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Prolegómenos

Print version ISSN 0121-182XOn-line version ISSN 1909-7727

Prolegómenos vol.25 no.49 Bogotá Jan./June 2022  Epub June 30, 2022

https://doi.org/10.18359/prole.5629 

Artículos

O direito à indenização do consumidor pelo tempo perdido, em razão do defeito no produto ou no serviço*

El derecho del consumidor a la compensación por el tiempo perdido debido a un defecto en el producto o servicio

The Consumer's Right to Compensation for Lost Time due to a Defect in the Product or Service

Luiz Carlos Goiabeira Rosaa 

Gabriel Oliveira de Aguiar Borgesb 

Dionis Salviano Alvesc 

a Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal). Doutor em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Brasil). Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil). Professor da graduação e do Programa de Pós-graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (Brasil). Correio eletrónico: lgoiabeira@yahoo.com.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2350-5154

b Doutorando em Direito Político e Económico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (Brasil). Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade Federal de Uberlândia (Brasil). Professor na Faculdade de Direito da Universidade Estadual de Goiás (Brasil) e na UNITRI - Centro Universitário do Triângulo (Brasil). Advogado. Correio eletrónico: gabrieloab@outlook.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9768-0994

c Graduando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (Brasil). Correio eletrónico: dionis.ufu@gmail.com ORCID: https//orcid.org/0000-0003-0374-2547


Resumo:

este trabalho tem como finalidade analisar a possibilidade de se indenizar o tempo desperdiçado pelo consumidor por má conduta do fornecedor ao impossibilitar ou dificultar a reparação pelo defeito no produto ou no serviço, o que a doutrina alcunhou de “desvio do tempo produtivo do consumidor", e o dever de reparar daí decorrente. Adotou-se o método dedutivo, partindo-se do direito fundamental à proteção do consumidor e um de seus corolários, o princípio da vulnerabilidade do consumidor, chegando-se à responsabilidade do fornecedor pela colocação de produtos e serviços defeituosos no mercado de consumo, e ao final constatando-se o dever de reparar em razão do tempo tomado do consumidor e da não resolução do problema, por exclusiva desídia do fornecedor.

Palavras-chave: consumidor; desvio produtivo; tempo; defeito no produto e no serviço

Resumen:

este trabajo tiene como objetivo analizar la posibilidad de indemnizar el tiempo perdido por el consumidor debido a la mala conducta del proveedor al hacer imposible o difícil reparar el defecto en el producto o servicio, que la doctrina denominaba “desviación del tiempo productivo del consumidor", y el consiguiente deber de reparación. Se adoptó el método deductivo, partiendo del derecho fundamental a la protección del consumidor y uno de sus corolarios, el principio de vulnerabilidad del consumidor, llegando a la responsabilidad del proveedor por colocar productos y servicios defectuosos en el mercado de consumo, y al final, al deber de la reparación se verifica por el tiempo empleado por el consumidor y la falta de solución del problema, por negligencia exclusiva del proveedor.

Palabras clave: consumidor; desviación productiva; tiempo; defecto en producto y servicio

Summary:

this work aims to analyze the possibility of indemnifying the time wasted by the consumer due to the supplier's misconduct by making it impossible or difficult to repair the defect in the product or service, which the doctrine called "deviation of the consumer's productive time", and the resulting duty to repair. The deductive method was adopted, starting from the fundamental right to consumer protection and one of its corollaries, the principle of consumer vulnerability, arriving at the supplier's responsibility for placing defective products and services in the consumer market, and at the end, the duty to repair is verified due to the time taken by the consumer and the failure to solve the problem, due to the exclusive negligence of the supplier.

Key words: consumer; productive deviation; time; defect in product and service

Introdução

Tornou-se costumeiro o consumidor realizar verdadeira via crucis quando tenta resolver com o fornecedor alguma questão ligada a defeito no produto ou serviço fornecidos. Esperas intermináveis em ligações, e-mails que não recebem resposta, transferência de ligações para o “setor responsável” e tantas outras situações que fazem com que o consumidor perca considerável tempo, para reivindicar um direito elementar que lhe assiste: o de exigir do fornecedor a reparação do defeito do produto ou do serviço fornecido.

Desde a mera desorganização e falta de estrutura para atender o público até a clara má-fé no uso de expedientes para fazer o consumidor desistir pelo cansaço, fato é que o fenômeno do tempo tomado do consumidor pelo fornecedor, sob um viés existencialista, reflete em prejuízo àquele, dado que poderia ter aproveitado tal tempo desperdiçado, utilizando-o em outras situações mais úteis à sua vida. Daí então, uma vez que se vislumbra prejuízo ao consumidor, poder-se-ia dizer que essa perda de tempo poderia redundar no direito de exigir do fornecedor a respectiva reparação?

Nesse mister, este trabalho tem como finalidade analisar a indenizabilidade do tempo gasto pelo consumidor com reclamações por defeito no produto ou no serviço objeto da relação de consumo, tempo esse que lhe seria útil numa outra determinada situação existencial, o que a doutrina alcunhou de “desvio produtivo do consumidor”.

Adotou-se o método dedutivo, partindo-se do direito fundamental à proteção do consumidor e um de seus corolários, o princípio da vulnerabilidade do consumidor, chegando-se à responsabilidade do fornecedor pela colocação de produtos e serviços defeituosos no mercado de consumo, e ao final constatando-se o dever de reparar em razão do tempo tomado do consumidor e a não resolução do problema, por exclusiva desídia do fornecedor.

