Introdução
Os sertões ou certoens representam o território brasileiro em sua essência, a especialidade interior de uma identidade territorialmente explorada ao longo da história. A margem atlântica incitou a caminhada ao oeste sem fim há séculos, e lá, encontradas foram as facetas do uno e diversificado do sertão em seus vários sertões, pelos cerrados e veredas, nos engenhos esquecidos em vales não mais frequentados pelos viajantes, matas fechadas, paragens semiáridas e oásis, prados e tablados, o natural em meio ao sociocultural, em reificações contínuas do significado do mesmo significante que é o sertão, matéria-prima incansável ao saber acadêmico, inspiração artística e expressões literárias.
Seja o interior edênico das terras brasileiras (Holanda 2010) a outra parte do território a representar a disparidade tecnológica do país (Lambert 1969), ou o desafio geográfico de compreender territorialmente as fronteiras internas do país, em meio a tantas e distintas paisagens e lugares, o sertão se multiplica e une ao Brasil em suas diferenças (Moraes 2000, 2003). As fronteiras do sertão ultrapassaram a história, e dilataram-se no espaço geográfico brasileiro, formaram paisagens múltiplas, complexificaram os limites regionais do país, para além de divisões políticas, e entre lugares únicos e territórios em disputa, engendraram-se identidades, em mediações entre espaço e poder, conforme propusera Paul Claval (1979).
A compreensão da noção de fronteira para além dos marcos do Estado-Nação importa decisivamente para a discussão que enfrentaremos com a análise das expressões geoliterárias do sertão no Brasil, tendo em vista a necessidade de compreendê-lo como região obscura, indecifrável, desconhecida, múltipla e móvel, em que se pode realizar sua conquista e dominação pela sociedade nacional.
E essa rica fonte de representações sociais no espaço foram captadas de diferentes formas pela prosa e poesia nacional, todas de alguma maneira voltadas à empreitada de exploração das expressões sígnicas dos sertões pela geoliteratura e geopoética pela sua espacialidade ímpar, manifesta em suas paisagens e lugares, ricos em fonte de inspiração artística, e colocado o espaço no centro da referência de várias construções literárias (Blanchot 1987; Collot 2012; Brandão 2013). Essa reflexão sobre o papel protagonista da espacialidade do sertão será o foco do presente trabalho, seja formação territorial brasileira ao longo dos séculos ou como conformação sociocultural das mais diferentes manifestações dos modos de vida sertanejo, presentes na literatura nacional.
As fronteiras dos diferentes sertões brasileiros
O sertão brasileiro é um conceito imanentemente geográfico. Pensar o sertão é ir ao encontro da fronteira do incerto, e desafiar-se em busca do estofo de compreensão para o que se encontra além de definições imediatas sobre ideias como território, região, paisagens, fronteiras e modos de se existir no espaço geográfico1.
Até mesmo a incerteza da grafia da palavra sertão é um indicativo de sua complexidade geográfica, em que o significante da essência terminológica constitui sentido, estabelecendo o tom de movência a respeito do sertão. Sejam os certoens amazônicos, assim escritos na projeção cartográfica de D. Luiz Antonio de Souza, em 1970, para descrever os interiores de São Paulo na "Carta chorografica dos dous certoens de Tibagy e Ivay", ou a inconstância do uso sertão, sertaao, ou certão em textos ibéricos diversos (Barroso 1983; Antonio Filho 2011).
E dentre as definições possíveis para o termo "sertão", Moacir Silva (1950), em seu artigo "A Propósito da Palavra 'Sertão'", dá-nos a conhecer aquela cunhada pelos dicionaristas Aulete e Morais: "mato longe da costa". Sentido semelhante pode ser observado na definição lírica desse termo geográfico apresentada pelo imortal Rui Barbosa, que acrescenta ainda a questão da dimensão e da impenetrabilidade: "O sertão não conhece o mar".
Em breve retomada histórica do sertão brasileiro encontramos de imediato representações líricas, acadêmicas, poéticas, racionalistas, políticas ou pragmáticas para o que se via como as terras a serem conquistadas. De Jaime Cortesão (1957) a Sérgio Buarque de Holanda (2010), diferentes proposições sobre o papel e importância dos interiores do Brasil em sua formação territorial foram idealizadas.
O interior do território brasileiro representava o desconhecido a ser desbravado, civilizado ou aproveitado como recurso para os interesses do Estado e economia. As representações cartográficas, como A América Meridional no mapa-múndi de Pierre Descelliers, em 1546, ou a Accuratissima Brasilia tabula de Joannes Janssonius, produzido no século XVII, são exemplos dessa figuração mística dos interiores do Brasil (Ferreira, Dantas e Simonini 2012). O motivo edênico do sertão, na imaginária projeção colonial e imperial deu lugar a uma busca incessante por uma visão mais pragmática e de uso desse imenso território interior, especialmente a partir de meados do século XX (Carvalho 1998; Araújo 2020).
