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Avances en Enfermería
Print version ISSN 0121-4500
av.enferm. vol.33 no.2 Bogotá May/Aug. 2015
https://doi.org/10.15446/av.enferm.v33n2.50418
http://dx.doi.org/10.15446/av.enferm.v33n2.50418
Vínculo profissional-usuário: competência para a atuação na Estratégia Saúde da Família
Relación profesional-usuario: competencia para actuar en la Estrategia Salud de la Familia
Bonding professional-user: competence to act in the Family Health Strategy Team
Dirce Stein Backes1, Adriana Dallasta Pereira2, Mara Teixeira Marchiori3, Irani Rupolo4, Marli Terezinha Stein Backes5, Andreas Büscher6
1 Doutora em Enfermagem. Docente, Centro Universitário Franciscano. Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: backesdirce@unifra.br.
2 Doutora em Enfermagem. Docente, Centro Universitário Franciscano. Rio Grande do Sul, Brasil.
3 Doutora em Enfermagem. Docente, Centro Universitário Franciscano. Rio Grande do Sul, Brasil.
3 Doutora em Pedagogia. Reitora, Centro Universitário Franciscano. Rio Grande do Sul, Brasil.
4 Doutora em Enfermagem. Docente, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, Brasil.
5 Doutor em Enfermagem. Docente, University of Applied Science. Osnabrück, Alemanha.
Recibido: 03/05/2012 Aceptado: 15/06/2015
Resumo
Objetivo: Desenvolver competências teórico-práticas na enfermagem, para fomentar o vínculo profissional-usuário.
Metodologia: Trata-se de um estudoqualitativo,com características de pesquisa-ação, desenvolvidocom acadêmicos e professores do Curso de Enfermagem de uma instituição de ensino superior, por meio do projeto Adotando uma Família, o qual foi sistematizado com atividades teórico-práticas junto à comunidade e fundamentadas em uma das Teorias de Enfermagem.
Resultados: Os resultados do processo evidenciam, em suma, que apesar da vulnerabilidade extrema de muitas famílias adotadas, é possível promover o diálogo, estabelecer o vínculo profissional-usuário e instigar saberes que tornem o indivíduo/família protagonista da sua história.
Conclusões: O modelo teórico-prático desenvolvido se constitui em uma importante tecnologia de cuidado de enfermagem, capaz de criar o vínculo enfermeiro-usuário e promover o exercício de cidadania e o protagonismo social pela valorização e potencialização dos diferentes saberes.
Descritores: Enfermagem; Relações Enfermeiro-Paciente; Estratégia Saúde da Família (fonte: DeCS BIREME).
Resumen
Objetivo: Desarrollar las habilidades teóricas y prácticas en enfermería para fomentar la relación profesional-usuario.
Metodología: Se trata de un estudio cualitativo, con funciones de investigación-acción, desarrollado con académicos y profesores de los cursos de enfermería de una institución de educación superior, a través del proyecto Tomandouna familia, que se sistematizó con actividades teóricas y prácticas en la comunidad y a partir de una de las teorías de enfermería.
Resultados: Los resultados del caso mostraron que a pesar de la extrema vulnerabilidad de muchas familias adoptadas se puede promover el diálogo, establecer el vínculo profesional-usuario e inculcar conocimientos que promuevan la familia como protagonista de su modelo teórico y práctico de la historia.
Conclusiones: El modelo desarrollado constituyó una importante tecnología para el cuidado de enfermería, con la capacidad de crear la relación enfermero-usuario y de promover el ejercicio de la ciudadanía y el liderazgo social mediante la recuperación y potenciación del conocimiento diferente.
Descriptores: Enfermería; Relaciones Enfermero-Paciente; Estrategia de Salud Familiar (fuente: DeCS BIREME).
Abstract
Objective: To construct and implement, through an academic nursing experience, a theoretical-practical nursing care method, capable of contributing to the nurse-patient bonding formation.
