1. Soluções ao paradoxo do mentiroso na Idade Média
Procurarei, em um primeiro momento, traçar brevemente segundo uma ordem cronológica as principais soluções oferecidas ao paradoxo do mentiroso para poder, na segunda parte desta exposição, expor a solução de Geraldo Odon (ca. 1290-1349)1. Meu objetivo será então o de apreciar a seguinte questão-guia: a solução de Odon ao paradoxo do mentiroso é uma variação das soluções já conhecidas ou constitui uma resposta original?
“Ego dico falsum” -o paradoxo do mentiroso é certamente a mais conhecida das antinomias da linguagem. Presença assídua na literatura medieval, encontramos problematizações a seu respeito já em textos lógicos do final do século XII até o final do século XVI, seja nos tratados dedicados aos insolubilia, sophismata ou ainda na tradição de comentários às Refutações Sofisticas de Aristóteles, obra à qual remonta a origem da discussão medieval sobre paradoxos.
No texto de Aristóteles, o paradoxo do mentiroso aparece como um elemento do conjunto de falácias que confundem a verdade simpliciter com a verdade secumdum quid. Nesse contexto, o Filósofo invoca o exemplo de um homem que jura romper seu juramento, e de fato o rompe2. Simpliciter, esse homem não é um cumpridor de seus juramentos, embora cumpra esse juramento em particular. Em seguida, Aristóteles aplica o mesmo raciocínio ao mentiroso:
O argumento se assemelha ao <problema de saber> se o mesmo homem pode dizer ao mesmo tempo o que é verdadeiro e o que é falso; mas o problema parece ser de difícil investigação, pois não é fácil perceber em qual dos lados se pode atribuir <a qualificação> simpliciter -se ao verdadeiro ou ao falso. Nada o impede, porém, de ser mentiroso simpliciter, embora verdadeiro sob outro aspecto ou outra coisa particular, isto é, verdadeiro quanto a determinadas coisas, mas não verdadeiro <simpliciter>.3
Se a recepção das Refutações Sofísticas no mundo latino passou a chamar a atenção dos medievais para os paradoxos, mas sua resolução não se limitou a autoridade de Aristóteles. De fato, a partir dos anos 1320 a lógica medieval conhece um rico debate no que toca à solução de paradoxos e, em especial, ao paradoxo do mentiroso.
Seguindo os trabalhos pioneiros de Vincent Spade (1983, 1987)4, podemos distinguir, além da solução de inspiração Aristotélica, quatro principais tipos de soluções anteriores a 1320, momento em que Tomás Bradwardine escreve seu tratado sobre os Insolúveis, considerado como um novo momento na resolução de paradoxos.
(I) Uma primeira opinião, reportada por Walter Burley e por Bradwardine em seus tratados sobre os insolúveis5, referida como transcasus, pretende que, ao pronunciarmos a proposição “eu digo o falso”, ou “eu estou mentindo”, o verbo (mesmo que se encontre no tempo presente) se refere a uma proposição proferida anteriormente, operando assim um transcasus (uma espécie de salto gramatical) barrando a auto-referência, ou seja, a proposição não se refere a ela mesma, desfazendo o paradoxo.
(II) O segundo grupo, rotulado pela literatura secundária como cassantes, propunha que aqueles que proferem um paradoxo, um sofisma, não significam nada. Um paradoxo não é propriamente uma proposição, mas uma frase desprovida de sentido. Essa posição não gozou de grande popularidade: ela é sustentada por tratados anônimos do início do século XIII (os mais antigos aos quais temos acesso6), mas parece ter sido abandonada depois de 1225 e apenas retomada na literatura posterior para ser criticada. A crítica mais conhecida é a de Bradwardi- ne, a qual foi basicamente repetida pelos seus sucessores. Segundo o lógico inglês, o mentiroso obviamente diz algo, pois pronuncia sílabas e palavras com sentido, e forma com elas uma sentença da qual entendemos algo. Essa crítica certamente a toma a posição dos cassantes como demasiado ingênua, taxada por Bradwardine como contrária a sensação e ao intelecto7.