O direito fundamental à proteção e o princípio da vulnerabilidade do consumidor

Direitos fundamentais são prerrogativas inerentes ao cidadão enquanto pessoa humana, assegurado- ras de condições mínimas de se manter a dignidade humana. São vetores de valores inarredáveis do ser humano e essenciais a uma vida digna, pelo que Ferrajoli (2010) bem observa a respeito:

son “derechos fundamentales” todos aquellos derechos subjetivos que corresponden universalmente a “todos” los seres humanos en cuanto dotados del status de personas, de ciudadanos o personas con capacidad de obrar; entendiendo por “derecho subjetivo” cualquier expectativa positiva (de prestaciones) o negativa (de no sufrir lesiones) adscrita a un sujeto por una norma jurídica; y por “Status” la condición de un sujeto, prevista asimismo por una norma jurídica positiva, como presupuesto de su idoneidad para ser titular de situaciones jurídicas y/o autor de los actos que son ejercicio de éstas.1 (p. 37)

Destarte, os direitos fundamentais consubstanciam-se em prerrogativas e instituições que se concretizam em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas, sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive (Silva, 2015, p. 180). São, pois, pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade humana (Branco, 2017, p. 131), sendo titulares os indivíduos pertencentes à sociedade regida pelo Estado que os reconhece como cidadãos.

Nesse mister, sendo titulares de direitos fundamentais todos os cidadãos, segue-se que haverá situações em que os direitos fundamentais dos envolvidos numa relação irão se colidir, no que Alexy (2015) bem observa:

o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. (pp. 93-94)

Dado que os direitos fundamentais são princípios, fala-se então em ponderação entre estes quando constatada a colisão, pelo que Canotilho (2003) bem observa: “em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação e de harmonização, pois eles contêm apenas ‘exigências’ ou ‘standards’ que, ‘em primeira linha’ (‘prima facie’), devem ser realizados” (p. 1.161). Ou seja, busca-se sopesar os direitos fundamentais para que se possa constatar qual deles, uma vez aplicado em toda a sua extensão possível no caso concreto, concretizará com maior eficácia os ideais de justiça e igualdade.

No caso da relação de consumo, constata-se a colisão cuja ponderação se faz necessária: de um lado, o direito fundamental do consumidor vulnerável, a ser protegido na forma da lei pelo Estado (Constituição Federal [CF ], art. 5°, inciso XXXII); de outro lado, o direito fundamental do fornecedor à livre iniciativa (CF, art. 170), o qual deve ser sopesado, conforme previsto pelo inciso v do próprio artigo 170 da Carta Magna, pelos contornos da defesa do consumidor. Nessa linha, não pode o fornecedor comportar-se ao seu bel-prazer e inadvertidamente explorar a condição vulnerável do consumidor, de forma a se eximir de seu dever de fornecer produtos ou serviços adequadamente, bem como de seu dever de responder pelos respectivos defeitos.

Nesse mister, uma vez que o princípio constitucional da igualdade pressupõe e impõe o respectivo equilíbrio nas relações jurídicas, segue-se que, ao vulnerável, deve-se dar a proteção proporcional à sua vulnerabilidade, para que se possa contrabalançar eficazmente o desnível resultante de melhores condições materiais da outra parte e, assim, obter-se o equilíbrio em que se consubstancia a aludida igualdade. Nesse ponto, em sede de relação de consumo, o consumidor é sabidamente a parte mais fraca da relação uma vez considerado o expressivo e superior poderio e condições económicas do fornecedor, o qual acertadamente elencou-se entre os direitos fundamentais a proteção do consumidor (CF, art. 5°, inciso XXXII), desdobrada no comando constitucional de elaboração de um Código de Defesa do Consumidor ([CDC ] art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF), o qual veio a se perfectibilizar por ocasião da entrada em vigor da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990.

Como o próprio nome indica, o CDC visa a defender o consumidor de arbitrariedades cometidas pelo fornecedor, por meio das quais este se vale da fraqueza daquele e lhe causa consequente prejuízo para obter lucro. O citado Código vem a servir de contrapeso ao descompasso entre o consumidor, a parte mais fraca, e o fornecedor, a parte mais forte por ser detentor dos meios de produção e do controle do mercado, tendo assim poder sobre o que produzir, como produzir e para quem produzir, bem como autonomia para fixar suas margens de lucro (Filomeno, 2018). E, nesse ponto, sendo o consumidor a parte mais fraca, é mais suscetível a ser prejudicado que o fornecedor; vindo, portanto, a ser a parte vulnerável da relação.

Bem a propósito, portanto, o Código Consumerista (Brasil, 1990) orienta-se, entre outros, pela vulnerabilidade presumida do consumidor, alçada ao status de princípio no artigo 4°, inciso I:

A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses económicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo [...]

Destarte, no contexto da igualdade enquanto paradigma, a vulnerabilidade surge como questão preliminar a ser resolvida para que haja o necessário equilíbrio contratual, posto que somente pode ser reconhecido igual alguém que não está subjugado por outrem (Moraes, 2009) e, possuindo o consumidor um estado inerente de risco ou um sinal de confrontação excessiva de interesses identificado no mercado, que gera uma situação permanente ou provisória que fragiliza, enfraquece-se enquanto sujeito de direitos, desequilibrando a relação (Marques, 2013). Ao ser o consumidor protegido enquanto vulnerável, o CDC equilibra a relação de consumo, tratando as partes em conformidade com as posições jurídicas que ocupam e com o desnível entre elas existente, uniformizando assim as condições e capacidades no contrato.

Partindo desse pressuposto, a vulnerabilidade está intimamente ligada ao consumidor em si considerado de uma forma geral: em princípio, somente pelo fato de o sujeito ser consumidor presume-se ser vulnerável, haja vista que, por não dispor dos bens e dos recursos de produção, submete-se a quem destes dispõe: o fornecedor.

