INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva estabelecer conexões dialógicas entre o plano abstrato-teórico e concreto-histórico das manifestações espaciais do processo de financeirização na periferia capitalista. Propõe-se, ademais, a promover uma integração entre os aportes e os avanços críticos na Geografia e na Economia Política, em torno à problemática da produção periférica do espaço. Para tanto, está estruturado em cinco partes, além desta introdução, da conclusão e das referências bibliográficas.
Na primeira, propõe o resgate da condição subdesenvolvida que marca os países da América Latina e o Brasil, em particular, sem a qual corre-se o risco de abordar o problema da produção do espaço negligenciando especificidades periféricas no âmbito de uma lógica global de acumulação. Em seguida, explicita-se a financeirização como o produto da progressividade do capital, cujo traço distintivo, na contemporaneidade, é o inédito grau de intrusão nas esferas política, institucional e social. A terceira parte presta-se a evidenciar como a renda da terra passa de limite a um momento específico da acumulação hegemonizada pelo capital portador de juros, subsunção da qual resulta a financeirização da produção do espaço. A quarta seção enfatiza a natureza transescalar dos rearranjos societários decorrentes do processo de financeirização, os quais são verificados, para o caso brasileiro, no quinto tópico.
1. O RESGATE DO ESTATUTO PERIFÉRICO
As análises relacionadas à produção do espaço, em especial ao exame da forma como os agentes sociais pautaram estratégias e condutas políticas, institucionais e econômicas em torno ao ambiente construído, procuram dar conta dos seguintes interrogantes, colocados por Lefebvre (1973, p. 78): “quem produz e para quem? O que é produzir? Como e por que produzir?”.
Estuda-se, em geral, a maneira segundo a qual a financeirização tem influenciado o espaço produzido, uma agenda concentrada no problema urbano e que tem na dimensão regional um largo campo em aberto, dada a transversalidade de iniciativas públicas e privadas com impacto nessa escala.
No Brasil e na América Latina têm sido enfatizadas (i) a revisão das formas institucionais e de ação do Estado e (ii) a concretude urbana da financeirização, que, para Maricato (2011), esgarça uma realidade fragmentada e excludente herdada de cinquenta anos de industrialização.
Costuma haver, no entanto, uma transposição de abordagens pensadas por autores e escolas cujo objeto é a teorização dos problemas da realidade de países desenvolvidos, sem que se construam elos necessários com os traços particulares do subdesenvolvimento1. Atestam Brandão, Fernández e Ribeiro (2018, p. 8):
Esta perspectiva teórica replicadora e fragmentadora obstaculiza —e em grande medida impugna epistemologicamente— uma visão de conjunto, quando se deseja apreender as mais decisivas transformações do capitalismo atual, suas repercussões socioespaciais e seus impactos no contexto latino-americano.
Tais análises parecem, ademais, tomar como dada a porosidade supraescalar dos espaços, que, em um período de aprofundamento da globalização, correspondem, de acordo com Fernández (2017, p. 277), a “nós integrantes de redes de fluxos e atores, assim como de decisões e recursos situados fora delas, que enquanto as atravessam e as redefinem permanentemente, as condicionam em suas estratégias e possibilidades”.
O exame da produção do espaço pressupõe, pois, diferenciar a especificidade histórica, política, econômica, social e cultural desse processo, e rechaçar modelos canônicos e generalizações que apontam trajetórias únicas de convergência rumo a tipos ideais.
O acervo conceitual pensado, ao longo das últimas décadas, para a realidade subdesenvolvida, viabiliza essa tarefa. É o caso dos enfoques dos estilos de desenvolvimento2 e da heterogeneidade estrutural, eixos analíticos facilitadores de uma releitura das implicações, na periferia global, dos macrodeterminantes associados à globalização financeira.
Assim procedem Riffo, Jordán e Prado (2017, p. 40), quando propõem
Como idea central que los sistemas urbanos y las dinámicas socioeconómicas y ambientales de las ciudades latinoamericanas y caribeñas son, en gran parte, una manifestación de las modalidades específicas del estilo de desarrollo periférico que se caracteriza, en lo fundamental, por una insuficiencia dinámica que produce y reproduce desigualdades en diferentes dimensiones, entre ellas la dimensión espacial.
A insuficiência dinâmica do estilo latino-americano de desenvolvimento —âmbito no qual está inserida a produção do espaço— pode ser caracterizada a partir das dimensões institucional, política, social, cultural e econômica, esta última detalhada, a seguir, de acordo com três subdimensões.
A primeira é a dimensão financeira: padrões monetários sem conversibilidade e a necessidade recorrente de financiamento internacional (público e privado) ilustram a vulnerabilidade, a interesses globais, dos instrumentos de política econômica dos países periféricos. Para Cano (2017a), a equalização da agenda pública em torno à atração e à fluidez de capitais delimita a superação do subdesenvolvimento e mesmo a manutenção de (parcas) conquistas sociais.
