Introdução
Além da pesquisa em andamento sobre a América Latina, os apontamentos teórico-metodológicos realizados neste artigo agregam experiência de quatorze anos de análise sobre urbanização e patrimonialização no Brasil. Estudos que contemplaram cidades coloniais da mineração do ouro e dos diamantes e a capital federal Brasília.1
Após esse longo período de pesquisas no tema, foi proposto ao XIV Colóquio Internacional de Geocrítica, em Barcelona, o artigo Utopismos patrimoniais pela América Latina (Costa 2016), que versou sobre três utopismos conexos entendidos como necessários a outra patrimonialização global: o utopismo patrimônio-territorial, o utopismo patrimonial singularista e o utopismo patrimonial existencialista.
Se o conceito patrimonialização global é uma generalização necessária ao entendimento da ressignificação dos lugares da memória e da natureza, por meio da leitura dialética do espaço geográfico e do fato urbano, este que ultrapassa o ângulo da morfologia ou do sítio delimitado e funcional, o processo patrimonialização global, que tem a Unesco como difusora maior, com suporte de agências de financiamentos internacionais, é produto e produtor de uma era em que os territórios da vida coletiva se fragmentam e se articulam para atender necessidades-desejos particularistas e, muitas vezes, forâneos. Uma outra patrimonialização global, então, deve negar a universalidade restritiva presente na ideia e na prática [...] de qualquer patrimônio instituído, redefinindo a universalidade, na teoria e na prática, a partir dos sujeitos situados e em situação espacial, sem negar o acervo periférico, ou seja, sua cultura, sua memória e, sobretudo, seu potencial representacional do que foi negado: a existência dramática do negro, do índio, do pobre. Assim, favorece-se uma preservação sinérgica do patrimônio com novos roteiros patrimoniais utópicos. O desafio é o de representar culturas subalternizadas pelas histórico-hegemônicas autoridades sociais-políticas, na ordem do que se convencionou denominar -de forma excludente- Mundo Moderno e Ocidente. (Costa 2016, 11-20, grifos do autor)
Para avançar na proposta iniciada no XIV Geocrítica, o presente artigo tem por objetivo fazer apontamentos teórico-metodológicos para a ativação popular do conceitualizado patrimônio-territorial latino-americano. Tal processo, nas cidades e no campo, emerge como alternativa real de valoração dos subalternizados da história continental, identificando-os com os bens culturais instituídos e não instituídos, sendo possiblidade (mas não obrigatoriedade) a geração de renda local.
Enquanto as políticas públicas de patrimônio operam, economicamente, em setores territoriais exclusivos e nobilitados de cidades, o patrimônio-territorial ativado pode valorar, popularmente, “territórios de exceção” latinos. Ao invés de estimular um imaginário acadêmico e coletivo que marginaliza ainda mais as periferias do continente, via pesquisas críticas radicais da urbanização (que raramente mapeiam resistências sociais), os estudos do patrimônio-territorial devem enaltecer o que resiste -do ponto de vista cultural e popular- à degenerante colonialidade do poder. A denúncia à colonialidade ainda viva se fará pela identificação do patrimônio material e imaterial situado nas periferias latinas, primeiramente, pelo esfacelamento de estigmas relativos a indígenas e afrodescentes, em segundo lugar, pela economia local.2
A dinâmica de trabalho imposta para a exploração de riquezas, em territórios latino-americanos, extirpou a cultura (e a vida) de milhares de indígenas e afrodescentes. O ouro e a prata multiplicaram riquezas europeias; o açúcar e o café foram produtos mais lucrativos do mercado mundial, até serem superados pelo petróleo pós-1940. Além dos buracos das minas, ficaram como herança dimensões de patrimônio que vão de “implantações civilizatórias” -fortalezas miríficas e suntuosas igrejas barrocas coloniais- a outro menos apreciado, “nosso povão amulatado de negritudes e mestiçado de indianidade, que constitui hoje um dos maiores núcleos populacionais do mundo. Para quê?” (Ribeiro 2010, 64).
O quadro se mantém pela ‘colonialidade do poder’ e ‘do saber’, que arrasta políticas de diferença e mesmidade desenhadas pelo ideal de universalidade e da superioridade cultural, as quais permitiram ao Ocidente definir a identidade dos outros (Dussel 2009; Escobar 2010; Quijano 2009). Em refutação ao histórico subjugo de lugares, saberes, práticas culturais e religiosas da maioria latino-americana, propõe-se a ativação popular desse patrimônio-territorial.
Metodologicamente, o artigo divide-se em cinco itens e subitens, que avaliam o patrimônio-territorial: a) no devir do trabalho; b) como utopia aos “territórios de exceção”; c) ativado, popularmente, contra a indigência e a pobreza; d) enquanto justificativa para uma outra epistemologia e prática do turismo, e e) segundo apontamentos metodológicos correspondentes a níveis, escalas e temporalidades que podem balizar a implantação de ‘roteiros patrimoniais utópicos’.
Cabe salientar, por fim, que dados recentes da Comissão Econômica para América Latina (doravante Cepal) sobre turismo, urbanização, trabalho, atividades produtivas, pobreza e estigma social decorrem no artigo e, ao contrário do que possam induzir (pois expõem mazelas do continente), justificam a proposta. Os países constantes nas sete tabelas elaboradas foram definidos conforme disponibilidade de dados, dentre os principais destinos turísticos do continente.
O patrimonio-territorial latino-americano no devir do trabalho
Os vínculos sociais identitários com o território envolvem a realização da vida em diferentes escalas e específicos grupos, ou seja, a experiência espacial do sujeito. A geografia histórica da América Latina revela tais vínculos, em períodos longos ou curtos e no cerne de regiões e de territórios definidos pela instituição discursiva de direitos e de deveres, que são concretizados, distintivamente, com o atendimento irrestrito às demandas do trabalho. Logo, o que se define por patrimônio-territorial latino-americano tem, na sua essência, a lógica histórica da interação sociedade-natureza, com o enaltecimento de problemáticas existenciais indígenas e negras (na violência de gênero, de etnias, de cultura, de identidade, de religião, de localização etc.); realizou-se na produção de ‘territórios de exceção’, dadas as especificidades continentais da divisão social e espacial do trabalho. “Na medida em que os territórios institucionalizados se estruturam em diversas escalas geográficas, é possível vivenciar diferentes identidades territoriais, com a cidade, com o estado, com o país” (Geiger 2006, 156).
O patrimônio-territorial latino-americano já foi definido como representativo dos elementos singulares da “história registrada em símbolos territoriais resistentes à colonialidade do poder: arte, religião, saberes, fazeres, modos de vida, assentamentos de grupos subalternos urbanos e rurais” (Costa 2016, 2). Assim, é apresentada uma proposta de pensamento e de ação sobre o que se considera um ‘utopismo patrimônio-territorial’ -alternativa de resistência às contradições espaciais forjadas pela modernidade/colonialidade- no continente latino-americano. Em diálogo teórico pós-colonial com Enrique Dussel, Edgardo Lander, Walter Mignolo e Aníbal Quijano (para os quais a colonialidade tem expressão no movimento de dominação cultural e racial europeia), o utopismo patrimônio-territorial denota:
[...] um projeto histórico-geográfico; esse utopismo perpetua ambições, ideias e matérias, além de denunciar contradições, todos situados. Universalmente, o patrimônio-territorial: i) anuncia as estratégias da conquista ibérica do continente latino-americano, em abertura para a modernidade, e a organização colonial do mundo; ii) indica que a América Latina “entra” na modernidade como sua “outra face”, dominada, explorada, encoberta, pois teria como ponto de partida fenômenos intra-europeus; iii) reforça o projeto transmoderno enquanto “co-realização do impossível para a modernidade; solidariedade de: centro-periferia, mulher-homem, diversas raças, diversas etnias, diversas classes, humanidade-Terra, Cultura Ocidental - Culturas do mundo periférico ex-colonial, por incorporação, partindo da Alteridade”. Particularmente [...] o utopismo patrimônio-territorial latino-americano enfatiza bens a serem preservados e difundidos, assegurados por prestígio adquirido na história das barbáries da própria modernidade. Denuncia, se apropria e perverte simulações impostas à história cultural latina. Considera que a sociedade estabeleceu-se e permanece dividida em classes, etnias e regiões, assumindo que esse e outros disparates estão na essência da grandiosidade de obras, fatos e sujeitos históricos. Esse utopismo dá voz aos indígenas, às mulheres, aos pobres urbanos; legitima a diversidade das memórias nacionais e acusa desmantelamentos por guerras e ditaduras. Reconhece que a mudança social no continente está nas mãos dos despojados e dos humilhados, perfazendo-se neles próprios. (Costa 2016, 2)
O utopismo patrimônio-territorial é uma estratégia contra a invisibilidade de grupos subalternizados no desenrolar da modernidade/colonialidade que, contraditoriamente, faz emergir o indivíduo. Cabe lembrar que “a modernidade definiu-se como ‘emancipação’ no que diz respeito ao ‘nós’, mas não percebeu seu caráter mítico-sacrificial com relação aos ‘outros’” (Dussel 2005, 30). A utopia reside no fato de que a violência colonialista moderna é denunciada pelo patrimônio-territorial que, concomitantemente, é a base para a valoração existencial de sujeitos segregados. Cada país traz, espacialmente, as resultantes do sistema internacional da dominação capitalista (como formas de trabalho e localizações produzidas aos pobres), quando a riqueza realizada materialmente gera e agudiza desníveis, devido à restrição estratégica da difusão tanto da riqueza quanto do trabalho (ou o vigor de sua precarização e alienação a serem, urgentemente, superadas).
