Introdução
Este texto constitui-se num ensaio derivado de uma pesquisa1 que tem por objetivo atualizar algumas discussões acerca do que, nos últimos anos, temos denominado "imperativo da inclusão". A produção se ancora nas discussões desenvolvidas por dois grupos de pesquisa localizados no sul do Brasil, quais sejam: Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclusão, GEPi2 e Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e In/Exclusão, GEix.3 Estes grupos, ao longo da última década, têm afirmado que, considerando o contexto brasileiro, a inclusão se constituiu em um imperativo de Estado.
As autoras Lopes, Lockmann e Hattge (2013, p. 42) afirmavam, em artigo publicado em 2013, que "a inclusão, ao ser entendida como estratégia e transformada em imperativo do estado brasileiro, tem produzido mudanças substantivas nas formas e condições de vida da população brasileira". Em artigo posterior, também reafirmo essa ideia quando destaco que:
A inclusão tem se constituído como um imperativo do nosso tempo! Isso significa dizer que a inclusão se constitui como algo inquestionável, como uma verdade que se impõe a cada um de nós, produzindo efeitos em nossas formas de ser e agir no presente. A inclusão torna-se, assim, um princípio regulador que incide em nossas vidas, pautando nossas maneiras de nos conduzirmos e de conduzirmos aos outros. (Lockmann, 2016, p. 19).
Essa produção, estava ancorada em pelos menos dois pressupostos: o primeiro, referia-se à compreensão das práticas de inclusão -e também de exclusão- como práticas de governamento. Ao longo da história do Ocidente, inclusão e exclusão foram estratégias encontradas para agir sobre os sujeitos, conduzindo suas condutas e gerenciando os riscos que tais sujeitos poderiam produzir para a vida social e coletiva.4 Tal compreensão entende a inclusão como estratégia de governamento que age sobre a conduta dos sujeitos gerando determinados modos de ser e de agir socialmente. Daqui deriva-se um primeiro pressuposto que sustenta as análises das pesquisas desenvolvidas: a inclusão é uma estratégia de governamento.
O segundo pressuposto deriva dos estudos refere-se à dimensão múltipla da inclusão. Isso significa compreender historicamente que ela vem assumindo diferentes ênfases e funcionando a partir de um modus operandi que difere segundo os grupos sociais e os momentos históricos. Assim, na atualidade, podemos argumentar que ela opera de um modo específico e como expressão da racionalidade própria das formas de vida atuais. Assim, o segundo pressuposto pode-se formular da seguinte forma: a inclusão não é um conceito unívoco, mas polissêmico, pois apresenta aplicabilidades muito heterogêneas e articula-se às formações políticas que se organizam ao redor de uma racionalidade5 que orienta as condutas dos indivíduos e suas relações sociais e políticas.
Esses dois pressupostos, apresentados naquele texto publicado em 2016, ainda me parecem válidos para pensar a inclusão na atualidade. Porém, naquele mesmo texto, eu dizia ainda que, na Contempora-neidade, é possível visualizar o aparecimento de estratégias de governamento que não operavam tanto por meio da exclusão dos sujeitos, ou por meio da sua reclusão em instituições de confinamento, mas pela sua inclusão e circulação em diferentes instâncias do tecido social. Assim, sustentava o entendimento de que a inclusão se constituía em um imperativo contemporâneo, mas não somente isso. Para além disso, afirmava que o imperativo contemporâneo não era simplesmente a inclusão, mas o que chamei de "inclusão por circulação". Ou seja, uma estratégia de governamento onde a inclusão e a circulação das pessoas haviam se constituído como regra máxima que mobilizava o jogo econômico e social de um Estado neoliberal.
Tal argumento encontrava sustentação nas discussões desenvolvidas por Foucault, no Curso Nascimento da Biopolítica, ministrado, em 1979. Neste curso, o autor francês destacava que a regra máxima do neoliberalismo era a regra da não exclusão. Nas palavras de Foucault (2008, pp. 277-278):
[...] a sociedade inteira deve ser permeada por esse jogo econômico e o Estado tem por função essencial definir as regras econômicas do jogo e garantir que sejam efetivamente bem aplicadas. [...] cabe à regra do jogo imposta pelo Estado fazer que ninguém seja excluído desse jogo" [grifos meus].