Methodology: It is a qualitative study with characteristics of action-research, developed by students and teachers of the nursing course of a higher education institution, through the project Adopting a Family, which was systemized with theoretical-practical activities together with the community and based on one of the Nursing Theories.
Results: It is shown that, in spite of the extreme vulnerability of several adoptive families, it is possible to promote dialogue, to establish the bonding professional-user; and impart knowledge that encourages family as protagonist of their own history.
Conclusions: The theoretical-practical model developed constitutes an important technology of nursing care, capable both of creating the nurse-patient bond and of promoting the exercise of citizenship and social protagonism through valorization and potentializing of the different knowledges.
Descriptors: Nursing; Nurse-Patient Relations; Family Health Strategy (source: DeCS BIREME).
Introdução
Estudos relacionados à compreensão e desenvolvimento de habilidades e competências que ampliam o acolhimento e o vínculo enfermeiro-usuário (1-3), são cada vez mais buscados e valorizados para impulsionar o redimensionamento da assistência em saúde por um modelo de cuidado ampliado, integral, resolutivo e multiprofissional.
A partir de uma busca prévia, evidenciou-se que o vínculo está fortemente associado ao significado de acolher ou acolhimento. O termo acolhimento está relacionado ao ato ou efeito de acolher, ou seja, a recepção, a atenção e a hospitalidade (4). A partir dessa compreensão, defende-se o acolhimento como alternativa à recepção tradicional nos serviços de saúde, destinado a qualificar a relação trabalhador-usuário, por meio de parâmetros humanitários de solidariedade e de cidadania (5).
Observa-se que os significados atribuídos ao acolhimento não se associam diretamente às questões de cuidado em enfermagem, no entanto, é possível identificar algumas co-relações, tais como: atenção, consideração, dar crédito, dar ouvidos, admitir, aceitar, tomar em consideração, oferecer refúgio, proteção ou conforto físico. Assim, a construção de relações dialógicas pressupõe a possibilidade de construção de vínculo entre profissionais, usuários, famílias e comunidade, na perspectiva da valorização das subjetividades e no intuito de impulsionar um cuidado humanizado, com produção de autonomia do usuário (6).
No cenário Brasileiro, o vínculo e o acolhimento se constituem em importantes estratégias de cuidado de enfermagem para a reorganização dos serviços de saúde, no sentido de garantir o acesso universal, a resolubilidade e o atendimento humanizado. O vínculo e o acolhimento surgiram, mais especificamente, com a institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS) e o Programa Saúde da Família, mais tarde denominado Estratégia Saúde da Família (ESF) (7-9). Como estratégia adotada em âmbito nacional, a partir da década de 90 do século XX, a esf tem como propósito a reorganização do modelo de atenção à saúde, com foco na atenção básica e no acompanhamento contínuo voltado às famílias em maior vulnerabilidade social (10,11).
Sendo uma estratégia de fomento à participação comunitária, a esf busca, em linhas gerais, a reorientação do modelo tecno-assistencial. Caracteriza-se pelo deslocamento do eixo de ação do indivíduo e sua doença para o cuidado integral de pessoas inseridas em seu contexto familiar e comunitário, tendo como suporte teórico e prático a integralidade da atenção, bem como a promoção e a vigilância em saúde (12-14).
A enfermagem tem em sua essência o compromisso com a integralidade e/ou o cuidado integral, o qual se concretiza pelo acolhimento, o vínculo e o diálogo e se sustenta em referenciais que apreendem o ser humano em seu contexto real e global. Nessa relação, tanto o enfermeiro quanto o usuário de saúde devem ser produtores e construtores do viver saudável, isto é, do bem-estar social. Esse envolvimento e co-responsabilização, no entanto, somente será possível mediante um processo dialógico, aberto e sensível aos diferentes saberes, no qual cada um contribui com seu conhecimento peculiar e juntos, profissionais e usuários, possibilitam uma interação efetiva e terapêutica (15-17).