As Nações Unidas calculam que pelo menos a quarta parte da população das cidades latino-americanas habita em assentamentos que escapam às normas modernas de construção humana, extenso eufemismo dos técnicos para designar os tugúrios conhecidos como favelas no Rio de Janeiro, callampas em Santiago do Chile, jacales no México, barrios em Caracas, barriadas em Lima, villas miséria em Buenos Aires e cantegriles em Montevidéu. Nos casebres de lata, barro e madeira que surgem antes de cada amanhecer nos cinturões das cidades, acumula-se a população marginal jogada nas cidades pela miséria e pela esperança. Huaico significa, em quéchua, deslizamento de terra, e de huaico chamam os peruanos à avalancha humana desagarrada da serra sobre a capital na costa: quase 70% dos habitantes de Lima provêm das províncias. Em Caracas chamam-nos de toderos, porque fazem de tudo: os marginalizados vivem de biscates, mordiscando trabalho aos pedacinhos e de quando em quando, ou cumprem tarefas sórdidas ou proibidas; são serventes, pedreiros ou marceneiros eventuais, vendedores de limonada ou de qualquer coisa, ocasionais eletricistas, bombeiros ou pintores de paredes, mendigos, ladrões, guardadores de carros, braços disponíveis para o que der e vier. (Galeano 2005, 321-322)
O trabalho conduz à reprodução da vida material e da consciência: é ‘uma condição’ de existência espacial e das diferentes formas sociais e é a ‘necessidade’ que faz a mediação catalizadora sociedade-natureza, dando sentidos aos diferentes formatos de vida humana espacializada. Para Lukács (2012), o trabalhador é transformado pelo seu trabalho, atua sobre a natureza exterior e modifica sua própria natureza. No aspecto de uma vida espacial mediada pelo trabalho e suas contradições, o patrimônio-territorial latino-americano carrega a utopia de beneficiar -em termos simbólicos, afetivos e materiais- a população mais pobre do continente.
A tabela 1 assinala as variações da taxa de desemprego por país, em zonas urbanas da América Latina, com mais elevados índices por toda a década de noventa e redução ao longo da primeira década do século XXI, de maneira que as maiores taxas de desemprego estão na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e Uruguai, especialmente entre 1997 e 2005. A crise do fim dos anos noventa antecede e ganha corpo com o neoliberal Consenso de Washington; as condições econômicas, sociais e políticas, que nos anos sessenta e setenta haviam gerado movimentos de insurgência, agravaram-se com o neoliberalismo, e a dívida externa continuou como grave problema para toda a América Latina; somam-se os déficits na balança comercial, em consequência da desregulamentação da economia, e a abertura unilateral dos mercados, sem que barreiras não tarifárias (cotas, técnicas, sanitárias) fossem instituídas, o que dificultou importações, como faziam os Estados Unidos (Bandeira 2002).
Apesar da redução da taxa de desemprego para todos os países da tabela 1, a partir de 2005 (exceto Colômbia e México, que a reduzem, respectivamente, a partir de 2011 e 2012), a crise econômica mundial e crises de poder local (escamoteadas no controle político das mídias) forçaram o aumento do desemprego, no Brasil, Costa Rica, Equador, Peru e Uruguai, como se vê para 2016. As categorias mais fundamentais da economia (produção, consumo, troca, distribuição, circulação) não são pura abstração, têm aparato na realidade, são o próprio modo de estruturação social refletido no território; o que ocorre com violência, na maioria das vezes; o desemprego é uma ideia e um instante, uma prática violenta da economia.3 “Na escravidão, o homem precisa produzir mais que o necessário para reproduzir a si mesmo, até a fixação da jornada de trabalho no capitalismo; a violência permanece como momento integrante da realidade econômica de todas as sociedades de classe” (Lukács 2012, 348).
O desemprego e a precarização do trabalho, na América Latina, não podem ser descolados do imaginário e da realidade da modernidade/colonialidade produzida por forças europeias, que dão vigor a essas problemáticas. O imaginário e a realidade do mundo moderno fundamentam-se em uma unidirecional e falsa geografia história do capitalismo, concebida do centro metropolitano (Europa) para as periferias colonizadas (na América Latina, África e Ásia). Isso denota uma colonialidade do poder segmentária, na qual o capitalismo e a modernidade são tidos por fenômenos estritamente europeus. Mantém-se uma guerra de posição entre metrópoles e opressões que produzem “territórios de exceção” enquanto “locus de vida, ao mesmo tempo segmentada e pujante, dos subalternizados”. Há uma tentativa de justificação discursiva das atrocidades feitas aos povos latinos (pelo histórico trabalho forçado e precarizado), em que “a colonialidade do poder é o eixo que organizou e continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza” (Mignolo 2005, 35).
A colonização e a colonialidade do poder, na América Latina, enquanto formas modernas de dominação e de exploração perpetuadas, chamam ao debate a tomada dos recursos territoriais, não com um enfoque naturalizante (como operacionaliza a colonialidade), mas na dimensão do poder (segmentário e refratário) que a natureza aguça no ato produtivo. Por isso, o enfoque sociedade-natureza exige reavaliação da lógica universal do trabalho que perfaz singularidades localizadas na forma do patrimônio-territorial a ser revelado em cada país, em cada região, em cada cidade ou espaço rural do continente; por ser material-imaterial, factual-memorial, é resistência aos riscos originados da agricultura, das indústrias e mesmo pela emergência dos serviços e suas demandas logísticas, que dominam os usos do território (tabela 2). Paradoxalmente, no quadro produtivo capitalista, deve ser reconhecido e enaltecido o patrimônio-territorial, pois ele
[...] identifica e ilumina a cultura barbarizada pela presente colonialidade, julgando os subalternizados latino-americanos como necessários à escrita da nova história continental. Aceitar-se-á o continuísmo da colonialidade, julgando grupos sociais “bárbaros” e “incapazes” de preservar e sobreviver dentro de seus parâmetros culturais materializados e subjetivados nas memórias urbanas e rurais do continente, ainda mal certificados socialmente, por preconceito de origem, localização e situação geográficas? (Costa 2016, 9)
A tabela 2 apresenta o percentual de homens e mulheres latino-americanos distribuídos por atividades produtivas e ratifica o direcionamento da força de trabalho para o setor terciário e quaternário da economia, para o ramo do comércio e dos serviços (complementar aos outros setores). Identificam-se, mesmo em países de histórico econômico ligado à exploração direta da terra (Brasil, Colômbia, México e Uruguai), mais de 60% dos trabalhadores vinculados ao setor de serviços; isso denota o potencial de mobilidade territorial, de maior fluxo espacial de pessoas e a oportunidade de valorar bens culturais não institucionalizados, que restam de seus períodos históricos precedentes. O setor dos serviços produz e faz circular novas ideias, novos locais significativos e novas imagens de grupos sociais.
O patrimônio-territorial resiste ao desenvolvimento geográfico desigual produto e produtor de diferenças e de mudanças de escalas (Smith 2007; Harvey 2004) e à contradição entre o deslindar econômico e as objetividades sociais (como o direito e a arte). Faz questionar o sentido vulgarizado de progresso e de desenvolvimento modernos, ao significar-possibilitar autonomia e liberdade popular.