Assegurar a participação de todos. Garantir o acesso de todos. Não permitir que ninguém e nenhum grupo seja excluído. Esses princípios tornaram-se os mobilizadores de uma racionalidade neoliberal que fazia da inclusão a estratégia fundamental para conduzir a vida dos sujeitos. Isso significa dizer que a inclusão não opera apenas na ordem do acolhimento e da benevolência ao outro, assim como também não se constitui somente como resultado de lutas e movimentos em prol da garantia de direitos sociais, educacionais, de saúde, de assistência e de empregabilidade dos diferentes sujeitos. Além disso, ou junto a isso, tais políticas de inclusão pretendem governar todas os grupos da população e no caso da sociedade brasileira, incluí-las nas redes de consumo, garantindo espaços de participação no mercado, para que possam contribuir minimamente para o funcionamento do jogo econômico. Assim, afastando-se da atmosfera benevolente que ronda o campo da inclusão, pode-se compreender que estar incluído era condição sine qua non para tornar-se alvo das estratégias de condução da população.
Por essa vertente, entende-se que garantir o direito à inclusão de todos os sujeitos, seja na escola, no mercado de trabalho, no mundo do esporte, da moda e do consumo, é garantir a possibilidade de que todos se tornem alvo do governo. A constituição do sujeito de direito é justamente o que permite ao Estado torná-lo governável. "O cidadão do Estado democrático é o cidadão governável. Somos constituídos como cidadãos para que possamos ser governados" (Gallo, 2017b, p. 1506). Nessa lógica, estar fora da escola, da assistência social ou do mercado de trabalho torna-se perigoso, pois mantém os sujeitos fora do alcance das ações do Estado. Estar incluído, portanto, é estar numa condição passível de ação governamental. "Somos constituídos cidadãos para termos acessos a tais políticas e benefícios sociais; sermos governados pelo Estado é o preço que pagamos" (Gallo, 2017a, p. 1506).
A construção de tais entendimentos somente foi possível, a partir da análise de um período histórico ancorado numa razão política, que Silvio Gallo (2017a), denominou de governamentalidade democrática. Ou seja, travava-se, segundo ele, de um período histórico "centrado na afirmação e na promoção da cidadania, evidenciando uma gover-namentalidade democrática como maquinaria posta em curso no Brasil desde meados dos anos 80, azeitada pela constituição de cidadãos" (Gallo, 2017a, p. 89). O autor afirma ainda que "Na chave de leitura que estamos utilizando, pode-se dizer: é preciso constituir a todos como cidadãos para que possam ser governados. Fora da cidadania não há governo democrático possível; por essa razão, as pedras de toque são duas: cidadania e inclusão. Todos devem ser cidadãos, todos precisam estar incluídos" (Gallo, 2017b, p. 1508). A partir da noção de governamen-talidade, proveniente dos estudos foucaultianos, Gallo (2017a, 2017b) demonstra como, num dado momento histórico, temos uma racionalidade, ou seja, uma forma de ser do pensamento político, econômico e social que toma a noção de democracia e, portanto, a noção de sujeito de direito, como o fundamento da ação governamental.
Tal análise sempre foi desenvolvida considerando uma postura analítica e não valorativa, no sentido de colocar-se contra ou a favor de tais práticas; ou ainda de compreender esta ou aquela racionalidade como positivas ou negativas, melhores ou piores. Compreendíamos que há produtividade nessas ações de inclusão, mas também há perversidades. Se por um lado partia-se do pressuposto de que todos deveriam estar incluídos, por outro lado, nunca, dentro de uma racionalidade neoliberal, a igualdade foi uma meta. Estar incluído nesses jogos significa ocupar espaços de participação muito distintos, mantendo e reforçando as desigualdades.
Foucault (2008, p. 163), afirmava que o neoliberalismo se constitui num "jogo formal entre desigualdades". Segundo ele, essa racionalidade só pode atuar mediante oscilações, diferenciações e não a partir da igualdade ou da equivalência. O filósofo assinalava que é preciso haver pessoas que trabalhem e outras que não trabalhem, que os salários sejam altos e baixos, que os preços subam e caiam, para que, assim, a regulação atue. São as desigualdades que permitem que a concorrência seja produzida e ela é o motor central da racionalidade neoliberal. Segundo Gadelha (2009, p. 9), "a desigualdade que implica todo um jogo de diferenciações, está na base da concorrência econômica, isto é, ela é própria desse mecanismo normalizador da vida social".