Sob esse novo enfoque, o vínculo e o acolhimento se caracterizam como importante marco na saúde pública Brasileira, pela mudança conceitual da relação profissional-usuário, o que na prática opera a inversão do modelo técnico-assistencial. Enquanto o acolhimento vem se consolidando como estratégia agregadora no processo de reorganização do serviço de saúde-mudança do foco de trabalho da doença para o ser humano que a abriga, o vínculo se constitui em movimento de trocas afetivas e efetivas (18).
Criar o vínculo profissional, a partir do exposto, implica colocar-se no nível da outra pessoa e deixar a outra pessoa ser ela mesma, ou seja, estimular interações próximas e solidárias, nas e pelas quais o cuidado de enfermagem pontual, linear e mecanicista dê lugar ao cuidado dialógico, criativo e transformador. Tal compreensão reafirma a aposta de ser o agente comunitário de saúde o principal promotor do elo entre a equipe da esf e a comunidade, considerando ser morador da mesma localidade das famílias e por integrar a rede de relações, com atributos de solidariedade e empatia (19,20). Com base no exposto, questiona-se: que competências são necessárias para a formação do vínculo e atuação na equipe Estratégia Saúde da Família?
Na tentativa de ampliar as discussões acerca das competências a serem desenvolvidas na formação de um novo perfil profissional, de acordo com as diretrizes educacionais e políticas do sistema de saúde vigente (SUS), bem como instigar novos saberes que contribuam de forma efetiva e resolutiva para a consolidação da Estratégia Saúde da Família, o presente estudo teve como objetivo desenvolver competências teórico-práticas na enfermagem, para possibilitar a formação do vínculo profissional-usuário. O desenvolvimento se deu com base na inserção ativa e criativa na realidade de famílias assistidas pela equipe Estratégia Saúde da Família.
Metodologia
O processo teórico-prático foi desenvolvido com docentes e acadêmicos do terceiro semestre do Curso de Graduação em Enfermagem do Centro Universitário Franciscano, mais especificamente, a partir da disciplina Teorias de Enfermagem, articulada às demais disciplinas do semestre, às quais possuem como eixo transversal a "Integralidade do cuidado em saúde".
Para esta atividade fim, denominada Adotando uma Família, os acadêmicos foram organizados em equipes de quatro membros cada um e estimulados a articularem uma das Teorias de Enfermagem à realidade cotidiana de uma família, a partir dos passos da Sistematização da Assistência de Enfermagem (21). As famílias, no total de quinze, residem em uma macroregião do município de Santa Maria/rs, Brasil, na qual a instituição de ensino em questão possui forte inserção por meio de práticas interdisciplinares de cuidado em saúde. Essas famílias foram escolhidas pela equipe esf, de acordo com critérios e prioridades previamente estabelecidas. Dentre as prioridades figuraram famílias em cujo quadro familiar constavam usuários de drogas, violência familiar, prostituição infantil, doenças crônicas e mentais, dentre outras. As famílias, em sua maioria, eram compostas de seis a oito membros, casais em algum caso separados, que obtém seu sustento na condição de "catadores de lixo", com renda ac rescida pelo Programa Bolsa Família, iniciativa do Governo Federal. Salienta-se que, para essa atividade fim, os alunos foram devidamente informados e instrumentalizados quanto às condições das famílias, bem como orientados acerca do processo teórico-prático que fundamentaria a formação do vínculo.
Tendo por objetivos fomentar o vínculo acadêmico/profissional-usuário e despertar a sensibilidade, solidariedade e o exercício de cidadania, a atividade acadêmica Adotando uma Família foi desenvolvida por meio de visitas semanais às famílias. Cada visita foi orientada pelo processo teórico-prático sistematizado, o qual será detalhado a seguir. As visitas, com duração de no máximo duas horas, foram realizadas coletivamente por meio de transporte coletivo, sendo que nestas, cada professor orientador acompanhou o seu respectivo grupo.
Salienta-se que, na medida em que a atividade se desenvolvia, vários grupos visitaram às "suas famílias" também fora dos dias agendados, motivados pela doença de algum membro da família ou por solicitação desses. Essas, no entanto, eram realizadas sem a presença dos professores. Ainda, em outros momentos, mais especificamente em dias de intensa chuva, frio ou em datas festivas, os acadêmicos, sensibilizados, convidavam seus próprios familiares para uma visita à "Família Adotada".