A segunda refere-se à dimensão produtiva: Porcile (2011) mostra o marcante hiato tecnológico da oferta industrial e de serviços em relação ao benchmarking internacional, produto de uma difusão assimétrica e truncada do progresso técnico em termos históricos inter e intranacionais, conforme apontou Fajnzylber (1983). Isso ocorre em virtude da incapacidade de as unidades empresariais periféricas se posicionarem nos extratos mais nobres de cadeias globais de valor e pela sujeição dos Estados Nacionais a macrodecisões tomadas por grandes empresas, o que inibe a prática de políticas industriais e de ciência e tecnologia.
Quanto à dimensão comercial, a Cepal (2017) transparece a persistência de um padrão primário-exportador que associa o resultado da balança comercial da região aos ciclos de preço das commodities agroindustriais. Além disso, a pauta de transações reflete a defasagem competitiva das estruturas produtivas periféricas, face às importações de produtos de alto valor agregado. Essa situação, que se soma às dificuldades associadas à dependência de fluxos internacionais de capitais, resulta em uma permanente fragilidade para equilibrar as contas externas, o que agrava o risco de necessidade de financiamento externo e de volatilidade cambial.
Articulada à abordagem dos estilos de desenvolvimento está a de heterogeneidade estrutural, também desenvolvida por Pinto (1973). Originada no estudo da composição técnica e da interação entre os setores moderno e atrasado na periferia, à luz da inserção internacional, essa ideia pode ser utilizada para destrinchar as relações espaciais ocasionadas pela insuficiência dinâmica periférica.
A agenda de Cano (2011) para o caso brasileiro se beneficia desse enfoque. Toma como ponto de partida o histórico das diferentes regiões que nuclearam os ciclos primários de exportação até 1930 e discute os desdobramentos regionais e urbanos do processo de industrialização (1930-1980). Grande ênfase é colocada na interdependência entre estruturas socioeconômicas nacionais e subnacionais e a dinâmica internacional, mediante a articulação de aspectos como a questão fundiária, as migrações e, só então, o processo de ocupação intraurbano, desprezando a compartimentalização espacial que antepõe o rural ao urbano. Destaca, ainda, os efeitos corrosivos que, após 1990, somaram-se aos passivos pré-existentes e dificultaram o manejo político dos constrangimentos impostos à sociedade, com particular atenção para a desindustrialização e para a crise fiscal e financeira que acometeu o Estado.
O debate da produção contemporânea do espaço não deveria, portanto, escamotear que esse processo ocorre no âmbito: (i) de uma espacialidade subordinada à dinâmica de países centrais e marcada por uma malformação estrutural pluridimensional e (ii) de um contexto de quase quatro décadas de crise econômica, espaçado por um curto período expansivo (2003-2011), para logo dar lugar a um remonte conservador e antissocial.
É sob essa camada fossilizada que, na contemporaneidade, incidem os efeitos multifacetados do padrão hegemônico de acumulação capitalista, na forma da financeirização da moradia, à luz da abordagem de Fix (2011); da mobilidade urbana, segundo Matela (2014); da geração de eletricidade, de acordo com Werner (2016); e mesmo do padrão de consumo das famílias, em concordância com Klink e Souza (2017).
O desafio, portanto, está em associar o subdesenvolvimento à forma contemporânea da acumulação. Para tanto, é fundamental tecer considerações extraídas da Economia Política para evitar um uso impreciso e associado a modismos que tem sido feito da financeirização, conforme argumentação de Christophers (2015, p. 185). Assim, potencializa-se o alcance analítico desse processo na geografia, no urbanismo e no planejamento territorial e contribui-se para integrá-los de maneira adequada ao enfoque econômico.
Nesse sentido, é fundamental evitar o negligenciamento do caráter contraditório, progressivo e antagônico da acumulação capitalista. Para Braga (1996), tal essência dinâmica indica que o processo de financeirização não é uma distorção, mas uma associação totalizante das formas juros, lucros e rendas, liderada pelo capital financeiro. De acordo com Cano (2017a) essa complexidade é distorcida, na aparência, pelo reducionismo argumentativo da proeminência do setor financeiro em relação às demais atividades econômicas, sobretudo quando em contexto de desindustrialização.
Segundo essa interpretação, a financeirização não é apenas uma recorrência cíclica na história do capitalismo3. É um fenômeno hodierno global, ou seja, posterior aos anos de 1970, hierarquizado pelos agentes financeiros dos países centrais e dotado de um ineditismo pautado por conduta social e arranjos regulatórios nunca antes testemunhados, mobilizador de massas de riqueza nunca antes centralizadas.