(III) O terceiro grupo, conhecido como restringentes, recusa a auto-referên- cia, ou seja, limita a referência do sujeito da proposição, o qual não pode recair sobre ela mesma. Segundo eles, “uma parte são pode supor pelo todo do qual ela é uma parte” -onde o “supor” deve ser entendido no sentido técnico “suppositio”, uma propriedade de termos categoremáticos no contexto de uma proposição. Podemos distinguir duas versões dessa posição: uma mais forte- que proíbe toda e qualquer auto-referência; e uma mais moderada -que proíbe a auto-referência apenas nos casos paradoxais. Essa posição é frequentemente reportada e criticada na literatura, como em Bradwadine e, veremos mais adiante, no próprio Geraldo Odon. Ao contrário dos cassantes, que deixaram de ser defendidos, os restringentes ainda encontram defensores no século XIV8.
(IV) Uma quarta resposta pode ser listada ao lado das precedentes: Duns Scotus procura dar conta do paradoxo através da distinção entre ato exercido (actus exercitus) e ato significado (actus significatus). No caso da proposição “eu digo o falso”, o ato significado corresponde ao conteúdo da minha fala, a saber: dizendo o falso; o ato exercido corresponde àquilo que eu estou fazendo quando digo que digo o falso, a saber, dizendo a verdade. Assim, para Scotus há falsidade no ato significado e verdade no ato exercido9. Desse modo, a verdade e a falsidade não são atribuídos ao mesmo ato, ao mesmo discurso. Essa solução é mencionada (e rejeitada) por Bradwardine em termos parecidos com os de Scotus, mas possivelmente visando outros proponentes10.
(V) Finalmente, chegamos às soluções de Bradwardine e de Buridan, que, para efeitos práticos trataremos conjuntamente. Para os dois lógicos, o paradoxo do mentiroso (e demais insolúveis desse tipo) são simplesmente falsos.
Convém notar que Tomás Bradwardine (c. 1300-1349) escreve seu tratado dos Insolúveis em Oxford entre 1321 e 1324 -portanto, no mesmo momento em que Geraldo Odon escreve seu tratado lógico em Paris. Como já dito, o texto de Bradwardine gozou de uma considerável popularidade. Com efeito, encontramos retomadas da sua posição em diversos autores, como o já mencionado Buridan, mas também Pedro de Saxe, Pedro dAilly e Paulo de Veneza. Considera-se também que Gregório de Rimini e Marsílio de Inghen tenham apresentado variações da mesma posição11.
O núcleo da solução de Bradwardine consiste na regra geral segundo a qual “Se uma proposição significa que ela mesma não é verdadeira ou que é falsa, então ela significa que ela não é verdadeira e é falsa”12. Essa regra será aplicada aos insolúveis, e ao paradoxo do mentiroso em especial. Ela é baseada sobre a seguinte tese: uma proposição significa tudo o que se segue daquilo que ela significa [primeiramente]. Isso quer dizer que se uma proposição implica uma falsidade, então ela a significa, ainda que indiretamente. Desse modo, uma proposição que implica algo falso não pode ser verdadeira. No caso dos paradoxos, que implicam sua própria falsidade, conclui-se que não podem ser verdadeiros.
Apliquemos esse raciocínio ao paradoxo do mentiroso: Sócrates afirma dizer uma falsidade -e essa é a única frase que ele profere. Então, se a sua afirmação é verdadeira, ela seria também falsa, pois é isso o que ele está dizendo: uma falsidade. No entanto, porque ela é falsa, ele seria imediatamente verdadeira, pois foi isso que Sócrates disse que faria; Sócrates descreve o que de fato está fazendo: mentindo. A solução de Bradwardine pretende barrar essa segunda consequência do paradoxo, a saber, a passagem do falso para o verdadeiro13. Assim, ainda que seja verdade que Sócrates esteja dizendo o falso, a proposição “Sócrates mente”, ou “Sócrates diz o falso” é simplesmente falsa.
Vinte anos depois, João Buridan descreve sua solução ao paradoxo do mentiroso em termos semelhantes aos de Bradwardine. Há certa discordância entre as interpretações da solução de Buridan e suas implicações para a sua teoria da verdade como um todo14. Todavia, nosso objetivo não é tomar posição nesse debate, tampouco descrever o pensamento lógico de Buridan em profundidade. Para nossos efeitos, vamos nos contentar com a apresentação da sua solução tal como presente em seu Sophismata.
