Introdução
O Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) foi identificado como agente etiológico da Síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) ainda na década de 1980. Antes da descoberta do vírus, o mundo vivenciava a era da liberdade sexual e o crescimento do movimento gay. Surgem então os primeiros casos da aids entre homens que praticavam sexo com outros homens e a doença sexualmente transmissível (DST) passa a ser conhecida como GRID (Gay-Related Immunodeficiency Disease) ou Doença da Imunodeficiência Relacionada aos Gays 1-3.
Quando usuários de drogas injetáveis, filhos de mulheres infectadas e pacientes que receberam transfusões de sangue passaram a ser diagnosticados com a doença, a atenção voltou-se para novas formas de transmissão. A denominação 5 H's relaciona essa doença às pessoas identificadas como Homossexuais, Hemofílicas, Haitianas, Heroinômanas (usuários de drogas injetáveis) e/ou Hookers -do inglês, profissionais do sexo-, concentradas nos grandes centros urbanos 2,4. Mesmo antes do esclarecimento científico sobre a AIDS, a sociedade iniciou um processo de teorização sobre a doença com as informações que capturavam, sobretudo, entre as informações veiculadas na mídia, baseadas principalmente nas características dos grupos de pessoas doentes e portadores do vírus 5,6.
Com o passar dos anos, outros grupos começaram a fomentar o cenário epidemiológico da doença. Observa-se a expansão espacial e em número de indivíduos infectados, através do processo de interiorização, além do aumento da concentração entre as camadas mais pobres (pauperização), o crescimento entre as mulheres (feminização) e o consequente aumento da transmissão vertical 3,4. Neste contexto, o presente estudo tem como objetivo compreender as representações sociais de profissionais da saúde sobre os grupos de pessoas vivendo com HIV/AIDS (PVHA).
Materiais e Método
Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo, exploratório e de teoria das representações sociais. A última pode ser considerada como uma forma de conhecimento socialmente elaborado e partilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um dado conjunto social. Sobre a abordagem processual, esta enfatiza o papel das representações nas interações sociais 5.
Como cenário do estudo, selecionaram-se sete Serviços de Atenção Especializada (SAE) e um Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) da capital de um estado do nordeste brasileiro. A amostra do estudo não-probabilística aleatória incluiu os profissionais que se enquadraram nos critérios de inclusão e que aceitaram participar do estudo após o convite e que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Consideraram-se como critérios de inclusão: ser membro das equipes dos serviços selecionados há mais de seis meses e ter iniciado suas atividades assistenciais em saúde na década de 1980.
A amostra foi composta por dez médicos, seis enfermeiros, quatro psicólogos, quatro assistentes sociais, quatorze profissionais de nível médio (técnicos em enfermagem), dois farmacêuticos, três dentistas, um nutricionista e um educador físico, totalizando quarenta e cinco profissionais. Os dados foram coletados entre dezembro de 2012 e maio de 2013. Um roteiro de entrevista semiestruturada foi utilizado como instrumento. A coleta foi realizada pelos discentes do curso de pós-graduação em enfermagem em promoção da saúde, membros do grupo de estudos e pesquisa vinculado ao programa. Salienta-se que as entrevistas foram gravadas em formato de áudio em equipamento digital e transcritas na íntegra 7.
A análise de conteúdo temática-categorial foi feita com o auxílio do software QSR NVívo 9.0. Este software permite ao pesquisador encontrar a informação rapidamente, reagrupando e explorando de maneira exaustiva e sistemática as categorias da análise 8. A técnica é composta por três fases: a primeira, Pré-análise, consiste na preparação -transcrição das entrevistas e normatização dos textos- e leitura flutuante do corpus. Com o suporte do software QSR Nvívo 9.0, procedeu-se à segunda fase de Exploração do material, na qual realizam-se várias leituras a fim de apreender as ideias principais e os significados gerais presentes no corpus. E, por fim, Tratamento dos resultados (Inferência e Interpretação), fase em que se selecionaram as unidades de significado ou de análise, que emergem através do uso de sentenças, frases ou parágrafos em unidades de registro (UR) e unidades de contexto (UC) e categorização 7,8. Destaca-se que o estudo respeitou a resolução 466/12 do Ministério da Saúde (MS), sob o registro CAAE n.° 01080.0.097.000-11.