Sistêmica, a financeirização impõe que se averiguem as conexões que atestam o caráter simultâneo, contraditório e variado da acumulação nas diversas escalas— o que é ainda mais dramático ao se considerarem os passivos multidimensionais da realidade periférica.
Nesses marcos, discute-se a produção do espaço como fenômeno geral e, ao mesmo tempo, específico, resultante do choque entre a gestão da valorização do dinheiro e a gestão política dos interesses societários existentes.
2. FINANCEIRIZAÇÃO: A HEGEMONIA DO CAPITAL PORTADOR DE JUROS
Em Harvey (1992), apreende-se que o esgotamento do paradigma fordista de produção, na década de 1970, ensejou o desmonte de uma rígida e ineficiente estrutura produtiva, frente às modificações que então se operavam. A emergência da acumulação flexível —assentada em avanços nas tecnologias de automação e de informação— impactou a organização interna e externa dos grupos econômicos, sem deles retirar protagonismo.
Esse movimento —atesta Eichengreen (2002)— envolveu o desmonte do arranjo concertado em Bretton Woods e que tinha, na ação do Estado, pelo menos duas funções: (i) a de indutor do crescimento econômico, mediante investimentos produtivos e estímulos ao comércio internacional e (ii) a de garantidor de direitos de bem-estar social.
As mudanças no macroambiente dos anos de 1970 resultaram em um novo padrão de internacionalização liderado pelos Grupos Financeiros. Presidiu a reestruturação geopolítica o interesse da Finança Internacional, sob a liderança dos Estados Unidos. Tavares (1985) ressalta que políticas de recorte neoliberal consolidaram, desde então, a posição do dólar como moeda franca e aceleraram a circulação global de capital-dinheiro em todo o mundo.
De um lado, a disseminação de mudanças institucionais, alinhadas com os requerimentos do neoliberalismo, viabilizou maior apropriação de lucros e rendas.
De outro lado, Braga (1996) aponta que a coerção da concorrência intercapitalista e os requerimentos cada vez maiores de retornos de capital fizeram com que a reali- zação de investimentos produtivos fosse cotejada com estimativas de capitalização na forma de juros.
Ocorre, desde então, verdadeira intrusão das práticas financeiras na governança de empresas não-financeiras, marcada —no enfoque de Lazonick e O’Sullivan (2000)— pelas características de maximização de ganhos pelos acionistas e de queda dos limites setoriais que diferenciavam empresas dedicadas à intermediação financeira daquelas produtivas.
Segundo Palley (2007) e Guttman (2008), a especificidade do capitalismo contemporâneo se revela nos seguintes aspectos:
elevada significância do setor financeiro em relação ao setor produtivo — descolamento da riqueza fiduciária em face da real;
reformulação de práticas financeiras e introdução de inovações bancárias. Destaca-se a securitização — conversão de determinado fluxo de rendas em ativos renegociados, assumindo natureza primária (substituindo o crédito bancário) e secundária (substituindo o crédito dos intermediários financeiros, a exemplo das mortgage-backed securities, núcleo da crise subprime de 2008);
intrusão das finanças em atividades econômicas e sociais de outra natureza;
aumento da desigualdade de renda — estagnação dos salários e crescentes prêmios pagos a gestores empresariais.
Assim, a financeirização corresponde à hegemonia hodierna da lógica de valorização, capaz de penetrar e parametrizar as demais esferas da circulação e alterar a estrutura e operação dos mercados financeiros, de corporações não-financeiras, da política econômica, o comportamento das famílias/consumidores e mesmo a forma como a renda da terra é apropriada.
Desde uma perspectiva teórica, Marx (1983) afirma que o capital portador de juros é a forma mais exteriorizada e mais fetichista de ocultação das relações sociais capitalistas, pois expressa a relação de uma coisa —o dinheiro— consigo mesma. A autonomização proporcionada pela função reserva de valor da moeda, a condição de equivalente geral que o dinheiro exerce na circulação e o valor de uso que possui como capital lhe atribuem a faculdade essencial de valorizar-se a si mesmo.
A autonomização materializa-se, indica Belluzzo (2013), em uma separação dialética de dupla natureza. A primeira é a possibilidade de que o dinheiro antecipe a circulação e funcione como capital, o que capacita o capitalista funcionante a se apropriar de mais-valor e dispensa-o da disponibilidade prévia de recursos para investir. A segunda está associada ao fato de que a circulação pode ser suspensa pela fratura temporal entre o ato de compra e venda: o dinheiro, gatilho disparador, também tem a propriedade de interrompê-la, face à preferência pela liquidez.
