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Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografía

Print version ISSN 0121-215XOn-line version ISSN 2256-5442

Cuad. Geogr. Rev. Colomb. Geogr. vol.29 no.2 Bogotá July/Dec. 2020

https://doi.org/10.15446/rcdg.v29n2.81618 

Artículos

Fixos e fluxos: revisitando um par conceituai

Fixed and Flows: Revisiting a Conceptual Pair

Fijos y flujos: revisión de un par conceptual

José D'Assunção Barros*  a 

* Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro - Brasil. jose.d.assun@globomail.com - ORCID: 0000-0002-3974-0263.


Resumo

O artigo propõe revisar e discutir o par conceituai "fluxos e fixos" proposto pelo geógrafo brasileiro Milton Santos nos anos 1970, ampliando um quadro de exemplos pertinentes e produzindo um esquema compreensivo válido para este sistema conceitual. O uso desse par conceitual na Geografia e em outras áreas das Ciências Humanas é ainda pertinente na atualidade, pois permite apreender tanto as estruturas como o movimento de uma cena geográfica. Em vista disto, retomar o conceito e ampliar suas possibilidades e campos de aplicação torna-se relevante. Em uma sessão inicial, comenta-se a importante percepção de que o espaço contém tempo, encaminhada por geógrafos do início do século XX, como Vidal de La Blache. Entrementes, sustenta-se que, se foi uma contribuição vital a percepção do tempo acumulado no espaço geográfico, é preciso também dar a perceber que o tempo também está presente nas paisagens geográficas pelo simples fato de que estas não são estáticas, aspecto contemplado pela complementaridade recíproca do par conceitual fixos-fluxos.

Ideias destacadas: artigo de revisão e reflexão sobre o par conceitual "fluxos/fixos" proposto pelo geógrafo brasileiro Milton Santos. Reexamina-se a contribuição desse geógrafo, e exploram-se os desdobramentos dessa perspectiva teórica. Acrescenta-se um refinamento original através de uma tipologia mais especificada de diferentes tipos de fluxos e fixos.

Palavras-chave: espaço; fluxos; fixos; paisagem; tempo

Abstract

The article aims to revisit and discuss the conceptual pair "flows and fixed" proposed by the brazilian geographer Milton Santos in the 1970s, expanding a framework of pertinent examples and producing a valid comprehensive scheme for this conceptual system. The use of this conceptual pair in Geography and other areas of Human Sciences is still relevant nowadays, as it allows understanding both the structures and the movement of a geographical scene. In view of this, taking up the concept and expanding its possibilities and fields of application becomes relevant. In an opening session, we discuss the important perception that space contains time, developed by geographers of the early twentieth century, such as Vidal de La Blache. In the meantime, it is argued that, if the perception of time accumulated in the geographical space was a vital contribution, it is also necessary to realize that time is also present in geographical landscapes by the simple fact that they are not static, an aspect contemplated by the reciprocal complementarity of the conceptual pair fixed-flows.

Main Ideas: Article of reflection on the conceptual pair 'flows / fixed' proposed by the Brazilian geographer Milton Santos. The contribution of this geographer is reexamined, with the exploration of the developments of this theoretical perspective. An original refinement isiss added through a more specified typology of different types of flows and fixed.

Keywords: space; flows; fixed; landscape; time

Resumen

El el objetivo del artículo es revisar y discutir el par conceptual "flujos y fijos", propuesto por el geógrafo brasileño Milton Santos en la década de 1970, expandiendo un marco de ejemplos pertinentes y produciendo un esquema integral válido para este sistema conceptual. El uso de este par conceptual en Geografía y otras áreas de las Ciencias Humanas sigue siendo relevante hoy en día, ya que permite comprender tanto las estructuras como el movimiento de una escena geográfica. En vista de esto, tomar el concepto y expandir sus posibilidades y campos de aplicación se vuelve relevante. En una sesión de apertura, se discute la importante percepción de que el espacio contiene tiempo, desarrollada por geógrafos de principios del siglo XX, como Vidal de La Blache. Mientras tanto, se argumenta que, si la percepción del tiempo acumulado en el espacio geográfico fue una contribución vital, también es necesario darse cuenta de que el tiempo también está presente en los paisajes geográficos, por el simple hecho de que estos no son estáticos, un aspecto contemplado por la complementariedad recíproca del par conceptual flujos-fijos.

Ideas destacadas: artículo de revisión y reflexión sobre el par conceptual "flujos/fijos" propuesto por el geógrafo brasileño Milton Santos. Se revisa la contribución de este geógrafo y se exploran los desarrollos desde esta perspectiva teórica. Se agrega un refinamiento original a través de una tipología más específica de los diferentes tipos de flujos y fijos.

Palabras clave: espacio; flujos; fijos; paisaje; tiempo

Retomando um par conceitual proposto por Milton Santos

No espaço a ser analisado por geógrafos e historiadores, especialmente quando se trata de áreas urbanas ou áreas rurais habitadas pelos seres humanos, repercute habitualmente a co-presença de duas séries de elementos que devem ser percebidos pelo analista: os "objetos naturais", que não são obra dos homens e por eles não foram modificados, e os "objetos sociais" - "testemunhas do trabalho humano no passado, como no presente" (Santos 2004b, 54). Ambas as modalidades de objetos -os naturais e os sociais-"contém tempo", conforme veremos oportunamente. Tempo natural e tempo humano, desse modo, entremeiam-se no espaço e se expressam através das paisagens.

De passagem, é preciso registrar que deve ser relativizada a dicotomia clássica que permite falar de uma "paisagem natural", mas também de uma "paisagem cultural" - essa última que corresponde àquela que dá a perceber as interferências do homem que acabam por imprimir-se na fisionomia de um determinado espaço conferindo-lhe uma nova singularidade1. Por enquanto, apresenta-se um dos problemas essenciais para a reflexão que se desenvolve neste artigo: o fato de que o espaço "'contém tempo'" e de que deixa entrever isso através das imagens que a combinação entre natureza e artificialidade oferece para que, agregando subjetividades várias como observadores, possamos perceber uma certa paisagem.