Sendo o patrimônio-territorial elemento de arte, cultura e vivências situadas na periferia, bem material-imaterial ainda em realização espacial no continente (sem qualquer ato de institucionalização por parte do Estado-mercado), ele se opera em singularidade (o fazer do e no lugar) diante de múltiplas particularidades (economias políticas regionais e nacionais), as quais conformam relações sociais de trabalho.
Porém, é necessário lembrar, a partir de Lukács (2012), que um gênero artístico não pode dar conta da totalidade das relações sociais, mas realiza, objetivamente, uma escolha representacional; para um determinado por artístico, têm importância dominante determinados momentos da totalidade; às vezes, o florescimento da arte não guarda qualquer relação com o desenvolvimento geral da sociedade. Significa que a existência do patrimônio-territorial independe da condição de avanços ou de crise da sociedade global; ele é perpétua resistência local, pois é parte integrante de sujeitos em situação permanente com o espaço; é cultura, matéria, ideia e memória viva individual e coletiva, patrimônio periférico já existente a ser ou não ativado.
O patrimônio-territorial como utopia aos territórios de exceção
Assentamentos (precários ou não) originados do processo migratório rural-urbano, modos de vida enraizados (no campo e nas cidades), padrões alimentares locais ou regionais tradicionais, festas sagradas e profanas, ruínas ou antigos edifícios de indústrias e sedes de fazendas (figura 1), capelas rurais ou de bairros periféricos urbanos, saberes-fazeres do trabalho histórico de grupos subalternizados são memórias espaciais da colonialidade do poder nas periferias da América Latina.
Nota: arquitetura típica rural dos períodos colonial e imperial brasileiros (estrutura em adobe e pau-a-pique). O imóvel, construído entre 1860-1880, encontra-se em vias de desabamento e pode ser recuperado a partir da urgente ativação como patrimônio-territorial por parte da família proprietária. Cinco gerações das famílias produtoras rurais Bastos e Moreira viveram no local. Essa perda patrimonial rural é extremamente recorrente no Brasil, sendo expressão de relações produtivas de pequenos proprietários de terra, em período ainda escravocrata.
A ativação popular do patrimônio-territorial sugere apreensão do contexto que parte da abstração inerente à produção processual do território (realização social da economia) e chega à concreção do trabalho depositado nos lugares (atividades ligadas à produção e à exploração direta da terra -agricultura, pecuária, mineração- e atividades dependentes de mais complexas aglomerações humanas, ainda com reduzido emprego de tecnologias indústria tradicional, como a que levou à produção de um patrimônio abandonado em periferias de cidades do mais rico estado brasileiro -São Paulo-) são objetos representantes da economia cafeeira e da imigração europeia para o trabalho em fazendas paulistas do início do século XX, bases de construção das ferrovias (figura 2) e das estações ferroviárias (figura 3).
Nota: criado em 1909, pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro e no contexto da expansão cafeeira paulista, tinha por objetivo suprir a demanda de madeira para carvão e construção das ferrovias. Um setor do Horto, com este casario, encontra-se abandonado e poderia ser destinado aos descendentes de seus primeiros trabalhadores, hoje, em parte, situados em territórios de exceção da cidade. Seria valorar a história e a memória desses sujeitos e, ainda, destinar um espaço de lazer à população ou auferir renda com o turismo gestado pelos populares (abertura de bares, cafés, lojas de artesanato, sebos, livrarias etc.).
Nota: grupo de estudantes em análise do patrimônio-territorial paulista, em trabalho de campo. O patrimônio ferroviário abandonado, no Brasil, poderia ser destinado aos sujeitos moradores em territórios de exceção do entorno imediato aos bens, para o uso enquanto oficinas de artesanato, cursos populares, centros culturais, museus, bares, restaurantes, lojas, feiras etc.
A utopia é entendida como a visão de mudança da estrutura de grupos sociais existentes; é um projeto da sociedade do presente que vislumbra ações com vistas a futuro desejado a ser realizado. Porém, demanda “alteração das ideias primitivas adotadas na vida social; exige transformação dos elementos concretos e da consciência, face ao elemento utópico” (Mannhein 1971, 84). O patrimônio-territorial é utopia aos ‘territórios de exceção’ ao querer mudar uma realidade imposta a partir da solidariedade a ser recuperada ou construída cultural e espacialmente.
Sujeitos, aglomerados, objetos e saberes (não só a pobreza) constituem territórios de exceção na América Latina. Cultura que recupera e denuncia o destino dos povos negros, indígenas e suas gerações usurpadas, mas ainda espacializadas, no continente. Falar num negligenciado patrimônio latino equivale a fazer representar, também, os desígnios da opressão no e do território. Se, na história social, cada ato de destruição encontra a sua resposta (cedo ou tarde) num ato de criação (Galeano 2005), é possível dar visibilidade às resistências ao processo construtivo-destrutivo das atividades econômicas modernas no continente, especialmente as que se vinculam à agricultura e à industrialização passadas.
Na sociedade da fluidez, do capital financeiro e da ‘possível’ mobilidade máxima de pessoas pelo território, o fenômeno turismo (dinamizado no setor dos serviços) pode ser atributo, também, de valoração social por meio dos bens negados na história latina. A importação e a exportação de serviços, na região, tem alcançado cifras elevadas. Na dimensão dos serviços culturais e de recreação, para 2013, os casos de Argentina, Brasil e Colômbia foram representativos. A Argentina importou 381 milhões de dólares desses serviços e exportou 320 milhões; o Brasil importou 1,017 bilhão de dólares e exportou 69 milhões; a Colômbia importou 111 milhões de dólares e exportou 84 milhões dos serviços de cultura e recreação (Cepal 2013a). Esses dados demandam a utopia de uma nova construção intelectual do turismo, crítica, mas que defenda e proponha formas de entendimento e de ação coletivas para a transcendência da realidade de uma prática que elitiza espacial e socialmente. Esse novo pensar e agir pelo turismo também são expressão de resistência à colonialidade do poder; passam a considerar a ativação do patrimônio-territorial como a utopia dos territórios de exceção assumindo-o como valor social.
Se, na dimensão marxista, a categoria ‘valor’ ilumina o que de mais importante existe na estrutura do ‘ser social’ -o “caráter social da produção” (Lukács 2012)-, a estrutura do ‘ser social’ pode ser refeita por uma radical e utopicamente nova dimensão espacial da economia: integradora, vivamente participativa, ineditamente criativa, propositiva e simbólica. Se a base elementar do ‘ser social’, na corrente marxista, é o trabalho, sua revisão humanista sugere a inclusão das noções de ‘existência’ e ‘experiência’ para a efetivação de novas relações no e do trabalho.
A economia regida pelo capital financeiro, que tende a anular redes topográficas (de distâncias espaciais) e a criar redes topológicas (de distâncias virtuais), anuncia o mundo novo da instantaneidade e da fugacidade da informação, da circulação e da vida. Nesse mundo novo, territórios de exceção (espacialidades que registram, factual-memorialmente, a força da resistência de negros, indígenas e suas gerações à colonialidade do poder) podem ser valorados do ponto de vista produtivo inclusivo e de inéditas práticas sociais sem segregação? Por um lado, M. Santos (2007) afirma que o território de vivências é mais que um simples conjunto de objetos, mediante os quais vigora o trabalho, a circulação, a moradia, ele é um dado simbólico; por outro lado, defende que, na ótica dos países subdesenvolvidos, o território em que se vive é, na realidade, desprovido de cidadania. Contudo, é utopia necessária a alteração da experiência espacial que indica territórios simbólicos desprovidos de cidadania.
Para Foucault (1984), as utopias são posicionamentos novos sem lugar real; mantêm com o espaço concreto uma relação de nova afirmação (são a própria sociedade aperfeiçoada). Defende-se, assim, o utopismo de abordagens emancipatórias e ações de soberania sobre os territórios de exceção latino-americanos, por meio da ativação popular do patrimônio-territorial.