Na qualidade de meio para a produção, o valor de uso do dinheiro —alienado pelo prestamista para um mutuário— está na possibilidade de que gere lucro. A fração do lucro paga ao prestamista se chama juro, preço do valor de uso do dinheiro que funciona como capital4.
É por isso que, argumentam Müller e Paulani (2012), o capital portador de juros não existe em posição individual, mas integral, subsumindo os capitais em função, ainda que esteja relativamente apartado do processo de produção e de circulação. Ao englobar outros circuitos como momentos subordinados do movimento de autovalorização, a antítese do capital portador de juros é referida ao capital funcionante. Se o juro é uma rubrica particular para uma fração do lucro que o capitalista deve pagar ao proprietário do dinheiro, este, apenas indiretamente, envolve-se na exploração da força de trabalho para a realização de mais-valor e lucro.
Aquino e Cipola (2008) mostram como tais relações se tornam ainda mais complexas com a possibilidade de transferência da propriedade do dinheiro como capital alienado, que define o conceito de capital fictício. O fato de que os empréstimos de dinheiro são atestados por títulos não só asseguram ao detentor deles o direito a pagamentos futuros de juros sobre o valor emprestado, mas também a especulação no mercado de capitais, sujeita a atributos de solvência e rentabilidade desses papéis.
Ao comercializá-los, o prestamista recupera o valor adiantado e a transação que envolve a propriedade do título dispara uma capitalização baseada na expectativa de recebimento de juros. Não havendo duplicação de valor, a capitalização faz sumir a conexão com o processo real (produtivo) de valorização e confirma a aparência do capital como autômato que se valoriza por si mesmo. Segundo Marx (1985, p. 11) apud. Müller e Paulani (2012, p. 88),
A formação do capital fictício chama-se capitalização e, com ele, toda conexão com o processo real de valorização do capital se perde assim até o último vestígio, e a concepção de capital como autômato que se valoriza por si mesmo se consolida. Estamos aqui, pois, no reino das aparências: o movimento autônomo do valor destes títulos de propriedade confirma a aparência, como se eles se constituíssem capital real ao lado do capital ou do direito ao qual possivelmente deem título.
Essa aparente dissociação se desfaz nas crises, quando a unidade essencial do sistema —os distintos momentos subordinados e necessários à valorização, em que o capital aparece significado como a mercadoria e o dinheiro— é explicitada e as contradições que perpassam a acumulação e a valorização capitalista são repostas por intervenções de natureza política (Tavares, 1998).
Do exposto, destacam-se três registros preliminares: (i) o capital tende a tornarse limite de si mesmo no processo de valorização, desdobramento dinâmico da própria acumulação; (ii) a subsunção hegemonizada pelo capital portador de juros revela uma aparência fragmentada, mas, em essência, uma das formas parciais e (iii) a natureza expectacional do recebimento de juros comporta uma capitalização especulativa, cujo lastro repousa nos direitos de propriedade.
3. RENDAS FUNDIÁRIAS: LIMITES AO CAPITAL?
A partir das abordagens de Lefebvre (2008), Harvey (2005) e Castells (1977), entre outros, derivou-se um amplo conjunto de estudos e reflexões centrado na ideia de que a produção do espaço reflete relações multidimensionais entre agentes sociais cujos interesses materializam-se na tentativa de construção socioespacial do ambiente.
O processo de acumulação orquestra territórios segundo uma lógica geral, voltada à reprodução capitalista e institui —nos termos de Harvey (2005) e Massey (1984)— uma coerência estruturada entre múltiplas escalas e agentes sociais, o que amplifica as bases da divisão do trabalho. O capital, limite de si mesmo, tende a ultrapassar todas as barreiras espaciais para se viabilizar no espaço e apresenta variações que expressam o balanço hegemônico-relacional do enquadramento capitalista em formações socioespaciais pré-existentes.
A maior mobilidade de capitais, decorrente das mudanças institucionais no macroambiente regulatório internacional nos anos de 1970, modificou os determinantes da produção do espaço e ampliou a velocidade interativa da acumulação. Para Harvey (2013), redes e circuitos integraram países e territórios em uma lógica global, com investimentos orientados à obtenção de lucros e rendas pelos grandes grupos econômicos. A diversidade geográfica se tornou um ativo capaz de proporcionar oportunidades extraordinárias e foi condição necessária, e não barreira, para a reprodução do capital.
Então passa a ser necessário articular trajetórias espaciais específicas ao regime de acumulação dominante e discutir a natureza desigual do desenvolvimento geográfico e identificar padrões e processos espaciais que caracterizam e transformam a sociedade, na medida em que progridem as forças produtivas.