A atividade teórico-prática Adotando uma Família tem a duração de um semestre acadêmico, sendo que até o momento foram realizadas dez edições. Em cada edição, foram realizadas em média doze a quinze visitas. Como desfecho do semestre, realizou-se um grande momento integrativo de confraternização, entre todas as famílias, o qual integrou professores, alunos, famílias envolvidas, equipe esf e lideranças da comunidade. Nesse momento, cada grupo de alunos, juntamente com o seu professor orientador e família adotada, foram motivados a fazerem um relato das vivências do semestre, as quais, na maioria dos casos, culminaram com sentimentos de empatia, sensibilidade e vínculo entre os envolvidos.
O processo foi desenvolvido e avaliado no decorrer dos semestres do projeto em curso, mediante o acompanhamento e orientação dos alunos às visitas pelos professores, por meio dos relatos de vivências em sala de aula e nos momentos de integração final, a partir de relatos das Famílias Adotadas, bem como de relatos dos pais dos acadêmicos.
Os aspectos éticos do estudo foram observados em acordo com as recomendações da Resolução nº 466/2012, que prescreve a ética na pesquisa com seres humanos no Brasil (22). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob o número 308.493/2013.
Resultados e Discussão
o processo teórico-prático compreende seis etapas sistematizadas, o qual serviu de suporte metodológico para a realização das atividades programáticas com as famílias adotadas: Histórico e diagnóstico da realidade; Levantamento das necessidades de saúde; Planejamento coletivo das ações de cuidado de enfermagem; Implementação do plano de cuidados de enfermagem; Avaliação coletiva e socialização das vivências e Estratégias de continuidade, todas fundamentadas em uma das Teorias de Enfermagem, previamente escolhida por cada grupo de acadêmicos. O processo foi mediado, ainda, por estratégias metodológicas, tais como: interação efetiva e afetiva com a família, criação de vínculos de confiança e a construção participativa e coletiva de todos os envolvidos, isto é, docentes, discentes, famílias e equipe esf.
Na elaboração da primeira etapa do processo de cuidado de enfermagem histórico e diagnóstico da realidade, foram consideradas as condições familiares, estruturais, ambientais e comunitárias. Pela inserção ativa na realidade das famílias e da comunidade, o acadêmico teve oportunidade e possibilidade de ultrapassar o tradicional histórico e diagnóstico de enfermagem focado na doença. O estudante foi instigado a interagir com a realidade, no sentido de perceber e compreender os diferentes eventos e movimentos da "Família Adotada", em uma perspectiva ampliada, isto é, despido de preconceitos e de pré-julgamentos.
Inicialmente, os estudantes foram apresentados às famílias pelos agentes comunitários da saúde. Estes lhes informaram os objetivos e o processo de trabalho. Em alguns casos, o momento inicial, foi marcado pela dúvida, incerteza e descrédito, visto que muitas famílias tinham sido, frequentemente, manipuladas por interesses políticos e ideológicos. Desse modo, as primeiras visitas foram motivadas por intensas trocas de saberes, vivências e expectativas. No decorrer das próximas visitas, as famílias já aguardavam ansiosamente pelo novo encontro. Seguidamente os alunos expressaram sentimentos, tais como: "Pensava que eu iria até as famílias para ensiná-las, mas logo compreendi que mais aprendo do que levo para eles". "Nossa! fico admirada como as famílias conseguem viver e se organizar nestas condições... eu que tenho tudo em casa, muitas vezes reclamo...".
O levantamento das necessidades de saúde ocorreu no decorrer do processo interativo e dialógico. À medida que os acadêmicos se inseriam concretamente na realidade das famílias, passaram o compreender as reais necessidades das mesmas, mais especificamente, a partir de uma compreensão ampliada de saúde. Passaram a compreender que o conceito de saúde não se reduz a ausência de doenças, mas se amplia para os fatores condicionantes e determinantes sociais, tais como: condições de acesso, moradia, desemprego, violência, prostituição, uso de drogas, desigualdades e isolamento social, desestrutura familiar, aglomeração populacional, entre outros.