O mito fundacional edênico, como afirmação, busca ou negação, emerge com notoriedade específica no caso do sertão (Chauí [2000] 2001; Holanda 2010). As terras interiores do Brasil representavam as fronteiras nas quais o Estado encontrava, duplamente, sua força e fraqueza. A força se dava por se tratar de uma grande porção territorial, amplamente compreendida como fonte do poder do Estado, como pensado e defendido pelos geopolíti-cos modernos e contemporâneos. Do ponto de vista da fragilidade estatal, o sertão traz consigo a expressão da inabilidade política diante de uma extensão territorial tão ampla quanto difícil de ser gestada como política territorial do Estado-Nação, em diferentes épocas, por diferentes propostas de intervenção nos interiores do país. Como nos lembra Antonio Carlos Robert Moraes (2003), a presença do sertão está para além do seu escopo territorial, do ponto de vista da mensurabilidade de uma porção do espaço:
Não se trata de um resultado de processos da natureza na modelagem de uma porção da superfície terrestre (como um ecossistema, um bioma, ou um compartimento geomorfológico), e nem do resultado de processos sociais na criação de um espaço produzido pela sociedade (como uma plantação, uma vila ou uma cidade). Assim, o sertão não se habilita como uma figura do universo empírico da geografia tradicional, apesar de -em grande parte- a história dessa disciplina revelar como um dos seus objetivos constantes a prática de seu levantamento e explicação.
Descrever os sertões tem sido uma das metas mais praticadas pelo labor geográfico no Brasil, aparecendo mesmo como um elemento forte de legitimação desse campo disciplinar em diferentes conjunturas históricas do país. (Moraes 2003 95-131)
Assim, pensar e compreender as fronteiras do sertão exige o desafio maior de trazer para o debate nuances simbólicas, históricas, socioculturais, etc. (Sena 1998; Antonio Filho 2011; Rego 2016). Esse grande interior territorial tonar-se-ia motivo de grandes especulações e interesses do Estado brasileiro.
O oeste do além-litoral representava a conformação de um longo e imbricado histórico de sobreposição dos significados do sertão brasileiro, das regiões amazônicas às paisagens do cerrado e da caatinga, sendo que as terras do interior territorial ainda hoje possuem em seu sentido primeiro a fronteira interna a ser descoberta, desvelada e povoada:
[s]e, para um habitante de Lisboa, o Brasil lodo era um grande sertão, para o habitante do Rio de Janeiro, no século XVI, ele começaria logo além dos limites da cidade (por exemplo, na atual Nova Iguaçu), no obscuro, desconhecido espaço dos indígenas, feras e espíritos indomáveis; para o bandeirante paulista do século XVII ou XVIII, o sertão eram os atuais Minas, Mato Grosso e Goiás, interiores perigosos mas dourados, fontes de mortandades e riqueza, locus do desejo; para os governantes lusos dessas mesmas capitanias, entretanto, o sertão era o exílio a que haviam sido temporariamente relegados, em seus tão bons serviços prestados à Coroa [...] Variando segundo a posição espacial e social do enunciante, "sertão" pôde ter significados tão amplos, diversos e aparentemente antagônicos. (Amado 1995, 149).
Ao dizermos, em concordância com Guimarães Rosa que "o sertão está em toda parte", encontraremos reforço geográfico em sua expressão. Seja na caatinga, no cerrado, na mata fechada ou nos tablados geomorfológicos, lá encontraremos o sertão brasileiro. Nas cavalgadas mineiras, nas vaquejadas nordestinas, no feijão tropeiro que se espalha por diferentes estados, ou no próprio sertão amazônico como a heartland sul-americana e o inferno verde a ser vencido pela técnica e racionalidade, em todos haverá modos de vida, tradições e formas de se existir. As relações de poder do sertão carregam também o peso de uma história dialética, complexa e muitas vezes controversa do papel do interior do Brasil em sua formação territorial.
O sertão não estará apenas geograficamente localizado em diferentes partes do território brasileiro, em sua diversidade identitária também se dá de forma histórica, simbólica, literária e política: "Na verdade, o sertão não é um lugar, mas uma condição atribuída a variados e diferenciados lugares" (Moraes 2003, 2). O sertão é o uno e o múltiplo das fronteiras brasileiras, territoriais, históricas e socioculturais: "[t]rata-se de um símbolo imposto -em certos contextos históricos- a determinadas condições locacionais, que acaba por atuar como um qualificativo local básico no processo de sua valoração" (Moraes 2003, 2).
