização e ao sexo como biologia: "A visão de género dentro do transfeminismo é múltipla, tremendamente múltipla. Não dá para ignorar a multiplicidade de significados desse termo em cada dialeto intra-feminista e argumentar a partir do senso-comum" (Guimarães, 2013, pp. 4-5).
Em verdade, não há um, mas vários olhares transfeministas, e uma pesquisa sobre essa diversidade de óticas, portanto, deve se localizar para aprofundar sua reflexão, deve ter um olhar prospectivo sobre as ações e a caminhada dos novíssimos movimentos sociais trans, potencializados a partir da primeira década do século XXI por meio do ativismo online (Jesus, 2012b), e o seu diálogo cada vez maior com o feminismo e os movimentos de mulheres.
Explicita-se que os movimentos trans são tratados no plural porque não abarcam pautas unitárias, além de serem afetados por forças sociais em disputa dentro deles mesmos, caracterizadas por projetos para a população transgénero que são distintos. Se há um elemento em comum entre as diferentes práxis dos movimentos trans é o seu protagonismo na construção de sociabilidades alternativas para a população que visam representar.
Deve-se atentar ainda que, apesar de aqui se estar escrever a partir da realidade brasileira, a utilização dos recursos computacionais para troca de informações a distância, configurada pela internet, é comum em toda a América Latina, em menores e maiores graus de aprofundamento.
Feminismo e Identidade de Género
Conforme entendem Louro (1998; 2000), Oliveira (1998) e Scott (1988), o conceito de género é relacional e político, independe das bases biológicas, como o sexo, e determina, entre os seres humanos, papeis que eles exercem na sociedade - o que de forma alguma se restringe à sexualidade.
Género é um conceito mais útil do que o de sexo para a compreensão das identidades, papeis e expressões de homens e mulheres na vida cotidiana, tendo sido adotado pelos movimentos feministas e pela produção académica sobre mulheres a partir da década de 1970, a fim de demarcar as distinções de cunho social entre homens e mulheres, as quais tendem a subalternizam as mulheres (Scott, 1995), incorrendo no chamado "debate igualdade-versus-diferença" (Pierucci, 1990).
O conceito de género, aplicado ao feminismo, possibilitou a des-construção da crença de que há um modelo universal de mulher ou de homem, localizou-os como construtos históricos e abriu caminhos para a construção das identidades de género como conceituações viáveis fora do espectro biologicista (Bento, 2006): descontroem-se as oposições binárias (homem x mulher, igualdade x diferença, natureza x cultura), reconhecendo-as como categorias vazias e transbordantes: "Empty because they have no ultimate, transcendent meaning. Overflowing because even when they appear to be fixed, they still contain within them alternative, denied or suppressed definitions" (Scott, 1988, p.19).
Identidade de género, nesse contexto, pode ser entendida como a atitude individual frente aos construtos sociais de género, ante aos quais as pessoas se identificam como homens ou mulheres, perce-bem-se e são percebidas como integrantes de um grupo social determinado pelas concepções correntes sobre género, partilham crenças e sentimentos e se comprometem subjetivamente junto ao grupo com o qual se identificam, como acontece com relação a qualquer outra identidade social que adotam (Tajfel e Turner, 1979).
Segundo Carvalho (1998), o uso hoje mais frequente do conceito de género é o proposto pelo feminismo da diferença. Este rejeitou pressupostos do feminismo da igualdade, o qual afirma que as únicas diferenças efetivamente existentes entre homens e mulheres seriam biológicas, sendo as demais diferenças observáveis formadas pela cultura, derivadas de relações de opressão e, portanto, deveriam ser eliminadas para dar lugar a relações entre seres iguais.
Para as teóricas e os teóricos do feminismo da diferença, género remete a traços culturais fundamentados em um binarismo de base biológica. De um lado, traços femininos e, em oposição, traços masculinos: percepção de diferenças que se torna um elemento central de análise e que subsidia instrumentos para a ação (Hita, 1998).