A análise do espaço-tempo -ou do espaço que contém tempo- é já antiga na história da Geografia, destacan-do-se a contribuição dos geógrafos do início do século passado, em especial a do geógrafo francês Pierre Vidal de La Blache (1845-1918)2. Por outro lado, naqueles primeiros momentos o tempo era principalmente percebido como algo que se sedimenta no espaço através da combinação de distintos elementos relacionados à materialidade física - a exemplo de paisagens constituídas por objetos produzidos ou modificados em diferentes épocas3. Este aspecto é importante, ou mesmo vital, mas não ainda suficiente para esgotar todos os modos de interação entre tempo e espaço que estão em jogo na análise do espaço geográfico. O tempo também está no espaço através de movimentos diversos, conforme se apresenta adiante.

Embora introduzindo a perspectiva do tempo na Geografia, La Blache havia terminado por elaborar um quadro de regiões estabilizadas em seus estudos da espa-cialidade francesa (La Blache [1903] 2012). A apreensão das permanências desvinculada da compreensão dos processos era de fato o ponto fraco desse modelo geográfico que, já na sua época, foi rapidamente exportado para diversos ambientes académicos no mundo. Em função das lacunas que o modelo lablachiano ainda apresentava no que concerne à percepção da interação espaço-tempo, nos anos 70 começaram a surgir muitas críticas ao modelo e também novas contribuições. Entre as críticas à exclusão lablachiana do processo em favor da percepção exclusiva da permanência, podemos lembrar -apenas para pontuar a percepção das lacunas do modelo labla-chiano pelos geógrafos das novas gerações- as críticas dirigidas a La Blache pelo geógrafo francês Yves-Lacoste:

[La Blache] procura mostrar como as paisagens de uma "região" são o resultado da superposição, ao longo da história, das influências humanas e dos dados naturais. Em suas descrições, todavia, Vidal termina por dar maior destaque às permanências, a tudo aquilo que é herança duradoura dos fenómenos naturais ou de evoluções históricas antigas. Em contrapartida ele baniu, em suas descrições, tudo aquilo que decorre da evolução económica e social recente; de fato, tudo aquilo que tinha menos de um século e que traduzia os efeitos da "revolução industrial". (Lacoste 2005,50)

É sintomático que as pesquisas de Vidal de La Blache priorizem a análise dos aspectos da vida agrícola e natural em detrimento de alusões aos aspectos industriais e objetos geográficos típicos da modernidade tecnológica. O talento expresso em suas descrições geográficas, quase pictóricas, sente-se muito mais confortável diante das paisagens rurais do que em frente às paisagens urbanas, as quais estariam sujeitas elas mesmas a uma transfiguração "arqueológica" muito mais rápida, se quisermos investir na mesma inspiração conceitual introduzida por La Blache. Diante das paisagens urbanas -de sua impressionante fugacidade e de seu agitado ritmo que muito mais está para o allegro, ou mesmo para o presto, do que para o adágio ou para o andante- o geógrafo que se dispuser à análise das paisagens e das localidades de um país precisará ter mais um "olhar de cineasta" do que um "olhar de pintor". Na cidade, não apenas tudo acontece mais rápido, como a paisagem muda mais rapidamente. Para captá-la, metaforicamente falando, seria mais adequado ter uma filmadora do que uma máquina fotográfica. Ao conceito de permanência, tão familiar à análise lablachiana, seria importante acrescentar uma ênfase no conceito de processo.

Entre as contribuições que se apresentam para superar, ou ao menos completar o modelo lablachiano de percepção do espaço-tempo, surge nos mesmos anos 70 a importante inserção de uma perspectiva processual que -ao considerar a combinação de forma, estrutura, função e processo- passaria a ver o espaço como movimento e transformação, e não apenas como permanência4. Trazendo sua contribuição para esta perspectiva mais complexa sobre o espaço, Milton Santos -um dos mais importantes geógrafos brasileiros- iria então agregar,em suas teorizações sobre o meio e o espaço, o intuito mais específico de enfatizar o movimento contínuo no espaço e a ininterrupta parcela de transformação do mesmo. Por isso, acrescentou às suas próprias proposições teóricas um par de novos conceitos correlativos ao espaço geográfico: os "fixos" e os "fluxos" (Santos 1979).

Esses novos conceitos trazem, de fato, uma nova perspectiva à interação entre as categorias da forma, função, estrutura e processo. Conforme apresenta-se neste artigo -o qual se propõe a revisitar o par conceitual proposto por Milton Santos-tanto o grupo dos fixos como o grupo dos fluxos desempenham funções importantes em uma determinada estrutura espacial (uma totalidade urbana ou rural, por exemplo). Os fixos, contudo, relacionam--se mais propriamente à intersecção entre forma e função, enquanto os fluxos referem-se à intersecção entre função e processo. Uma forma e uma função resultam em um fixo. Uma função em seu processo conflui para a formação de um fluxo. Puro movimento, os fluxos não apresentam uma forma identificável. Suportes estáveis para a vida social, podemos considerar os fixos como formas que se perpetuam no espaço, embora nada impeça que estas sejam, de tempos em tempos, substituídas por outras (Figura 1).

Dados: elaborada pelo autor com base nos conceitos propostos por Santos (2008, 67-80).

Figura 1 Quatro categorias essenciais para entender o espaço em interação com o sistema de fluxos e fixos. 

Exemplos iniciais da variedade de fixos

Em uma entrevista de 1991, na qual relembra a importância desse novo aporte para a sua trajetória autoral, Milton Santos dá alguns exemplos mais específicos de fixos: as casas, portos, armazéns, plantações, fábricas (Santos 2013, 155). Poderia citar muitos outros, como os parques e jardins, as lojas, edifícios de escritórios, poços, a infra-estrutura urbana5. Ponhamos em sucessão as maternidades, as escolas, os hospitais, os ambientes de trabalho, os cemitérios. Temos aqui cinco tipos de fixos através dos quais se observa passar este fluxo que é a própria vida humana partilhada nas suas diversas faixas etárias. Há uma função ou mais para cada fixo, mesmo que seja decorativa, ao menos nos fixos que foram construídos pelos seres humanos (pois a natureza também oferece os seus próprios fixos, e eles terminam por se integrar aos fixos criados ou transformados pelos homens). A combinação da montanha com a ação de perfurá-la conflui para a formação desse fixo que é o túnel, o qual terá como função favorecer a circulação do trânsito que flui de um para o outro lado. A floresta pode ser cercada, fixada em parque, e atenderá ao lazer e à manutenção do equilíbrio ecológico.