Foi compreendendo que a inclusão, nesse jogo formal de desigualdades do neoliberalismo, não garante condições de igualdade entre os sujeitos, que os grupos de pesquisa, anteriormente mencionados, trabalham com a noção de in/exclusão, utilizando uma palavra para definir duas faces de um mesmo movimento. Ou seja, nas análises desenvolvidas, não dissociamos esses dois termos -inclusão e exclusão-, pois compreendemos que vivemos num tempo onde a inclusão se sustenta como um imperativo contemporâneo inquestionável e que, por isso, é por dentro dela que os processos de exclusão são produzidos. Há, nessa visão, cada vez menos a possibilidade de viver uma condição de exclusão completa ou permanente, uma vez que o Estado efetivado pela racionalidade neoliberal, precisa governar a todos e, por isso, cria uma variedade de políticas e programas que se direcionam para os mais variados grupos. Por outro lado, todas essas políticas não garantem o inverso da exclusão, ou seja, não garantem uma inclusão permanente desses sujeitos, como se tivéssemos cruzado a linha de chegada do verdadeiro projeto inclusivo. Assim,
[...] torna-se difícil utilizar, em nossas análises, a caracterização de incluído e de excluído de forma separada, pois qualquer sujeito, dentro do seu nível de participação poderá, a todo momento, estar incluído ou ser excluído de determinadas práticas, ações, espaços e políticas. (Lopes, Lockmann, Hat-tge e Klaus, 2010, pp. 5-6).
A in/exclusão define os diferentes níveis de participação e gradientes de inclusão que materializam a condição nômade e movediça que constitui a todos os sujeitos, nesses tempos incertos. Entretanto, é justamente por vivenciarmos esses tempos incertos, que é necessário pensar sobre as novas facetas que esse imperativo da inclusão e esse movimento da in/ exclusão podem estar assumindo hoje, e especialmente, ler as formas particulares que ele tomou no contexto brasileiro.
Diante desse quadro teórico, talvez possamos dizer que desde meados dos anos 80 até pelo menos 2016, tínhamos em funcionamento no Brasil, uma governamentalidade neoliberal democrática que se ancorou na inclusão como imperativo de Estado, garantindo direitos aos cidadãos, mas ao mesmo tempo produzindo desigualdades e, portanto, posicionando os sujeitos em processos de in/exclusão.
Contudo, atualmente, ao que parece, não é mais possível sustentar o funcionamento de uma governamentalidade neoliberal democrática, que parta da noção de cidadania e da garantia da inclusão como direito de todos os sujeitos. Nas inúmeras publicações de nossos grupos de pesquisa sustentamos a ideia da inclusão como imperativo do Estado brasileiro, contudo parece-me que hoje estamos diante uma transformação que questiona a operação dessa regra máxima do neoliberalismo, no atual contexto brasileiro. Com todas as críticas que nesses trabalhos fazíamos a essa regra como um princípio econômico de manutenção da atividade do sujeito nesses jogos, ainda assim ela nos parecia importante quando, por dentro dessa racionalidade, conseguíamos atribuir outros significados a experiência ao viver juntos e ao compartilhar formas de vida em comum. Mas as transformações discursivas nas políticas públicas atuais, assinalam uma mudança em curso nesse princípio, e evidenciam que tal regra não mais se mantém em plena atividade.
Não se trata de dizer, com isso, que a inclusão simplesmente desapareça do contexto atual brasileiro, mas de afirmar que ela sofre um amplo processo de transformação ou metamorfose, para usar a expressão de Ulrich Beck (2018). Se por um lado, princípios neoliberais continuam extremamente presentes em nossos dias, como por exemplo, a produção de sujeitos empresários de si, como um tipo de subjetividade alinhada ao neoliberalismo; outros princípios parecem perder a sua centralidade diante desse novo contexto que articula neoliberalismo e neoconservadorismo. Se o neoliberalismo tinha como regra máxima a inclusão, ou seja, a regra da não exclusão, a estratégia movimentada pela aliança neoliberalismo-neoconservadorismo parece não governar para todos.
Vastas parcelas da população brasileira parecem não se constituírem em foco privilegiado das ações e políticas de governo. A governamentalidade neoliberal conservadora, como podemos nomear essa nova face do neoliberalismo brasileiro, mantém como princípio a inclusão de certos grupos da população, mas não de todos. A intolerância religiosa, a imposição de um modelo de família, a exclusão das discussões de gênero e sexualidade e até mesmo, projetos de lei como educação domiciliar demonstram essa nova face da exclusão, que reaparece e se reconfigura no cenário contemporâneo, como uma estratégia de governamento direcionada a determinados grupos. Diante disso, vale questionar: Será que a inclusão ainda se constitui em um imperativo de Estado? Ela se mantém como a regra máxima que sustenta essa racionalidade política, ainda neoliberal, mas agora de face conservadora?
