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Avances en Enfermería

Print version ISSN 0121-4500

av.enferm. vol.35 no.3 Bogotá Sep./Dec. 2017

https://doi.org/10.15446/av.enferm.v35n3.62825 

Artículos de investigación

Inter-relações no processo de morrer no hospital: olhar do familiar cuidador*

Interrelaciones en el proceso de morir en el hospital: mirada del familiar cuidador

Interrelations in dying process in the hospital: family caregiver's perspective

Tania Cristina Schafer Vasques1 

Valéria Lerch Lunardi2 

Rosemary Silva da Silveira3 

Liziani Iturriet Avila4 

Graziele de Lima Dalmolin5 

Karen Knopp de Carvalho6 

Aline Campelo Pintanel7 

1 Doutora em Enfermagem. Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande/RS, Brasil. E-mail: taniacristina9@yahoo.com.br

2 Doutora em Enfermagem. Professora Permanente voluntária, aposentada; Programas de Pós Graduação em Enfermagem. Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande/RS, Brasil. E-mail: vlunardi@terra.com.br

3 Doutora em Enfermagem. Docente Adjunta, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande/RS, Brasil. E-mail: anacarol@mikrus.com.br

4 Doutora em Enfermagem. Docente Adjunta, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande/RS, Brasil. E-mail: l.iturriet@yahoo.com.br

5 Doutora em Enfermagem. Docente Adjunta II, Departamento de Enfermagem, Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria/RS, Brasil. E-mail: grazieledalmolin@yahoo.com.br

6 Doutora em Enfermagem. Docente Auxiliar, Centro de Ciências da Vida e da Saúde, Universidade Católica de Pelotas. Pelotas/RS, Brasil.E-mail: knoppcarvalho@hotmail.com

7 Doutora em Enfermagem. Docente Adjunta, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande/RS, Brasil. E-mail: acpintanel@hotmail.com


Resumo

Objetivo:

Conhecer como o familiar cuidador percebe sua inter-relação com membros da equipe de enfermagem e com seu familiar enfermo no processo de morrer.

Metodologia:

Estudo qualitativo, desenvolvido em um hospital universitário no sul do Brasil entre março e junho de 2016, que se fundamentou na metodologia de Leininger e na teoria de Morin. Participaram 24 familiares cuidadores de indivíduos hospitalizados e em processo de morrer. Foram realizadas observações, entrevistas e análise contextual dos dados colhidos.

Resultados:

A partir da análise dos dados, surgiram duas categorias: Fragilidades percebidas pelos familiares cuidadores nas suas inter-relações com enfoque às rupturas nessas relações; e Potencialidades no processo inter-relacional do familiar ou cuidador, com enfoque às potencialidades dos familiares cuidadores em proporcionar melhor qualidade de vida aos indivíduos enfermos.

Conclusão:

Os familiares cuidadores que participaram do nosso estudo demonstraram a importância de se investir em potencialidades, buscando formas de se reorganizarem, para o enfrentamento do processo de morrer, no qual ocorre tanto desgaste físico como mental.

Descritores: Morte; Doente Terminal; Enfermagem; Inter-relação; Família (fonte: decs, bireme)

Resumen

Objetivo:

Conocer cómo el familiar cuidador percibe su interrelación con los integrantes del equipo de enfermería y con el familiar enfermo en el proceso de morir.

Metodología:

Estudio cualitativo, desarrollado en un hospital universitario del sur de Brasil entre marzo y junio de 2016, el cual se fundamentó en la metodología de Leininger y en la teoría de Morin. Participaron 24 familiares cuidadores de individuos hospitalizados y en proceso de morir. Se realizaron observaciones, entrevistas y un análisis contextual de los datos recolectados.