Os fixos, em algumas palavras, constituem os objetos geográficos que permanecem por um tempo considerável: são os pontos de apoio sobre o qual se ancora a vida de uma sociedade, o seu cotidiano, o seu trabalho. Tangíveis no espaço, e imóveis no lugar, os fixos são sempre localizáveis, apresentam formas bem definidas. Podemos apontá-los no mapa (já com relação aos fluxos, pode-se, quando muito, apenas indicar por onde passam). Além disso, criados por ações humanas e produtos de intencionalidades, os fixos desempenham funções. Foram criados, e são mantidos, por alguma razão (Santos 2008, 102). Quando perdem as funções que lhes davam vida, pode ocorrer que se convertam em ruínas.

As ruas e avenidas de uma cidade, suas pontes, viadutos e túneis, demandam um maior esclarecimento, o qual ainda não foi explorado em toda a sua extensão. Eu os situaria como "fixos condutores" (um subtipo dos fixos) pois é evidente, apesar do movimento implicado, que não poderiam ser fluxos - da mesma forma que, no corpo humano, é o sangue que constitui o fluxo, e não os vasos sanguíneos que o conduzem. Os fixos condutores têm a função explícita de dar vazão ao movimento, mas não são o movimento em si mesmo. À noite, inclusive, moradores de rua podem fazer do viaduto o seu fixo residencial.

Ruas, avenidas e estradas, como os demais fixos - são tangíveis, imóveis, localizáveis no plano urbano - ainda que se prestem à circulação dos fluxos de automóveis e pedestres. De maneira análoga, a rede de fiação que recobre uma cidade -na verdade, o maior artefato urbano visível- coloca-nos um sutil problema. O fluxo não é a rede de fiações, mas sim a eletricidade que nela circula, ou as mensagens que a atravessam de um para o outro lado entre dois telefones. Tal como as avenidas, a rede elétrica e a rede telefónica também são fixos condutores. Assim como podemos traçar em um plano o mapa viário da cidade, é possível cartografar a rede telefónica e a rede elétrica. Os fixos condutores são elos entre outros tipos de fixos (as usinas de energia e as residências, por exemplo), mas ainda assim são fixos.

A variedade de fluxos

Conforme podemos postular, pode-se depreender do delineamento conceitual dos "fixos" o seu conceito oposto e complementar. Os "fluxos" são precisamente os "movimentos entre os fixos". Na categoria dos fluxos, podem ser incluídos tanto alguns objetos materiais -"produtos, mercadorias, mensagens materializadas- como ainda objetos imateriais: "ideias, ordens, mensagens não-mate-rializadas" (Santos 2013, 155). Debaixo da terra, ou mesmo dos mares, oleodutos conduzem fluxos de petróleo. Acima dela, os rios constituem fluxos naturais.

O trânsito, conforme se apresentou, é um fluxo que se estabelece sobre o sistema viário (este fixo) de uma cidade. Entre as (fixas) instituições dos Correios e as residências, circulam cartas. Menos visível, através das redes de fiação circula a eletricidade que irá suprir os fixos da energia de que necessitam, ou que então irá lhes fornecer as informações que lhes serão transferidas pelos fios de telefone. Nos dias de hoje, dois computadores bem distanciados no espaço podem gerar, entre si, fluxos com as mensagens e informações trocadas on-line, da mesma forma que os celulares passaram a prescindir de fixos. Aqui, os fixos condutores são desnecessários. De maneira análoga, nos bancos e instituições financeiras, sediados em edifícios fixos, gera-se um fluxo ininterrupto de dinheiro, seja através de papel-moeda (fluxo material) ou de diversificadas operações financeiras que transferem valores entre contas-correntes (fluxos imateriais).

A relação entre os dois conceitos -fixos e fluxos- não é apenas complementar. A rigor, estabelecem-se aqui relações dialéticas: uma série está sempre modificando a outra. A estrutura de um edifício, a organização interna da materialidade de uma instituição, os objetos nela contidos -e outros inúmeros aspectos que configuram a forma de um fixo- podem ser modificados para atender à demanda de uma função voltada para assegurar ou redirecionar determinados tipos de fluxos. Generalizadamente, pode-se dizer que a tecnologia dos fixos, sua forma, seu lugar na estrutura social, adapta-se para atender à necessidade dos fluxos. Não obstante, o inverso também é verdadeiro, pois as modificações nos fixos permitem novos fluxos, modificam as suas possibilidades de circulação, os seus ritmos e velocidades. Esse aspecto expõe mais um ponto importante. Diferentes tipos de fluxos possuem velocidades diferentes. Assim, "a velocidade de uma carta não é a de um telegrama, de um telex, e de um fax" (Santos 2013, 155). Hoje, poderíamos acrescentar, nada se compara à velocidade dos fluxos de informações que circulam na rede mundial de computadores.

Os fluxos, enfim, atravessam o espaço, percorrem-no, circulam por toda a sua extensão, conduzem ações, decisões, eletricidade. "O espaço é teatro com fluxos de diferentes níveis, intensidades e orientações. Há fluxos hegemónicos e fluxos hegemonizados, fluxos mais rápidos e eficazes e fluxos mais lentos" (Santos 2013, 49). Os fluxos estabelecem ligações entre os fixos, como vimos nos diversos exemplos e como podemos observar por toda parte. As pessoas se alimentam; se suprem de informação, de energia, de produtos diversos, e, em muitos casos, fazem com que essa energia, essa informação e esses produtos -ou o que mais conduzam no seu fluir- passem de um fixo a outro, estejam próximos ou distantes. No primeiro caso, temos fluxos locais. Para além deles, os fluxos podem ligar enormes distâncias, constituindo-se em escala nacional ou global.