Do mesmo modo, o conceito de cuidado de enfermagem inclui essa visão ampliada de saúde e de práticas profissionais integradas. Com base em trocas dialógicas, os acadêmicos facilmente concluíram que "as famílias constroem a sua vida e o seu dia-a-dia, por meio de uma forma de organização particular", possibilitada pelo dinamismo de viver, não no amanhã, mas no hoje, no aqui e agora. Vivenciam o dinamismo do presente, mesmo que na precariedade e na impossibilidade de projetar um futuro radiante.
A partir da compreensão das reais necessidades de saúde, os alunos motivaram as famílias para a realização do planejamento coletivo das ações de cuidado, apoiado e sustentado em uma Teoria de Enfermagem, a qual foi previamente socializada e discutida com a família adotada. Os alunos tinham clareza de que o planejamento não poderia limitar-se as práticas assistencialistas, isto é, às receitas prontas e prescritivas, mas deveria surgir da capacidade de promover estratégias conjuntas do processo de viver saudável. Entenderam que era preciso compartilhar saberes e potencializar os recursos disponíveis.
Entenderam, em suma, que não se tratava de impor cuidados de enfermagem, mas de ajudar à família tornar-se protagonista da sua história, isto é, autora e promotora do seu auto-cuidado. Esta atividade exigiu revisão de conceitos e estratégias de liderança, tanto por parte dos alunos, quanto dos professores. Frequentemente se ouvia algum dos professores comentar: "É preciso valorizar o conhecimento e potencializar os recursos das famílias... nem elas e nem nós temos toda a verdade".
Com base no exposto, a implementação do plano de cuidados de enfermagem aconteceu de forma gradual e crescente. Para tanto, várias parcerias foram firmadas e às redes de cooperação solidária fortalecidas. Estudantes e professores, gradativamente, depararam-se com a sensação de incapacidade e de limitação do saber disciplinar e passaram a discutir interdisciplinarmente; a entender que a integralidade e resolutividade em saúde necessitam de várias esferas sociais e que os diferentes sistemas precisam interagir continuamente. Esta compreensão tornou-se evidente na fala dos alunos: "Precisamos contatar os alunos do direito, porque um dos filhos da nossa família que se envolveu com drogas está sumido"; "Uma das filhas de nossa família precisava de um apoio psicológico... ela foi encaminhada para o serviço interdisciplinar da unifra"; "Tivemos que acompanhar a senhora de nossa família para fazer a carteira de trabalho", dentre outras falas. Também foram estimulados e criados grupos de convivência entre vizinhos, no sentido de promover uma maior integração e envolvimento social, principalmente em famílias com casos de depressão e de isolamento social.
Para a avaliação e socialização das vivências, foi realizado um momento especial de integração entre professores, estudantes, famílias, equipe da esf e lideranças comunitárias, no qual cada grupo de estudantes, juntamente com a sua família, partilharam experiências vivenciadas no decorrer do semestre. Para algumas famílias, este era o primeiro momento de manifestação pública, de dar voz aos sentimentos e compreender o seu real direito de cidadania. Para os estudantes, por sua vez, tratava-se de um momento único, no qual e para o qual tinham canalizado suas energias e esperanças, além da certeza de que tinham formado um vínculo inesquecível. Para os professores, portanto, a sensação de um objetivo alcançado e a certeza de que tinham contribuído, efetivamente, na formação de um profissional mais crítico, solidário e comprometido com a transformação social.
Por parte da equipe de esf e lideranças comunitárias, o reconhecimento pela parceria firmada e a possibilidade de crescimento e renovação. Para os aproximadamente duzentos participantes, o evento representou uma forte integração e mobilização para o novo. Se para os estudantes e professores ficou a certeza de terem "adotado efetivamente a família", para a família ficou o sentimento de terem "aumentado a família pela conquista de novos filhos".