No que se refere às reflexões sobre a região amazônica enquanto "fronteira", os trabalhos da geógrafa Bertha K. Becker se constituem como referência incontornável. Segundo Roberto Bertholo (2009), Becker teria uma relação com a floresta amazônica que poderia ser interpretada dentro da concepção dialógica do judaísmo hassídico de Martin Buber, ou seja, numa relação que envolve a presença de um "Tu" em contraposição a um "Isso", implicando empatia e compromisso. Assim, para ela, a floresta
não é apenas um Isso, algo que cabe nas pré-concepções de um discurso técnico que pretende ser apto a explicá-la, porque supõe já tê-la cativa em esquemas conceituais de intermediação. A floresta para Bertha é lugar de encontro. Não com a pureza virginal de uma natureza intocada. Sim com as fronteiras em transformação. (Bertholo 2009, 14)
O conceito de "fronteira-mundi", cunhado por Becker (2009b, 202), parece-nos essencial para se compreender a complexidade da região amazônica:
termo [...] proposto para designar um espaço de grande valor estratégico para a economia-mundo -desde a sua formação até agora-, o que explica a constante interferência de forças externas na região e a dificuldade de integrá-las aos Estados nacionais até hoje.
Segundo Becker (2009a, 3), por possuir um passado histórico e geográfico diferentes daquele do Brasil após a colonização, "com processos de ocupação mais similares aos do Caribe, marcado por expedições, pirataria, e maior abertura para o exterior", a região amazônica está no cerne das questões identitárias brasileiras, estando o fator geopolítico na base de construção de um imaginário nacional e regional.
Rachel Bouvet e Rita Olivieri-Godet (2018, 7), usando o termo "confins" para se referir ao "sertão", associam marginalidade geográfica e político-social: "quem diz confins diz "margens". Todo o território é dividido, orientado, submetido a forças centrífugas e centrípetas". Nesse sentido, de forma paradoxal, a economia da borracha marginalizou a Amazônia dentro do Brasil, utilizando o pretexto da sua inserção no mercado global. Márcio Souza (1977, 138-139) denuncia uma "defasagem constante" entre o norte e o sul do Brasil em razão do "delírio da monocultura".
No entanto, Bouvet e Olivieri-Godet (2018, 9) realçam que "os confins podem também ser vistos em termos de fronteiras entre culturas". E é, nesse ponto, que a história do "ouro negro" une nordestinos, caboclos, imigrantes, todos partilhando a mesma vivência amazônica, contribuindo à construção de um imaginário alargado de brasilidade, no qual a imagem de outros "certoens" vem se somar àquela do "sertão" amazônico, em que "o mar não conhece o sertão. Não se tocam. Não se vêem. Não se buscam. Mas há em ambos a mesma grandeza, a mesma imponência, a mesma inescrutabilidade", nos termos de Rui Barbosa (citado em Silva 1950, 639-640). No caso especificamente do sertão amazônico, no entanto, faz-se necessário ultrapassar o par dicotômico sertão/mar de forma a se pensar numa relação dialógica complexa. A ideia de extensão e de interioridade territorial não exclui, neste caso, a sua conexão com o mar. Nessa região anfíbia, de terra firme e de várzea, na qual a importância do universo aquático é atestada por um vocabulário próprio -igarapé, igapó, furo, estreito, remanso, rebojo, banzeiro-, o oceano está sempre presente enquanto percurso natural, enquanto projeto de encontro. Não à toa, o navegador espanhol Vicente Yanez Pinzón batizou o atual rio Amazonas de Santa Maria de la Mer Dulce. E Leandro Tocantins (1988) encontrou, na imponência da imagem simbólica do rio, a sua chave de interpretação para o complexo amazônico em O Rio comanda a vida.
É, assim, na imagem da fronteira, sob a forma do encontro, da interpenetrabilidade e da transformação, e não sob aquela do limite como separação e divisão, que devemos compreender o "sertão" amazônico, mais recente referente natural do imaginário canônico do edenismo secular brasileiro e latino-americano. A própria realidade natural, cultural e geopolítica da região amazônica não nos permite uma interpretação simplista associada à fronteira amazônica, enquanto marco territorial brasileiro. Euclides da Cunha (1999) já realçava a impossibilidade de apreender esse território geográfico dentro das barreiras do Estado nacional, chamando-o de "terra sem a pátria", "território em marcha" e referindo-se a uma "imigração telúrica".