Daremos um exemplo mais específico para esclarecer a relação dialética que se estabelece entre os fluxos e fixos. A construção de um novo fixo (uma catedral, um prédio de muitos andares, um hospital ou uma auto-estrada) implica necessariamente a integração de muitos fluxos - alguns locais, outros provenientes de grandes distâncias. Materiais diversos são necessários, fluxos de energia e de mão-de-obra são ativados, trocas de serviços se estabelecem, capitais circulam, compra e venda de bens diversos fluem de um para o outro lado, assim como decisões devem ser tomadas encadeadamente, envolvendo atores os mais diversos. Ações se concretizam para que seja possível fundar um novo objeto, ou, mais ainda, um novo sistema de objetos. Mais tarde, novos fluxos serão requeridos para que o fixo se mantenha em adequado funcionamento.

Algo deve ser dito sobre os objetos mais difíceis de serem enquadrados na dicotomia dos fluxos e fixos. Certos objetos, os quais também fazem parte das paisagens urbanas, são deveras ambíguos. Os automóveis e caminhões, os quais circulam entre os prédios fixos e por sobre a fixidez das ruas e avenidas, ora parecem se comportar como ondas ou como partículas. Tal como na física quântica, tudo depende da escala de observação. Estacionados, ajustam-se por algumas horas à paisagem material urbana. Fixam-se durante o tempo de seu repouso. Em movimento, e vistos em conjunto, comportam-se como fluxo. Podemos vê-los de longe, e de certa altura, como uma pulsante corrente sanguínea que perpassa a cidade, carregando mercadorias e homens. É claro que, rigorosamente falando, os fluxos não são nem mesmo os alinhamentos de automóveis -esses objetos moventes- mas sim o movimento que eles produzem, o trânsito propriamente dito.

De todo modo, nos grandes engarrafamentos pode-se mesmo sentir as tensões que deles transbordam, em decorrência da energia represada, dos objetivos em suspenso, do stress gerado nos homens que dirigem e que são conduzidos pelos automóveis, caminhões e transportes coletivos. O fluxo interrompido gera tensões e perturbações, as funções por um momento se acham ameaçadas, os prazos se comprometem, a vida citadina se estanca. Quando o fluxo progride em sua velocidade normal, tem-se a impressão de que é todo um organismo urbano quem respira aliviado: a energia flui novamente! Já não se tem dúvida, até o próximo engarrafamento, de que chegarão a seus destinos, e no tempo adequado, as mercadorias e os seres humanos.

Ambiguidades na delimitação de fixos-f luxos

O parágrafo anterior permite mais uma reflexão sobre a ambiguidade de alguns dos objetos que habitam a espacialidade urbana ou rural. Os seres vivos, em especial os homens -partes integrantes da paisagem, entre tantos outros objetos geográficos- seriam fluxos ou fixos? Fixados por uma identidade cultural, por um nome registrado em cartório e repetido inúmeras vezes, por uma memória, ainda que flexível -fixados, sobretudo, por um corpo biológico dotado de certa permanência (embora móvel, e em transformação lenta através das sucessivas idades e das diárias modificações no metabolismo)- os seres humanos são portadores da informação, tomam decisões que determinam novos fluxos; ou, então, obedecem ordens.Movimentam-se a pé ou integram-se ao trânsito, de dentro de seus automóveis.Se por um lado se mostram menos presentes em certas regiões da cidade e a certas horas da noite, por outro lado, se aglomeram na hora do rush, como um grande rebanho em movimento ou como um rio de partículas que desliza sobre as aveni-das;até que, oportunamente, recolhem-se mais uma vez à fixidez de suas residências. Mudando de escala, como não lembrar das correntes migratórias, que arrastam entre regiões desiguais grandes fluxos de homens?

Seriam os seres humanos fluxos ou fixos? Constituiriam uma categoria à parte? Importantes para a descrição e análise das paisagens urbanas e rurais -pois sem eles teríamos mais uma vez "o lugar sem o mundo"- os homens e demais seres vivos são objetos que escapam à categoria dos fluxos e fixos? Que seria da cidade sem eles, sem cada um deles?

Há ainda, é claro, toda uma sorte de situações intermediárias ou de difícil definição, em vista de suas circunstâncias. Vamos dar um exemplo, entre tantos: entre os fixos, as residências são habitualmente estabelecidas em edifícios de apartamentos, casas e casebres, e uma vez fixadas no mercado imobiliário, as residências adquirem certo valor e são, desse modo, negociadas e negociáveis a qualquer hora, tornando-se património daqueles que os possuem de fato ou dos que detém legalmente a sua propriedade. Podemos chamar quase todas as residências de "fixos residenciais" Os mesmos tipos de prédios e conjuntos de prédios e terrenos que acolhem as residências também acolhem, com as devidas adaptações, as diversas firmas que povoam a espacialidade económica (empresas privadas de serviços, fábricas, estabelecimentos comerciais e restaurantes), assim como também dão suporte às instituições públicas (órgãos do governo em diversos níveis, com a função de gerar normas e regular a vida pública em todos os detalhes).

Os fixos, portanto, são os locais de trabalho (de produção, circulação e serviços), de ensino ou cultura, de administração e serviços públicos, de lazer ou entretenimento, e, em sua maior extensão numérica, as residências. No entanto, é possível imaginar residências móveis! Na verdade, ao mesmo tempo, em que existem seres humanos que moram ocasionalmente em carros e trailers-uma situação que, de modo geral, pode ser situada no âmbito das excepcionalidades individuais- existem, por outro lado, surpreendentes sistemas residenciais baseados em fixos moventes. Milton Santos, em seu Manual de Geografia Urbana ([1981] 2012), oferece o curioso exemplo dos "sítios-móveis" formados pelas sampanas que fazem parte da paisagem de algumas cidades do Sudeste Asiático:

Em Saigon, estas embarcações que servem de alojamento [as sampanas] deslocam-se incessantemente para escapar das multas, por estar proibido esse tipo de residência... ou, pelo menos, por estarem sujeitas a fortes exações "parafiscais". (Santos [1981] 2012, 196)