Desta maneira, o princípio da vulnerabilidade, além de ser um princípio protecionista, atua também como centro de formação da coordenação das políticas nas relações de consumo. Não sem motivo, a Política Nacional das Relações de Consumo finca no princípio da vulnerabilidade o alicerce para criar e estabelecer as suas diretrizes, tomando por parâmetro a ser contraposto o déficit apresentado pelo consumidor quando confrontado com fornecedor, buscando assim estabelecer um equilíbrio entre as partes nas relações de consumo.

Nessa linha, entre as classificações doutrinariamente propostas, adota-se aqui a proposta por Marques (2016), em que a vulnerabilidade enquanto gênero apresenta as espécies técnica, jurídica ou científica, fática ou social e econômica.

Na vulnerabilidade técnica, Marques (2016) explica que o comprador não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está adquirindo e, portanto, é mais facilmente enganado quanto às características do bem ou do serviço ou quanto à sua utilidade: o consumidor não detém o conhecimento sobre o processo de produção e as características específicas do produto ou do serviço, seja porque se trata de situação que ultrapassa o conhecimento do cidadão mediano, seja porque as informações a respeito são inexatas ou sequer são prestadas: o consumidor não participa da confecção do produto ou da elaboração do serviço, desconhecendo assim suas singularidades. A título de exemplo, pode-se usar um computador: o fornecedor detém o poder da informação de toda cadeia produtiva, desde a matéria-prima e os insumos, passando pela montagem e pela programação, pelos conhecimentos dos periféricos, dos componentes eletrônicos, da forma de manutenção, entre outros, até a sua colocação no mercado de consumo, e o respectivo conhecimento e ciência não são colocados ao alcance do consumidor.

Quanto à vulnerabilidade jurídica ou científica, Marques (2016) esclarece que se caracteriza pela falta de conhecimentos jurídicos específicos, conhecimentos de contabilidade ou de economia, sendo, pois, presumida para o consumidor não profissional e para o consumidor pessoa física. Esta espécie de vulnerabilidade consiste na ideia de que o consumidor, igualmente à espécie anterior, não possui capacidade cognitiva suficientemente para estar em pé de igualdade com o fornecedor; contudo, diferencia-se pelo fato de que, enquanto na técnica o conhecimento refere-se às condições de fabricação, manutenção e manuseio do produto ou do serviço, na jurídica, tem-se a ignorância sobre a forma e a extensão dos direitos e das obrigações a serem assumidos pelo consumidor, quando da celebração do contrato.

Posto de outra forma, por não conhecer seus direitos e deveres, o consumidor fica à deriva num mar de obscuridade científico-jurídico: está afastado dos conhecimentos jurídicos, legais, econômicos e contábeis relativos aos seus direitos e deveres de determinados produtos ou serviços.

Nas palavras de Filho (2019):

A vulnerabilidade jurídica ou científica resulta da falta de informação do consumidor a respeito dos seus direitos, inclusive no que respeita a quem recorrer ou reclamar; a falta de assistência jurídica, em juízo ou fora dele; a dificuldade de acesso à Justiça; a impossibilidade de aguardar a demorada e longa tramitação de um processo judicial que, por deturpação de princípios processuais legítimos, culmina por conferir privilegiada situação aos réus, mormente os chamados litigantes habituais. (p. 72)

A seu turno, a vulnerabilidade fática ou socio- econômica ocorre, de acordo com Marques (2016), quando o consumidor se sujeita ao fornecedor por este exercer monopólio fático ou jurídico em razão de seu grande poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço, e devido a isso impõe sua vontade a todos que com ele contratam. É o que se dá, por exemplo, numa região em que há somente uma operadora de telefonia, a qual também é a única provedora de internet: o consumidor que quiser adquirir produtos ou serviços de fornecimento de internet banda larga ficará sujeito às regras e ao arbítrio daquele que fornece o serviço.

Infira-se que, apesar de comumente aparecer atrelada à vulnerabilidade, a hipossuficiência distingue-se daquela na medida em que, enquanto a vulnerabilidade possui um caráter mais genérico, posto que é comum a todos os consumidores em princípio, a hipossuficiência tem uma conotação mais específica por se consubstanciar num agravamento da vulnerabilidade quanto a determinados grupos ou classes, geralmente observada em nível processual e quanto à produção de provas.

Nas palavras de Benjamin (2019), os hipossuficientes:

são certos consumidores ou certas categorias de consumidores, como os idosos, as crianças, os índios, os doentes, os rurícolas, os moradores da periferia. Percebe-se, por conseguinte, que a hipossufi- ciência é um plus em relação à vulnerabilidade. Esta é aferida objetivamente. Aquela, mediante um critério subjetivo, consumidor a consumidor, ou grupo de consumidores a grupo de consumidores. (p. 496)

Filho (2019) explicita que:

Hipossuficiência é um agravamento da situação de vulnerabilidade, um plus, uma vulnerabilidade qualificada. Além de vulnerável, o consumidor vê-se agravado nessa situação por sua individual condição de carência cultural, material ou ambos. O conceito de hipossuficiência está mais ligado a aspectos processuais. O CDC empregou a expressão hipossuficiência só para as hipóteses de inversão do ônus da prova (art. 6°, VIII) a ser determinada pelo juiz em face do caso concreto. [...] Casos há, entretanto, em que a produção da prova se afigura muito difícil para o consumidor, sendo mais fácil para o fornecedor, como nos exemplos que seguem: consumidor reclamando de ligações telefónicas que lhe são cobradas e alega não as ter realizado; consumo exagerado de luz e água; extratos bancários e contratos em poder da instituição financeira. (p. 69)

Portanto, a hipossuficiência se distingue da vulnerabilidade, entre outros motivos, pelo fato de que a primeira é de índole processual enquanto a segunda é de direito material: a hipossuficiência consubstancia-se numa dificuldade além da normal de o consumidor provar o direito, enquanto a vulnerabilidade consiste na suscetibilidade de ser prejudicado pelo fornecedor na celebração e execução do contrato.