Resultados e Discussão
Este estudo compreende as representações dos profissionais de saúde sobre os grupos de PVHA e destaca a importância de discutir essas heterogeneidades para a (des)construção estereotipada. Nesse contexto, considerou-se relevante descrever as características sócio-demográficas dos sujeitos de representações, neste estudo, os profissionais da saúde. Os resultados estão listados no Quadro 1.
O homossexual e as sexualidades desviantes
A categoria discute a prevalência de casos de adoecimento relacionados ao HIV contraído por contato sexual, associados à condição de "ser" homossexual, o que acaba por conferir a essa população o legado que será a marca dos anos 1980 10-14. A sociedade, de um modo geral, passará a apresentar a aids não apenas como uma doença transmitida pelo contato sexual, mas pelo contato sexual entre homossexuais 15-16.
Esse processo de geração da representação da aids relacionada à homossexualidade, como revela a categoria pode ser compreendida na UR abaixo, conferindo ao alto número de pacientes masculinos e homossexuais, em detrimento dos outros grupos, como um elemento que ancora essa representação 5. Isso porque, segundo alguns autores da Teoria das Representações Sociais (TRS), estas são construídas a partir de um fenômeno que é tanto cognitivo quanto social, descrito como a elaboração de uma representação de alguém (sujeito) sobre alguma coisa (objeto) 5,9. Assim, as pessoas criaram teorias (representações) sobre a aids e suas formas de transmissão/contágio de acordo com os dados de que dispunham sobre as suas vítimas 6, que nesse momento eram, em sua maioria, homossexuais do sexo masculino, conforme está evidenciado na UR a seguir:
Era um público muito mais masculino, na grande maioria ele era homossexual; mas havia uma grande parcela de heterossexual que se diziam heterossexual, mas que víamos uma bissexualidade [... ] como a mídia falava, uma doença preconceituosa, uma doença que foram os homossexuais que trouxeram, estigmatizada, quem pegava era homossexual ou era profissional do sexo [Psicólogo 09].
Um dos participantes do estudo, destaca que a homossexualidade teve grande influência no processo de construção da representação da aids, até mesmo sobre os profissionais da saúde. Esse processo de influência da mídia sobre as representações dos grupos de PVHA pode ser compreendido como um processo de manipulação social, estabelecendo fatores determinantes na construção da representação, dando lugar a teorias espontâneas e versões da realidade que definem o objeto representado 18. Assim, essas definições partilhadas por um grupo (profissionais da saúde) constituem uma visão consensual da realidade que, nas trocas cotidianas, pode vir a gerar conflitos com outros grupos com representações discordantes 5,9.
A mídia não influencia apenas a construção das representações do HIV/AIDS associadas à homossexualidade, mas está presente em todo o processo de propagação das informações sobre a epidemia. Contudo, ela é citada nesse momento já que a discussão trata do momento da epidemia em que as considerações médicas e científicas ainda não haviam sido concluídas. A falta de conhecimento científico permitiu que a mídia influenciasse a construção das primeiras teorias sobre o vírus, sobre a doença e suas formas de contágio 5.
Este cenário atribuiu à homossexualidade e à morte um papel central no campo representacional, culminando com a formulação da representação original da aids, como revelou uma série de estudos sobre o conteúdo e a estrutura das representações sociais da aids no Brasil 9,6,14,19,20-22.
A mulher e a feminização do vírus
Uma das principais e mais marcantes mudanças do perfil epidemiológico da doença se deu com o aparecimento da síndrome entre mulheres e crianças. Esse fato determinou uma mudança de significado associado à AIDS. Contudo, o aumento do número de casos novos entre a população feminina se iniciou já na década de 1990 e se estabeleceu na década de 2000, quando a proporção de casos entre homens e mulheres passou de 26,5:1 (1985) para 1,5:1 (2015) 23.
Salienta-se a mudança no uso do conceito de grupo de risco, no qual estavam inseridos homossexuais masculinos, para comportamento de risco, que focou a sexualidade feminina e as questões da promiscuidade e prostituição, ou seja, ainda sobre a sexualidade desviante. Nesse contexto, não só homossexuais, mas mulheres estariam também sujeitas ao HIV/AIDS, conforme evidenciado no trecho a seguir:
Como eu só lido com mulher, eu acho que são taxadas de promíscuas. A sociedade, não estou dizendo que é do jeito que eu trato não, são promíscuas, descuidadas. Acho que ainda existe um preconceito muito grande com elas, em relação a tudo [Técnico em Enfermagem 10].