Temos, então, fixos que não são bem fixos. Outros exemplos poderiam ser citados. É o caso das "cidades-tendas" - formações urbanas erguidas em tendas ou barracas que, a princípio, poderiam ser desfeitas rapidamente, e que, no entanto, tendem a se apresentar como permanentes. Sua duração prolongada já não permite que sejam chamadas meramente de acampamentos, mas a fragilidade de sua fixidez coloca dificuldades para as chamarmos de cidades. Destarte, elas desenvolvem suas próprias regras, bem como organizações próprias, o fenómeno é comum na Tunísia, remetendo à cultura berbere. Entretanto, os movimentos sem-terra as encaminham para novos propósitos. Mesmo nos Estados Unidos, nos anos recentes, começam a surgir, em estados como a Califórnia e Connecticut, cidades-tenda habitadas por desempregados e sub-empregados, ou mesmo por bem-empregados que buscam um novo estilo de vida. As cidades-tenda, cujo cotidiano é certamente percorrido por fluxos diversos, teriam no seu mar de barracas os seus "quase-fixos"? Se o olhar para a história se estende talvez encontremos situações análogas. A Idade Média, com as grandes feiras de comércio, erguidas apenas em certos meses do ano, também conheciam as suas cidades provisórias.

Todas as dicotomias conceituais devem enfrentar, a certo momento, os seus limites, os casos e situações que as desafiam. De todo modo, é inegável que a perspectiva dos "fixos e fluxos" permite ao geógrafo dotar a sua apreensão e descrição das paisagens, sejam estas rurais ou urbanas, daquele fluir que tanto as caracteriza; e isto sem deixar escapar, não obstante, os elementos que demarcam efetivamente as suas permanências. Apreendidas de uma só vez no seu fluir e no seu conjunto de permanências, as paisagens se tornam vivas, pulsantes, humanas, mas, ao mesmo tempo, não ocul-tamdos historiadores-geógrafos as suas impressionantes capacidades de acumularem o tempo nas suas diversas camadas.

O espaço como sistema de objetos e ações

A teoria dos fixos e fluxos também permitiu a Milton Santos trazer um novo aporte à apreensão do espaço como combinação de objetos e ações.

O espaço ganhou uma nova dimensão -a espessura, a profundidade do acontecer-, graças ao número e diversidade enormes de objetos (isto é, fixos) de que hoje é formado, e ao número exponencial de ações (isto é, fluxos) que o atravessam. (Santos 2013, 34)

Não obstante essa passagem do geógrafo brasileiro sobre a espacialidade contemporânea, é preciso ainda lembrar que o fluir moderno não é constituído apenas por ações e por fatores imateriais como o fluxo de capitais ou a energia. Existem objetos que são fluxos, conforme já havia sido indicado antes, inclusive remontando-se aqui a outro texto de Santos (2013, 153-157). Entre esses objetos-fluxos, apenas para indicar duas possibilidades, são exemplos típicos e mais evidentes as mercadorias e as correspondências. Enquanto isso,com relação às ações, essas sim,no sentido exposto imediatamente acima, sempre seriam fluxos6.

Podemos falar, por fim, das questões de método. Quando certas ações se materializam em objetos de considerável permanência (uma ordem que determina a construção de um prédio ou de uma ponte), temos mais uma vez os fluxos se convertendo em fixos. Por isso, é possível ao geógrafo-historiador empreender uma leitura do espaço que o leve a tempos anteriores.

Ao examinar um fixo, torna-se possível entrever os fluxos que um dia o atravessaram, ou mesmo os fluxos que o constituíram no momento mesmo de sua gênese. Os fixos consomem energia, através de fluxos que vem de outros fixos (as usinas hidroelétricas, por exemplo, ou outras formas de acumulação de energia, em tempos anteriores). A existência de um certo tipo de fixo, em determinada localidade, pressupõe esse fluxo de energia. De igual maneira, um posto do correio, em certo lugarejo, permite perceber um fluxo de comunicações. Seguindo seus rastros, do fixo emissor ao fixo receptor, ou inversamente, pode-se localizar em muitos casos nas cartas oficiais que um dia foram trocadas entre determinadas instituições para a constituição do fixo, para a sua manutenção, ou mesmo para a sua destruição e substituição.

Em contrapartida, ao identificar em uma documentação a menção a um fluxo, torna-se possível, através da pesquisa, descobrir o fixo, mesmo que esse já tenha desaparecido. A menção ao fluxo recorrente de gentes ou mercadorias de um para o outro lado de um rio, durante certo recorte de tempo histórico, pressupõe a ponte, ou ao menos um sistema de balsas.

Conforme se vê, fluxos e fixos se integramno espaço de tal maneira, e se ajustam tão bem uns aos outros, que é possível enxergar um por dentro do outro. As ações são decifráveis a partir dos objetos, e os objetos são pressupostos como desdobramentos de ações. Com isto se chega, nas obras de Milton Santos que vêm a público no início dos anos 1990, a uma definição do espaço como "combinação de sistemas de objetos com sistemas de ações" (Santos 2013, 85). Um sistema de sistemas, como já ressaltamos. A definição de espaço se completa, incluindo todas as anteriores e dando-lhes novos sentidos no seio de uma teoria mais ampla.Proponho, a seguir, umafigura explicativa sobre os "fixos e fluxos", ou, antes, um quadro geral sobre este "sistema de espaço" que inclui os fluxos e fixos, mas que também é habitado pelos seres vivos como elementos a parte, além de incluir outros tipos de objetos (nem fluxos, nem fixos), inclusive os objetos que se movem semserem, no entanto, eles mesmos os fluxos propriamente ditos (chamei-os de "objetos móveis").

Os fixos e fluxos no sistema de espaço

A Figura 2 constitui uma tentativa audaciosa de representar essa realidade complexa que é um sistema espacial - seja este um sistema urbano ou um sistema rural. Digamos que o caso examinado seja uma grande cidade, situação de maior complexidade. A Figura 2 propõe dois pólos ao norte e ao sul -os fixos e fluxos- mas também duas classes de seres ou objetos que não são nem fixos, nem fluxos. Situei a leste os seres vivos, inclusive o homem, e a oeste os objetos móveis em geral, inclusive os veículos (que apresentam a complexidade adicional de auxiliarem na condução de fluxos, como é o caso dos automóveis e outros transportes que conduzem os seres humanos, ou dos caminhões que, além disso, também conduzem o fluxo das cargas).