Resultados:

A partir del análisis de los datos, surgieron dos categorías: Debilidades percibidas por los familiares cuidadores en sus interrelaciones, con enfoque en las rupturas en estas relaciones; y Potencialidades en el proceso interrelacional del familiar cuidador, con enfoque en las potencialidades de los familiares cuidadores para proporcionar mejor calidad de vida a los individuos enfermos.

Conclusión:

Los familiares cuidadores de nuestro estudio demostraron la importancia de generar potencialidades, buscando formas de reorganizarse, para el afrontamiento del proceso de morir, en el cual se presenta un desgaste físico y mental.

Descriptores: Muerte; Enfermo Terminal; Enfermería; Interrelación; Família (fuente: decs, bireme)

Abstract

Objective:

To understand how family caregivers perceive their interrelation with members of nursing team and their ill family member in dying process.

Methodology:

This is a qualitative study, conducted in a university hospital from southern Brazil between March and June 2016. It was based on the Leiningerʼs methodology and the Morin’s theory. Twenty-four family caregivers of individuals who were hospitalized and in dying process participated in our study. Observations, interviews and contextual analysis of data collected were carried out.

Results:

Two categories emerged based on data analysis: Weaknesses perceived by family caregivers in their interrelations, with a focus on breakdowns in these relations; and Potentialities in the interrelational process of family caregiver, with a focus on potentialities of family caregivers to provide a better quality of life to ill individuals.

Conclusion:

Family caregivers of this study demonstrated the need to build potentialities, looking for ways to reorganize, in order to cope with dying process, which demands both physical and mental weariness.

Descriptors: Death; Terminally Ill; Nursing; Interrelation; Family (source: decs, bireme)

Introdução

O ciclo complexo da vida engloba interações entre indivíduos e deles com o meio em que estão inseridos. Tais interações envolvem o homem, seu saber, sua diversidade, e sua subjetividade, assim como o ambiente, podendo levar a sentimentos ambíguos e difíceis de serem abordados, como a temática do processo de morrer no hospital. Dessa forma, considera-se que as partes podem influenciar o todo, assim como o todo pode influenciar as partes 1.

O processo de morrer torna-se um fenômeno multifacetado, percebido de forma distinta e única em cada civilização. O morrer pode ser considerado uma fase existencial, com o despertar de temores, evidenciado pela dificuldade em lidar com a finitude de si e do outro 2.

Segundo dados de 2012, as doenças crônicas não transmissíveis são responsáveis por aproximadamente 74% das mortes no Brasil. Essa estimativa tem impacto na qualidade de vida dos indivíduos que vivenciam o processo de morrer, pois o manejo inadequado dos sintomas de doença e as condições financeiras precárias da família e da comunidade podem levar à morte prematura ou ao prolongamento sofrido da vida. Portanto, os gestores de saúde precisam estar atentos a tais realidades brasileiras 3.

Quando se fala das inter-relações no processo de morrer no hospital, o cuidado e o diálogo nessa fase delicada e complexa da vida tornam-se ainda mais relevantes. No entanto, o hospital ainda é visto como um local para a cura física, sem espaço para diálogo sobre despedidas, dores e perdas características desse processo; a dor psicológica da doença incurável 4.

É nesse momento que os indivíduos precisam de um olhar integral e religado; quando o enfermo requer ser cuidado com dignidade, porém seu familiar cuidador merece, também, atenção especial. Tal olhar deve ser multidimensional desde o momento do grande impacto da comunicação do diagnóstico à família, uma vez que precisam se reorganizar para lidarem com todos os possíveis percalços decorrentes da progressão da doença. Assim, ao se sentirem acompanhados e fortalecidos, poderão ser um elo importante entre o indivíduo enfermo e os membros da equipe de enfermagem 5.

É necessário, então, desmitificar a ideia de que não há "nada a se fazer" pelo indivíduo enfermo nessa fase da vida, mas antes tornar a vida que lhe resta o mais confortável e digna possível. O cuidado pode ser realizado até o fim da vida, sendo estendido a seus familiares cuidadores também em seu processo de luto, por meio de uma interação verdadeira, solidária, e empática 6,7,8.