É verdade que nunca sustentamos em nossas pesquisas que a inclusão tenha se constituindo em um imperativo categórico tal como abordara Kant (1980) em "Fundamentação da metafísica dos costumes". Para o filósofo, o imperativo categórico constitui-se numa lei prática de caráter universal: uma obrigação incondicional. É um mandamento absoluto que representava uma ação necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. Nunca afirmamos que esse era o caso da inclusão. No lugar disso, pensamos a inclusão como imperativo histórico, que como tal, pode assumir facetas distintas em cada época, fortalecer-se ou esmaecer-se, dependendo da racionalidade, das estratégias e das táticas organizadas e privilegiadas em cada período e grupo social.
Então, podemos pensar que: Se por um lado, a governamentalidade neoliberal democrática converteu a inclusão na regra máxima de condução das condutas, pois todos precisavam estar incluídos para tornarem-se cidadãos e, portanto, alvo das ações de governamento, por outro lado, a governamentalidade neoliberal conservadora não faz desaparecer a inclusão, mas junto com ela, aciona também a exclusão como fundamento de algumas das práticas de governo, que amparam-se, ainda, no preceito do direito.
Essa exclusão não se refere as formas de fazer morrer empreendidas na Idade Média e estudadas por Foucault, em especial no Curso Em Defesa da Sociedade. É preciso pensar, contemporaneamente, como essas práticas de exclusão são desenvolvidas no interior de uma racionalidade que tem como premissa "fazer viver". É por dentro desse biopoder, ou seja, de um poder que tem como objeto e objetivo a vida da população, que tais práticas são produzidas. Talvez esteja, justamente aqui, a necessidade de atualizarmos as discussões acerca do biopoder e, por consequência, das suas formas de exercer o Racismo de Estado. É importante lembrar que para Foucault (1999, p. 306) o Racismo era "a condição da aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização". E ele é ainda mais preciso:
[...] por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc. (Foucault, 1999, p. 306).
Dessa perspectiva teórica, pode entender-se a existência de uma sorte de racismo de estado contemporâneo, aqui materializado pelas práticas de exclusão, que não simplesmente faz morrer ou produz a morte diretamente, mas expõe, constantemente, determinadas parcelas da população à morte: retira direitos, minimiza benefícios, corta investimentos educacionais e sociais, não garante condições mínimas de participação, deixa o sujeito a sua própria sorte, dependendo exclusivamente do seu autoem-presariamento e vivendo as mazelas da precarização, cada vez mais acentuada, da sua própria existência. Assim, a exclusão volta a se apresentar como estratégia de governo diante de alguns grupos que devem desaparecer socialmente, ou pelo menos, terem suas participações limitadas e ajustadas ao modelo instituído de vida e de ordem. Negar suas formas de ser e de viver, subjugar sua existência e produzir seu desaparecimento social, são práticas contemporâneas de exclusão que colocam em xeque a manutenção do imperativo de inclusão como forma privilegiada do governamento atual.
Ao questionar-se a permanência da inclusão como imperativo de Estado, não se afirma uma inversão, ou seja, a transformação da exclusão num novo imperativo contemporâneo. Trata-se apenas de reconhecer uma transformação em curso, uma espécie reconfi-guração do imperativo da inclusão no contexto de uma governamentalidade neoliberal cuja ênfase não é mais a sua face democrática (ainda que a ideia de direitos se mantenha presente e forte), mas seu viés conservador.
Então, nessa governamentalidade, não se trata do desaparecimento da noção de direito, mas talvez da sua privatização, centrando no sujeito a responsabilidade pelas suas condições de vida. Isso se torna evidente a partir das discussões desenvolvidas por Dardot e Laval (2016) em seu livro A Nova Razão do Mundo. Para os autores franceses, a partir do neoliberalismo, os direitos universais à vida, isto é, à saúde, à educação, à integração social e à participação política, são transformados no resultado de um cálculo que provém de escolhas individuais erradas. Ou seja, tornam-se responsabilidade do sujeito. Os autores destacam que "o obeso, o delinquente ou o mau aluno são responsáveis por sua sorte. A doença, o desemprego, a pobreza, o fracasso escolar e a exclusão são vistas como consequência de cálculos errados" (Dardot e Laval, 2016, p. 230): trata-se da "privatização da conduta". Nessa lógica, "a cidadania não é mais entendida como a participação ativa na definição de um bem comum próprio de uma comunidade política, mas como uma mobilização permanente dos sujeitos" (Dardot e Laval, 2016, p. 239), os quais passam a serem responsabilizados pela precarização de sua existência.