Dados: elaborada pelo autor desdobrando e ampliando as perspectivas propostas por Santos (2014, 83-87).

Figura 2 O sistema de espaço. 

Entre os fixos esquematizados, há uma classe que chamei de "fixos condutores". Poderia tê-los chamado de fixos de transferência. Incluem toda a rede viária (ruas, avenidas, viadutos, estradas), e as redes de fiação e de dutos (redes de energia, de telefonia, e outras). A função desses fixos é dupla: de um lado, servir de intermediação entre os "fixos continentes" (os grandes fixos, dos quais logo falaremos); de outro lado, conduzir os Fluxos. Na verdade, uma função está bem ligada à outra, pois já vimos que o papel dos fluxos é precisamente o de circular entre os fixos, promovendo trocas e colocando o sistema em movimento. Desta maneira, os "fixos condutores" não são mais que estruturas auxiliares (e fixas) para os fluxos. Possibilitam o trânsito (fluxo de homens e veículos), a circulação elétrica (fluxos de energia), a comunicação (fluxo de mensagens), a circulação da água, do gás, de matéria prima7. Entre os "fixos condutores" e os "fixos continentes", incluí uma série de fixos ambíguos, de difícil classificação, que chamei de "objetos de infra-estrutura" (posso indicar como exemplo os postes, sinais de trânsito, placas de aviso). São fixos pontuais, objetos pequenos, imóveis, mas que não apresentam a grandeza dos macro-objetos que veremos em seguida.

Os "fixos continentes" são os grandes fixos: os "fixos fixos" propriamente ditos. São grandes ambientes bem-estruturados que contém dentro de si uma grande diversificação de objetos, e que são, na verdade, as estruturas principais no interior das quais vivem e agem os seres humanos, pois não é senão ali que se dá a produção, trabalho, o principal desenvolvimento dos serviços, a circulação, assim como a própria reprodução da sociedade, sua organização e controle. Nos "fixos continentes"dão-se todos os aspectos da vida social finalmente.

Poderia ter chamado esse grupo de "fixos estruturais", um nome que seria indicado para traduzir o que significam socialmente. Pensando na forma espacial são nomeados "fixos continentes" porque contêm, eles mesmos, muitos objetos, além de abrigarem as firmas e instituições e de serem os locais nos quais os seres humanos desenvolvem a maior parte de suas atividades, naqueles momentos em que não estão circulando entre eles através da rede viária.Os "fixos continentes" são os prédios e terrenos, ou a combinação de ambos, nos quais se estabelecem as instituições (órgãos públicos) e as diversas firmas (empresas de todos os tipos voltadas para a produção, circulação, consumo e serviços, se quisermos pensar mais especificamente no ambiente capitalista). Além de prédios e terrenos, ou da combinação de ambos em grandes estruturas, os fixos continentes incorporam em suas estruturas o meio ecológico, ou a natureza humanizada. Alguns -os parques e jardins- são mesmo recantos cuja função é exatamente a de manter, sob certos cuidados, recortes espaciais do meio ecológico.

A figura ficaria muito complexa se, nela, eu tivesse investido na pretensão de indicar quais são exatamente essas firmas que estão sediadas nos "fixos continentes". Para fazer isso agora, os exemplos de firmas são as fábricas, fazendas, restaurantes, escolas, hospitais, cemitérios, áreas de lazer, lugares de entretenimento, instituições de cultura, bancos, financeiras, estabelecimentos comerciais, postos de gasolinaeo que mais se possa imaginar. Esses diversos exemplos de firmas, e ainda muitos outros, poderiam ser organizados em um novo esquema, que poderia se somar ao anterior (Figura 3).

Dados: elaborada pelo autor com base em aspectos comentados por Santos (2008, 16-18).

Figura 3 Diversos tipos de firmas, de acordo com as suas funções gerais. 

Em geral, as firmas pertencem a cinco grupos: 1) as unidades de produção (fábricas, estaleiros e fazendas), 2) as unidades de circulação (estabelecimentos comerciais de todos os tipos), 3) as unidades de consumo (restaurantes e casas de espetáculos), 4) as unidades de apoio à vida (as escolas, hospitais, as prestadoras de serviços, e, no momento último, os cemitérios). Por fim, 5) as importantes unidades de impulso e captação de fluxos (usinas hidroelétricas, companhias de gás, luz, telefonia, e também as instituições que cuidam dos fluxos financeiros, como bancos, ou ainda as empresas de transportes terrestres, aquáticos e aéreos, que cuidam dos trânsitos de todos os tipos).

Se há um grupo mais direto de "unidades de produção", isso não quer dizer que os demais tipos de firmas não participem docircuito produtivo, pois em geral eles desempenham funções sem as quais a produção não seria possível. Entre as unidades de apoio à vida (de apoio à produção, pode-se dizer) há exemplos evidentes. As escolas e universidades produzem os diversos especialistas imprescindíveis ao processo produtivo, além de formarem cidadãos no sentido mais geral, de perpetuar o conhecimento em várias instâncias, e de produzir pesquisa (no caso das universidades). Essas e outras unidades de apoio também poderiam ser chamadas de "unidades de produção imaterial". Algumas produzem ideias, ciência, tecnologia, dispositivos disciplinares. Os hospitais, se apoiam a vida, ao mesmo tempo, asseguram uma mão-de-obra saudável; além disso, atraem fluxos de produtos farmacológicos.

De sua parte, as unidades de circulação e consumo correspondem a fases específicas da produção, em lato sensu. De sua parte, as unidades de gestão de fluxos tanto suprem de energia as unidades produtivas, como lhes proporcionam os recursos e investimentos através de instituições financeiras (no caso das sociedades capitalistas). Dessa maneira, o conjunto total das firmas também pode ser examinado do ponto de vista dos modos de produção, embora não só isso. Ao lado das firmas, também estão sediadas, entre os "fixos continentes", as instituições públicas ligadas a todos os níveis governamentais. Das delegacias e do corpo de bombeiros aos diversos órgãos do Estado e daí aos ministérios e sedes políticas, as "instituições" solidarizam-se com as "firmas" no sentido de produzirem a vida da sociedade na sua miríade de facetas8.