A sexualidade feminina e suas implicações no imaginário social passam por questões históricas, sociais, culturais, econômicas, geopolíticas, religiosas e médicas 4,24. A violência de gênero, a pobreza e a baixa escolaridade as tornam mais suscetíveis às doenças sexualmente transmissíveis e ao HIV/AIDS. Além disso, a constituição fisiológica e biológica elenca a mulher como receptor do ato sexual, seus órgãos sexuais estão internalizados, favorecendo as infecções sexualmente transmissíveis e as tornando, nesse contexto tecnicista e biológico, mais vulneráveis ao HIV/AIDS 25,26.
Contudo, a situação de vulnerabilidade feminina ao HIV/AIDS não permaneceu atrelada somente às mulheres em situação de prostituição e com comportamentos considerados promíscuos 4. A aids passou a incidir sobre mulheres heterossexuais em relacionamentos estáveis 27. A incidência da doença sobre este grupo pode ser explicada pela associação inicial da doença, bastante divulgada pela mídia, aos homossexuais, prostitutas e usuários de drogas injetáveis, o que resultou na falsa ideia de que as mulheres casadas, heterossexuais e fiéis estavam protegidas do contágio pelo HIV e, por isso, não precisariam usar preservativos durante as relações sexuais:
Uma jovem, casou, foi o primeiro relacionamento dela e ela se descobre pessoa com HIV/AIDS a partir do diagnóstico do marido, que vinha adoecendo [Psicóloga 09].
Entretanto, o primeiro estudo a evidenciar os motivos pelos quais a mulher heterossexual estaria epidemiologicamente mais suscetível à infecção pelo HIV/AIDS destaca que as dificuldades de adoção do sexo seguro entre as mulheres estão relacionadas à dificuldade de negociação do uso do preservativo com seus parceiros, iniciando a discussão das questões de gênero na epidemia do HIV/AIDS no Brasil. Esse fenômeno daria lugar à compressão atual da vulnerabilidade feminina 28 como expressa a UR do profissional.
Diante desse contexto, os paradigmas modernos sobre gênero e relacionamento amoroso ou amor romântico passam por questões que remetem à submissão feminina perante o homem, além do ideário de fidelidade em que o uso do preservativo pode propor ou sugerir infidelidade e, por isso, ele é abolido das relações estáveis 29.
A criança e o adolescente: herança da transmissão vertical
A categoria apresenta como o aumento do número de casos entre a população feminina favoreceu o aparecimento de casos entre crianças, a transmissão vertical e como isso fez com que a assistência à saúde da mulher fosse voltada para as questões reprodutivas novamente. Transformando a representação do HIV/AIDS e transformando os culpados (portadores do vírus) em vítimas, conforme discute a categoria.
A representação da aids em crianças remete ao processo de adoecimento. É importante mencionar que as representações sociais dos profissionais da saúde sobre o processo de adoecimento estão relacionadas à compreensão que eles têm sobre o ciclo de vida (nascer, crescer, reproduzir e morrer), no qual não se espera a doença grave (doença de curso crônico ou incurável) e a morte em crianças. Este cenário pode levar o profissional a expressar sentimentos como a angústia e sofrimento 30, como evidenciado na seguinte UR:
[...] Eu tenho pena, a única diferença que eu faço realmente é com criança, eu tenho muita pena de crianças que nascem com HIV, eu tenho pena mesmo [Dentista 14].
Destaca-se que os casos de HIV/AIDS entre crianças começaram a ser notificados em sua maioria entre o início da década de 1990 e 2000, quando se deu a obrigatoriedade do teste de sorologia anti-HIV 23,31, no pré-natal. Isto representou um grave problema de saúde pública e social, até a instituição da terapia antirretroviral e da profilaxia no trabalho de parto, bem como do acompanhamento da mulher PVHA no puerpério 10,32.
Atualmente, crianças e adolescentes portadoras do vírus ainda têm que conviver com o preconceito gerado pelo adoecimento e com as noções do imaginário social sobre a estrutura de sua família e as perspectivas sobre relacionamentos futuros, paternidade e maternidade 33, como demonstra a UR em destaque:
Ainda com muito preconceito, apesar de ter mudado muito o perfil. Até os filhos da geração que nasceram HIV positivo são adolescentes ou adultos que sofrem alguns preconceitos e dificuldades de ter filhos, de gestação [Médico 15].