Assim, a exclusão de determinados grupos da população passa a ser uma das estratégias mobilizadas nessa governamentalidade neoliberal conservadora, não para fazer morrer alguns sujeitos, mas tampouco para faze-los viver. Não se trata de produzir a morte, tampouco de cuidar da vida. Ao maximizar a responsabilidade individual de cada um consigo mesmo, essa forma de governamento, simplesmente, deixa-os viver, fazendo-os assumir, por eles mesmos, os riscos da sua existência, que nada mais são do que resultado de escolhas individuais. Ao fim e ao cabo, as práticas de exclusão, que vemos aparecer nesse contexto contemporâneo, nada mais são do que a materialização da extrema individualização dos sujeitos.
Práticas muito concretas podem nos mostrar a extensão dessa governamentalidade que, como disse Foucault (2008), não se trata apenas de uma doutrina econômica, mas estende-se aos mais distintos âmbitos da vida. Um exemplo para pensar uma forma de materialização dessas práticas de exclusão é a proposta de lei, ainda não aprovada, sobre a Educação Domiciliar.6 Tal projeto de lei pauta-se no discurso de que as famílias terão o direito de oferecer educação domiciliar para as crianças, mediante a construção de um plano individual proposto pelos pais ou responsáveis. Em entrevista à Radio Gaúcha a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves diz que:
Os pais das crianças com deficiência, pais de crianças com autismo, esse é um grupo muito grande que tem conversado com esse Ministério, eles gostariam de educar os filhos em casa. Muitos deles entendem que os filhos não estão se adaptando na escola, tem criança com autismo que sofre mais indo para escola do que ficando em casa, então (a proposta) também vem para atender essa parcela significativa da população. (Gaúcha, 2019).
Tal discurso levanta uma série de problematizações: a perda do caráter comum e público da educação escolar, ao privar as crianças da frequência à escola e do que somente ali pode acontecer; a primazia dos processos de individualização, ao atender exclusivamente interesses privados das famílias e individualizar fenômenos coletivos; e a desautorização do saber docente e a sua desprofissionalização, ao permitir que pais e responsáveis possam construir um plano pedagógico individual. Porém, diante de tudo isso há algo peculiar que precisa ser considerado; trata-se da face excludente dessa proposta, ao permitir que alguns sujeitos não participem dos processos de escolarização.
Como dito anteriormente, não se trata, simplesmente, do desaparecimento da noção de direito, mas de sua transformação: a educação escolar, antes direito universal, agora transmuta-se no resultado da escolha individual dos pais ou responsáveis. Com isso, dois movimentos são perceptíveis: o primeiro é a transformação da exclusão num direito -o direito das famílias de optarem ou não pela educação domiciliar-; o segundo é transformar o próprio direito no resultado de uma escolha individual e, como tal, essa escolha responsabiliza os sujeitos por seu sucesso ou fracasso. Talvez aí resida o maior perigo das práticas de exclusão contemporâneas. Elas não negam o direito, mas transformam a exclusão num direito e o direito numa escolha individual.
Com isso, tal proposta constitui-se num processo de exclusão de tais sujeitos ao processo de escolarização, antes considerado um direito universal. Ou seja, corremos o risco de perder o caráter público da educação escolar. E por público não me refiro a forma como a escola é dirigida ou financiada. Com autores como Masschelein e Simons (2013) aprendemos que no âmago do conceito "escola" encontra-se à democratização do tempo livre caraterístico do pensamento grego. Para eles "a escola fornecia tempo livre, isto é, tempo não produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na sociedade (sua posição) não tinham direito legítimo de reivindicá-lo" (Mass-chelein e Simons, 2013, p. 26). Ou seja, tratava-se da democratização de um tempo e um espaço para o estudo e a prática oferecido às pessoas que não tinham nenhum direito a ele de acordo com a ordem arcaica vigente na época grega. Parece que essa ordem volta como sombra nessa governamentali-dade neoliberal conservadora, ao constituir um novo direito: o direito à exclusão, o direito a não mais compartilhar um tempo e espaço comum, o direito de viver, da forma mais maximizada possível, a sua individualização.