E, nesse contexto, o consumidor tem sua vulnerabilidade explorada em todas as nuances pelo fornecedor, quando aquele busca este para a resolução de um defeito no produto ou no serviço: não dispondo dos meios de produção, não tem o consumidor peças ou maquinário para reparar o defeito; não tendo conhecimento técnico, não sabe o consumidor o que fazer para o respectivo conserto; não sabendo em regra quais medidas ou órgãos devem ser acionados para obrigar o fornecedor, aos ditames deste acaba tendo que se sujeitar o consumidor. Daí então, responsabilizar-se o fornecedor caso seu mau comportamento contratual e a predatória exploração da vulnerabilidade do consumidor a este cause prejuízos.

Da responsabilidade civil pela perda do tempo do consumidor

Diniz (2010) preleciona que a palavra “responsabilidade” deriva da expressão latina “respondere ”, originada do vocábulo “ spondeo ”, fórmula pela qual se vinculava, no direito romano, o devedor nos contratos verbais: ao ser instado, assumia-se o dever de reparar pelo inadimplemento, o devedor exprimia a palavra “spondeo ”, e o contrato verbal se aperfeiçoava com o devedor respondendo pelos prejuízos porventura causados com seu inadimplemento.

Destarte, o termo “responsabilidade” redunda no dever de assumir e responder pelas consequências de algo, de forma a que venha, enquanto devedor ou no lugar deste, satisfazer a prestação devida ou reparar o prejuízo em eventual impossibilidade, por meio do ressarcimento ou da compensação, ao que Coelho (2020) aduz ser a responsabilidade civil “a obrigação em que o sujeito ativo pode exigir o pagamento de indenização do passivo por ter sofrido prejuízo imputado a este último” (p. 149). Nesse mister, em princípio, a consequência lógico-normativa da ocorrência de prejuízo resultante de ato ilícito é a reparação por aquele a quem a lei ou o contrato indicaram como responsáveis pouco importando se é ou não o devedor da obrigação inadimplida, dado que assumiu o encargo pela reparação.

Nisso, em tempos de sociedade de risco em que o consumidor é exposto a um perigo de dano proporcional ao interesse do lucro do fornecedor - isto é, situações há em que, quanto maior a exposição do consumidor a prejuízo, maior será o lucro -, natural é que o fornecedor arque com as consequências prejudiciais de tal exposição. Máxime se, sendo contratual a relação, inadimplir com obrigação pela qual expressamente assumiu, tendo-se em vista que o consumidor, desde a Revolução Industrial e a Revolução de Consumo, deixou de ser individualmente considerado pelo fornecedor para figurar como um mero número estatístico, dada a migração da produção individualizada para a produção massificada: essa indiferença se reflete no descaso do fornecedor quando o consumidor lhe procura para reclamar pelo defeito no produto ou no serviço e deve ser coibida a bem da dignidade humana do consumidor através, dentre outros, da respectiva responsabilização do fornecedor.

Nesse sentido, bem a propósito veio o CDC a instituir a responsabilidade objetiva do fornecedor como regra nas relações de consumo, justamente como forma de se contrabalancear a exposição do consumidor a um risco maior que aquele decorrente da relação individualizada pré-massificação, bem como quanto à aludida indiferença do fornecedor na fase contratual e pós-contratual: com o aumento do lucro em razão da padronização das relações consumeristas, justo era, como de fato o é, aumentar-se a responsabilidade do fornecedor como contrapeso necessário ao equilíbrio contratual.

Filho (2019) bem explana a respeito:

Para enfrentar a nova realidade decorrente da revolução industrial e do desenvolvimento tecnológico e científico, o Código do Consumidor engendrou um novo sistema de responsabilidade civil para as relações de consumo, com fundamentos e princípios novos, porquanto a responsabilidade civil tradicional revelara-se insuficiente para proteger o consumidor. (p. 310)

Assim posto, uma vez restada insuficiente a responsabilidade subjetiva para o equilíbrio da relação consumerista, o CDC adotou a responsabilidade objetiva do fornecedor enquanto regra: tratando-se a responsabilidade em razão de risco a que o contratante é exposto, descabe aferir a existência ou não de culpa posto se tratar de responsabilidade objetiva, eis que, conforme já dito, se a parte lucrou com a exposição da outra a risco, nada mais justo e lógico que arque com os prejuízos se tal risco se converter em efetivo prejuízo. E, nesse ponto, infira-se ser objetiva a responsabilidade também pelo fato de o fornecedor ter em princípio expressiva superioridade econômica ante o consumidor e, portanto, bem mais condições de se acautelar quanto a seus deveres e de se defender quando acionado em juízo, ressaltando-se que, quando essa superioridade é diminuta no caso do fornecedor profissional liberal, adota-se por exceção a responsabilidade subjetiva.

Posto de outra forma: o exercício habitual de determinada atividade que envolva risco deve vir acompanhado das demais precauções para se evitar ou minimizar a concretização de prejuízo a outrem. Nesse mister, sendo natural o risco, dada a sua inerência à atividade, também é natural que se espere do agente que envide esforços para eliminar ou suprimi-lo ao máximo e, se o agente obtém vantagem expondo outrem a risco de dano, a contrapartida lógica é esse mesmo agente arcar com os ônus da reparação.