Vejamos primeiramente o que diz Buridan a respeito do sofisma “toda proposição é falsa”, que pode ser considerado uma variação do mentiroso:
Assim, toda proposição que afirma ser falsa, seja direta ou implicitamente, é falsa, pois ainda que <a realidade> seja assim como ela signifique ser, na medida em que significa ser ela mesma falsa, [a realidade] não é assim como ela significa ser, na medida em que significa que ela é verdadeira. Assim, ela é falsa e não verdadeira, pois para a verdade da proposição, é requerido não somente que <a realidade> seja assim como ela significa, mas que ela seja da maneira como ela significa ser.15
Mais adiante, Buridan parece mostrar que a falsidade do paradoxo do mentiroso se deve à falsidade daquilo que ele implica virtualmente:
Qualquer proposição implica uma outra proposição, pela qual o predicado “verdadeiro” seria afirmado de um sujeito que supõe por ela. Eu digo “implica virtualmente” (implicai virtualiter), assim como o antecedente que implica o que se segue dele.16
Isso quer dizer que as condições de verdade de uma proposição devem compreender os referentes (supposita) do sujeito e do predicado e também a verdade do seu consequente, ou seja, essa segunda proposição implicada pela proposição original. Estes resultados são aplicados ao paradoxo do mentiroso, o qual é considerado absolutamente falso, na medida em que a proposição implica algo falso17. Portanto, as coisas não são exatamente tal como o paradoxo as descreve. Visto que se algo falso se segue desta proposição “Sócrates diz o falso”, ou “eu digo o falso”, então, ainda que ela se pretenda verdadeira e falsa ao mesmo tempo, ela é simplesmente falsa, em função da impossibilidade que ela implica.
Assim, encontramos diversos tipos de solução ao paradoxo do mentiroso: a primeira de inspiração diretamente aristotélica, segundo a qual esse tipo de paradoxo é considerado falso simpliciter, ainda que seja concedido que ele seja verdadeiro secundum quid; a solução pela qual esse tipo de proposição é desprovida de sentido, e portanto a rigor não é nem verdadeira nem falsa; as soluções que visam barrar a possibilidade da auto-referência (em geral ou apenas para as proposições problemáticas); a solução que pretende distinguir dois atos (exercido e significado), visando evitar que valores de verdade contraditórios sejam atribuídos a mesma proposição sob o mesmo aspecto; por último, as soluções que determinam que o paradoxo é falso em função do que se encontra virtualmente implicado nele, a saber, a sua própria falsidade, de modo que ele não é verdadeiro e falso ao mesmo tempo.
2. A solução de Geraldo Odon
Dito isso, estamos em posse dos elementos necessários para apreciar a solução de Geraldo Odon. Deve-se notar, em primeiro lugar, uma particularidade com relação ao texto de Odon: a discussão aparece em um contexto diferente daquele no qual os paradoxos normalmente eram discutidos, a saber, os tratados dedicados aos insolubilia ou os comentários às Refutações Sofisticas de Aristóteles. Odon introduz a discussão sobre o mentiroso no tratado Dos primeiros princípios: um texto de mais de 200 páginas dedicado inteiramente à natureza e às propriedades dos princípios de não-contradição e do terceiro excluído. O capítulo IV desse tratado procura defender a verdade irrestrita e incondicional dos princípios face aos seus adversários. Segundo Odon, existem duas maneiras de fazer isso: a primeira é positivamente, fornecendo prova da sua validade absoluta e da incoerência daqueles que o negam (trata-se da célebre estratégia elênctica de argumentação). Outra é negativamente, refutando os sofismas formulados contra os primeiros princípios, os quais parecem implicar a possibilidade da contradição. O conjunto dos sofismas reunidos por Odon é vasto e conta com argumentos bem conhecidos, como por exemplo os argumentos de Heráclito a partir da natureza do movimento18, e o pai dos paradoxos semânticos: o paradoxo do mentiroso.