Esse território em marcha foi amplamente utilizado por diferentes discursos e práticas governamentais, seja a marcha para o oeste do Estado Novo, sejam as diferentes ações estatais para exploração econômica dos recursos naturais do cerrado e Amazônia na segunda metade do século XX. E, aqui, observamos, novamente, a inserção do sertão como coração-territorial do Brasil geopoliticamente, tendo em vista que o papel econômico possui, conforme salientaram Theodora, Leonardos e Duarte (2002). Desde a época colonial, é no avanço ao interior do país que eram encontradas as formas pelas quais o Brasil figuraria ou encontraria seu posto no jogo geopo-lítico, geoestratégico e geoeconômico global.
Os fatores econômico e político também estão na essência do sertão brasileiro, além do simbólico e natural. Especialmente nos decênios iniciais do século XX, o sertão representava a disparidade econômica do povoamento e formação territorial do Brasil, como a porção territorial que se atravessa, vence e passa, e não necessariamente a que se destina ao projeto econômico e político de primeira ordem das ações estatais (Lambert 1969; Amado 1995; Ab'sáber 1999; Costa e Suzuki 2012, Rego 2016). Essa disparidade pode ser facilmente encontrada nas expressões literárias da primeira metade do século passado, especialmente em autores como Euclides da Cunha, Raquel de Queiroz, Guimarães Rosa e José Américo de Almeida e nos escritos de autores como Coelho Neto e Visconde de Taunay.
Mais que uma definição móvel das fronteiras do território nacional, o sertão representa o símbolo de uma formação e transformação do Brasil, nas perspectivas geográfica, sociológica e histórica. O prado ou a selva, a serra ou a mata parca das veredas, o sertão abarcou os modos de vida em sua diversidade geográfica, representando o símbolo máximo da identidade móvel dos brasileiros a depender de que ponto do sertão se instaura o questionamento do seu significado. Com um forte conteúdo simbólico, o termo sertão representava um território ambíguo e liminar, tributário do deserto ou da floresta na tradição do Ocidente medieval (Bicalho 1999).
A geopoética dos sertões nos cerrados e caatinga
O sertão é mais que uma região ou paisagem específicas, tampouco é de fácil delimitação territorial. Geográfica e historicamente pensar o sertão nos faz estar diante de um entrelaçamento de proposições a respeito das terras do interior do Brasil. De seu papel como fronteira interior do corpo do Estado às diferentes interpretações líricas e acadêmicas do seu sentido, o sertão nos desafia constantemente (Sena 1998; Moraes 2003; Murari 2007). Pensemos, por exemplo, na reificação do edenismo territorial por meio da ideia de um interior impenetrável e tão distante do litoral quanto passível de ser eloquentemente expresso como um paraíso terreal mais próximo da perdição que da dádiva (Ventura 1998; Cunha 1999).
No imaginário secular dos interiores do Brasil, o sertão é mais comumente associado às paisagens biomáticas da caatinga e, com menor frequência, ao cerrado. E, além do direcionamento paisagístico, também é comum encontrarmos na região nordeste a projeção imagética mais comum do ambiente sertanejo. O sertão abarca, dessa maneira, a diversidade do humano e o natural, a cultura e o ambiente, as relações sociais e de poder, a materialidade e imaterialidade da existência nos interiores do Brasil (Ab'sáber 1999; Melo 2006, 2011).
O protagonismo geoliterário e geopolítico dos sertões chama a atenção, no Brasil, pela força de inspiração artística, pela expressão escrita em prosa e poesia. A espacialidade em diferentes autores e obras se eleva à condição de próprio elemento dialógico para representação do que os autores pretendem colocar pelas palavras em seus escritos, muitas vezes mais até que suas personagens, sendo a espacialidade dos sertões elevada à alcunha de epicentro de suas histórias e narrativas (Blanchot 1987; Collot 2012; Brandão 2013; Suzuki, Lima e Chaveiro 2016).
Euclides da Cunha explorou amplamente, em sua obra Os Sertões, de 1902, essa figuração da espacialidade sertaneja como foco de seu relato narrativo do confronto ocorrido em Canudos. Mesmo que ao longo das décadas haja interpretações diversificadas sobre o papel literário, histórico e até mesmo estatal de empreitada euclidiana, por vezes com críticas mais incisivas há, de igual modo, a continuidade de trabalhos que versam sobre a importância da obra. A respeito dos traços marcantes da escrita euclidiana, especialmente nas adjetivações e predicações, há os transertões perscrutados por Augusto de Campos, na esteira do trabalho anterior realizado por Guilherme de Almeida, que evidenciam o grande artista literário em meio às visões do engenheiro e jornalista em sua missão aos interiores da Bahia (Tápia 2010). E uma das maneiras mais claras de analisar a obra de Euclides da Cunha é tentar compreender sua proposta de consócio entre ciência e arte.