Ao destacar que vida e morte são interdependentes, porém ambas necessárias à continuidade do ciclo vital, essa relação vida/morte remete à ideia de auto-organização e de caráter paradoxal, postulando uma lógica de complexidade em que não existe linearidade no processo de morrer 1. A escolha pelo referencial filosófico de Edgar Morin ocorreu especialmente pelo entendimento de que esse processo é comumente permeado pela incompletude, que requer interconexão entre os envolvidos no processo de cuidado no fim da vida 8,1.

Percebemos que não há discussão suficiente sobre o sofrimento vivenciado e o modo como cada enfermo e seu familiar cuidador enfrentam as situações de perda envolvidas no processo de morrer; a busca da cura é priorizada, evitandose de toda forma falar sobre a morte. Portanto, a justificativa deste estudo é a usual ruptura das relações no processo de morrer 9 no ambiente hospitalar, objetivando conhecer como o familiar cuidador percebe sua inter-relação com os membros da equipe de enfermagem e com seu familiar enfermo no processo de morrer.

Materiais e Método

Trata-se de um estudo qualitativo metodologicamente inspirado em Leininger1, embasado teoricamente na complexidade de Morin. Este trabalho foi realizado entre março e junho de 2016 na Unidade de Clínica Médica (UCM) de um hospital universitário no Sul do Brasil.

Participaram 24 familiares cuidadores de indivíduos no seu processo de morrer em ambiente hospitalar. Os participantes foram selecionados após a identificação de todos os familiares que acompanhavam indivíduos no fim da vida; 33 cuidadores de todos os turnos foram convidados a participar. Desses, 24 familiares cuidadores de indivíduos em processo de morrer aceitaram participar do estudo e foram inseridos como informantes gerais, ou seja: foram incluídos nas observações mediante a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

Conforme preconiza a metodologia de Leinin-ger 10, realizamos quatro fases de observação, computando 172 horas: fase 1: não participante; fase 2: pouca participação e mais observação; fase 3: mais participação e menos observação; e fase 4: observação reflexiva. Após cada turno, registramos aspectos relevantes ao estudo em um diário de campo.

Durante as observações, atentamos ao modo como os familiares cuidadores se relacionavam com os membros da equipe de enfermagem e com os indivíduos enfermos. Na terceira fase da observação, selecionamos 15 familiares cuidadores para a etapa da entrevista individual, com duração de 40-75 minutos. As entrevistas foram gravadas após a assinatura do termo de consentimento, e incluíam questões semiestruturadas formuladas a partir do conteúdo das observações, caracterizando os informantes-chave conforme a metodologia de Leininger 10. Essa etapa obedeceu aos seguintes critérios de inclusão: serem cuidadores principais do indivíduo enfermo, e manifestarem-se quanto à (in)sensibilidade para tornar menos sofrido o processo de morrer dos enfermos internados na unidade de estudo. Foram excluídos os familiares cuidadores menores de 18 anos.

A análise incluiu quatro fases simultâneas às fases de observação: fase 1: após a primeira observação, com foco na observação das inter-re-lações entre o familiar cuidador e seu indivíduo em processo de morrer; fase 2: após a segunda observação, começando a selecionar os informantes-chave; fase 3: após a terceira observação, com a escolha definitiva dos informantes-chave para as entrevistas; e fase 4: após a entrevista e a quarta observação, com a identificação de comportamentos e análise contextual. Posteriormente, realizamos a síntese dos dados, a abstração das categorias e as formulações teóricas referentes ao tema 10.

A coleta dos dados se iniciou após aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa na Área da Saúde (CEPAS), mediante o parecer 16/2016, respeitadas as recomendações da Resolução n.° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde 11. Os participantes foram identificados pela sigla fc seguida de números arábicos, conforme a ordem das entrevistas (FCI, FC2...), respeitando seu anonimato. Quanto aos registros de diário de campo, utilizamos a sigla rdc.