No pólo ao sul do esquema mais geral (ver Figura 2), como já foi mencionado, acham-se representados os Fluxos. Os fluxos, como foi mencionado anteriormente, não são os dutos que conduzem o movimento (estes são os fixos condutores). Os fluxos são o próprio movimento, não o sistema viário, mas o trânsito; não a rede elétrica, mas a própria eletricidade; não a rede de telefonia, mas as mensagens que fluem através dela; não os canos de água, mas a água encanada; não a rede de esgoto, etc.

Há "luxos materiais" - os mais antigos conhecidos na história, a não ser que se considere o igualmente antigo fluxo das ideias, e sem contar os fluxos naturais (como as correntes de águas conduzidas pelos rios, o ciclo da chuva, e tantos outros sistemas muito anteriores à presença do homem). De todo modo, entre os fluxos mais antigos desenvolvidos pelos seres humanos, temos o Comércio. Esse impõe fluxos materiais porque o que se movimenta através deles são objetos físicos, como as mercadorias de todos os tipos (hoje, temos ainda mercadorias virtuais).

Considerando os tradicionais sistemas de troca de mensagens, como o Correio, as correspondências também constituem objetos que circulam nesses fluxos materiais.

O período moderno introduz tecnologias que permitem os fluxos elétricos. A princípio eram necessários sistemas fixos para a condução de energia. Mais tarde, surgem as tecnologias capazes de transmissões sem fio. A telefonia celular é um exemplo. A rede mundial de computadores, embora dependente do fluxo de eletricidade para funcionar, possibilita a troca on-line de mensagens. O capitalismo apóia-se nos fluxos de capitais. Esses podem tanto se dar a partir de objetos materiais -papel-moeda, moedas metálicas, ouro, ações escriturais, compra e venda de propriedades- como na circulação imaterial de capitais. Os valores podem ser transferidos entre as contas-correntes através de ordens bancárias, de assinaturas em cheques ou de autorizações on-line.

As ações humanas, ao se considerar que elas fluem através de posições que se encadeiam umas nas outras, também formam os seus fluxos. De igual maneira, as ações geram reações, e estas, outras ações. É controverso, mas podem serconsideradas como fluxos. De todo modo, se não for para pensá-las como fluxos, elas certamente são formadoras de fluxos (além de instituidoras de fixos). De fato, tal como assinala Milton Santos, "os fluxos são um resultado direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo, em que também se modificam" (Santos [1981] 2012, 61).

Quando decide-se comunicar por telefone com alguém, autoriza-se a formação de um fluxo que percorreráesse fixo condutor que é a rede de telefonia, e o fluxo durará o período em que se mantiver a comunicação (de modo que será tanto um fluxo elétrico, como um fluxo de mensagens). De igual maneira, quando dezenas ou centenas de seres humanos decidem se transportar de um lugar para o outro, e agem no sentido de ocupar e percorrer as vias públicas -cada qual visando o seu destino particular- forma-se este fluxo que é o trânsito, poissão ações que determinam fluxos. Alguns se automatizam e passam a funcionar como sistemas. Todavia, sempre poderão, a qualquer momento, ser bloqueados, intensificados, ampliados ou mesmo encerrados, de modo que as ações humanas estão por trásdos fluxos, alimentan-do-os de uma maneira ou de outra.

Também são as ações que imprimem este ou aquele uso aos fluxos. A um rio que corre, com seu fluxo de águas moventes, pode-sedar muitas funções, por exemplo: sobre eles, acima de suas águas, pode-se instituir um fluxo de navegação; abaixo de sua superfície, com a pesca, pode-se interferir na cadeia alimentar (mais um fluxo natural, que precedeu o homem); ao fluxo de suas águas, pode-se dar um destino hidrelétrico, que irá se articular a novos fluxos. Por trás de tudo isto estão sempre as ações.

As ações -as decisões de tomá-las- são imateriais, mas geram resultados concretos. Esses resultados de ações tanto podem se estabilizar em fixos, como podem se converter em movimento, através dos fluxos, e através das cadeias de ações que se interligam como os elos de uma corrente. A possibilidade de enxergar o espaço dessa maneira -como materialidade que é percorrida pelas ações- possibilita chegar à última definição proposta por Santos (2002, 61)9: o espaço como "combinação de sistemas de objetos e sistemas de ações".

Como uma questão de método, é interessante notar que tanto a análise dos fixos, como também uma atenta análise dos fluxos, permitem abordar aspectos históricos e sociais, como a desigualdade humana. Mais evidente e sem vergonha de aflorar à luz do sol, a riqueza expressa-se altissonante através dos fixos residenciais dos grupos sociais favorecidos, ao mesmo tempo em quea degradação material é evidente nos fixos residenciais dos grupos menos favorecidos. O mesmo ocorre nos fixos condutores; por exemplo: as vias públicas, em muitos casos não asfaltadas ou tampouco calçadas.

É também possível analisar as questões sociais e políticas através das dinâmicas que envolvem as alterações de fixos agrícolas, ou de propriedades fundiárias. Os redimensionamentos da terra - fazendas que incorporam outras, ou então as que são fragmentadas, assim como as áreas que são vendidas para atender a outros tipos de produção - também são indicativos de uma história que envolve oscilações económicas ou redefinições territoriais. As lutas dos movimentos sem-terra pelos fixos fundiários, de igual maneira, ou dos movimentos sem-teto pela ocupação de espaços urbanos, constituem o outro lado da história.

A história social também pode ser abordada através dos fluxos. Verificá-los é examinar a disponibilização de serviços, os seus ritmos de utilização. Há fluxos que não são sequer oferecidos para certas parcelas da população, como os fluxos de água encanada, de eletricidade, ou uma adequada rede de esgotos. Há fluxos que são oferecidos pela metade!10. Contudo, há uma luta social pelos fluxos, uma resistência clandestina. Os chamados "gatos" (conexões clandestinas) moldam fixos condutores onde antes não havia: criam fluxos que as instituições negligenciaram. Do mesmo modo, as trilhas criam sulcos não previstos pelo plano viário.