Não se pode deixar de considerar, ainda, as contribuições de vertentes pós-estruturalistas do feminismo (desenvolvido com base nas discussões sobre crise da noção de sujeitos, alteridade e diferença de filósofos pós-estruturalistas como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Roland Barthes, Jacques Derrida e Julia Kristeva), as quais ressaltam o caráter histórico e social da construção e percepção das diferenças de género (Scott, 1995).
A partir dessa ótica, o feminismo pós-estruturalista reitera um ponto essencial que costuma ser invisibilizado em leituras da sociedade que generalizam homens e mulheres como grupos consistentes: o fato de que existe heterogeneidade interna nos conjuntos que consideramos masculinos e feminismos (Nicholson, 1994), uma diversidade no ser mulher ou homem que geralmente é esquecida, falhando no entendimento das interseções entre género e outras dimensões, tais como raça, classe social, idade, região, entre outros, o que reitera sistemas de desigualdade.
O feminismo apresenta duas dimensões: teoria de análise crítica da situação das mulheres no mundo -como tal, é uma linha de pensamento crítica aos papeis impostos histórico-socialmente às mulheres-e modelo de organização -é um movimento que visa a transformação da condição subalternizada das mulheres (Silva e Camurça, 2010).
Na prática, não há uma corrente teórica única do pensamento feminista. Pode-se falar de feminismos porque existem linhas de pensamento heterogéneas que, apropriadas a partir de teorias gerais, procuram, cada qual a seu modo, compreender porque e como as mulheres ocupam uma posição/condição subordinada na sociedade.
A partir das novas ideias e comportamentos trazidos com o movimento feminista, especialmente em função das críticas do feminismo negro8 (Collins, 1990; Ducille, 1994), a percepção sobre quem são as mulheres se ampliou, deixou de apenas se remeter à mulher branca, abastada, casada com filhos, e passou a acatar a humanidade e a feminilidade de mulheres outrora invisíveis: negras, indígenas, pobres, com necessidades especiais, idosas, lésbicas, bissexuais, solteiras, e mesmo as transexuais:
Carrego com orgulho que meu feminismo nasceu influenciado pelo feminismo negro e suas anotações sobre intersecionalidade, silenciamento, negacionismo, conivéncia. Isto é importante para mim porque me coloca perspectiva dentro deste movimento, e fora dele, sobre quem somos e pelo que lutamos. Sobre onde estávamos antes, e onde chegamos. Tudo isto é cheio de intersecionalidade: de como, ao longo do tempo, estes eixos de opressão e privilégio afetaram e moldaram o feminismo tal como ele é hoje. E como isso construiu um feminismo trans*9 (Cremonini, 2013a, p. 6).
A inclusão do feminismo como debate e pauta política da população transgénero é recente, porém cada vez mais ativa.
Afnal, o que é Transfeminismo?
O transfeminismo surge como uma linha de pensamento e movimento feminista em construção. Koyama (2001) o definiu, simplesmente, como um movimento feito por e para mulheres transexuais, porém se busca uma definição além, que o compreenda "tanto como uma filosofia quanto como uma práxis acerca das identidades transgénero que visa a transformação dos feminismos" (Jesus e Alves, 2010, p. 14).
A internet tem sido o campo principal dos debates transfeministas, realizados não apenas em espaços virtuais frequentados por pessoas transgénero e criados para elas (pode-se citar, particularmente no contexto brasileiro, a comunidade Transfeminismo, no Facebook10, e o blog Transfeminismo11), mas também em outros de maior abran-géncia populacional que incluíram discussões intensas e consistentes sobre feminismo e transgeneridade, mas também sobre transfeminismo, tais como o blog Blogueiras Feministas12 e, mais recentemente, o Blogueiras Negras13.