Essa responsabilização se justifica também porque o inadimplemento do devedor, numa violação do princípio da boa-fé objetiva, frustra as expectativas da outra parte, eis que esta conta com o adimplemento da obrigação do outro para delinear sua vida e suas obrigações. Nesse mister, em sede de relação de consumo, o fornecedor frustra as expectativas do consumidor ao fornecer defeituosamente o produto ou o serviço, posto que, sobre si, pesa o dever de cuidado desde a respectiva colocação no mercado.

Nesse contexto, sobressai-se a necessidade, imposta pelo fornecedor, de o consumidor gastar um tempo precioso buscando a reparação do produto ou do serviço defeituoso junto ao fornecedor, tempo esse que poderia ser melhor e adequadamente aproveitado na manutenção da dignidade humana do consumidor se o fornecedor adequadamente atendesse aos imperativos de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, conforme se discutirá adiante.

Frise-se que, após a Revolução Industrial, o modo de vida que as pessoas seguiam modificou- se de forma bastante complexa, tanto no sentido do trabalho em si quanto no estilo de vida. Se antes as atividades laborais eram voltadas para a vida no campo ou quando muito para a produção artesanal, e o consumo se restringia à aquisição de produtos e serviços essenciais à subsistência, posteriormente ao advento da indústria, houve a migração de um modo de produção primitivo/rudimentar para um modo de produção massificado e cada vez mais competitivo, tendo-se em vista que a força de trabalho do ser humano era colocada em comparação com a força de trabalho das máquinas, exigindo mais horas do tempo do trabalhador para produzir proporcionalmente às máquinas e, assim, fazer jus à manutenção de seu emprego, reduzindo-se destarte o tempo de descanso e lazer, fazendo-se assim com que as horas à disposição do indivíduo se tornassem mais preciosas ainda.

Ato contínuo, a abrupta capacidade de produção redundou no excesso de produtos e serviços ofertados, para um público consumidor ainda incipiente e adaptado ao consumo do essencial. Nesse sentido, explica Nunes (2018):

no começo do século XX, instaura-se definitivamente um modelo de produção que terá seu auge nos dias atuais. Tal modelo é o da massificação: fabricação de produtos e oferta de serviços em série, de forma padronizada e uniforme, no intuito de diminuição do custo da produção, atingimento de maiores parcelas de população com o aumento de oferta etc. Esse sistema de produção pressupõe a homogeneização dos produtos e serviços e a estandardização das relações jurídicas que são necessárias para a transação desses bens. (pp. 79-80)

Houve, então, a necessidade de os produtores reformularem a sociedade de consumo para o escoamento da produção, conforme explicam Rosa et al. (2017):

a Revolução Industrial e a massificação da produção obrigaram o consumidor a se adequar às inúmeras formas e aos modelos ofertados, passando a adquirir não mais apenas em razão da necessidade, mas também por mero deleite ou lazer, dada a excessiva doutrinação por meio das propagandas e marketing agressivos. Denota-se então uma vulnerabilização do consumidor, na medida em que ele é submetido a uma incessante enxurrada de propagandas e estratégias de marketing que o induzem a acreditar na perfeição e na necessidade de produtos e serviços oferecidos, em contraste com a realidade contextual e fática. Assim é que surge a necessidade no contexto da pós-modernidade, sob o paradigma jurídico de tutela das diferenças em que a proteção à figura do consumidor se mostra amplamente efetiva, do reconhecimento não apenas do conceito de vulnerabilidade presumida, mas também de situações potencializadoras de vulnerabilidade dentro do próprio rol de consumidores. (p. 535)

Coloca-se o consumidor, nesse momento, numa condição vulnerável, posto não ter mais condições de escolher os ingredientes do produto ou do serviço nem de participar das etapas do processo de produção, seja porque não reúne o conhecimento e informações necessárias, seja porque não tem tempo para tanto, dada a necessidade de se dedicar mais a outros afazeres e exigências impostos pela pós-modernidade.

E, nesse ponto, observa-se que o tempo é precioso ao consumidor não só por ser escasso, mas também e acima disso por ser um elemento intrínseco à sua dignidade humana, pois é fator essencial à consecução e concretização de direitos fundamentais, essenciais a uma vida digna. Consequentemente, consubstanciando-se num elemento de conotação existencial e, portanto, não suscetível de precificação, traduz-se num valor inerente à dignidade, de acordo com a lição de Kant (1988):

No Reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. (p. 77)

Bem a propósito é o entendimento de Delmoni (2015), segundo a qual o tempo é sinônimo de utilidade, sendo ainda único, insubstituível e inalienável: uma vez passado, não poderá ser reavido, não sendo justo, portanto, que seja desperdiçado por conveniência de outrem. Ainda de acordo com a autora, por ser um fator propulsor da vida, o tempo deve ser tratado como um valor, um bem relevante, passível de proteção jurídica, principalmente se se levar em conta a crescente sensação generalizada de falta de tempo para se atender às exigências básicas de uma vida digna: tempo para o convívio familiar, para o lazer, para uma alimentação tranquila, para o descanso.

Com efeito, nos dias atuais, o tempo assume uma importância incomensurável, num cenário em que a pós-modernidade obriga o indivíduo a realizar cada vez mais afazeres para se manter inserido no meio social ao qual pertence. Basta ver como o tempo é precioso, por exemplo, para quem tem uma meta a cumprir, um prazo para entrega de determinado projeto; para o pai ou a mãe que quer chegar em casa cedo, a fim de desfrutar de ao menos alguns momentos de lazer com seus filhos.