A busca do capital pela máxima valorização deriva uma lógica dialética de integração espacial. Segundo Smith (1988), a passagem de um lugar antes isolado à condição de território de uma divisão do trabalho se dá pela diferenciação e igualação das condições de reprodução capitalista. Certos agentes se dispõem a explorar diferenciações territoriais e delas extrair vantagens, cuja captura se viabiliza por regramentos equalizados quanto à fluidez de juros, lucros e rendas, o que delimita as possibilidades de desenvolvimento aos desígnios hegemônicos que hierarquizam a produção do espaço.
As estratégias globais de gestão do dinheiro e valorização de capital se expressam na organização de atividades empresariais em cadeias globais de valor5 e, ao aproveitar-se da reestruturação do padrão de internacionalização fordista face aos desdobramentos do pós-1970, os grandes grupos econômicos aprofundaram o controle sobre a hierarquia daquilo que Barrios (1980) e Rofman (2016) designaram de circuitos espaciais, que envolvem lugares de comando e lugares de produção.
Tal iniciativa foi viabilizada pelos grandes projetos, definidos por Piquet (1990) como intervenções de alto volume de investimentos, portadoras de elevado potencial disruptivo, organizadas na forma de unidades empresariais flexíveis, capazes de operacionalizar a circulação do capital em linha com o padrão financeirizado de acumulação e, não menos relevante, de alterar gradientes de renda fundiária.
Os grandes projetos, ao mesmo tempo em que articulam certos lugares geográficos a cadeias globais de valor, estruturam uma coerência responsiva aos parâmetros financeiros de acumulação. Ao Estado, aponta Jessop (2001), caberia dar suporte institucional, legal, infraestrutural e financeiro à captura, pelo capital, dos retornos que lhe cumpre obter.
Esses ganhos incluem a possibilidade de obtenção de rendas da terra. Por isso, parece válido realizar uma breve digressão sobre a renda da terra para compreender a superação, no contexto da financeirização, da condição de óbice que lhe fora atribuída.
Cario e Buzanelo (1986) apontam que, em David Ricardo e Adam Smith, a renda da terra era definida por uma relação técnica vinculada à produtividade relativa dos melhores e piores terrenos agricultáveis. Já para Marx, refletia aspectos técnicos, mas também uma relação social assentada no monopólio da propriedade fundiária e no caráter não-reprodutível da localização. Combinados, esses atributos permitem ao proprietário fundiário cobrar da sociedade uma fração da riqueza coletiva pelo direito de uso da terra, na forma de rendas absoluta, diferenciais ou de monopólio.
Segundo Lefevbre (2008), as rendas da terra urbana se assemelham àquelas do meio rural. O rápido e intenso crescimento populacional nas cidades definiu a possibilidade de elevação da renda fundiária citadina e tornou algumas parcelas do solo urbano comparáveis aos solos agrícolas especiais geradores de rendas de monopólio.
Na cidade, consumidores estão dispostos a pagar para se situarem em áreas exclusivas. A localização define a renda diferencial e os proprietários de terra urbana buscam apoderar-se do progresso do desenvolvimento social, o que amplia ganhos especulativos. Por isso, Smolka (1987) assevera que não é o imóvel construído, mas a possibilidade de se apropriar de rendas fundiárias que constitui o objetivo dos proprietários de terra.
Fica evidente a antítese entre a classe de proprietários de terra e o resto da sociedade, de quem aquela cobra um tributo pela alienação do uso do terreno. Quanto aos capitalistas funcionantes, de maneira análoga à remuneração devida em juros aos proprietários de capital-dinheiro, devem empreender recursos provisionando a conversão de parte do lucro potencial em renda da terra.
Ou seja: o lucro é parcialmente imobilizado e impossibilitado de ser revertido em um novo ciclo de acumulação. Capturado pelos proprietários fundiários, faz da renda da terra um obstáculo à reprodução, porque esta se origina de uma dedução da mais-valia obtida no processo de produção.
É da superação dessa condição antitética que vai se afirmar o caráter financeiro da produção do espaço. Isso ocorre quando a renda da terra é subsumida pela acumulação hegemonizada pelo capital portador de juros. A intrusão desmantela os atributos socioeconômicos da classe de proprietários fundiários, pois a propriedade e as rendas fundiárias passam a compor o circuito geral de acumulação capitalista.
Para Harvey (2013), isso pode ocorrer de duas maneiras: (i) pela união da figura do capitalista com a do proprietário de terras, na qual persiste, no entanto, a necessidade de converter parte do lucro em renda da terra e (ii) através do mercado financeiro, em que a propriedade fundiária se transfigura em um título comercializável, transacionado como um capital fictício lastreado na expectativa de ganhos decorrentes das alterações de uso do solo.