Ativação popular do patrimônio-territorial na América Latina contra a indigência e a pobreza
Escrever ‘outra’ história de um continente indígena e afrodescendente violentado pela ambição estrangeira requer conhecimento nuançado das especificidades de cada território de exceção marcado pela colonialidade; demanda instrumentalização cultural e política popular, a partir e por esses territórios de mobilização e de luta. Pensar alternativas de vida e representatividade culturais deve ser um esforço coletivo para maximizar condições materiais de existência e minimizar o estigma social que subjuga sujeitos e grupos latino-americanos. Reminiscências africanas e indígenas na religião, no folclore, na música etc. são identificáveis nas áreas onde a convergência desses povos foi maior; sua persistência se explica, principalmente, por suas condições de marginalização, que em nenhum caso constituem blocos étnicos inassimiláveis (Ribeiro 2010). Cabe, então, cartografar valores factuais-memoriais ou o patrimônio-territorial em cada lugar, a favorecer nova dignidade espacial aos descendentes esses povos:
[...] justifica-se a singularidade de um patrimônio-territorial diante do quadro da urbanização (desigual-em-transformação, legada na colonialidade) no continente latino-americano. Resistir ao poder e ao saber pretensamente universais a partir do sítio que deles resultam: este é o paradoxo utópico posto. A utopia, então, é partilhada pelos grupos subalternizados na história que, apesar de toda e qualquer conjuntura, passa a reconhecer centralidades instituídas como vínculos para se afirmar e para novas rendas locais; a utopia passa a ser assimilada e a se situar, pela força contraditória da colonialidade, nas periferias urbanas com seus protagonistas indígenas, negros, mestiços, mulheres e homens. Descentraliza-se, então, a própria utopia (nova força política), deixando de ser cooptada, restritamente, por intelectuais e técnicos do saber e do fazer urbanos, o que realça um novo tipo de resistência pela circulação espacial do poder. A utopia é assumida como método, por favorecer e fortalecer a crítica e a construção do novo no velho periférico; revela um campo de possibilidades cujo experimentar, como qualquer descobrimento, implica ruptura com políticas, fazeres e ideologias instituídas. (Costa 2016, 19)
A América Latina é “a região das veias abertas”, onde tudo, desde o descobrimento, “se transformou em capital europeu; mais tarde, norte-americano, tudo acumulado distante dos centros do poder, mas em seu benefício”. A terra e suas riquezas, a sociedade e sua capacidade de trabalho e de consumo foram e são demasiadamente explorados. “O modo de produção e a estrutura das classes sociais são determinadas de fora, por sua incorporação às engrenagens do capitalismo. As funções novas criadas se dão em benefício das metrópoles estrangeiras”. Mesmo no interior da América Latina, “há opressão dos países pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão de obra”; cabe lembrar que “há quatro séculos, já existiam 16 das 20 cidades latino-americanas mais populosas da atualidade” (Galeano 2005, 18, citações no parágrafo). Diante desse quadro de exploração histórica, intelectuais não podem se restringir à crítica social, mas partir dela para indicar alternativas novas de ação, em nome da população indígena e afrodescendente localizada nas periferias do continente.
Dados recentes sobre a América Latina apresentam países em que parte da população se considera inserida em grupos de discriminação e acredita que, no futuro, seus filhos viverão melhor; casos emblemáticos desse estigma e dessa esperança de futuro são Brasil, Chile, Paraguai e Peru (tabela 3). Ainda, observa-se que, desde o início do século XXI, países como Bolívia, Brasil e Paraguai apresentam considerável parte da população indígena e afrodescendente em situação de indigência e de pobreza (tabela 4). É alarmante os casos da Bolívia (com 48% de sua população considerada pobre, em 2013), e do Paraguai (com 36% e 61% de sua população considerada, respectivamente, indigente e pobre, em 2014). O quadro se alterou, positiva e significativamente, para o Brasil, que tinha 46% da população indígena e afrodescentes pobre em 1999 e diminuiu para 19% no ano de 2014, e também para o Uruguai, que reduziu, entre 2007 e 2014, de 20% para 10% a população indígena e afrodescentes na situação de pobreza, bem como de 17% para 4% a população não indígena e não afrodescendente pobre. Esses números revelam uma subvaloração dos sujeitos em duas dimensões: a da memória de opressão reforçada no estigma social e a das condições materiais que decorrem do conteúdo e da forma do trabalho impostos aos grupos indígenas e afrodescendentes na América Latina. Como lembra Lukács (2012), é por meio do trabalho e de suas consequências que se origina, no ser social, uma estrutura peculiar.
Dados: elaborado com dados de Cepal 2013b.
Nota: 1. D: cidadãos que consideram pertencer a um grupo discriminado (% / país). 2. VM: cidadãos que acreditam que seus filhos viverão melhor que eles (% / país).
O quadro paradoxal de transformações sociais por que passa (positiva e negativamente) a América Latina é o que estimula a assumir o patrimônio-territorial como uma alternativa aos pobres periféricos. A estrutura física e social dos territórios de exceção (consequência da colonialidade do poder) tem seus princípios em outros territórios (lugares e territórios também são definidos por ausências como a do Estado, a das instituições, a das associações (Bourdieu 1999). Imposições externas forçam a criação de novas regiões, novos territórios, novos lugares ou a mutação dos preexistentes. Esse fenômeno resulta no que M. Santos ([1971] 2009) chamou “espaço derivado”, cujos princípios de organização devem muito mais a uma vontade longínqua do que aos impulsos ou organizações locais. Assim, territórios de exceção perfazem escalas e trazem contradições herdadas dos espaços derivados.
Os territórios de exceção latino-americanos guardam a quase totalidade da população que trabalha por conta própria, que dinamiza o setor informal e o de baixa produtividade da economia. Dentre os países analisados, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru apresentaram, na primeira década do século XXI, uma média de 50% da população trabalhadora por conta própria (tabela 5). Verifica-se que, em toda a América Latina, a média geral de 70% dos trabalhadores concentra-se em ramos econômicos de produtividade baixa (na agricultura, no comércio e nos serviços), 20% a 30% estão no setor de produtividade média (indústria manufatureira, construção, transporte e comunicação) e 1% a 10% no setor de produtividade alta (mineração, eletricidade, gás e água, atividades financeiras e imobiliárias) (tabela 6). Essa visão geral sugere o baixo salário e as dificuldades de se atingir um mínimo social de qualidade de vida dos povos indígenas e afrodescentes na América Latina.
Dados: elaborado com dados de Cepal 2015.
Nota: PB - Produtividade Baixa (agricultura, comércio e serviços).pm - Produtividade Média (indústria manufatureira, construção, transporte, comunicação). PA - Produtividade Alta (mineração, eletricidade, gás e água, atividades financeiras e imobiliárias).
A história do trabalho vinculada à complexização territorial na América Latina revela um sistema brutal mantido pela entrada permanente de negros novos e a opressão indígena. Os europeus constituíram as primeiras ‘empresas multinacionais modernas’ reunindo capitais e empresariados ingleses, holandeses, franceses e até ibéricos que compuseram máquinas prodigiosas de caçar negros na África embarcá-los em tumbeiros para atravessar o Atlântico e vender na América Latina (Ribeiro 2010). Nessa operação capitalista de acumulação primitiva, milhares de negros e de indígenas foram mortos ou escravizados; a dívida social com esses grupos não pode ser negada; ainda urge a invenção de sua emancipação popular.
Os dados apresentados ratificam a tese de que o patrimônio-territorial é um elemento de resistência e mobilização popular nas periferias latinas, quando as expressões que envolvem autonomia política, econômica ou cultural dos pobres tendem a ser estigmatizadas socialmente. As classes dominantes, com apoio de certas classes políticas, adotam estratégias (para a maior opressão dos territórios de exceção) que vão do controle de acesso aos espaços públicos ao impedimento do livre comércio, prestação de serviços mais básicos, atuação esquizofrênica do mercado imobiliário e demandas direcionadas de equipamentos urbanos.
El control sobre el espacio público es primordial para las clases dominantes ya que allí es donde los sectores populares ejercitan su soberanía. Las ferias libres son aquellos espacios donde los productores populares y sus productos se vinculan de modo horizontal, y el comercio informal es a menudo un “arma política y económica con el que las clases populares pueden ejercer sus derechos ciudadanos” (Páez, 2004). Dominadores y dominados saben hoy que es en esos microespacios de la vida cotidiana donde se ensayan las revueltas que desbordan, cada cierto tiempo, las grandes alamedas del control social. (Zibechi 2007, 224)
Os territórios de exceção -depositários do patrimônio-territorial- guardam parte dos elementos constitutivos do espaço social total; a distinção se faz na densidade e na qualidade técnica, no valor atribuído, bem como na imagem que se difunde de uma e de outra porção do espaço. A ativação popular do patrimônio-territorial demanda, em primeiro lugar, reconhecer tais distinções, no tocante às carências e às abundâncias efetivas de cada território de exceção. Essa ativação exige novas conexões ou arranjos espaciais, aproveitando-se da densidade territorial e do patrimônio já instituídos pelo Estado-mercado. A exceção territorial se faz no sentido de uma recíproca determinação entre ausências (do Estado, do mercado, das instituições, das organizações etc.) e presenças (do sujeito localizado com seus bens culturais, que vão do artesanato às festas populares, da culinária ao patrimônio edificado -ou ruínas- periférico, de capelas rurais às formas de produção no campo etc., todos dentro ou fora dos perímetros urbanos).