Resultados e Discussão

Fragilidades percebidas pelos familiares cuidadores nas inter-relações com os membros da equipe de enfermagem e com o indivíduo em seu processo de morrer

O processo de morrer por vezes desencadeia rupturas, fragilidades, dúvidas, e desordens, fazendo com que o familiar cuidador busque formas de enfrentamento dessas incertezas para proporcionar melhor conforto e bem-estar ao familiar enfermo nessa fase da vida. Percebemos que muitos dos enfermos parecem fechar-se em si, afastando-se de um diálogo aberto e possível com seu familiar cuidador:

Nessa tarde, percebi que o paciente fingia dormir enquanto sua familiar tentava conversar sobre seu estado de consciência e de saúde, tentando interagir perguntando como ele estava se sentindo naquela tarde. Ele olhava com os olhos quase fechados, sem vontade de interagir, mesmo com sua condição clínica permitindo tal conversa. Entendi essa atitude como fuga, uma maneira de escapar do enfrentamento daquele momento de terminalidade. Parecia querer sair dali. Para a familiar, a interpretação desse momento restringiu-se ao efeito da pesada medicação, que o deixava sonolento [RDC].

Em nenhum momento ele falou para nós a doença que tinha, talvez por vergonha de como ele pegou, então se fechava e não falava [FC6].

Tais fragilidades por vezes afastam o familiar cuidador do indivíduo que vivencia o fim da vida, dessa incerteza em relação ao que o indivíduo doente sentia ou pensava em relação a sua situação de terminalidade. No entanto, deve-se pensar nessas incertezas como princípio norteador da humanidade, e não simplesmente se afastar dessa realidade, do processo de morrer, vivido pelo indivíduo doente 1.

Os indivíduos em seu processo de morrer podem evitar diálogos que abordem a causa do adoecimento, seja por vergonha, receio ou aversão; talvez prefiram não relembrar situações relacionadas a sua condição, optando pelo isolamento social 12,13. Os indivíduos em processo de morrer podem manifestar irritabilidade, dificultando interações com o familiar cuidador:

Α princípio ele faz o que peço, apesar de teimoso, às vezes fica meio confuso e às vezes ele xinga [FC1].

Ele é bem difícil de lidar. É agressivo mesmo aqui na cama, chuta, xinga, não consigo ser próximo [FC4].

Tem horas que ele está mais agressivo sem eu ter feito nada, não sei se é da doença ou se é dele mesmo [FC8].

Vale salientar que os indivíduos em processo de morrer geralmente vivenciam cinco fases durante a progressão de uma doença incurável: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Essas fases são consideradas mecanismos de defesa; têm duração variável, são sequenciais ou simultâneas, e os auxiliam no enfrentamento de situações difíceis. Os depoimentos anteriores aludem ao segundo estágio, da raiva, no qual o indivíduo passa da negação da doença para revolta, rebeldia, e ressentimento 4.

Os indivíduos enfermos podem expressar raiva e frustração em todas as direções, como observamos em nosso estudo; isso dificulta sua relação tanto com familiares cuidadores quanto com os membros da equipe de enfermagem. Isso exige que familiares cuidadores busquem a melhor forma de lidar com o indivíduo enfermo frente ao processo de morrer 1.

O familiar cuidador procura de alguma forma se reorganizar em toda a desordem decorrente de uma doença incurável:

Tem acompanhante que às vezes fica tão obcecado em fazer com que aquela pessoa que está ali fique boa, que acaba se esquecendo dela mesma. Se esquece até mesmo de tomar banho, de se alimentar [FC3].

Α mãe está ficando mais esgotada, cansada de cuidar [FC2].