A proposição ego dicofalsum é apresentada como um argumento contra o princípio de não-contradição, na medida em que ela implicaria a sua verdade e falsidade simultâneas. Ao mesmo tempo em que o sujeito diz uma falsidade, ele está dizendo algo de verdadeiro: a saber, que ele mente! Cada membro da contradição «p é V - p é F» implica o outro (utraque contradictoria infert aliam): se p é verdadeiro, ele é falso; se falso, verdadeiro19. Mostrar que o paradoxo não invalida o princípio de não-contradição significa encontrar uma solução para o mesmo.
Odon começa criticando três soluções para o paradoxo. A primeira é rapidamente apresentada (e tão logo rejeitada), de modo que não pudemos identificar seus possíveis defensores. Segundo ela, “na proposição ‘eu digo o falso”, existem virtualmente duas proposições. Uma é esta: ‘eu digo [algo]” (a qual é verdadeira); a outra é “isto é falso” (a qual é falsa)”20. Assim, não se trata da mesma proposição que é verdadeira e falsa ao mesmo tempo, mas de duas proposições que, resultantes da análise do paradoxo, dividem os dois valores de verdade entre si: uma é verdadeira e a outra é falsa. Para refutar essa solução, Odon oferece uma versão do mesmo paradoxo que não pode ser analisada, ou desmembrada em dois: “esta minha proposição é falsa”. Sem comportar dois verbos, não se pode depreender duas proposições distintas, de modo que a dificuldade retorna.
Odon refuta em seguida duas posições restringentes: primeiramente em sua versão radical e em seguida em sua versão moderada. A versão radical defende que o que caracteriza esse paradoxo é a auto-referência: “a saber, quando um termo supõe pela totalidade da proposição da qual ele é parte”21. O mesmo vale para outra versão do sofisma: “toda proposição é falsa” (omnis propositio estfalsa). Esse tipo de proposição, segundo a explicação reproduzida por Odon, não se sustenta, pois nenhuma proposição pode referir a ela mesma através de um de seus termos. Para mostrar que tal solução não é adequada, Odon se contenta em fornecer um contra-exemplo: a proposição “tota proposição é uma oração” (omnis propositio est oratio) é verdadeira e comporta auto-referência. O problema dessa explicação é, portanto, que ela exclui não apenas os casos viciosos de auto-referência, mas aqueles casos inócuos que não teríamos razões para banir.
Já a versão restringente moderada aceita a auto-referência em alguns casos específicos, embora de modo geral ela deva ser evitada22. Odon responde curiosamente a essa solução:
Em sentido contrário: Se disser a alguém e depois não proferir <mais nada>: “minha última proposição é falsa”; essa será a sua última proposição, e apenas permanece aqui toda a dificuldade que havia no início.23
Odon parece entender que a proposição “minha última proposição é falsa” escapa à auto-referência, ao mesmo tempo que continua sendo paradoxal. De fato, o contra-exemplo apresentado depende de que nada mais seja proferido além da própria proposição para que a dificuldade ocorra, e nesse sentido ele difere das outros casos de auto-referência citados, a saber, “eu digo o falso”, “esta proposição é falsa”, ou ainda “toda proposição é falsa”. Porém, não conseguimos ver como o suposto contra-exemplo de Odon escaparia a um caso especial de auto-referência, concedido que não nada seja proferido anteriormente ao paradoxo.
Sem nos determos mais nas críticas às soluções ao paradoxo elencadas por Odon, passaremos à parte positiva de sua exposição, na qual ele apresenta sua própria solução. Ela é constituída de três momentos: no primeiro, a estrutura geral da proposição e de seu mecanismo de verificação é apresentado. Com base nessa explicação, o paradoxo é confrontado à proposição “saudável”, de modo que suas falhas (4 exatamente) são evidenciadas. Por último, Odon pode identificar a natureza da principal falácia envolvida no paradoxo e determinar o seu valor de verdade (Odon identifica 3 falácias, mas tratarei somente da primeira, que julgo ser o núcleo da solução).