O texto "Ensaio de Construção do Pensamento Transfeminista", de Aline de Freitas, publicado em 2005, pode ser citado como percus-sor na constituição do pensamento transfeminista no Brasil, em especial no trecho que segue:
Nosso papel histórico deve ser construído por nós mesmxs. O transfeminismo é a exigéncia ao direito universal pela auto-deter-minação, pela auto-definição, pela auto-identidade, pela livre orientação sexual e pela livre expressão de género. Não precisamos de autorizações ou concessões para sermos mulheres ou homens. Não precisamos de aprovações em assembléias para sermos feministas. O transfeminismo é a auto-expressão de homens e mulheres trans e cissexuais. O transfeminismo é a auto-expressão das pessoas andró-genas em seu legítimo direito de não serem nem homens nem mulheres. Propõe o fim da mutilação genital das pessoas intersexuais e luta pela autonomia corporal de todos os seres humanos.
O transfeminismo é para todxs que acreditam e lutam por uma sociedade onde caibam todos os géneros e todos os sexos (Freitas, 2005, p. 1).
Essa potente concepção embrionária do transfeminismo vem se estruturando ao longo da segunda década do século XXI, a partir de textos contundentes e detalhados como "Introdução ao Transfeminismo", de Hailey Alves (2012), o qual destaca nomes de diferentes autores como fontes iniciais para o desenvolvimento do transfeminismo, como um pensamento feminista universalizado, tais como Sandy Stone (1987), Sylvia Rivera (2007), Kate Bornstein (2012), Julia Serano (2012), Emi Koyama (2001) e Patrick Califia (2003).
Como em qualquer dos feminismos, também o transfeminismo não pode ser entendido como único, porém, de forma genérica, pode--se entender que há princípios sem os quais um determinada linha de pensamento do feminismo não pode ser considerado transfeminista:
- redefinição da equiparação entre género e biologia;
- reiteração do caráter interacional das opressões;
- reconhecimento da história de lutas das travestis e das mulheres transexuais e das experiéncias pessoais da população transgénero de forma geral como elementos fundamentais para o entendimento do feminismo; e
- validação das contribuições de quaisquer pessoas, sejam elas transgénero ou cisgénero, o que leva ao fato de que, por sua constituição, o transfeminismo pode ser útil para qualquer pessoa que não se enquadra no modelo sexista14 de sociedade que vivemos, não apenas as transgénero.
O transfeminismo reconhece a interseção entre as variadas identidades e identificações dos sujeitos e o caráter de opressão sobre corpos que não estejam conforme os ideais racistas e sexistas da sociedade, de modo que busca empoderar os corpos das pessoas como eles são (incluindo as trans), idealizados ou não, deficientes ou não, independentemente de intervenções de qualquer natureza; ele também busca empoderar todas as expressões sexuais das pessoas transgénero, sejam elas assexuais, bissexuais, heterossexuais, homossexuais ou com qualquer outra identidade sexual possível (Jesus e Alves, 2010, p. 15).
No que tange à intersecionalidade, representada pelo segundo princípio do transfeminismo (reiteração do caráter interacional das opressões), e à valorização das experiéncias das pessoas trans (quarto princípio), pode-se afirmar que são elementos herdados do feminismo negro (Collins, 1990), o qual, ainda na década de 1970 do século XXI, defendeu que:
- as opressões tém uma natureza simultaneamente operacional e interligada, de modo que preconceitos e discriminações de género dialogam com os de raça, orientação sexual, idade, origem, entre outros; e que
- a experiéncia de vida e de lutas, e o conhecimento acumulado pelas mulheres negras, no processo de enfrentamento ao racismo, ao sexismo e ao machismo, configura-se como um elemento central para os debates e ações de cunho feminista.
É imprescindível ressaltar que o feminismo negro identificou, desde o seu surgimento, que ao não levar em conta a intersecção entre raça e género, o feminismo tradicional não considerava as particularidades das mulheres negras, ou sequer as reconhecia como mulheres, cujo modelo idealizado eram as mulheres brancas (King, 1998).