A ativação popular do patrimônio-territorial latino-americano: por outra epistemologia e prática do turismo
A ativação popular do patrimônio-territorial depende de elos conectores constituintes de uma rede nova ou o que já se tratou por ‘rede patrimonial utópica’, a qual deve agregar bens instituídos e não instituídos na elaboração de um mais amplo território simbólico e de atração turística até às periferias. Reforça-se a tese defendida “da necessidade de renúncia dos centros antigos ou tradicionais como as ‘únicas’ referências memoriais da cidade”. É importante considerar que “as periferias são representação de espaços políticos e econômicos, cujos estratégicos fluxos centros-periferias-centros fazem do periurbano lugar de centralidades artístico-culturais a serem cartografadas” (Costa 2016, 14).
Diferente de outros fenômenos socioeconômicos, o turismo oferta atrativos que não se deslocam, mas forçam o deslocamento (variável de fundamento do fenômeno), o que demanda preparação material e humana, do espaço emissor ao receptor. A economia do turismo é explicada pela noção de “locais de novos usos”, o que gera migração de pessoas também sobre espaços periféricos (Miossec 1977). Sendo o turismo fenômeno gerador de rendas (entremeadas das já sabidas contradições capitalistas), na América Latina, com destaque para Costa Rica e Uruguai (com maiores porcentagens do Produto Interno Bruto - PIB na atividade) e para Argentina, Brasil, Chile e México (como maiores receptores e arrecadadores de divisas, dentre os países analisados) (tabela 7), por que não promovê-lo nos territórios de exceção incluindo-os, ativa, popular e conscientemente, na lógica de valoração de novos lugares da cultura?
Dados: elaborado com dados de Cepal 2015; OMT 2015.
Nota: T - entrada de turistas (milhões de turistas/ano). R - receita gerada pelo turismo (bilhões de dólares/ano). P - porcentagem representante do PIB.
O caso do turismo nas periferias de Buenos Aires, uma das cidades mais visitadas da América Latina, foi questionado por estudiosos argentinos. Bertoncello e Luso (2016) observam que os estudos se concentram, fundamentalmente, na função turística dos centros metropolitanos e de seus bairros tradicionais próximos (na lógica das intervenções setorizadas); poucas são as pesquisas de turismo que chegam ao periurbano, ao rururbano ou às periferias metropolitanas. Os autores abordam Tigre, município periférico de Buenos Aires, que organizou sua função turística em relação direta com o centro metropolitano.
“Buenos Aires”, se concreta en un conjunto de productos que se apoyan en una ciudad turistifcada en fragmentos. Tigre cumple el rol de ser un fragmento más de este destino [...] Desde los estudios metropolitanos, el caso de Tigre muestra la importancia de abordar con detenimiento las características y transformaciones de las áreas periféricas tradicionales, lo que permitiría ir más allá de las miradas que las colocan en roles pasivos -meras ciudades dormitorio, cementerios industriales o barrios pauperizados, sin historia ni proyectos propios- para reconocer cuán vivas y activas están, y cuánto siguen contribuyendo al dinamismo metropolitano. Permitirían “abrir la caja negra” de estas periferias tradicionales que, marginadas por el mayor interés que los estudiosos han puesto en el centro gentrificado o en las “nuevas” periferias, siguen siendo muy importantes; en el amba, por caso, en ellas viven “nada menos” que tres de cada cuatro de sus 13 millones de habitantes. Tigre es uno de los municipios que integra el amba, parte de ese conjunto periférico que parece requerir más atención. El análisis de Tigre como destino turístico puede ser considerado como un indicio de la existencia de estas dinámicas y capacidades, y como una advertencia acerca de la necesidad de avanzar en la investigación de estas periferias y sus lugares, para reconocer lo que sí son en el marco de la totalidad metropolitana. (Bertoncello e Luso 2016, 122)
Buenos Aires, capital da Argentina, é metrópole ‘turistificada aos fragmentos’, mas parece conectar atrativos localizados fora do centro tradicional. Caso brasileiro notável é a capital Brasília, internacionalmente atrativa como modelo universal de arquitetura moderna; consolida um amplo espaço distrital que, visto em sua totalidade, aglomera territórios de exceção com valor de memória, mas totalmente desconectados. Tais territórios, ativado seu patrimônio-territorial, poderiam estabelecer conexão de atratividade com o Plano Piloto patrimonializado, para valorar culturalmente e gerar rendas novas à população carente que habita, por exemplo, Ceilândia (com sua feira tradicional), Candangolândia (e seu museu popular), Taguatinga (primeira cidade satélite), São Sebastião (com uma centena de olarias vinculadas à construção da nova capital, figura 4) e Núcleo Bandeirante (aglomerado histórico de função comercial e de feiras).
Estas são importantes aglomerações da metrópole com patrimônio-territorial resultante da história de construção da nova capital, após 1956. Brasília guarda territórios de exceção negados na história oficial da formação territorial nacional, com significativa presença de afrodescentes (especialmente, nordestinos) jogados na periferia que concentra a maioria dos três milhões de habitantes que a compõe.
É importante lembrar a complementaridade econômica que o turismo pode favorecer em algumas comunidades, passando a ser, inclusive, a principal fonte de renda. Ceballos e Ríos (2011) citam as transformações nas economias pesqueiras artesanais contemporâneas, como o caso de Cucao e Tenaún, Província de Chiloé, Região dos Lagos, Chile. Com a diminuição da biodisponibilidade (dado o regime livre e predatório da pesca industrial), esses grupos buscam novas alternativas de renda diversificando as formas de atividade produtiva; no caso de Cucao, “a população obtém renda pela prestação de serviços como camping, alojamento e cavalgadas ou pela venda de produtos marinhos, alimentos e artesanato aos turistas [...]. Durante muito tempo, o turismo foi muito incipiente devido à inacessibilidade da zona” (Ceballos e Ríos 2011, 67-73). Nessa localidade chilena, o turismo fez-se real possibilidade de melhora das condições econômicas dos pescadores artesanais, atropelados pela pesca industrial. Certamente, casos positivos e negativos da atividade espalham-se pela América Latina, o que se dá não pela falta de planejamento (como se convencionou dizer), mas pelo desvirtuamento ideológico e do sentido de valor social atribuído aos lugares.
Assim, o utopismo patrimônio-territorial demanda outro pensamento e prática do turismo, que resista aos feitiços do capitalismo e à magia dos meios de comunicação (que divulgam um ideal de lugares e de lazer marginalizantes do patrimônio-territorial); necessita-se uma epistemologia situada do turismo. A modernidade/colonialidade em si induz à ideia de democracia e de sociedade na qual se vende, como um pacote de viagem, a terra prometida da felicidade, um paraíso onde, por exemplo, quando já não se pode comprar a terra porque é limitada ou não produz ou está monopolizada por quem tem seu controle e concentração, pode-se comprar a terra virtual; mas, quando não se compra o pacote ou se tem outras ideias de como a economia e a sociedade podem ser organizadas, emergem todos os tipos de violência direta ou indireta (Mignolo 2010).
Uma epistemologia situada do turismo deve incorporar com precisão o conceito de lugar e a noção filosófica de totalidade em debates como: marketing urbano, imagem de cidade, atrativo turístico, cultura, memória, identidade, planejamento estratégico etc. Essa consideração pode evitar o preconceito epistêmico quanto ao patrimônio-territorial, que se dá ou pela negação dos sujeitos que carregam a memória histórica da formação dos territórios de exceção latinos (negros e indígenas) ou pela própria recusa dessas localizações periféricas, com seu potencial de valor e atrativo. Essa epistemologia situada pode conduzir a práticas de ‘marketing territorial’ desde os sujeitos e os territórios de exceção; elevar uma imagem totalizadora e includente do território, que revele e favoreça a ação pelas suas contradições; pode negar o marketing urbano como mero “instrumento adicional da gestão e da planificação estratégica, para responder à necessidade de atrair investimentos, empresas e turistas”, ou que “pretende desenhar e projetar uma imagem de cidade e seus atributos, tendo sempre presente as necessidades, expectativas e interesses dos potenciais compradores” (Franco 2011, 29).