Odon confronta o paradoxo a um esquema da significação proposicional. Ele nos explica que as proposições podem ser analisadas em quatro elementos: A proposição que enuncia (propositio enuntians), o objeto que ela enuncia (obiec- tum de quo enuntiat), a verdade ou falsidade na proposição (veritas velfalsitas in propositione) e a causa da sua verdade ou falsidade presente no objeto da proposição (causa veritatis velfalsitatis in obiecto propositionis).
Esses quatro elementos são colocados em relação: assim como, do lado da proposição, encontramos o sujeito e o predicado unidos ou divididos pela cópula afirmativa ou negativa; assim também encontramos, do lado do objeto, os referentes do sujeito e do predicado compostos ou divididos, em correspondência com a cópula da proposição que os significa. Os valores de verdade aparecem como efeitos causados pela adequação da composição ou divisão no objeto com cópula24.
Propomos representar esse esquema da seguinte forma:
Cabe notar que tal esquema deve ser compreendido dentro do realismo preposicional de Odon. Sabe-se que na idade média, em especial no século XIV, a questão “ao quê corresponde a proposição?” recebeu ao menos dois tipos de resposta: enquanto os nominalistas reduzem o significado da proposição aos significados dos seus termos, os realistas admitem haver algo que corresponda ao significado da totalidade da proposição, o qual é irredutível aos significados dos termos que a compõem. De uma maneira geral, podemos caracterizar uma teoria realista da proposição pela aceitação dos três pontos seguintes: (i) A proposição mental possui um significado próprio; (ii) O significado próprio não possui o mesmo modo de ser da proposição mental. O que implica: (iii) A admissão de entidades extramentais às quais tais significados correspondem.
Não é nosso objetivo desenvolver essa argumentação aqui25, mesmo porque ela não influencia a solução ao paradoxo. Apenas chamamos a atenção para o fato de que devemos considerar Odon como um realista, em virtude da objetividade própria que ele confere ao objeto da significação, que ele chama de coisa lógica (res logicalitersumpta), a qual corresponde à cópula proposicional - que Odon chamará de ens tertio adiacens, uma entidade de importância capital no tratado do lógico franciscano. Isso significa que, no esquema acima, a verificação da proposição mental, escrita ou proferida se dá pelo seu significado total e final, que é causa primeira da verdade proposicional.
A partir desse esquema da verificação proposicional, Odon pode subeter o paradoxo a crítica, e identificar os seus pontos problemáticos.
3. As quatro “malicias” do paradoxo
A resposta de Odon parece ser uma combinação de pelo menos duas soluções. Visto que o problema não é a auto-referência operada no paradoxo, a falha deve se encontrar em outro aspecto da proposição. Odon mostra como o paradoxo comete uma série de problemas estruturais, as quais ele chama de “malicias”. Primeiramente, há o deslocamento do valor de verdade para o interior da proposição (ou seja, como teu predicado), então, uma propriedade da proposição (passiopropositionis) é confundida com a sua parte:
(...) a proposição ‘eu digo o falso’, ou “minha última proposição é falsa”, possui quatro malicias. Pela primeira, parte da proposição é tomada como uma propriedade da proposição; ou seja, a falsidade, tal como é tomada aqui, é a propriedade da proposição, e aqui é tomada como parte da mesma proposição. Porém, isso não induz a uma impossibilidade, mas a uma dificuldade.26
Essa falha estrutural acarreta duas outras: a confusão da causa com o efeito, e do anterior com o posterior. Ora, uma proposição é dita verdadeira ou falsa do momento em que ela é confrontada com o seu verificador, o qual é causa do seu valor de verdade27. Ao tomar o valor de verdade como predicado, o paradoxo desrespeita essa ordem causal da verificação.