Há o elemento contextual expressivo em seus escritos, com a carga do racionalismo, a visão progressista e o otimismo do avanço da civilização nos interiores do país:
[n]o Estilo de Euclides da Cunha, de modo especial d'Os Sertões, é difícil, senão mesmo impossível, apartar o virtuoso do artista, o artesão empenhado na elaboração plástica da sua linguagem, do escritor acionado pelas forças latentes do seu gênio criador, naquilo que há de mais profundo e autêntico na sua personalidade. (Corrêa 1978, 3-4)
A escrita euclidiana se singulariza, dessa forma, pelo extensivo uso recursivo pelo autor de figuras de linguagem, hiperbolismos, um sem número de voltas de predicados em cada parágrafo de sua obra principal.
Um exame dos torneios fraseológicos empregados d'Os Sertões nos mostra estes dois aspectos do seu estilo: a torrente verbal que jorra precipite, com ímpeto avassalador, e o poder do artista no sentido de represá-la, erguendo barreiras, construindo diques, contendo-a no leito das ideias, ou seja, nos exatos limites do seu pensamento. (Corrêa 1978, 7)
Mas, ao mesmo tempo, nas primeiras leituras d'Os Sertões já encontramos o traço do visto e vivido naquela realidade atravessando até mesmo a postura racionalista e cienfítica do autor, e o livro vingador emerge diante da barbérie de Canudos. E é bem provável que essa mesma postura de Euclides da Cunha com o sertão nordestino se repetisse, após suas viagens à Amazônia, considerando as semelhanças entre os dramas socioais e naturais que encontrou em ambas as regiões do país:
[o] narrador-viajante, batedor do processo histórico e civilizatório, segue trilhas e pistas pelo deserto. Fora da história e da geografia, o sertão tornou possíveis atos de violência e barbárie, como o massacre dos conselheiristas, o cárcere dos seringueiros e a destruição das matas e florestas, devastadas pelas queimadas indígenas, pela exploração dos plantadores e pelas caldeiras dos barcos e locomotivas a vapor. (Ventura 1998, 66)
Esse narrador-viajante se provou um escritor persistente em uma busca incessante pelos brasis dentro do Brasil. Seja em suas incursões no vale do rio Madeira ou na expedição para o Alto Purus, verifica-se o compromisso científico jornalístico e literário de Euclides da Cunha. A geopoética euclidiana encontraria um terreno inspiracional tão rico na Amazônia como o foi no sertão nordestino. O segundo livro vingador prometido a Coelho Neto, seria, talvez, o ápice de sua breve carreira literária, uma breve leitura de seu ensaio Judas-Ahsverus, publicado em 1909 em À Margem da História (Cunha 1999). A "fronteira-mundi" amazônica, assim, é uma das mais ricas e emblemáticas construções literárias brasileiras, já que encontramos o natural e o social, o político e o econômico, o imaterial e o material, em uma construção única sobre o modo de vida sertanejo em uma de suas tradições.
A semelhança mais próxima entre os sertões de Rosa e os de Cunha se dá no espectro semiológico da paisagem referente para seus escritos, ou seja, há em Euclides a caatinga, que aparece, por vezes, nas obras de Guimarães. É possível também relacionar às duas obras dos autores por meio do esforço de ambos em buscar formas de expressar os significados do sertão em suas construções literárias. Os estilos se alteram, mas o referente espacial é o mesmo, com o aditivo de encontrarmos, em Rosa, uma expansão da regionalidade sertaneja em múltiplas paisagens, seja a caatinga ou os cerradões e suas veredas.
Do ponto de vista das fronteiras do interior brasileiro, a gama mais rica de representação seria a de Euclides da Cunha, principalmente se considerarmos que haveria um segundo livro vingador sobre os sertões amazônicos. Também, como se observa em alguns dos escritos de Euclides da Cunha, haveria um forte tom geopolítico, ocupando, talvez, parte da carga social presente d'Os Sertões, devido a sua ida até regiões fronteiriças da Amazônia.
O sertão de Guimarães Rosa é o geograficamente mais amplo, compreendendo regiões e paisagens que abrangem diferentes estados brasileiros, de Goiás a Minas Gerais e da Bahia a traços paisagísticos do polígono das secas. Na escrita rosiana, encontramo o sertão-mundo, conforme o discutiu Roncari (2004). Como o próprio Guimarães Rosa deixa transparecer, o seu ponto de partida e chegada na escrita de suas obras sobre os sertões brasileiros eram entregar-se, por completo, ao significado da vida sertaneja, na busca por sua apreensão lírica, como arte geoliterática para além do tempo: "[t]inha de pensar, igualmente, na palavra "arte", e tudo o que ela para mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente" (Rosa 2001, 23).