De todo modo, ressaltada está a importância de encarnar os agentes sociais que tomam parte na financeirização da produção do espaço. Resta destacar como as contradições que tipificam o capitalismo contemporâneo, arbitradas pelo Estado, refletem a natureza transescalar do ambiente construído, exercício essencial para o acoplamento da periferia capitalista nessa dinâmica.
4. FINANCEIRIZAÇÃO DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO: UMA ÊNFASE TRANSESCALAR
A abordagem transescalar do desenvolvimento geográfico desigual enfatiza a natureza relacional, processual e mediadora da produção do espaço. Para tanto, o instrumental das escalas geográficas —conceito aprofundado por Castro (2014) e Souza (2013)— é fundamental.
Com ele, busca-se articular os diferentes níveis de produção, hierarquização social e organização espacial, pois, segundo Smith (1988, p. 19), “o capital não somente produz o espaço em geral, mas também produz as reais escalas que dão ao desenvolvimento desigual a sua coerência”. Há que se considerar, portanto, a reestruturação do capitalismo não só como fenômeno econômico, mas também por suscitar redefinições sociais, políticas e institucionais que o padrão hegemônico de acumulação promove pelos espaços.
Brenner (2001) ressalta que essa abordagem ganhou maior densidade e aprofundamento após a década de 1970, com a transição para o neoliberalismo. Brandão (2009), Klink e Souza (2017) identificam, como componente epistemológico, o entrelaçamento entre os circuitos espaciais de acumulação e os rearranjos sociais e institucionais que envolvem Estado, Mercado e Sociedade à luz dos impulsos hegemônicos transescalares no capitalismo contemporâneo.
Para Peck e Theodore (2015), o processo de neoliberalização se expressa nas “políticas rápidas”, decompostas em dois momentos distintos, cíclicos e articulados de reestruturação do Estado: o de roll back (desmonte de estruturas e instituições prévias) e o de roll out (re-regulamentação de estruturas e instituições), produtos da emergência de renovados interesses hegemônicos que se sobrepõem àqueles antes existentes.
Em Brenner (2004), essa reestruturação se materializa nos “novos espaços de Estado” e pode ser analisada de acordo com a seguinte classificação: (i) Sentido Restrito: refere-se à estrutura organizacional, administrativa e hierárquica do Estado; (ii) Sentido Integral: envolve as estratégias espaciais do Estado para integrar e homogeneizar o território e (iii) Sentido Representacional: inclui as práticas espaciais efetivas do Estado, que moldam os horizontes de possibilidade na produção do espaço6.
No contexto atual, Jessop (2001) e Brenner (2004) argumentam que não é que haja menos Estado, mas uma adequação do aparelho estatal a práticas políticas e institucionalidade funcionais aos requerimentos do bloco hegemônico, transmitida pelas instâncias públicas dedicadas a fazer valer o poder do Estado, o que indica a vigência de um neoliberalismo realmente existente .
O Estado preserva o estatuto de importante agente de produção do espaço no capitalismo contemporâneo e isso confirma o que havia sido apontado por Lojkine (1981) à luz do paradigma de industrialização. Ao arbitrar sobre o capital fixo, o crédito e a regulação do ambiente construído, interfere no uso e consequente possibilidade de valorização da terra. Daí que a atuação pública seja permeada de interesses privados, entre os quais são significativos os que gravitam em torno à natureza expectacional da propriedade fundiária, elevada, segundo Harvey (2004), à potência especulativa.
No Mercado, o agente que opera sobre o caráter não-reprodutível da terra, em especial no meio urbano, é o capital incorporador. Em Smolka (1987), tal agente aparece como o gestor do dinheiro associado à transformação do uso do solo, cujos ganhos podem ser auferidos de forma industrial (construção), comercial (distribuição de ativos imobiliários), rentista (decorrente das alterações diretas e indiretas do uso do solo); e financeira (envolvendo a antecipação expectacional dos preços dos terrenos).
Ocorre que, se a especificidade do capitalismo contemporâneo é a dominância financeira e a intrusão que hegemoniza e parametriza as demais esferas da circulação, então é preciso ter em vista, com Aalbers e Fernandez (2016), a ampliação do escopo de interesses societários7 em torno à produção do espaço, agora permeável ao capital portador de juros.
A financeirização da produção do espaço é, pois, um rearranjo transescalar e, no âmbito da subsunção em que se configura, constituem-se projetos compatíveis com o que Logan e Molotch (1987) classificaram como máquina de crescimento, o que suscitou, conforme Harvey (1989), iniciativas de empresariamento —sobretudo urbano— composta por agentes públicos e privados de diversas naturezas.