O foco passa a ser nos desejos e nas necessidades dos sujeitos situados em territórios de exceção -detentores do patrimônio-territorial-. A comunidade4 é, em verdade, a gestora-empreendedora e a beneficiária real do turismo, a representante protagonista da formação territorial latino-americana nesse novo processo de valoração espacial da cultura nas periferias.
Apontamentos metodológicos: ativação popular do patrimônio-territorial para elaboração de ‘roteiros patrimoniais utópicos’
A análise mais geral realizada nos itens anteriores sinaliza as resultantes da colonialidade do poder na América Latina, para afirmar a existência de valores a serem lembrados nas periferias induzidas ou nos territórios de exceção. Serão feitos, agora, alguns apontamentos metodológicos sobre o processo de ativação popular do patrimônio-territorial para elaboração de ‘roteiros patrimoniais utópicos’.
Há níveis, escalas e temporalidades a serem consideradas na iniciativa de ativação popular do patrimônio-territorial latino-americano. Os níveis de iniciativa envolvem: universidade, comunidade e instituições (não necessariamente nessa ordem). A escala original da iniciativa para a ativação do patrimônio-territorial deve ser sempre local; parte-se do reconhecimento do lugar para a conexão exterior e ulterior, a envolver outros lugares. Devem ser compreendidas e respeitadas as temporalidades de cada nível de iniciativa e a duração da ação, ou seja, o momento ideal de concepção da iniciativa e de sua operação, a partir da comunidade, da universidade e das instituições envolvidas.
Três preceitos teórico-metodológicos devem estar na base da ativação do patrimônio-territorial latino-americano, quando o nível da iniciativa está no âmbito da universidade, em respeito a valores locais e para se minimizar riscos de qualquer natureza, bem evitar como controle externo à comunidade; esses preceitos são: a) abordagem da interação sujeito-lugar-mundo; b) a elaboração de uma epistemologia situada ou do Sul, e c) o tratamento da solidariedade no período popular da história. Saber o lugar ativo do patrimônio-territorial demanda compreensão espacial das atividades do sujeito situado, inclusive entender a produção do sujeito no cotidiano. O lugar deve ser assumido como um ‘entre-dois’ (o sujeito e o mundo), um sujeito que transforma a ele próprio ao transformar o mundo no qual se insere (Berdoulay e Entrikin 2012). Deve-se reconhecer o sujeito e o grupo localizados em permanente situação espacial, transformadores e transformados pelo mundo; são centro da ativação, da preservação e os detentores reais do patrimônio-territorial a ser encontrado dentro e fora dos sujeitos comunitários.
Em segundo lugar, é preciso questionar o papel social das ciências e das tecnologias e colocar em dúvida seus benefícios ou o progresso advindo de suas iniciativas, a ética da tecnociência comandada pelo mercado. Logo, o debate pós-colonial aparece como fundamento das iniciativas de ativação popular do patrimônio-territorial por favorecer problematizar o que é o Sul do ponto de vista histórico, sociológico e geográfico, para fazer um novo Sul contra-hegemônico. Essa teoria faz entender que é das margens que se veem melhor as estruturas de poder e mostra que o centro está nas margens, além de estimular um uso contra-hegemônico da ciência hegemônica, quando ela entra não como monocultura, mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber científico dialogue com o saber popular (dos indígenas, das populações urbanas marginais, dos camponeses) (B. Santos 2007, 32-59). Como já tratado,
A colonialidade impõe, aniquila e valora, reciprocamente, conhecimentos exclusivistas, o que exige a problematização do lugar do saber: do seu tópos geográfico ao seu tópos epistêmico; relação entre o que é teorizado e a partir de onde se teoriza [...] O utopismo patrimônio-territorial vigorará a partir da sistematização de um conhecimento popular situado, por meio de uma agenda de iniciativas sociais, organizativas, administrativas e universitárias, todas locais. Tais ações e pesquisas podem contribuir para identificar, catalogar e mapear o acervo simbólico da história territorial dos subalternizados latinos, para intervenções concretas na implantação de roteiros patrimoniais de assentamentos (com sinalização interpretativa), museus temáticos de bairros, restaurantes criativos com respeito à história de formação e alimentar do lugar, espaços ou centros culturais e de identidade local, espaços de lazer ou recreação, cafés com artes locais, bares temáticos e outros. (Costa 2016, 8-9)
Por fim, o “período popular da história” (M. Santos [1971] 2009a) é objeto relevante de avaliação dos acadêmicos envolvidos na ativação do patrimônio-territorial. Paradoxalmente, a globalização criou condições necessárias à emergência dos populares por ela negligenciados; a influência de uma cultura de massas que busque homogeneizar e impor-se sobre a cultura popular faz a cultura popular reagir. “A cultura popular exerce sua qualidade de discurso dos ‘de baixo’, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias” (M. Santos [2000] 2009b, 144). A cultura, que se faz no lugar de poderes populares instituídos (no cotidiano e no trabalho), é legitimamente resistente aos adventos da cultura de massa, fazendo-se valer dos mecanismos técnicos que essa mesma criou. “Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura territorializada, um discurso territorializado, uma política territorializada” (Santos [2000] 2009a, 144). O patrimônio-territorial latino-americano faz-se na solidariedade cultural das comunidades que não deixaram perder seus símbolos, pois são tenazes no movimento da sociedade capitalista.
Os três níveis de iniciativa pelo patrimônio-territorial (universidade, comunidade e instituições, conjuntamente) chancelam o utopismo de uma ativação que se quer comunitária. O experimento intelectual deve ser rigoroso, mas importa o interesse, a necessidade e o fazer populares como requisitos de qualquer ação, o que faz da utopia um método. Enquanto a ciência, ao buscar a verdade sobre um fato ou fenômeno, abandona toda hipótese vista como falsa, o método utópico pode seguir trabalhando com uma hipótese que aparece como errada, com uma afirmação tida por ilegítima; não que o utopista exerça o erro, ele persegue mais o aumento do saber do que a busca da verdade (Ruyer 1971).
Nessa dimensão que define a utopia como método, a universidade reconhece o utopismo que envolve o patrimônio-territorial; a comunidade demanda, aponta e opera, na utopia pensada, o possível realizável; as instituições retêm a utopia de serem potenciais catalizadoras do ativado (popularmente) patrimônio-territorial; elas coroam a realização do novo nos territórios de exceção latinos, por meios materiais e virtuais de conexão de pessoas e lugares. “Roteiros patrimoniais utópicos reafirmam a existência periférica, ao fazerem correlação espacial de sítios distantes com monumentos e lugares de práticas culturais diversas; a preservação a ser assumida não se resume a uma única defesa patrimonial” (Costa 2016, 4).
Ainda do ponto de vista metodológico, são feitas algumas considerações para cada nível de iniciativa de ativação popular do patrimônio-territorial latino-americano.
Nível de iniciativa da e na universidade (meta: reconhecer e difundir o utopismo patrimônio-territorial em sua integralidade, a partir das comunidades)
Composição da equipe: verificar docentes e discentes dispostos a trabalhar em pesquisa e em extensão, de maneira conjunta, no viés do patrimônio-territorial. É imperioso que seus integrantes tenham formação crítica, mas que sejam profundamente propositivos; ainda, que haja indivíduos jovens e experientes, homens e mulheres, indígenas e afrodescentes. O projeto deve se consolidar como prática externa à universidade, como benefícios a comunidades.
Envolvimento temático da equipe: ser multidisciplinar, que dê conta de desenvolver projetos para mapear e tratar o patrimônio-territorial regional e/ou nacional. Devem-se considerar pesquisadores formados em ciências humanas (geografia, história, sociologia, antropologia, serviço social e pedagogia) e ciências sociais aplicadas (arquitetura e urbanismo, turismo), especialmente. O patrimônio-territorial deve ser identificado e interpretado no contexto do processo histórico que o engendrou, para então ser conectado aos atrativos já instituídos ou consagrados pelo Estado-mercado (patrimônios nacionais e mundiais, normalmente localizados nas áreas centrais consolidadas, os centros tradicionais). A equipe composta deve dar conta dos temas de patrimônios-territoriais localizados, daí a importância de um levantamento prévio do que se tem por resistência cultural nas periferias que integram o recorte pretendido.