O pobre e o processo de pauperização da doença
A maior influência nos números de casos novos de aids advém do processo de pauperização da epidemia. As consequentes situações que este processo desencadeia, como a baixa escolaridade, desemprego e baixo poder aquisitivo, inserem essa população na situação de vulnerabilidade para o HIV/AIDS. As UR abaixo evidenciam o tema:
[...] As pessoas que, no início da epidemia, tinham o HIV, eram pessoas com poder aquisitivo mais alto, e atualmente não. Existe a população mais pobre, falando do ponto de vista econômico, e a demanda desta população é muito grande e não temos como atender, até um simples meio de transporte para vir para consulta médica, ou para vir colher exame [Assistente Social 07].
Na discussão dessas UR, destacam-se as representações dos profissionais, que resgatam lembranças do início da epidemia, e revelam que, embora os dados epidemiológicos falassem de uma maioria de classe alta e média alta, nos serviços de saúde e nas unidades hospitalares de internamento, os indivíduos mais pobres é que frequentam os serviços.
Sendo assim, elenca-se mais uma transformação da representação inicial -a doença que estava restrita a indivíduos de alto poder aquisitivo, famosos e artistas- agora passa a ser mais prevalente em pessoas vivendo em situação de pobreza. A "doença do outro" como era descrita a aids passa a afetar pessoas comuns 5.
Sobre essa discussão, vale destacar que o HIV/AIDS contribui para a ampliação e o fortalecimento das políticas públicas de saúde. No cenário da década de 1980 desponta o processo de redemocratização do país e das lutas sociais em defesa de um Sistema Único de Saúde (SUS) 12. Profissionais que atuaram nesse período também mencionam que a participação social foi essencial, sobretudo das classes média e média alta, que exigiu direito ao acesso a serviços e tratamento de qualidade -até 1998 os planos de saúde não eram obrigados a incluir a aids no acesso ao seguro-:
[...] A partir do momento que a classe média resolveu o seu problema com os planos de saúde, o programa aids empobreceu [Médico 01].
Mas apontam também que, com o processo de pauperização, o programa de atenção e cuidado ao HIV/AIDS perdeu a pressão da participação social, pois as classes mais pobres não costumam atuar de maneira direta na luta por seus direitos, conforme mencionado pelo profissional na UR anterior.
O idoso: a manutenção da sexualidade e o risco da transmissão
A categoria aborda o processo de transição demográfica que resultou no aumento da expectativa de vida da população brasileira e subsequente aumento do número de idosos sexualmente ativos. Por não terem sua sexualidade compreendida no contexto da promoção à saúde e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis 34, este público não tem o hábito de usar preservativo e/ou realizar testes anti-HIV. As falas a seguir reafirmam a dificuldade de se compreender a sexualidade do idoso e sua vulnerabilidade para o HIV/AIDS:
Foi muito difícil ouvir a história daquela senhora de setenta e seis anos, talvez por isso, me afetou diretamente por eu ser mulher e talvez não conseguir também visualizar uma pessoa tão idosa com HIV/AIDS [Psicólogo 16].
Os profissionais apresentam as ideias que têm das PVHA e demonstram a dificuldade em reconhecer o idoso como indivíduo sexualmente ativo e portador do vírus. Esse fato reflete o imaginário social que estabelece normatizações sobre a sexualidade do idoso, tanto homens quanto mulheres 6.
Considerações finais
Entre os resultados deste estudo, a homossexualidade e as questões relacionadas a conflitos e discussões sobre gênero e sexualidade são temas pouco explorados para a assistência à saúde. Em suas representações, os profissionais demonstram que as sexualidades desviantes (homossexualidade e transexualidade) não são articuladas com elementos dos direitos sexuais e reprodutivos, apontando como necessário inserirem-se essas discussões na formação (graduação) e na educação permanente como tema transversal.
Os resultados do estudo também apontam que a condição de vulnerabilidade entre crianças, adolescentes e mulheres heterossexuais e idosos, ainda não é compreendida de forma que favoreça as atitudes de apoio emocional para o enfrenta-mento de PVHA sobre sua condição.
Assim, este estudo contribui para a prática da enfermagem ao considerar como elementos críticos da vulnerabilidade, gênero e sexualidade, classe social e faixa etária frente às transformações das representações sociais sobre as PVHA, na promoção da saúde em sua prática profissional.