Essa imbricação relacional demonstra o alcance hegemônico da associação totalizante promovida pelo capital portador de juros. Na circulação, os títulos de propriedade que atestam a alienação do dinheiro involucrado com a alteração do uso do solo são transformados em ativos securitizados e convertidos em instrumento de capitalização. O elo entre a especulação financeira (ou o capital fictício) e a renda da terra potencializa a natureza expectacional tanto do processo de financeirização, em geral, quanto da produção contemporânea do espaço, em particular.
Do ponto de vista do ambiente construído, Holston (2013) contribui com a percepção de que a Cidadania arca com um processo de fragmentação e segregação cada vez mais aprofundado, que reflete a priorização de estratégias empresariais, inclusive pelo setor público — alheio à tentativa de suprimir déficits e carências sociais8. Práticas insurgentes vocalizam, no quadro do capitalismo contemporâneo, as reivindicações dos destituídos em face do recrudescimento da lógica de expulsões/ expropriações e indicam novos insumos para a interpretação da produção periférica do espaço, reforçando —em linha com Gottdiener (1997)— a condição de lugar e possibilidade da ação que lhe é atribuída.
5. A FINANCEIRIZAÇÃO DA PRODUÇÃO PERIFÉRICA DO ESPAÇO
No Brasil, como no resto na América Latina, o pacto societário jamais tensionou a ruptura das estruturas de sustentação de desequilíbrios e desigualdades. Elementos como a questão fundiária, estudados por Cano (2010) e Brandão (2016), permanecem intocados.
O ambiente construído financeirizado, na periferia, está sendo erigido sobre um processo truncado de industrialização e envolve interdependências entre as elites cosmopolitas, as elites fundiárias e as elites oligárquico-regionais, cujos interesses tangenciam —por razões diversas— a busca pela apropriação privada dos recursos naturais, do território e dos fundos públicos.
Essa pactuação é possível porque, mesmo em uma periferia articulada a fluxos e redes globais, eivada por relações hegemônicas e por uma inexorável polarização geopolítica e econômica, a homogeneização —que tipifica a expansão dialética do capital— se dá tão somente como uma tendência, mas jamais chega a completar-se, segundo Ribeiro (2012).
Ou seja: o desmonte e a remontagem do aparelho estatal, na periferia, resultam em fundamentos jurídicos e institucionais previsíveis e adequados à exploração transescalar das diferenciações geográficas, sem molestar a base de poder local, e explicitam a relação entre (i) a reformulação do aparato regulador dos fluxos que alimentam as necessidades globais de acumulação e (ii) o acesso a fundos públicos9, utilizados para protelar as contradições de estratégias societárias atrasadas. Ambos delimitam o ataque aos problemas espaciais do subdesenvolvimento desde um conjunto internalizado de macrodecisões.
Constrangem-se, há décadas, as capacidades governativas (técnicas, financeiras e institucionais) voltadas à função de disciplinar e regular as ações capitalistas produtoras de espaço. O Estado Nacional passa por verdadeira corrosão (roll back), mas também é a escala a partir da qual se impõem mecanismos institucionais adequados às formas hegemônicas de acumulação (roll out), que tem na preservação de recursos públicos em favor do Mercado um dos resultados mais expressivos do processo de neoliberalização.
Ainda que, em sentido restrito, a Constituição de 1988 tenha redefinido a alocação de recursos e atribuições à luz de um Pacto Federativo baseado na garantia de direitos de cidadania, seguiram-se políticas aderentes ao Consenso de Washington. Para Rezende (2018), além de imporem uniformidade e tutela aos entes federados subnacionais, as ações públicas priorizam as relações com o Mercado, mas são compatíveis com a ingerência local, o que confirma os indicativos de Mello (1990), Abrucio (1994) e Rodriguez (1994) quanto à preservação de poder político daqueles extratos sociais que se locupletam do Estado.
Entre 1980 e o início dos anos 2000, a crise do Estado Nacional e práticas neoliberais voltadas à estabilização monetária (prioritárias também nos últimos anos) foram qualificadas por Pacheco (1998) e Cano (2007) como promotoras do desmonte do aparelho público dedicado à questão espacial brasileira.
Assim, afetou-se de maneira significativa o sentido integral das políticas e estratégias de desenvolvimento regional, e isso fez regredir as conquistas remissivas a 1930. No atual contexto, o planejamento regional tem sido delegado aos grandes projetos, sendo a atuação pública restringida à redução de custos de transação. Nas maiores cidades, a adequação seletiva à circulação financeira mundializada reforça a condição de desigualdade e fragmentação.
Com o Estatuto das Cidades (2001) e a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), de 2004, houve uma tentativa de retomada da coordenação e da ação do problema regional na agenda pública. Oliveira e Werner (2014) mostram que tais esforços foram inócuos, sendo suplantados por iniciativas setoriais e transversais que, de forma implícita e à semelhança de grandes projetos, proporcionaram resultados espaciais mais efetivos.