Estratégia metodológica da equipe: a) a partir de um projeto guarda-chuva (que trate do patrimônio-territorial regional, nacional ou continental), elaborar planos de trabalhos individualizados para alunos de graduação e de pós-graduação ou para professores com outras equipes; b) criar objetivos de pesquisa e de extensão que sejam simultâneos, quer dizer, o mapeamento do patrimônio-territorial deve ocorrer para o seu tratamento, tudo a partir do sujeito em situação espacial, do lugar de vivência ou do território de circulação, com as efetivas necessidades ou desejos dos moradores. Assim, a equipe ou o pesquisador deverão estar preparados para a recusa popular da proposta (cabe à comunidade aceitar ou negar a concepção, o mapeamento, o tratamento e o cuidado do patrimônio-territorial). O sentido e a força do patrimônio-territorial estão no sujeito localizado, e não na cabeça de quem pesquisa ou pensa preservá-lo, sem vivenciá-lo espaço-temporalmente. É a população quem pode revelar e assumir o destino do seu lugar e tudo que o constitui; é a guardiã da preservação cultural e da difusão da memória, até onde deseja; c) estabelecer -para cada caso a ser analisado- formas de abordagem ao grupo social e melhores mecanismos de realização de oficinas temáticas participantes. Por isso, uma pesquisa de aproximação será fundamental, no intuito de convidar membros do grupo popular para diálogo com a equipe, na intenção de se descobrir as melhores formas de contato com a comunidade, além de se verificar, preliminarmente, o efetivo interesse e o potencial da ativação do patrimônio-territorial localizado.
Compromisso social da equipe: a equipe de pesquisa deve reconhecer o potencial transformador local do patrimônio-territorial e contribuir com: a) identificação e a divulgação daquilo que o grupo social localizado desejar assumir, para uma projeção; b) o estabelecimento de normativas internas ao grupo para se evitar concorrência entre os empreendedores locais e impedir a entrada de agentes capitalistas nas comunidades; c) a formação qualificada dos novos profissionais localizados, por meio de cursos de curta, média e longa duração (culinária, gastronomia, artesanato, acolhimento, idioma etc.). O projeto de pesquisa-extensão, então, deve ter como um de seus objetivos a formação cidadã dessa população periférica, em planos de trabalho que acompanharão toda a proposta.
Nível de iniciativa da e na comunidade (meta: demandar e ativar o utopismo patrimônio-territorial -então reconhecido-; a utopia da realização participativa do projeto)
Interação inicial, para informações velhas e novas: realizar, com os moradores (jovens, adultos e idosos, homens e mulheres), oficinas temáticas participantes para o entendimento e o registro da história e da geografia da origem, da formação e da consolidação do lugar. Deverá ser feito um trabalho de registro histórico e geográfico local.
Identificação e prática de empreendedores situados: verificar, nas oficinas temáticas participantes, os sujeitos mais engajados ou propensos à participação no levantamento dos valores culturais locais (catalogação ou inventário de bens móveis e imóveis que registrem a história da formação do lugar). Esses sujeitos, a priori, poderão ser aqueles que, no futuro e a depender dos interesses comunitários, conjugarão com o grupo culturas e normas de proteção local, valorando o sítio de pertencimento. Essa concepção de “empreendedor situado” é de Zaoual (2008), que o denomina como aqueles sujeitos completamente inseridos no sítio, colaborador comunitário de coesão social e favorecedor de redes de pertencimento com arredores, que visa a aprendizagem e transmissão de saberes e fazeres.
Assinalação e prática dos sujeitos-patrimônio: levantar, nas oficinas temáticas participantes, homens, mulheres e descendentes diretos (vivos ou não) que participaram ou participam da formação e da consolidação do lugar, perpetuadores de práticas culturais, de saberes e de fazeres. Pode ser realizado um estudo de oralidade com os pioneiros ou seus descendentes, para se entender a história, a cultura e a memória local, com a elaboração de filmes didáticos em curta-metragem (fontes de educação patrimonial e valoração local para as crianças). A ideia de ‘sujeito-patrimônio’ remete a todos os viventes no sítio, pois são os responsáveis diretos pela manutenção do lugar e da vida. Ele representa a possibilidade mais real da preservação, da luta ou da resistência no sítio de pertencimento. Em situação no mundo, o sujeito-patrimônio adquire consciência sobre problemas e alternativas para a mudança radical dos seus desígnios espaciais. É capaz de reivindicar e operar, pela mobilização popular, a igualdade territorial junto aos órgãos competentes e à sociedade como um todo. O sujeito-patrimônio é o principal bem cultural do lugar, em situação permanente. E, mais, o sujeito-patrimônio é todo aquele que se move pelo bem comum da preservação inconteste, antes de tudo, da vida de relações (Costa 2016).
Definição das condições de trabalho e da qualidade de vida: apreender, pelas oficinas temáticas participantes e caminhadas coletivas, dados relativos ao trabalho para os moradores (empregabilidade; circulação; saberes-fazeres enraizados e, talvez, pouco valorados pelo grupo). Tratar, nesse contexto, com pessoas que lidam com ofícios como artesanato, música, pintura, cinema, arte etc.
Ativação do patrimônio-territorial: partindo dos moradores e do lugar, será elaborada uma cartografia capaz de localizar e dar sentido (geral e específico) aos elementos constituintes da história, da cultura e da memória do grupo ou da comunidade. No contexto da ativação ou reconhecimento interno do patrimônio-territorial, ele pode ou não ser lançado ao mundo e passa a ser ou não coletivizado como atrativo alternativo; momento então de se criar mecanismos de proteção a qualquer tipo de descaracterização e controle por agentes externos ao lugar. Importante deixar claro, no âmbito tanto da universidade quanto da comunidade, que a ativação do patrimônio-territorial diz respeito, primeiramente, à busca de anulação de estigmas sociais relativos à história dos indígenas e afrodescentes na América Latina, ou seja, a função primeira dessa ativação é o reconhecimento da importância, da influência, da resistência e a opressão pela qual passaram esses povos no bojo da dominação, da representação e da valorização do espaço continental.
Catalogação oficial do atrativo situado: localizar e compreender, a partir dos moradores, possíveis eventos ou festas sagradas e profanas que ocorram com alguma periodicidade. Verificar, empiricamente, a existência de materialidades móveis e imóveis (arquitetura, lugares da natureza, espacialidades sagradas, locais de encontros como feiras livres e antigas praças etc.) que remetam ao processo de identificação dos sujeitos com o espaço vivido. Relatar a memória individual e coletiva dos sujeitos-patrimônio notórios no lugar. “Podem ser objeto de apropriação, com particular respeito à memória indígena, negra e da circulação continental: a) histórico sistematizado da origem dos assentamentos precários ou não (advindos do processo migratório rural-urbano no continente); b) modos de vida enraizados que revelem sociabilidades singulares, tipologias de moradias particulares, padrões alimentares locais ou regionais; c) festas sagradas ou profanas representantes do grupo social e de seus ancestrais; d) patrimônio edificado (e ruínas), nas periferias urbanas, não valorado pelos responsáveis da gestão territorial e órgãos de preservação nacionais, estaduais e municipais; e) imóveis rurais ou conjuntos (sedes de fazendas, capelas rurais, arraiais) representantes da história agropecuária do continente, do país, da região ou do lugar, dentre outros possíveis” (Costa 2016, 9).
A ativação popular do patrimônio-territorial efetiva-se quando ocorre o reconhecimento interno dos valores do grupo. Entende-se que não é a finalidade turística o mote primeiro da ativação patrimonial anunciada, muito menos de sua preservação. A ativação só se realiza na ação concreta de sujeitos conscientes; a ativação permanecerá enquanto esse patrimônio for vivo dentro e fora desses sujeitos, daí o protagonismo da comunidade na ativação do patrimônio-territorial latino-americano.