Em um comentário específico sobre a escrita de Sagarana, Guimarães Rosa persevera no seu ponto de vista a respeito dos sertões do interior brasileiro: "Assim, pois, em 1937 -um dia, outro dia, outro dia [...]- quando chegou a hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito". E completa o autor que: "[n]um barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo" (Rosa 2001, 23-24).
Há em Rosa também um auto-comprometimento em passar para o leitor momentos de emergência do sentido do sertão, mas, diferente do que fazia Euclides da Cunha, em seus cipós fraseológicos, há nas obras de Guimarães Rosa imersões em maneiras regionais e cotidianas do modo de vida sertanejo. É sabido o interesse do autor em realizar longas cavalgadas nas regiões que serviram de inspiração para suas obras, diálogos, blocos de notas, tentativas de colocar em palavras sentidos muitas vezes difíceis de se expressar pelas letras e estruturas idiomáticas convencionais. Sua batalha pela palavra certa, para captar o sentido desejado é visível em suas obras, os neologismos, passagens quase de construção de um outro idioma, apenas para colocar em letras o sentimento ou a percepção desejados em uma frase dos seus contos ou romances (Pereira e Lachat 2016; Barros, Prieto e Marinho 2019).
Guimarães trabalha com as nuances do vivido cotidiano da roça, da casa grande, em sussurros e silêncios dos cerrados e dos capões, muitas vezes nos oferecendo um prisma único dos conflitos e idiossincrasias do sertenejo como o homem dos avessos trabalhado por Candido (2002). O sertão como ficção da paisagem em protagonismo, como personagem à parte, encontrou seu ápice na prosa roseana. O geopoeta expresso pela prosa do vivido nas fronteiras interiores do Brasil pode ser encontrado nos silêncios de Buritis, na epopeia brasiliana de Grande Sertão Veredas ou nos ensaios de exploração, experimentação e aperfeiçoamento de sua escrita nas Primeiras Estórias.
Em outra perspectiva de expressão geopoética e geoliterária dos sertões, há a obra de Graciliano Ramos, em um olhar mais intimista tanto do sertão como do sertanejo. Mesmo sendo anterior às grandes obras de Guimarães Rosa, encontramos em Ramos um aprofundamento no íntimo dos personagens, como poucas vezes se encontrou na literatura brasileira. Há experimentações linguísticas para expressão dos sentimentos mais íntimos, passagens interiores das interações dialógicas, entre os personagens e desses consigo próprios (Carvalho 2009).
Os elementos de introspecção, delírio, pensamentos, entrecruzados por imaginários, desejos e realidade, deformações do expressionismo, são alguns dos pontos tocados nas obras de Graciliano Ramos, e esse é um caminho de gradação de sua obra, de Angústia a São Bernardo, como se existissem estágios por meio dos quais o autor chegaria ao seu livro mais denso, incisivo, e rico em sua crueza que é Vidas Secas.
Um aspecto importante a ser ressaltado, por outro lado, é que, a despeito da paisagem presente e marcante e do espaço externo serem delineados em várias passagens do romance, o que predomina no texto é a narrativa interior, indicada pelo narrador e exposta pela visão dos personagens. O jogo com os sentimentos interiores traz à tona obsessões que tornam a emergir em vários momentos do texto, numa estratégia narrativa que, se permite revisitar um motivo através de pontos de vista diversos, por outro lado reforça uma visão que delineia os contornos essência da obra. E, além disso, "conserva", sob a objetividade da terceira pessoa, o filete da escavação interior. (Magalhães 1992, 165)
Gracilino Ramos representa, dessa maneira, uma das visões mais íntimas e pessoais do sertão de dentro, do que não é possível descrever em palavras. Pela personagem de Fabiano, em Vidas Secas, por exemplo, observamos a ausência da expressão literal, diferentemente dos adjetivos e predicações de Educlides da Cunha, ou das criações e das inventividades de Guimarães Rosa, o sertão ali é expresso pelo desolado que pulsa no sofrimento do existir.
A intimidade sertaneja também é destacada por Queiroz (2019) na obra de Graciliano Ramos, especialmente Vidas Secas, sendo explorada da forma mais profunda possível. Pelos sentimentos de Fabiano, encontramos semelhanças dramáticas com outros grandes personagens da paragem sertaneja, seja o Riobaldo de Guimarães Rosa, Macabéa de Clarice Lispector ou a vida severina de João Cabral de Melo Neto.