O feminismo negro reavaliou as políticas feministas brancas a partir de uma perspectiva afrocéntrica, e com a apresentação dos dois pontos acima listados, subsidiou uma crítica basilar ao feminismo tradicional que propiciou o desenvolvimento de outros feminismos, ditos intersecionais, incluindo o feminismo transgénero.
No âmbito da agenda política, Alves (2012) delineia sete pontos imprescindíveis à pauta transfeminista, que dialogam com os quatro princípios da teoria transfeminista descritos anteriormente:
- combate à violéncia cissexista15/transfóbica16 (em todos os seus aspectos: simbólicos, psicológicos, verbais, físicos e institucionais);
- direitos reprodutivos para todas/os (apoiar o direito dos homens transexuais a gestação e a aborto seguros e enfrentar a esterilização forçada de mulheres transexuais);li/li>
- agéncia (defender o poder de decisão das pessoas trans sobre os seus corpos);
- desconstrução das identidades binárias (respeitar as pessoas, transgénero ou cisgénero, que se enquadram no binarismo homem x mulher, sem excluir aquelas que não se enquadram nesse modelo);
- corpo-positividade e/ou empoderamento (valorização os corpos trans, desestigmatizá-los);
- livre sexualidade (estimular as pessoas transgénero a se sentirem confortáveis com a sua sexualidade, qualquer que seja); e
- terminologia (evitar termos que essencializem ou invisibilizem as identidades trans).
Na prática, essa pauta, mesmo que sem a consciéncia dos sujeitos que produzem textos e discursos transfeministas, dialoga com o feminismo negro quando — por vezes de forma subjacente e outras vezes de maneira explícita -apontam para o fato de que o modelo idealizado do que é ser mulher/homem são as/os mulheres/homens cisgénero, o que leva ao entendimento de que é preciso desconstruir essa crença de base sexista/biologicista para que o mínimo reconhecimento dos homens e mulheres trans- e daí sua inclusão- seja possível.
Uma autora feminista negra de notável impacto no pensamento transfeminista, considerando-se os textos identificados ou mesmo as referéncias diretas que são feitas, em diferentes plataformas, especialmente na internet (profícuo campo de produção intelectual do transfeminismo), é Audre Lorde, escritora, poeta e ativista norte-americana que se autodenominava "negra, lésbica, mãe, guerreira, poeta" (Cremonini, 2013b), identificada como uma das teóricas responsáveis pela formatação da intersecionalidade no feminismo negro.
A crítica à aplicabilidade dirigida do conceito de "sororidade" (em inglés, sisterhood), desenvolvido pelo feminismo de segunda onda, foi primeiramente posta em questão pelo feminismo negro, que identificou uma falta de fraternidade de feministas brancas para com mulheres negras, pobres e de outras minorias, tais como aquelas dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento (Moraga e Anzaldúa, 198417; Roberts, 1997).
Esse posicionamento do feminismo negro foi adotado por pensadoras transfeministas, que vém questionando a falta de uma sororidade universal entre as mulheres, independentemente de serem cisgénero ou transgénero (Pires, 2013; Luna, 2013).
Conjuntura Latina
Pode-se considerar que o feminismo chicano, também denominado xi-canisma (Thompson, 2013), antecipou e contextualizou algumas das questões postas pelo feminismo negro às realidades latino-americanas, especialmente com relação à subalternização da imagem das mulheres latinas, porém dando destaque às questões trabalhistas, tendo em vista sua formação no âmbito do sindicalismo e do movimento sufragista (Pulido, 2003).
Contemporaneamente, a partir do diálogo com o feminismo lésbico e a teoria queer, o feminismo chicano tem se tornado cada vez mais intersecional, considerando, para além das dimensões regionais e étnicas das identidades de mulheres, também as questões de género e sexualidade (Moraga, 1983; Trujillo, 1991), o que o torna um campo propício à aproximação com o transfeminismo. Quando se fala, a partir da realidade latino-americana, sobre o transfeminismo, é fundamental compreender que sua progressiva adoção se dá, em grande parte, como uma resposta à conjuntura de violações de direitos e da vida das pessoas trans.