O sentido representacional, síntese dos anteriores, evidencia que os interesses societários permitiram efetivar apenas aquelas medidas regulatórias compatíveis com a camisa de força macroeconômica imposta ao Estado10, razão pela qual —alerta Cano (2017b)— a falta de efetividade pública na regulação da produção capitalista do espaço deve-se menos a razões técnicas e mais à questão política.
Não por acaso, Stroher (2017) classifica os grandes projetos (urbanos e regionais), o empresariamento urbano, o eventismo e o planejamento estratégico como as formas latentes de atuação de um Estado dedicado a aprimorar condições jurídicas e institucionais para que o capital-dinheiro flua, sem arestas, desde o ambiente construído até a esfera financeira de acumulação.
Esvaziado o arbítrio público quanto à produção socioespacial do ambiente, submete-se a sociedade aos ditames da acumulação financeirizada, aprofundada, de acordo com Sanfelici (2013), pela abertura de capital e pela maior facilidade no acesso ao sistema financeiro e créditício por parte das grandes empresas da construção civil. Arranjos como as operações urbanas consorciadas, as outorgas onerosas pelo direito de construir e certificados de potencial adicional construtivo indicam, ademais, importantes ganhos com a flexibilidade regulatória.
A financeirização da produção periférica do espaço, porém, não se restringe ao urbano: alcança uma transversalidade setorial e territorial ainda pouco explorada. Werner (2016), em estudo sobre o setor elétrico brasileiro, contribui para identificar as novas articulações entre Estado e Mercado na provisão de infraestrutura e ressalta que as intervenções espaciais decorrentes da reconfiguração do setor elétrico, na forma de Usinas Hidrelétricas, Pequenas Centrais Hidrelétricas e Usinas Eólicas expressaram a associação totalizante hegemonizada pelo capital portador de juros. No arranjo político-institucional, destaca as Sociedades de Propósito Específico e Parcerias Público-Privadas como principais modalidades.
A motivação principal da ampliação da oferta de energia elétrica —mobilizadora de grandes volumes de investimento e, portanto, de crédito público— foi, nos registros daquela autora, (i) a de alimentar as necessidades globais de acumulação financeira, capitaneadas pelos grupos econômicos internacionais e (ii) a de rebaixar custos para atividades primário-exportadoras de cadeias globais de valor, via grandes projetos.
Fica patente, na referida análise, que a produção do espaço reflete e reitera o estilo de desenvolvimento periférico. A atração de investimentos externos para a expansão do setor elétrico —dado um arranjo macroeconômico que constrange a autonomia do gasto público— e a insuficiência dinâmica associada às exportações de produtos primários (mesmo subsidiadas pela produção de energia a baixo custo) não só inibem o aproveitamento das potencialidades nacionais, como extremam uma produção do espaço que lega passivos territoriais de diversas naturezas, a serem resolvidos junto a interesses transescalares.
6. CONCLUSÕES
Partiu-se do resgate do estatuto periférico para a análise da produção financeirizada do espaço, com o uso de alguns conceitos que, pensados desde a realidade da América Latina, ensejam um diálogo profícuo com a agenda internacional de pesquisa dedicada ao problema espacial. Argumentou-se que essa releitura permite mapear, com maior clareza, as interdependências entre a financeirização e a espacialidade no subdesenvolvimento.
Ao precisar o debate da financeirização em termos histórico-teóricos, ressaltaram-se as características ontológicas e transescalares desse processo. Isso implicou, de um lado, no reconhecimento das variedades nacionais que o capitalismo assume e, de outro lado, requereu posicionar a produção do espaço como um fenômeno que transcende à rigidez da circunscrição subnacional, porque submetido a uma lógica sistêmica e global de acumulação.
É por isso que se propôs abordar a financeirização da produção do espaço mediante as objetivações do conceito de escala geográfica, e realizou-se uma revisão relacional, processual e mediadora do caso brasileiro, que revelou os seguintes delineamentos.
A produção hodierna do espaço tornou-se parte integrante do movimento de autovalorização do capital portador de juros: antes um obstáculo, a renda da terra converteu-se em parte das estratégias financeirizadas. A associação totalizante da forma lucro e da forma juro acoplou os ganhos fundiários às dinâmicas globais de valorização e envolveu os agentes sociais em arranjos regulatórios inovadores e adequados à capitalização lastreada no espaço.
Quanto ao ambiente construído, a financeirização não desfez as manifestações espaciais herdadas da industrialização. Compatível com interesses retrógrados pré-existentes, é um processo que retroalimenta a heterogeneidade estrutural e a insuficiência dinâmica do estilo de desenvolvimento periférico, ao mesmo tempo em que aliena as macrodecisões que poderiam encaminhar uma estratégia de superação dessa condição.