Observa-se, em Vidas Secas, também quase uma regressão do papel da palavra na expressão dos sentimentos, especialmente de Fabiano, que se cala em muitos momentos, mas o autor nos deixa transparecer seus sentimentos e dúvidas, questionamenos e revolta, e desilusões. O toque de uma aclamada denúncia ao sentido de ser sertanejo está e é encontrado pelas construções narrativas de Graciliano Ramos.
Representações geopoéticas do sertão amazônico: encontros com a terra e o homem
O poema épico Muhuraida ou O Triunfo da Fé (1785) do português Henrique João Wilkens é considerado como o texto fundador da literatura amazônica. Wilkens, engenheiro militar, atuava como tenente-coronel a serviço da Coroa portuguesa na Comissão da Demarcação dos Limites, nos "sertões" amazônicos, no Estado do Grão-Pará. É necessário realçar que a acepção de "sertão" em voga na época remetia às ideias de "vazio de civilização" e "despovoamento", sendo o termo "sertão" usado quase como sinônimo de "deserto" (Machado 2003, 144). O épico foi, portanto, o gênero que melhor cabia para dar voz à ação civilizadora colonial, narrando o processo de rendição, conversão e reconciliação da nação Mura ao governador e capitão general do Pará, João Pereira Caldas. Nesse "hino genocida", nos termos de Souza (1977), o sertão amazônico é designado como "inculta Brenha", habitado pela nação Mura, descrita como "Lobo astuto", "ave de rapina" face ao "incauto navegante" (Wilkens 2017), numa clara inversão histórica.
Embora algumas produções literárias tenham vindo à lume antes do período áureo gomífero, foi a economia da borracha e as suas consequências ainda hoje sentidas que deram à literatura amazônica a substância temática necessária à realização de uma produção profícua, reconhecida pela sua qualidade estética. Nesse período, destaca-se Alberto Rangel (1871-1946), cujo título da sua primeira coletânea de contos, Inferno Verde (1908), viria a se transformar em epíteto do sertão amazônico.
Igualmente disfórica é a representação de Euclides da Cunha (1999), em À Margem da História, exprimindo "desapontamento" ao ver "o dédalo florido do Tajapuru" e denunciando o "paraíso diabólico dos seringais". Esses "autores absentistas parciais", nos termos de Mário Ypiranga Monteiro (1976, 65), não tiveram vivência nos seringais, apesar de terem estado nas entranhas do coração selvagem. Com formação em engenharia, Euclides da Cunha chefia, em 1905, a Comissão de Reconhecimento do Alto Purus, numa missão oficial do Ministério das Relações Exteriores que decidiria sobre o litígio de fronteira entre o Brasil e o Peru. Nesse mesmo ano, Rangel ocupava o cargo de engenheiro civil do governo do Amazonas como Diretor de Terras e Colonização (1900-1907).
O escritor português Ferreira de Castro (1898-1974), no entanto, viveu quatro anos no seringal Paraíso, às margens do rio Madeira, onde colheu seringa e, mais tarde, tornou-se empregado no armazém interno. Essa experiência de vida iniciática é ficcionalizada no romance A Selva (1930), que se tornou um best-seller mundial, descortinando o universo opressor dos seringais, ao mesmo tempo em que descrevia com lirismo e rigor a paisagem natural da hileia. Para Castro, a luta natural e a luta social são indissociáveis na apreensão da realidade amazônica: "eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática, que é a selva amazónica, pelo muito que nela sofri [...] E devia-o, sobretudo, aos anónimos desbravadores, que viriam a ser meus companheiros, meus irmãos" (Castro 1989, s.p.). Assim, por meio de um processo de "devir-paisagem", nos termos de José Gil (1993, 59), o protagonista Alberto interioriza esse combate silvícola (Marques 2018), conforme aparece em Ferreira de Castro (1989, 34): "à borracha começava Alberto a sentir-se também incorporado, com uma sensação de fábula".
Se Alberto sofre uma metamorfose vegetal simbólica, em Mad Maria (1980), de Márcio Souza (2005), temos a personificação de uma locomotiva: "Mad Maria, a rainha de ferro. A generala de coxas de metal e hálito de vapor" (Souza 2005, 89). A louca Maria sintetiza a insanidade do projeto de construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré (1906-1912). O progresso penetra à força o sertão amazônico, deixando, por meio dessa neo-conquistadora impetuosa, os seus rastros de destruição: "um corpo suado [...] misturando-se por entre formas esverdeadas, vegetais [...] respiração monstruosa, antediluviana" (Souza 2005, 34).