Dados do projeto de pesquisa quali-quantitativa "Transrespect versus Transphobia Worldwidé' (TvT), conduzido pela TransGender Europe - TGEU, Organização Não-Governamental (ONG) com sede em Viena, na Áustria, indicam um total de 816 (oitocentos e dezesseis) assassinatos de pessoas transgénero em 55 (cinquenta e cinco) países, entre primeiro de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 201118. Desses 816 homicídios em todo o mundo, a maioria ocorreu na região da América Latina (643 - 78,80% do total), com expressiva participação brasileira, que conta com 325 assassinatos no período de 3 anos pesquisado, seguida da Ásia, com 59 (cinquenta e nove).
O Brasil é responsável, isoladamente, por 39,8% dos assassinatos de pessoas trans registrados no mundo entre 2008 e 2011, e no mesmo período, por 50,5% desses crimes na América Latina.
Somente em 2011, conforme o TvT, 248 pessoas foram assassinadas por serem transexuais ou travestis19. O Brasil é o país onde mais foram reportados assassinatos de pessoas integrantes da população transgénero nesse ano: 101 (cento e um), seguido do México, com 33 (trinta e trés) assassinatos, e da Colômbia, com 18 (dezoito).
A América Latina é a região com os piores índices globais de assassinato de pessoas trans: 204 (duzentos e quatro), 82,26% do total, seguida da Ásia, com 17 (dezessete), apenas 6,85% das mortes em todo o mundo. Pode-se considerar que a tradição machista e sexista da cultura latino-americana tenha alguma influéncia nesses resultados extremamente negativos, e se observa que o uso de discursos transfeministas se acirra quando da ocorréncia de crimes dessa natureza, como formas de contra-argumentar sobre a naturalização da violação da população transgénero.
A denúncia dessa violéncia estrutural e o pequeno espaço social que vem sendo conquistado pelas pessoas trans são fruto de sua mobilização social pelo respeito a suas especificidades, e tem sido potencializado pela inserção dos coletivos trans e seus simpatizantes na lógica dos novos movimentos sociais caracterizados por políticas de identidade. Esses movimentos articulam as questões da esfera privada — as discriminações que sofrem, os estigmas que lhes são atribuídos, e a recepção interpessoal negativa (repulsa) a seus atributos físicos ou de personalidade — com as reivindicações da esfera pública, para construir espaços de sociabilidade, por meio de mobilizações sociais das mais variadas espécies (Jesus, 2012c).
O movimento social da população transgénero é cada vez mais visível, a partir de manifestações públicas, mas principalmente pelo ativismo na rede virtual, em toda a América Latina. A internet se tornou um instrumento pelo qual os marginalizados conseguem fabricar novas realidades sociais, reconfiguram relações de género e demonstram, na sua práxis, que a identidade de género não esgota a subjeti-vidade de ninguém, sejam pessoas trans ou não.
Conclusão: Em Obras
O pensamento transfeminista está em construção na América Latina, isso significa dizer que ele não está apenas sendo importado como um conhecimento pré-elaborado, mas, isso sim, que está sendo ressignifi-cado e adaptado às vozes e realidades das mulheres e homens trans, travestis e demais pessoas trans nestas terras al sur del mundo. E isso é extremamente positivo, em termos de criatividade e protagonismo na adequação de uma linha teórica a determinada conjuntura cultural e humana, em oposição à tendéncia colonialista de introjeção e sujeição a conceitos das metrópoles culturais.
Como um dos feminismos de terceira onda, os quais problematizam a visão estática do sexismo como uma prática opressiva unilateral, o transfeminismo reconhece as múltiplas expressões do sexismo tanto por parte de opressores/as quanto de oprimidos/as, nas instituições e nos movimentos sociais.