Os familiares cuidadores sofrem ao vivenciar a angústia e sofrimento do indivíduo enfermo; essa circularidade retroativa pode ocasionar efeitos sobre sua saúde emocional e física 13. Frequentemente reafirmam sua necessidade de paciência enquanto cuidam, durante a internação hospitalar, pontuando a dificuldade de se manterem estáveis, cuidando também de si mesmos durante esse processo 14.

Segundo os informantes-chave, a exaustão e o sofrimento decorrentes do cuidado de um indivíduo enfermo no fim da vida culminam com o desejo de vê-lo descansar, procurando simultaneamente eximir-se da culpa frente a esse desejo:

É doída a perda, mas a gente já pedia para que Deus tivesse misericórdia dela porque ela estava sofrendo muito e como a gente sempre fez tudo, aquele sentimento de remorso eu não tenho [FC12].

A morte, mesmo dolorosa, passa a ser uma promessa de alívio, de libertação e conforto tanto para o indivíduo enfermo que está, muitas vezes, em sofrimento, quanto para o familiar cuidador que está vivenciando esse processo 15; isso contrapõe e complementa sentimentos de forma complexa 14. A culpa é um sentimento recorrente para quem cuida desses indivíduos; a dor psíquica é imensa quando o início do fim se torna nítido. A fase de aceitação do fim da vida de seu ente querido é o estágio em que o familiar cuidador se aquieta e se isola; a vontade de lutar vai cessando gradualmente, e a necessidade de descanso sobrepõe-se a essa luta 15.

A aceitação da morte por parte do familiar cuidador significa não mais temer ou se angustiar intensamente ao se inter-relacionar com esses indivíduos diante da perda inevitável. É o aprendizado do desinvestimento afetivo, para elaborar o desligamento e a futura separação, propiciando maior harmonia consigo 5.

Em relação às fragilidades nas inter-relações no processo de morrer, quando questionamos sobre as interações com os membros da equipe de enfermagem, familiares cuidadores salientaram a ausência e o afastamento, tanto deles quanto dos indivíduos enfermos:

Interação com o paciente eu não vi. Α enfermagem foi o que a gente não viu, estavam sempre correndo, então restava a nós dar esse conforto um ao outro, do jeito que a gente podia dar [FC6].

Ele passou a noite com sede. Eu disse: mas mano, não tem como tu gritar alguém? Ele respondeu: «Não tinha mais medicação, mana, aí elas -equipe de enfermagem- não aparecem, e eles -outros pacientes- aqui são todos sozinhos, não tem como sair», e ele está paralítico, ele não tem como sair de uma cama e chamar [FC7].

Eles chegam: «agora já venho e faço». Sabe? Parece que estão ali obrigados, são duas ou três da equipe que são assim [FC10].

Esse afastamento da equipe pode ser uma estratégia para evitar o sofrimento de confrontar sua própria finitude, ou decorrência do despreparo e da falta de discussão e reflexão da equipe perante o processo de morrer. Isso leva à fuga e afastamento em um momento em que deveria haver aproximação entre os envolvidos 16.

Esse comportamento pode ser decorrente do fato de não saberem o que falar nesse momento, em que os indivíduos mobilizam sentimentos de tristeza, pesar, e impotência frente ao processo de morrer 17. Nas observações, percebemos a angústia dos membros da equipe de enfermagem diante do sofrimento do indivíduo nos seus últimos momentos de vida e o cansaço e sofrimento de familiares cuidadores; uns desejando o descanso do enfermo, e outros lutando pela cura 18,19.

Verificamos manifestações de angústia e culpa por parte de familiares cuidadores em decorrência de desejos não atendidos do enfermo:

Eu fiquei com pesar de não dar o café para o homem - o indivíduo enfermo. Ficou aquele registro, aquela culpa na cabeça, do que ele me pediu [FC9].

Em seguida que ela morreu, eu tinha uma revolta grande por que eu não queria que ela sofresse e ela sofreu, esse era o meu problema, um pouco culpa por não ter conseguido evitar isso [FC12].