Nível de iniciativa das e nas instituições (meta: operar a utopia de serem as potenciais catalizadoras da melhor realidade comunitária e colocar o utopismo patrimônio-territorial como o devir da realização do novo, materialmente, nos territórios de exceção latinos)
Instituições afirmadas no processo: elaborado o projeto e dado o início à sua execução, em interação com o grupo social, a terceira grande etapa corresponde à procura de apoio das instituições públicas responsáveis pela: mobilidade, equipagem e circulação territorial (prefeituras e suas secretarias de planejamento); preservação e divulgação cultural (museus, centros culturais, institutos de preservação patrimonial); educação coletiva e individual (universidades, escolas, cursos técnicos); assistência social etc. Devem ser estabelecidas parcerias de formação técnica, de promoção, realização e preservação do lugar. Capel (2011) acredita que só o Estado pode proteger e atender os pobres; quando foi o Estado liberal, a partir do XIX, que permitiu avanços consideráveis na legalidade, na organização social, desenvolvendo o sistema escolar para todos, por exemplo. No caso do patrimônio-territorial, acredita-se que a conexão necessária à sua ativação popular depende, também, da vontade política das instituições públicas. Logo, a demanda popular deve ser efetiva, convicta, operacional, mas apoiada.
Instituições negadas no processo: porém, se o interesse da comunidade ou do grupo social não for a ativação do patrimônio-territorial do ponto de vista atrativo turístico, mas restrito à valoração memorial, cultural e identitária endógena do acervo, a grande instituição a ser reforçada é a própria comunidade, que é a guardiã do seu passado e a responsável pelo seu futuro. Nesse sentido, são negadas as instituições públicas de fomento econômico, mas podem ser valoradas e contatadas as instituições de educação e preservação. A instituição ‘comunidade’, nesse sentido de valoração endógena restrita do patrimônio-territorial, ganha relevo por ser ela atributo de proximidade espacial, afetividade, consenso e participação numa totalidade, traz pessoas que vivem em um mesmo mundo e esse mundo se faz presente em cada um (Durham 2004).
O maior desafio é estabelecer percursos narrados de paisagens e de práticas culturais dos habitantes, roteiros patrimoniais utópicos que reafirmem a existência periférica vinculada espacialmente com os sítios já consagrados, ou seja, tal percurso pode estar em rede com o patrimônio cultural ou natural já consagrado no território turístico.
Duas dimensões de singularidade passam a convergir: do imaginário capitalista e da realidade popular herança da colonialidade do poder. Bens de setores chancelados e das periferias herdadas, com marcante tradicionalismo, podem ser mapeados em um roteiro cultural urbano-rural [...] todos dentro ou fora dos perímetros urbanos e conectados aos atrativos já internacionalizados. (Costa 2016, 13-14)
A reafirmação da “existência periférica” e a indicação das “diferenças socioterritoriais” têm na singularidade de suas expressões memoriais e culturais o potencial de uma “preservação sinérgica do patrimônio”, apesar das nuanças da urbanização latina, que podem ser minimizadas ao se tirar proveito do sistema dos bens simbólicos universais instituídos. Necessitam-se territórios abertos e chegáveis para o estabelecimento de percursos narrados de paisagens e práticas dos habitantes, que podem favorecer novos projetos coletivos locais com “roteiros patrimoniais utópicos” (Costa 2016).
A análise geral da América Latina realizada neste artigo, por um lado, permitiu apreender o quadro de intolerâncias, indigência e pobreza, desemprego, trabalho precarizado, informal e de baixa produtividade que assolam, sobretudo, descendentes indígenas e negros situados em territórios de exceção. Por outro lado, correlaciona tais problemas à modernidade/colonialidade do poder e indicam um caminho alternativo de emancipação. Modernidade/colonialidade europeia que: a) implica a marginalização das culturas e conhecimentos dos grupos subalternos; b) desde a conquista das Américas, produziu histórias locais em arranjos globais dentro dos quais os subalternos precisam viver; c) faz compreensível o surgimento de conhecimentos e identidades subalternas em guetos do sistema-mundo-moderno-colonial; porém, esses conhecimentos indicam tanto uma reapropriação de arranjos mundiais por histórias subalternas locais como a reconstrução de mundos locais e regionais sobre lógicas diferentes que, em seu potencial de conexão rede, podem construir as narrativas das alternativas à modernidade fragmentária imposta (B. Santos 2007; Dussel 2009; Escobar 2010; Mignolo 2005; Quijano 2009).
O utopismo patrimônio-territorial como alternativa de emancipação popular e violação do estigma social depende da iniciativa dos sujeitos localizados e interessados em reforçar seu protagonismo de lutas passadas, numa nova história feita solidaria e comunitariamente. Por fim, a análise crítica radical ao turismo pode ser ponderada. Como analisado em Costa (2016, 29), a realidade latino-americana “demanda uma nova esquerda, crítica com o sistema, mas capaz de articular, democraticamente, os cidadãos (votantes e garantidores da soberania territorial) da luta por um novo destino existencial, pela mobilização e pela mobilidade em sentido amplo”; os movimentos sociais, as associações de bairro, a atuação de acadêmicos, intelectuais e artistas podem se congregar em cobrança das instituições públicas, pela mudança democrática material e imaginária, objetiva e subjetiva dos territórios de exceção na América Latina. “A inversão descarada de investimentos populares para setores da economia exigem alternativas novas para os territórios da pobreza: os roteiros patrimoniais utópicos e a preservação sinérgica do patrimônio são alternativas palpáveis”.
A ativação do patrimônio-territorial latino-americano é a oportunidade de empoderar indígenas e afrodescentes sempre tratados por ‘máquinas’ do capitalismo, reconhecendo que a memória tem base espacial, localização produzida e retratada pelos sujeitos, nos territórios de exceção. ‘Memória periférica’ reveladora de uma nova pedagogia e consciência do trabalho, também, no turismo.
Palavras finais
É necessário cuidado no uso da expressão ‘patrimônio-territorial’ para não enfraquecer a ideia. Na dimensão da universalidade, é símbolo recriado nas relações sociais de produção e de classes; acompanha o devir do trabalho, com sua capacidade de reproduzir a vida material e a consciência social. No viés da particularidade, corresponde à prótese de cultura persistente no território e/ou no imaginário individual e coletivo; demarca, factual-memorialmente, a vida cotidiana comunitária, político, econômico, cultural e religiosamente. No bojo da singularidade e como singularidade, integra territórios de exceção latino-americanos como utopia reveladora da resistência de indígenas e afrodescentes; então, é também consequência da colonialidade do poder e do saber. A essência do patrimônio-territorial, decisivamente, está na relação do universal, do particular e do singular, que perfizeram a colonização e perfazem a colonialidade na América Latina.5
A ativação popular do patrimônio-territorial é possibilidade de anular estigmas e preconceitos sociais, bem como é estímulo a pensamentos e a práticas situadas, endógenas ou inclusivas sobre o turismo e o conhecimento desde o lugar. Sua ativação justifica-se no paradoxo socioespacial continental de: por um lado, desemprego, discriminação étnico-racial, indigência e pobreza e, por outro lado, emergência do setor de serviços (com importação e exportação crescentes de serviços culturais e de recreação) em países cujo histórico produtivo vincula-se ao setor primário e à crescente demanda turística, inclusive em países de economia mais frágil e elevada informalidade.
Dentre níveis, escalas e temporalidades a serem consideradas, metodologicamente, na iniciativa de ativação popular do patrimônio-territorial latino-americano, é crucial o entendimento de que esses níveis correlacionam-se (universidade, comunidade, instituições), sendo a comunidade, que busca a experiência da igualdade (mesmo que efêmera), a protagonista de todas as decisões. O local é a escala original da iniciativa popular, mas não se deve perder de vista que escalas são produzidas no contexto de hierarquias sociais, sendo princípio de reprodução da vida espacial em relações de poder e controle; o patrimônio-territorial é, então, o ‘fato’ entre a acomodação de escalas. O momento ideal de concepção e sua duração ou a temporalidade da iniciativa é a variável mais imprecisa da ativação patrimonial, pois envolve intencionalidades e ideologias que só o desenrolar da iniciativa pode revelar; justamente por essa imprecisão, tal variável deve ser cuidadosamente monitorada.
Por fim, a ativação popular do patrimônio-territorial latino-americano parece ser urgente, dentro de um quadro socioespacial em que as perdas materiais e emocionais e os danos morais à existência de indígenas e afrodescentes não cessam. O patrimônio-territorial é uma chave, uma reação e uma resposta à ‘patrimonialização global’; possibilita, por meio de uma concepção espacial mais totalizante da cultura, desmantelar, pelas periferias, os efeitos da modernização e da colonialidade no continente: valora homens, mulheres e crianças humilhados por preconceito de origem econômica, racial/étnica e tópico-espacial.