A relação do transfeminismo com os movimentos sociais trans não é direta, senão como denúncia da maneira ahistórica com que pessoas trans são tratadas até mesmo por militantes e aliados da luta pela inclusão da população transgénero na sociedade brasileira: vistas de uma forma estereotipada, que desloca os olhares de suas complexas histórias de vida.
Homens e mulheres transexuais, travestis e outras pessoas transgénero tendem a ser considerados apenas em função da sua identificação de género como trans, desconsiderando-se eles como seres humanos com género, orientação sexual, cor/raça, idade, origem geográfica, de-ficiéncias, etc. Nesse sentido, são enormes desafios dos/das autores/ as transfeministas -homens, mulheres e pessoas de género não binário (que vém surgindo: pensar e escrever para um público diversificado e heterogéneo: os movimentos sociais, para as instituições, para a academia, para os demais feminismos, para os formadores de opinião).
Além desse, outro desafio é o de delimitar o próprio campo, em busca não de respostas prontas sobre os corpos e as gentes, mas de olhares lúcidos que se permitam transformarem-se quando necessário, sem abrir mão de análises acerca da realidade social que a descrevam a partir de objetividades dinâmicas.
Pie de página
4Transgénero é um conceito guarda-chuva que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado socialmente (Jesus, 2012a).
5Mulher transexual é aquela que reivindica o reconhecimento social e legal como mulher; homem transexual é aquele que reivindica o reconhecimento social e legal como homem (Jesus, 2012a).
6Ao longo do texto, o termo trans será utilizado como referência a transgénero.
7Pessoas que se identificam com o gênero atribuído socialmente (Jesus, 2012a). Aprofundamentos sobre as implicações identitárias, sociais e políticas do uso do termo cisgênero podem ser conhecidos em Bagagli (2014).
8O feminismo negro é um movimento político e intelectual no qual se reavaliam as experiências de vida e lutas de pessoas negras a partir de uma perspectiva feminista.
9O asterisco após o termo "trans" tem sido utilizado por alguns autores transfeministas para se referir à variedade de grupos sociais englobados pelo termo trans, tais como pessoas cuja identidade de gênero não é binária.
10Endereço: http://www.facebook.com/#!/groups/334400389941600
11Endereço: http://transfeminismo.com
12Endereço: http://blogueirasfeministas.com
13Endereço: http://blogueirasnegras.wordpress.com
14O sexismo pode ser entendido como uma forma de apartheid com consequências psicossociais e institucionais negativas, especialmente no que concerne ao direito à autodeterminação das pessoas (Rothblatt, 1995).
15O cissexismo pode ser definido como uma ideologia "que se fundamenta na crença estereotipada de que características biológicas relacionadas a sexo são correspondentes a características psicossociais relacionadas a género" (Jesus, 2012a, p. 28), o que pode redundar em "prejuízos ao direito à auto-expressão de género das pessoas, criando mecanismos legais e culturais de subordinação das pessoas cisgênero e transgênero ao gênero que lhes foi atribuído ao nascimento. Para as pessoas trans em particular, o cissexismo invisibiliza e estigmatiza suas práticas sociais. invisibilizam ou estigmatizam as pessoas trans" (Jesus, 2012a, p. 28).
16Transfobia é o preconceito e/ou a discriminação contra pessoas transgênero.
17Vale comentar que a editora "Kitchen Table: Women of Color Press", que publicou o livro organizado por Cherríe Moraga e Gloria Evangelina Anzaldúa em sua segunda edição, era voltada a autoras negras, tendo sido criada pela socialista e feminista lésbica Barbara Smith, juntamente com Audre Lorde.
18Endereço: http://www.transrespect-transphobia.org/uploads/downloads/TMM/TvT-TMM-Tables2008-2011-en.pdf
19Endereço: http://www.transrespect-transphobia.org/uploads/downloads/TMM/TvT-TMM-Tables2011-en.pdf
Referências
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