Segue-se então que o tempo do consumidor deve ser respeitado pelo fornecedor, para além de um contexto consumerista, primordialmente numa ótica constitucional, eis que, conforme a lição kantiana, o tempo é um valor atrelado à dignidade humana na medida em que, por se revestir a relação de consumo de um caráter existencial, dado ter o consumidor a finalidade de adquirir ou usar produto ou serviço para atender aos imperativos de promoção e manutenção de sua dignidade humana; em consequência, o tempo empregado pelo consumidor em tal relação possui em princípio também caráter existencial por ser um elemento indispensável à consecução da aquisição ou do uso do produto ou do serviço. E, nessa linha, repita-se, o tempo do consumidor deve ser respeitado pelo fornecedor, tal qual qualquer outro elemento direta ou indiretamente derivado da dignidade humana.

É dizer: parafraseando-se o escólio de Bianchini et al. (2009), o tempo é um bem existencial, pois é algo não só útil como também necessário à consecução da dignidade humana como à própria existência do indivíduo e ao desenvolvimento de sua personalidade, funcionando assim como um valor agregado a qualquer direito humano ou fundamental. E é um bem jurídico, dado que, parafraseando a lição de Roxin (2009), ter-se tempo necessário para a garantia e efetivação de direitos fundamentais é uma circunstância real necessária para uma vida segura e livre, pelo que é merecedor de reconhecimento e proteção jurídicos.

Nesse contexto, em necessário respeito ao princípio da boa-fé objetiva, o consumidor espera do fornecedor o oferecimento de produtos e serviços que atendam de imediato às expectativas não só contratuais - isto é, produtos e serviços que não demandem do consumidor tempo maior que o necessário à escolha e satisfação de suas necessidades e conveniências -, como também existenciais - ou seja, que respeitem a dignidade do consumidor enquanto pessoa humana e, por consequência, seus corolários, dos quais a saúde, a segurança, o lazer e, o que se está a enfatizar, o tempo.

Conforme bem observa Dessaune (2019):

Desde então as pessoas passaram a ter a possibilidade de viver com mais liberdade e qualidade de vida, uma vez que a sociedade pós-industrial, apesar dos aspectos negativos inerentes ao sistema capitalista, proporciona a seus membros um poder liberador: o consumo de um produto ou serviço de qualidade, produzido por um fornecedor especializado na atividade, tem a utilidade subjacente de tornar disponíveis o tempo e as competências que o consumidor necessitaria para produzi-lo para seu próprio uso. (p. 17)

Assim, quando o fornecedor fornece produto ou serviço em estrita conformidade e observância aos direitos do consumidor ínsitos ao CDC, tais como informação adequada de uso, manutenção e cuidados, riscos, condições de segurança e manuseio, entre outros, assegura ao consumidor o dispêndio de tempo estritamente necessário para o aperfeiçoamento da relação de consumo e lhe reserva tempo livre para a consecução de sua dignidade, posto que não precisará deixar de seus afazeres para se dedicar a exigir do fornecedor o cumprimento de obrigações voltadas à satisfação dos direitos do consumidor. É o que Dessaune (2017) chama de “poder liberador”:

Poder liberador é uma utilidade subjacente do consumo que a sociedade contemporânea, por meio das relações de troca, proporciona a seus membros. Esse poder liberador consiste no fato de que o consumo de um produto ou serviço de qualidade, produzido por um fornecedor especializado na atividade, tem a capacidade de tornar disponíveis o tempo e as competências que o consumidor necessitaria para produzi-lo para seu próprio uso. Ou seja, o fornecimento de um produto ou serviço de qualidade ao consumidor tem o poder de liberar os recursos produtivos que ele utilizaria para produzi-lo para uso próprio, assim permitindo que ele empregue o seu tempo e as suas competências liberados em outras atividades de sua livre escolha e preferência. (p. 363)

Nessa linha, observa-se que os afazeres e os dissabores do cotidiano exigem dispêndio de tempo, tais como trafegar no trânsito, enfrentar filas em banco e em supermercados, esperar em estacionamentos de shopping centers, entre outros. São situações inerentes a uma vida digna, eis que partes integrantes do cotidiano, e apesar de darem uma ideia de “gasto” de tempo, em verdade podem ser considerados “administração” do tempo, pois utilizados, como se disse, para a consecução de uma vida digna.

Contudo, a administração do tempo vira uma “perda de tempo” quando se precisa exigir uma prestação que, de ordinário, deveria ter sido cumprida inclusive porque ordenada por lei e, no entanto, não o é pelo fornecedor no caso do dever de fornecer o produto ou serviço em condições regulares de aquisição e uso. Nesse ponto, precisa o consumidor sair de sua rotina habitual e dedicar um tempo para resolver o problema causado pelo fornecedor, problema esse que poderia ter sido evitado desde antes da consolidação da relação de consumo quando o fornecedor, ao ofertar o produto ou o serviço, antes ou concomitantemente, poderia e deveria propiciar toda uma estrutura que gerisse de forma suficiente e eficiente questões relacionadas ao defeito do produto ou do serviço.

Essa perda de tempo assim pode ser chamada, porque se consubstancia num tempo que poderia estar sendo utilizado pelo consumidor para a promoção de sua dignidade humana, por meio do trabalho, do lazer, da saúde, entre outros, mas, em vez disso, está sendo utilizado para resolver um problema a que não deu causa. Mais ainda, é uma perda de tempo porque ou o atendimento dado pelo fornecedor é demorado e não resolve o problema, ou pode até não ser demorado, mas cria toda uma série de percalços para o consumidor, o qual não raras vezes acaba desistindo.