No enfrentamento do processo de morrer, familiares cuidadores apresentam dúvidas e incertezas sobre como agir com o enfermo. Os indivíduos enfermos em situação de finitude podem apresentar desejos de experimentar sabores e cheiros, de verem ou ouvirem pessoas queridas; cabe ao familiar cuidador negociar a possibilidade de atender tais desejos 15.

Nas observações, constatamos que os familiares cuidadores querem orientação sobre como agir frente ao caos em que a vida se transformou com a constatação da finitude da vida do enfermo. Percebemos também que os diálogos relacionados ao processo de morrer eram sussurrados, e abordados com expressão de pesar entre a maioria dos familiares cuidadores.

Nesse sentido, uma possível resposta para esse sofrimento seria uma participação viva, com amor e solidariedade, extraindo do paradoxo vida-morte uma reorganização para de certa forma reformular a vida que ainda existe ali, com suas relações, interações e convívio, tornando essa dor física e psíquica o menos sofrida possível 20. Esse paradoxo precisa ser discutido e refletido a fim de repensarmos formas de proporcionar melhor qualidade e dignidade para o fim da vida, vivendo--a o mais ativamente possível até seu fim 20.

Potencialidades no processo inter-rela-cional do familiar cuidador com o indivíduo enfermo e com os membros da equipe de enfermagem

Entendemos a aparente sensibilidade/empatia dos familiares cuidadores para perceber e atender necessidades e desejos dos indivíduos enfermos como uma potencialidade no processo inter-relacional do familiar cuidador com o indivíduo enfermo:

Ele pegou e disse: «Mas não é para deixar contar nada, coitadinho do vô -o outro paciente do quarto- senão ele vai desandar, porque se fosse comigo eu não queria que me contassem». Então deu para mim a minha vitória foi ganha [FC7].

Faço tudo que posso para ela aqui, não tem essa de não poder, se ela está indo embora [morrendo] porque não fazer sua vontade? Quando não estou ela pergunta por mim [FC3].

O familiar cuidador tende a ter dúvidas sobre como proceder no atendimento dos desejos do enfermo. Entretanto, observamos que, quanto maior o vínculo entre os familiares cuidadores e o enfermo, maior a possibilidade de resolução de dúvidas, medos e anseios, possibilitando maior tranquilidade nessa fase. Familiares cuidadores demonstraram sentimentos positivos na manutenção de seus papeis de cuidadores, sentindo-se importantes e responsáveis por satisfazer as necessidades do indivíduo no fim da vida e julgando vitorioso seu processo de cuidar quando conseguem reduzir seu sofrimento 21.

Familiares cuidadores sinalizaram potencialidades frente às interações possíveis, destacando sentimentos de amparo e segurança ao poderem compartilhar cuidados ao indivíduo enfermo com os membros da equipe de enfermagem; também destacaram o fortalecimento de suas redes de apoio, com manifestações de solidariedade com os demais indivíduos enfermos e seus familiares cuidadores presentes na mesma enfermaria do hospital:

Ah tem umas [técnicas de enfermagem] da noite, também que deixavam ele direitinho como manda o figurino, chegava no outro dia e ele limpinho, isso me confortava, saber que ele estava cuidado [FC9].

Com o pessoal do quarto tenho um bom relacionamento, tento interagir com eles, ajudar quando posso e sei que posso contar também [FCI].

Não cuido só da minha tia, mas converso e aprendo junto com os outros que estão no quarto [FC3].

O significado do cuidado de enfermagem no fim da vida para esses familiares cuidadores está ancorado na presença física dos membros da equipe de enfermagem, instrumento de intervenção relevante cujas ações podem ser muitas ou nenhuma, dependendo das demandas dos indivíduos enfermos e seus familiares cuidadores. O modo como procedimentos técnicos são realizados é importante na concepção da família 22.