No romance Vila Rica das Queimadas (1976), de Paulo Jacob, à questão ecológica soma-se aquela da proteção da cultura cabocla e dos povos ribeirinhos. Por meio da figura do imigrante sírio, Jamil, e de seu filho, Nagib, ambos regatões a bordo do "Flor da Síria", o romance realça a interculturalidade na hinterlândia amazônica como benesse da aventura gomífera, refletindo, simultaneamente, sobre a negligência do poder político para com as populações locais: "[n]a muita precisão, pai não cobrava. Regatão juntava gente, levava necessitados a caboclo. Como que igual drogaria, taverna, casa de ferragem, mercado, correio" (Jacob 1976, 137 e 98).
Em O Relato de um certo Oriente (1989), essa inter-culturalidade é o foco do romance, com maior ênfase no trabalho mneumônico de resgate das origens e às relações familiares. O marido da personagem Emilie, imigrante libanês não nomeado no romance, também reflete sobre a realidade natural com que se depara ao chegar ao Brasil: "ali, nos confins da Amazônia, três ou quatro países ainda insistem em nomear fronteira em um horizonte infinito de árvores" (Hatoum 1989, 71). O caráter arbitrário da fronteira como linha divisória faz com que o espaço nela contido seja percebido como algo flutuante, remetendo-nos à figura da "ilha", segundo Mireille M. Garcia (2017, 138), ou à "imigração telúrica" de Euclides da Cunha. Nesse sentido, a concepção beckeriana de "fronteira-mundi" parece-nos colaborar para a compreensão dessas movenças fronteiriças, tanto de um ponto de vista geográfico quanto literário.
No sertão amazônico, os pares dicotômicos interior/ litoral e povoamento/despovoamento não dão conta de apreender a sua complexidade enquanto espaço transfronteiriço, híbrido, móvel, constituído e construído por uma interpenetrabilidade natural e humana, inapreen-sível dentro dos limites geopolíticos do Estado-nação e de seu discurso de afirmação identitária. Nesse sentido, o conceito de "fronteira-mundi" de Bertha K. Becker (2009b) oferece-nos uma chave de interpretação possível para pensarmos o sertão amazônico como espaço de entre-dois entre o local e o global, epicentro dos interesses geoeconômicos mundiais e território "à margem da história", encarnando o desafio identitário regional e brasileiro, na correlação do território amazônico em seu papel de heartland sul-americano: "[p]orção mais setentrional, mais larga e interiorizada do território brasileiro, participando amplamente da massa continental sul-americana -o Heartland- é a área mais distante da costa, fato desfavorável num país que se forjou orientado para o mar" (Becker 1974, 6).
Tantos outros exemplos poderiam ser trabalhados, em diferentes visões, representações e expressões do sertão na literatura nacional, fonte contínua de inspiração como referente espacial primeiro de desenvolvimento de contos, romances, versos e também de trabalhos acadêmicos que se debruçaram tanto quanto a literatura, buscando no indivisível e a-fronteiriço sertão um recorte provisório para sua compreensão dessa espacialidade tão cara ao território e identidade brasileira.
Considerações Finais
O sertão se alastra por culturas e paisagens, modos de existir e práticas cotidianas. O encontraremos na caatinga e arvoredos avermelhados das secas mais duras, bem como no verdejar dos vales dos tantos cerradões que cortam de norte a sul o território brasileiro. Essa vida e espacialidade constituem a fronteira primeira e mais atual do território brasileiro: Sertão, cerrado e caatinga, fazendas e vilas. O esteio de inspiração artística pela literatura se encontra nas incontáveis maneiras de olhar, viver, experienciar, colocar em palavras os sertões brasileiros.
Estes também são as representações geopoéticas e geoliterárias desse espaço que nos permitem conhecer imaginários criados e recriados a partir do contato do homem com essa terra, em diversos momentos da história da região: o "Eldorado" dos conquistadores, o "Inferno Verde" das expedições de demarcação territorial ou o "paraíso diabólico do seringal" do auge da extração da borracha na Amazônia. Estudos transversais imbricando as áreas de Geografia e Literatura tornam-se, assim, essenciais para que possamos analisar essas representações não apenas como mera fonte documental, mas enquanto enunciação situada num lugar, tempo e meio social, transmitindo-nos uma visão de mundo específica, passível de ser instrumentalizada politicamente.
A fronteira do sertão na formação territorial brasileira se expressa ao longo das décadas de diferentes maneiras, e move-se ao passo da proficuidade e imensurabilidade do debate envolvendo o que é essa espacialidade da incerteza que nos define, ultrapassando as barreiras do debate político-territorial, trazendo consigo o simbólico e o histórico, o antropológico e o dialético, e tantas outras interpretações quantas forem feitas nossas imersões acadêmicas ou geoliterárias pelos sertões.