Por último, destaca-se um interessante aspecto, mais filosófico que geográfico, da relação entre fixos e fluxos. Definir algo como fluxo ou fixo, na verdade, é só uma questão de ponto de vista, de escala, de relatividade. Na escala do universo, ou em outro regime de tempo, a montanha que se formou e se transformará lentamente em outra coisa é um fluxo. Do ponto de vista humano, a montanha não pode deixar de ser senão um fixo; mas pode-se apreciar o desabrochar, maturação e morte de uma flor como fluxo. Enquanto isso, para os pequeninos insetos que as polinizam, as flores poderiam ser vistas como fixos. Um ciclo de vida de apenas dois meses obriga a que as abelhas vejam as coisas de uma outra perspectiva que não é a dos homens.

Para os seres humanos, enfim, as estrelas são eternas. Seria possível, não obstante, imaginar um ponto de vista que partisse da formação de uma estrela e percebesse, como fluxo, o processo termo-nuclear que levará cada estrela a se intensificar, expandir-se, contrair-se e a se extinguir. Enxergar algo como fluxo ou fixo é tão relativo como distinguir matéria e energia. É evidente, por outro lado, que a Geografia e as demais ciências humanas trabalham com as escalas do homem.

Referências

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1 É atribuída a Carl Sauer ([1925] 1998) a primeira proposta mais bem delineada de uma divisão das paisagens em duas categorias: as paisagens naturais e as paisagens culturais (por muitos também denominadas "paisagens artificiais"). Milton Santos aceita com reservas esta dicotomia (Santos 2014,71). Deve-se registrar ainda que tanto o aspecto do movimento inscrito nas paisagens como o da presença do subjetivo na sua constituição pelo observador, entre outros assuntos, têm sido bem estudados por autores diversos (ver Lacoste 1987; Roger 1997; Simmel 1996; Tuan 1980, 1983).

2Os estudos de Vidal de La Blache foram os primeiros, na Geografia Moderna, a refletirem sobre a possibilidade de decifrar o tempo acumulado no espaço através dos objetos físicos —naturais ou artificiais— que se espalham no meio e se dão a ler nas paisagens. Uma excelente coletânea de ensaios de Vidal de La Blache foi publicada no Brasil em tempos recentes (Haesbaert, Pereira e Ribeiro 2012).

3A dupla parceria entre Natureza e Humanidade (através da História) na conformação das paisagens é discutida por La Blache já na sessão inicial de "Da Interpretação Geográfica das Paisagens" (1908). Diznos Vidal de La Blache: "Em geral, a água (sob todas as suas formas e com os fenómenos climáticos que engendra), a vida vegetal (com suas associações, suas características hidrófilas ou xerófitas, etc) e as obras do homem combinam-se às feições elementares do relevo para compor a imagem enquadrada pelo horizonte" (La Blache 2012, 127).

4Este movimento crítico, ademais, também empreende uma importante crítica ao quantitativismo e ao neopositivismo em geografia.

5 Em outra obra O espaço do cidadão (Santos 2007, 142)— Milton Santos expõe uma grande variedade de fixos e mostra que eles se referem às diversas esferas da vida: "Os fixos são económicos, sociais, culturais, religiosos, etc. Eles são, entre outros, pontos de serviço, pontos produtivos, casas de negócios, hospitais, casas de saúde, ambulatórios, escolas, estádios, piscinas e outros lugares de lazer".

6Em O espaço dividido Milton Santos ([1979] 2004a) é mais cuidadoso em separar os conceitos de ações e fluxos, embora ressaltando a fluidez das primeiras e sua possibilidade de interação com os segundos. "Os fluxos são resultado direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modificando a sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que também se modificam" (Santos [1979] 2004a, 104).

7Deve-se ressaltar que, que rigorosamente falando, todos os fixos (e não apenas os que denominei "fixos condutores") podem ensejar movimento no espaço-tempo. Por exemplo, no interior de um grande prédio produz-se movimento de pessoas, mercadorias, eletricidade, informações, assim como se ensejam ações. Da mesma forma, os objetos podem ser envolvidos por movimentos ou serem transportados de um lugar para outro. Os "fixos condutores", entretanto, são aqueles cuja forma-função é projetada para certo tipo específico de movimento, como as ruas que se relacionam ao movimento de pessoas e veículos, ou os fios que são projetados para conduzir eletricidade.

8Aqui se busca a conciliaçãodos dois sistemas de classificação espacial desenvolvidos por Milton Santos: o que divide o espaço em fluxos e fixos, e o que o examina a partir de cinco elementos: firmas, instituições, meio ecológico, homens e infra-estrutura.

9Este aprimoramento, que permite categorizar o espaço como combinação de sistemas de objetos e sistemas de ações, é consolidado especialmente na obra A natureza do espaço, escrita por Santos em 1996. Esta nova perspectiva constitui um empenho de confrontar os limites teóricos-espistemológicos das categorias fluxos e fixos, que já não tem nesta obra a mesma centralidade dos textos das décadas de 1970 e 1980. Nesse sentido, o par conceitual "sistemas de objetos / sistemas de ações" se mostrará mais complexo que o par conceitual "fluxos / fixos".

10Milton Santos, em Manual de Geografia Urbana ([1981]), registra alguns dados sobre a cidade de Dacar. Em um bairro pobre, Abadã, "há eletricidade instalada; contudo, a corrente só é fornecida alguns dias da semana" ([1981] 2012, 195).

COMO CITAR ESTE ARTIGO Barros, José D'Assunção. 2020. "Fixos e fluxos: revisitando um par conceitual." Cuadernos de Geografía: Revista Colombiana de Geografia 29 (2): 493-504. https://doi.org/10.15446/rcdg.v29n2.81618

José D Assunção Barros Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (Brasil). Pesquisador nas áreas de teoria da história, urbanismo e história das artes.

Recebido: 11 de Agosto de 2019; Revisado: 12 de Fevereiro de 2020; Aceito: 17 de Março de 2020

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