Por outro lado, Odon aponta para a incompatibilidade entre a forma afirmativa da proposição e o predicado “falso”: enquanto a primeira significa a união do sujeito com o predicado, o segundo significa a separação dos mesmos. Esta instabilidade representa, segundo Odon, a maior malícia do paradoxo:
Em quarto lugar - onde se esconde a lebre - <o sofisma> diz unir e não unir o predicado com o sujeito ao mesmo tempo. O que é patente pois toda proposição afirmativa informa uma união; ora, a proposição em questão é afirmativa, porque diz unir o predicado com o sujeito; mas este predicado “falso” diz não unir o predicado com o sujeito na proposição afirmativa à qual ele é atribuído. Isso se dá desta maneira porque essa proposição é afirmativa e seu sujeito supõe pela sua totalidade, e seu predicado denota pela sua totalidade. Pois a mesma diz, a partir da forma enunciativa, unir os extremos, e a partir da razão do predicado diz não uni-los. E nisso aparece de que modo <essa proposição> é sumamente maliciosa.28
Odon identifica, assim, a incompatibilidade entre a composição significada pela forma afirmativa do paradoxo e a divisão significada pelo seu predicado. Dado que tanto o sujeito como o predicado denotam a própria proposição, então têm-se o seguinte par contraditório: “S é P” e S não é P”. Observe-se de que o problema não é a auto-referência, mas o fato de que a mesma proposição coloca uma união e uma divisão com relação a si mesma, com relação à mesma cópula.
A identificação dessa particularidade leva Odon a analisar as condições de verdade do sofisma, tornando possível a determinação do seu valor de verdade e, com isso, resolver a dificuldade. Isso pode ser feito graças à identificação de uma falácia, denominada “muitas interrogações como uma”29, ou se podemos reformular essa nomenclatura para aproxima-la do nosso problema, “muitas proposições travestidas de uma”. Em outras palavras, o paradoxo comportaria duas proposições de maneira implícita, de modo que o seu valor de verdade deve ser determinado pela conjunção de duas proposições. Como o conjunto inconsistente “eu digo o verdadeiro - eu digo o falso” não pode ser verificado, a proposição não pode ser ela mesma verificada, e é em consequência falsa.
Agora respondo dizendo que <a proposição “eu digo o falso”> é falsa. E quando é inferido ‘portanto não é falsa’, nego a consequência. E quando é provado porque « então enuncia segundo <a realidade> é », não se segue, mas erra por três falácias. E mostro a primeira: “muitas interrogações como uma”. Aqui existem implicitamente duas <proposições> contraditórias. Eis a razão pela qual interrogar sobre a verdade ou a falsidade dessa proposição é interrogar sobre dois contraditórios. Assim, digo que uma proposição implicando essas duas informações contraditórias é falsa, pois para sua verdade seria requerido que cada uma fosse verdadeira, ou que cada uma fosse não- falsa. Porém, quando digo que ela é falsa, quero dizer que ambas não são verdadeiras, ou que ambas são não-falsas.30
Assim, o paradoxo do mentiroso não é verdadeiro e falso ao mesmo tempo, mas simplesmente falso. O princípio de não-contradição segue universalmente válido. Vemos, portanto, que o paradoxo é extremamente problemático e não respeita a estrutura proposicional, ou mais precisamente, o mecanismo de verificação proposicional tal como Odon o concebe. Vemos também que as “malícias” listadas por Odon não culminam em uma proposição mal formada, mas sua solução é possível pela análise das suas condições de verdade.
4. Conclusão
Em conclusão, A solução de Odon se mostra como uma sexta via no leque de soluções expostas na primeira parte desta exposição. Não se trata de destituir o paradoxo de todo sentido tal como a via cassante pretendia, tampouco de banir a auto-referência do espectro proposicional, tal como predicava a via restringente. No entanto, a solução de Odon mantêm alguma familiaridade com a solução de Bradwardine e aquela que Buridan irá desenvolver, na medida em que a falsidade significada pelo predicado conduzirá à falsidade da proposição. No entanto, diferentemente de Bradwardine e Buridan, Odon não invoca o postulado segundo o qual “toda proposição, se implica o falso, não pode ser verdadeira”. Odon se concentra sobre o que é significado pelo predicado em função da sua incompatibilidade com forma afirmativa da proposição. Segundo essa compreensão, se tomássemos a seguinte versão do paradoxo: “eu não estou dizendo a verdade”, a incompatibilidade se daria entre a forma negativa da proposição e o predicado “verdade”. Ao nosso ver, uma solução do paradoxo nos termos propostos por Odon não encontra par na literatura medieval sobre os paradoxos.