Observamos ainda manifestações de familiares cuidadores resistindo à alta hospitalar, confiando que seu enfermo hospitalizado poderia receber mais rapidamente a analgesia necessária para evitar sofrimento 23. Percebemos manifestações mútuas de solidariedade entre familiares cuidadores, numa expressão de construção de redes de apoio com os demais familiares cuidadores presentes nesse ambiente. Compartilhar e interagir com indivíduos que vivenciam situações de sofrimento parecido configura-se em redes de apoio. Mediante um contato sistêmico, constroem-se vínculos de amizade, amparo, e informação que podem se inter-relacionar, tornando menos pesado o fardo de vivenciar o processo de morrer no hospital 23.

Outra potencialidade identificada foi a reaproxi-mação entre familiar cuidador e indivíduo enfermo, a partir do diagnóstico da doença e da consequente internação hospitalar:

A nossa relação sempre foi um pouco distante, então, hoje isso também pesa para ele estar aqui dentro, porque aí ele tem que falar das coisas dele. Mas ele já está sentindo falta de mim quando não venho [FC13].

A relação que a gente teve com ele foi mais uma reaproximação e o momento que ele queria um entendimento para partir em paz, de se desculpar. Chorou bastante, de arrependimento, de remorso, porque poderia ter sido tudo diferente [FC6].

A família tem um papel importante diante de um diagnóstico de finitude da vida; seus membros oferecem suporte e tendem a se reaproximar, fortalecendo relações; desavenças podem ser resolvidas e repensadas, resgatando-se o afeto e vínculos possivelmente perdidos 24.

Esse enfrentamento pode levar à reorganização do núcleo familiar por meio da união de seus membros, dos entendimentos, e de seus contextos interdependentes 25. A característica de cada família em geral segue normas, valores e objetivos, que são partilhados com todos nesse núcleo e formam suas particularidades e identidades 1.

Considerações finais

A complexidade envolvida nas inter-relações de familiares cuidadores com a equipe de enfermagem e com o indivíduo enfermo no seu processo de morrer no hospital indica a necessidade de ouvir e reconhecer que o familiar cuidador, elo entre esses profissionais e o indivíduo enfermo, também é uma unidade de cuidado a ser considerada nas inter-relações no ambiente hospitalar.

Nesse sentido, familiares cuidadores demonstraram a importância de investir em potencialidades para o enfrentamento do processo de morrer, que leva tanto ao desgaste físico quanto mental. Para isso, buscam formas de se reorganizarem, proporcionando maior conforto aos indivíduos enfermos nesse processo de morrer, reapro-ximando-se, procurando atender seus desejos, sendo empáticos e disponíveis em suas relações.

Assim, é urgente pensar esse processo de forma multidimensional, pois o tema é antagônico e complementar; antagônico por se tratar da dualidade vida/morte, e complementar, pois morte e vida precisam necessariamente uma da outra no ciclo vital. Assim, o fim da vida exige um olhar para todo o contexto de vida do indivíduo, bem como de seu familiar cuidador.

Por essa razão, consideramos que uma limitação de nosso estudo é o fato de não termos incluído a perspectiva dos próprios indivíduos enfermos no ambiente hospitalar. Recomendamos que estudos futuros incluam os indivíduos em processo de morrer aqui excluídos a fim de buscar entender esse processo na visão dos próprios indivíduos enfermos.

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* Este trabalho é um recorte da tese intitulada Inter-relações no processo de morrer em ambiente hospitalar.

1 Leininger reconhece na etnoenfermagem um método importante para a obtenção de fatos, sentimentos, e percepção de mundo sobre determinada vivência, bem como de outros dados que permitam a compreensão de situações e sentimentos reais e verdadeiros e de modos de vida no seu cotidiano (10).

Recebido: 21 de Fevereiro de 2017; Aceito: 24 de Maio de 2017

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