Como resistir a essa forma de governamentalidade neoliberal conservadora que produz formas de vida pautadas por práticas de exclusão, individualização e responsabilização dos sujeitos? De acordo com Dar-dot e Laval (2017), uma alternativa diante dessa nova razão-mundo pode residir no que os autores denominam princípio político do comum. A compreensão desse conceito sustenta-se em quatro aspectos fundamentais: o primeiro, diz respeito a compreender o "comum" como princípio. Para os autores, princípio é um começo, é o que vem primeiro e fundamenta todo o resto. Não pode ser apagado ou substituído com o que vem depois.
É um verdadeiro começo, um "começo sempre a começar", isto é, um começo que rege e domina tudo o que vem depois. O grego arché tem o sentido duplo de começo e comando: arché é a fonte da qual deriva todo o resto. O comum é um princípio político no sentido de ordenar, comandar e reger toda a atividade política. (Dardot e Laval, 2017, p. 10).
Além disso, comum não é apenas um princípio, mas um princípio político, que tem relação com fazer algo junto, compartilhado. Esse seria o segundo aspecto destacado pelos autores: o comum como princípio político. Para os autores a política é "a atividade de deliberação pela qual os homens se esforçam para determinar juntos o que é justo, bem como a decisão e a ação decorrentes dessa atividade coletiva" (Dardot e Laval, 2017, p. 10).
O terceiro aspecto enfatiza no caráter do múnus que compõe o conceito do comum. O múnus refere-se, ao mesmo tempo, a obrigação e a atividade, ou seja, compreende que a participação numa mesma atividade é uma obrigação política. Esse terceiro aspecto parece mostrar a importância da escola, como algo que não pode ser substituído por um processo individualizante que atenderá a interesses privados. Os autores salientam que nenhum tipo de
[...] pertencimento -etnia, nação, humanidade etc.- pode ser em si o fundamento da obrigação política. Disso resulta também que essa obrigação não tem nenhum caráter sagrado ou religioso, o que implica que qualquer fonte transcendente, qualquer autoridade exterior à atividade deve ser rejeitada. (Dardot e Laval, 2017, p. 10. Grifos do autor).
Um último aspecto se refere a "inapropriabili-dade" do comum, ou seja, a forma como o comum não pode ser apropriada por alguém, como uma coisa ou um objeto. Segundo Dardot e Laval (2017, p. 13) "inapropriável não é aquilo do qual ninguém pode se apropriar, isto é, aquilo cuja apropriação é impossível, mas aquilo do qual ninguém deve se apropriar, isto é, aquilo cuja apropriação não é permitida porque deve ser reservado ao uso comum".
Ao utilizar o conceito de comum para pensar a educação parece ser possível sustentar o argumento de que a escola é esse espaço inapropriável! A escola é um espaço público e comum, que não deve ser apropriado. Então a escola mesma é inapropriá-vel, os processos que ali acontecem não podem ser reproduzidos em outros lugares, como em casa ou pela instituição familiar, simplesmente porque eles se dão num espaço aberto de criação e invenção, o qual só pode ser produzido quando diferentes vozes, diferentes sujeitos, diferentes gerações, diferentes etnias, diferentes crenças e formas de vida, se encontram. Nesse encontro, compreende-se que a participação na atividade coletiva é uma obrigação política e como tal é capaz de produzir a escola, senão como único, mas talvez o mais potente espaço-tempo capaz de sustentar o comum como princípio político. Segundo Dardot e Laval (2016, p. 9) "o princípio político do comum remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais". Assim, talvez seja justamente por meio desse princípio político que possamos encontrar forças capazes de resistir às imposições excludentes dessa racionalidade de governo neoliberal, que na sua face conservadora tem enfatizado formas de vida individualizadas, onde projetos comuns são cada vez mais difíceis e menos possíveis.
O princípio político do comum não é, nem pode se constituir num megaprojeto que vá substituir a racionalidade neoliberal, porém ele pode movimentar e produzir um conjunto de práticas que possibilitem outras formas de existência. Formas essas que rechacem a individualização, o preconceito, a indiferença e a exclusão. Que se coloquem como resistência ou que criem formas outras de re-existência. "Resistir é re-existir, existir de novo, afirmar as potências da vida. Re-existir é recusar as subjetivações impostas e criar novas formas de subjetividade" (Gallo, 2017a, p. 91). No contexto de discussão que este texto mobilizou, resistir é existir de um modo distinto daquele preconizado por essa governamentalidade neoliberal conservadora. Trata-se de criar formas outras de existência que tomem o princípio político do comum, como um modo de vida, que nos convoque a viver junto com o outro, colocando o agir comum como mobilizador das nossas formas de ser, estar, viver e existir no e com o mundo.