Alguns relatos de familiares ficaram bastante fortes, neste momento: "Agora que eu ganhei estas filhas eu não posso mais perdê-las... quero fazer tudo para ficar sempre com elas"; "Eles, hoje, são os meus verdadeiros filhos... eles se interessam pela gente"; "Depois que estas meninas entraram na minha casa eu mudei... hoje sou outra. Aprendi que sou capaz de crescer e ser alguém na vida". Para a maioria das famílias foi assegurada, a continuidade do processo ao longo dos semestres subsequentes.
A atividade teórico-prática, além de fundamentada em uma Teoria de Enfermagem, foi apoiada também em estratégias metodológicas, tais como: a interação efetiva e afetiva com a família, a criação de vínculos de confiança e a construção participativa e coletiva de todos os envolvidos, com o propósito de emancipar a família como protagonista da sua própria história. Das quarenta e cinco "Famílias Adotadas", no decorrer das três edições do projeto, apenas uma família se retirou do processo, alegando apresentar conflitos. Seu pedido foi respeitado.
Os resultados do processo evidenciam, em suma, que apesar da vulnerabilidade extrema de muitas famílias adotadas, é possível promover o diálogo, estabelecer o vínculo profissional-usuário e instigar saberes que tornem o indivíduo/família protagonista da sua história.
A visibilidade, a credibilidade e a imagem social do enfermeiro passa, a partir do vivido, pela emergência e valorização de novos saberes, dentre eles o saber popular, por uma postura dialógica entre profissional-usuário, por uma abertura conceitual e científica em relação ao modelo biomédico vigente e uma maior responsabilidade política e ideológica dos gestores (23, 24). Essas transformações são potenciais construtoras de vínculo, aproximando quem oferece o cuidado, neste caso, o cuidado de enfermagem, de quem o recebe, a partir de atitudes solidárias que implicam colocar-se no nível da outra pessoa e deixar a outra pessoa ser ela mesma (25).
Conclusão
A experiência acadêmica de formação de graduandos em enfermagem ao construir e implementar um processo teórico-prático de cuidado, capaz de possibilitar a formação do vínculo enfermeiro-usuário da saúde, com base na inserção ativa e criativa na realidade de famílias, foi enriquecedora e construtora de competências no ensinar e aprender a pensar e a fazer o cuidado de enfermagem de um modo renovado, contextualizado e ampliado.
A atividade teórico-prática desenvolvida com as "Famílias Adotadas", atividade inovadora e empreendedora, possibilitou repensar o método de ensinar e aprendere a criar e ampliar o conceito de saúde pela valorização do vínculo profissional-usuário e do cuidado de enfermagem. Na avaliação dos professores, a atividade representou uma efetiva articulação e inserção do ensino com os cenários de prática. Do ponto de vista dos acadêmicos, a atividade possibilitou espaços de construção com o desconhecido e o incerto. Para as famílias, o sentimento de terem sido lembradas e valorizadas como seres humanos e cidadãos. Para a equipe de esf e lideranças, a possibilidade de uma proposta nova e a certeza de um sistema de saúde mais efetivo e eficaz.
Para além do objetivo inicial, possibilitar a formação do vínculo enfermeiro-usuário ou estudante-família, a atividade teórico-prática ampliou também o vínculo professor-família/comunidade; o vínculo academia-equipe esf; o vínculo famílias entre famílias e a ampliação das interações entre os professore e alunos, vice-versa.
Formar o vínculo profissional-usuário como requisito para a atuação na Estratégia Saúde da Família, em suma, significa estreitar relações com o outro, mas também é um processo de educar-se na sensibilidade e solidariedade para vivenciar os acontecimentos em uma perspectiva ampliada de abertura à alteridade. Formar vínculos exige, dessa forma, a competência de perceber-se com o outro e a partir do outro. Em consequência, na educação, as relações e os métodos de ensino devem convergir para o reconhecimento do outro como ser singular, protagonista e autor da sua história.
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