Sob esse prisma, em que pese a imposição do CDC para o fornecimento adequado de produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho (art. 4°, i, “d”), fato é que os fornecedores ainda disponibilizam desabridamente ao consumidor produtos e serviços defeituosos sem se atentar a tais por prio- rizar o lucro no fornecimento. Ato contínuo, para concretizar esse fornecimento e garantir o lucro daí advindo, os fornecedores se valem de expedientes astuciosos para desestimularem o consumidor a exigir o fornecimento adequado do produto ou do serviço, de forma a que não seja necessário escoar o lucro com gastos para a reparação do aludido defeito.

Veja-se, por exemplo, a questão dos atendentes virtuais, programados para responder apenas a algumas perguntas-padrão e que impedem o consumidor de se dirigir diretamente ao setor responsável sem que antes tenha que se reportar àqueles, ou ainda, os call centers e seus respectivos atendentes que, usualmente, tendo seu treinamento restrito à consulta e ao registro, não têm o preparo adequado à solução de problemas relacionados ao produto ou serviço defeituoso. Tais exemplos são clara constatação de que, no mínimo, de forma negligente, o fornecedor não aborda a questão nem busca resolvê-la.

Isso quando não é o caso de deliberadamente o fornecedor instruir seus funcionários e prepostos a buscarem ao máximo dificultar o atendimento à reclamação do consumidor. Conforme explica Guglinski (2015):

Em alguns casos os atendentes chegam até mesmo a ser orientados a não solucionar a demanda do consumidor, como mostra outra reportagem de um conhecido site de notícias, relatando que profissionais de telemarketing são instruídos e às vezes até mesmo obrigados pelos empregadores a adotar expedientes escusos, com vistas a cumprir as metas estabelecidas pela sociedade empresária ou, o que é pior, impedir que o consumidor cancele determinado serviço contratado. Para dificultar ou impedir que o consumidor solucione a demanda, os atendentes em referência empregam “técnicas” como a utilização de linguagem de difícil compreensão durante o atendimento; transferência sucessiva de ligações a outros atendentes; fornecimento de números errados de protocolos etc. (pp. 80-81)

Denota-se, portanto, que o comportamento fugidio do fornecedor, além de injustificável, é afrontoso à pessoa do consumidor, na medida em que extrapola qualquer nível de razoabilidade e sem fundamento faz com que o consumidor seja tratado com descaso, dando azo a, conforme dito, perturbações em sua esfera individual ao fazer com que o consumidor fique irritado e frustrado por gastar um tempo que lhe seria útil e até necessário à efetivação de outros direitos fundamentais, e seja reduzido a apenas um número estatístico junto ao fornecedor. É dizer: o consumidor não só fica prejudicado por perder um tempo que certamente poderia ter sido usado para a promoção de outros aspectos de sua dignidade humana, como também se prejudica porque o tempo que usou para reclamar, ao invés de lhe render uma solução satisfatória, frequentemente será inutilizado porque, conforme já dito, frequentemente não redundará numa solução para o seu problema.

Esse cenário gera uma perturbação na vida do consumidor a tal ponto que extrapola em muito o mero dissabor e se configura num constrangimento injustificável, provocado pela negligência do fornecedor.

Conforme bem a propósito observa Garcia (2016):

Ao contrário, a indenização pela perda do tempo livre trata de situações intoleráveis, em que há desídia e desrespeito aos consumidores, que muitas vezes se veem compelidos a sair de sua rotina e perder o tempo livre para solucionar problemas causados por atos ilícitos ou condutas abusivas dos fornecedores. Tais situações fogem do que usualmente se aceita como ‘normal’, em se tratando de espera por parte do consumidor. São aqueles famosos casos de call center e em que se espera durante 30 minutos ou mais, sendo transferido de um atendente para o outro. Nesses casos, percebe-se claramente o desrespeito ao consumidor, que é prontamente atendido quando da contratação, mas, quando busca o atendimento para resolver qualquer impasse, é obrigado, injustificadamente, a perder seu tempo livre. (p. 92) Tem-se então que, ao invés de aproveitar o tempo produzindo benesses para o incremento de sua dignidade humana, o consumidor o desperdiça em tentativas improfícuas de se sanar o defeito do produto ou do serviço, onde se ressalta que o problema se deu unicamente por causa do fornecedor, ao não adotar este uma conduta garantidora de padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho de seus produtos ou serviços (art. 4°, i, “d”). É o que Dessaune (2019) alcunhou de “desvio produtivo do consumidor”:

É notório que inúmeros fornecedores, cotidianamente, empregam práticas abusivas e colocam produtos e serviços com vício ou defeito no mercado de consumo. Além disso, muitos desses fornecedores, diante da reclamação do consumidor, ainda resistem à rápida e efetiva resolução desses problemas de consumo que eles próprios criam. Tal comportamento induz o consumidor em estado de carência e condição de vulnerabilidade a despender seu tempo vital, a adiar ou suprimir algumas de suas atividades existenciais e a desviar suas competências dessas atividades, seja para satisfazer certa carência, seja para evitar um prejuízo, seja para reparar algum dano. Tal série de condutas caracteriza o “desvio produtivo do consumidor”, que é o evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável in re ipsa. (pp. 15-16)

Ressalte-se, mais uma vez, que o tempo gasto pelo consumidor com as reclamações junto ao fornecedor tem caráter existencial, porque poderia estar sendo utilizado pelo consumidor para se satisfazer aspectos de uma vida digna e, ao invés, está sendo empregado para o consumidor ser feito de marionete e joguete do fornecedor. Assim, uma vez configurado como existencial o tempo despendido pelo consumidor não só na celebração da relação de consumo como também na busca pelo atendimento do fornecedor à reparação do defeito do produto ou do serviço, segue-se que o desvio produtivo redunda num dano existencial e, portanto, in re ipsa, pois o tão-só fato de o fornecedor frustrar a oportunidade de o consumidor manter uma vida digna já gera a presunção de prejuízo existencial, pois redunda no mínimo no adiamento injustificado da manutenção e do incremento da vida digna.

Posto de outra forma (Tribunal de Justiça do Paraná, 2020):

o tempo despendido nestes procedimentos, muitas vezes ka&ianos, poderia ser convertido em trabalho, estudo, descanso, dentre outras práticas vitais para a plenitude existencial da pessoa humana. Ressalta-se que o valor pago na contratação do serviço é justamente a compra desse tempo, assim, quando o serviço é suspenso ou falha, acarreta em enriquecimento ilícito do fornecedor cumulado com a punição temporal - agravada pelos nefastos efeitos anímicos - ao consumidor, configurando o dano existencial. Deste modo, conclui-se que o consumidor de fato sofre dano extrapatrimonial que potencialmente transborda à coletividade, sendo dano certo, injusto e imediato, indenizável in re ipsa.

Destarte, acertado é o entendimento de que o desvio produtivo do consumidor gera dano extrapatrimonial in re ipsa, posto que, conforme Gagliano e Filho (2019), o tempo é um dos valores mais caros para qualquer indivíduo, sendo por isso intolerável o desperdício do tempo livre a ponto de se configurar uma agressão típica da contemporaneidade, silenciosa e invisível, agravando-se mais ainda por, conforme já dito, ser irrecuperável o tempo perdido pelo consumidor que se desvia de suas competências - de uma atividade necessária ou por ele preferida - para tentar resolver um problema criado pelo fornecedor, a um custo de oportunidade inde- sejado (Dessaune, 2017).

Conclusões

A premissa básica numa relação contratual é o norteamento da conduta pela boa-fé objetiva, onde a parte deve envidar esforços para desenvolver uma conduta honesta, leal e ética, de forma a que possa corresponder à expectativa gerada na outra parte. Nesse aspecto, no contexto da relação consumerista observa-se que a boa-fé objetiva impõe ao fornecedor, inclusive de forma expressamente prevista no CDC , o fornecimento adequado de produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho (art. 4°, i, “d”), consubstanciando-se tais exigências num mínimo necessário a resguardar a integridade do consumidor.

Assim, quando o fornecedor coloca no mercado produto ou serviço em desacordo com tais diretrizes, para além da discussão sobre responsabilidade, o que se denota é um verdadeiro desrespeito, uma afronta ao consumidor enquanto pessoa humana, na medida em que lhe coloca em risco desnecessário. Mais ainda, o desrespeito se agrava quando o consumidor se vê obrigado a se sujeitar às infindáveis conversas com atendentes de call centers, bem como ter que preencher formulários e enviar e-mails com dizeres específicos, para ao fim não conseguir nenhum êxito quanto ao fornecedor assumir a responsabilidade pelo defeito no produto ou no serviço e proceder à respectiva reparação.

E, nesse contexto desrespeitoso, ressalta-se o tempo que o consumidor precisa dedicar para percorrer essa via crucis. Tempo esse que, conforme dito, poderia ser utilizado para a promoção e consecução da dignidade humana do consumidor, mas, pela conduta desleal do fornecedor, teve que ser gasto com reclamações pelo defeito no produto ou no serviço. Daí então, justo se admitir indenização pela perda desse tempo que poderia ser produtivo, mas não o foi por causa do fornecedor, e se diga de passagem, por motivo injustificável.

E, mais ainda, justo se admitir o caráter in re ipsa do dano advindo da perda desse tempo produtivo, posto que o tempo desperdiçado não pode ser reavido. As oportunidades de atividades existenciais que permeiam a vida são únicas, não podendo ser substituídas integralmente: para o consumidor que tem seu tempo contado segundo por segundo, aquele tempo despendido na solução daquele problema que sequer ele criou é um tempo precioso, em que poderia estar trabalhando em outras atividades, poderia estar em casa com a família, poderia estar praticando uma atividade física - que tanto se pede hoje em dia - ou atividades que lhe trouxessem paz e relaxamento.

Esse tempo para tais atividades existenciais é inestimável, e sua perda por si só já gera a presunção de dano, pois, no mínimo, configura uma frustração à consecução de momentos de concretização da dignidade humana do consumidor. Daí, então, ser passível de indenização, dado o tempo produtivo ter um caráter existencial e o respectivo dano ser presumido.

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* Artigo de investigação produto do projeto "O direito à indenização do consumidor pelo tempo perdido, em razão do defeito no produto ou serviço", derivado de trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (Brasil).

1 “são ‘direitos fundamentais’ todos aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a ‘todos’ os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade de agir; entendendo por ‘direito subjetivo’ qualquer expectativa positiva (de prestações) ou negativa (de não sofrer lesões) adstrita a um sujeito por uma norma jurídica; e por status a condição de um sujeito, de sua aptidão para ser titular de situações jurídicas e/ou autor dos atos que são exercício destas”. (tradução nossa)

Cómo citar: Goiabeira Rosa, L. C., de Aguiar Borges, G. O., & Salviano Alves, D. (2022). O direito à indenização do consumidor pelo tempo perdido, em razão do defeito no produto ou no serviço. Prolegómenos, 25(49), 87-100. https://doi.org/10.18359/prole.5629

Recebido: 22 de Fevereiro de 2021; Aceito: 31 de Dezembro de 2021; Publicado: 30 de Junho de 2022

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